Autora: Santos, Alice Sousa – Bacharel em Direito pela Universidade de Gurupi-TO/ UNIRG. E-mail: alicegurupito@hotmail.com
Orientador: Santos, Wenas Silva – Prof. Mestre em Estudo de cultura e território e professor Universitário no Curso de Direito na Universidade de Gurupi-TO/ UNIRG. E-mail: wenasadv17@gmail.com
Resumo: O presente artigo tem como objetivo discorrer e analisar à luz da Carta Magna sobre o princípio fundamental da liberdade de expressão, que garante ao indivíduo o direito de exteriorizar sua opinião e ideais sem medo de represálias ou censuras, sua proteção constitucional em um Estado laico, como ele vem sendo aplicado nos dias atuais e abordar os seus limites quando convergente com a prática da intolerância religiosa, tipificada pela lei brasileira como discriminação e tratada como um crime inafiançável e imprescritível, com pena de reclusão e multa, que devido a várias culturas e formas diferentes de pensamentos, ideias e religiões, é uma prática crescente no Brasil. Refletir como a sociedade, a mídia e entidades religiosas influenciam nas decisões judiciárias no âmbito da liberdade de expressão e intolerância religiosa nos dias atuais. A pesquisa utilizará o método lógico-dedutivo, bem como transição de opiniões doutrinárias e conceito, com o intuito de analisar detalhadamente a respeito do tema, para ao final tratar ele e sua aplicação de uma maneira mais especifica. A pesquisa acontecerá ainda com foco em uma abordagem qualitativa, levando em consideração a efetividade do tema no meio social, através dos meios de comunicação.
Palavras-chave: Constituição. Expressão. Intolerância. Liberdade. Limites.
Absctract: This article aims to discuss and analyze in the light of the Constitution the fundamental principle of freedom of expression, which guarantees the individuals the right to express their opinions and ideals without fear of reprisals or censorship, its constitutional protection in a secular state, how it is being applied today and address its limits when converging with the practice of religious intolerance typified by Brazilian law as discrimination and treated as a non-bailable and imprescriptible crime with a penalty of imprisonment and a fine, which due to the various cultures and different ways of thinking, ideas and religions, is a growing practice in Brazil. Reflecting on how society, the media and religious entities influence judicial decisions in the context of freedom of expression and religious intolerance today. The research uses the logical-deductive method as well as transition from doctrinal opinions and concepts, in order to analyze the theme in detail, to treat it and its application in a more specific way at the end. The research will also take place with a focus on a qualitative approach, taking into account the effectiveness of the theme in the social environment, through the media.
Keywords: Constitution. Expression. Intolerance. Freedom. Limits.
Sumário: Introdução. 1. Considerações preliminares acerca do princípio à liberdade de expressão. 1.1. Conceito de liberdade de expressão. 1.2 Conceito de intolerância religiosa. 2. A liberdade de expressão e a intolerância religiosa no ordenamento jurídico brasileiro. 2.1 A proteção constitucional da liberdade de expressão. 2.2 intolerância religiosa e a importância de sua criação no ordenamento jurídico brasileiro. 3. Os limites entre a liberdade de expressão e a intolerância religiosa. 3.1 Quais os limites legais para a liberdade de expressão. 3.2 Quando liberdade de expressão e intolerância religiosa se convergem. 4. Liberdade de expressão e a intolerância religiosa na mídia e nos meios de comunicação 4.1 Exemplos de casos de intolerância religiosa no Brasil retratados pela mídia. 4.2 Os meios de comunicação como forma de propagação da intolerância religiosa. Conclusão. Referências bibliográficas.
A Constituição Federal em seu artigo 5° nos traz princípios fundamentais como o da liberdade de expressão, que estabelece a faculdade de expressar opiniões, ideias e pensamentos, independente da forma, seja ela artística, cultural, de maneira humorística, ou através de discursos. Alexandre de Moraes diz que: “A Liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e compreende não somente as informações consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também aquelas que possam causar transtorno, resistência, inquietar as pessoas, pois a Democracia somente existe a partir da consagração do pluralismo de ideias e pensamentos, da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo”. (MORAES, 2004, p. 118).
Todavia, sabemos que nenhum direito é ilimitado, pelo contrário, embora exista tal arbítrio, a lei também estabelece alguns limites para este princípio, quando o mesmo se converge, por exemplo, com a Intolerância religiosa.
Intolerância religiosa é um termo que tem como significado uma ausência de vontade ou habilidade em compreender e respeitar as diferenças existentes de outras crenças ou religiões praticadas por grupos e indivíduos, que se configura crime quando o intolerante passa a agir com desrespeito, violência, ou qualquer outra maneira que infrinja a dignidade e o direito de outrem.
No Brasil, ainda que a constituição Federal e a Declaração Universal dos Direitos Humanos defenda a Liberdade Religiosa e criminalize a Intolerância Religiosa, a prática continua crescente no país. Com o crescimento acelerado dos meios de comunicação, tornou-se mais fácil manifestar as opiniões e exercer o direito à liberdade de expressão, o que nos traz ao entrave: Estão somente se expressando através de sua liberdade, ou infringindo o direito do outro indivíduo e agindo de forma intolerante?
O presente trabalho tem como objetivo abordar esse questionamento, e analisar à luz da Constituição o Princípio da liberdade de expressão, sua proteção constitucional e os seus limites sob a prática da intolerância religiosa.
Um dos objetivos primários do Direito, senão o mais importante, é a busca pela paz social e a democracia. O ordenamento jurídico brasileiro enfrentou avanços e retrocessos, momentos sombrios como a época da Ditadura Militar, para que pudesse evoluir e expressar verdadeiramente a vontade popular, se adequando a realidade. Nessa mesma perspectiva, Norberto Bobbio (1992, p. 5) conclui que: “Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. (Bobbio, 1992, p. 5).
O princípio da liberdade de expressão assim como a condenação à Intolerância Religiosa são frutos de lutas e manifestações em defesa da democracia que ainda não foram conquistados em sua totalidade, mas que vêm evoluindo com o tempo e com a sociedade.
1.1 Conceito de liberdade de expressão
Para entendermos o conceito do princípio da Liberdade de expressão, é necessário preliminarmente entendermos o significado de liberdade. Aristóteles disse que a liberdade é a “capacidade de decidir-se a si mesmo para um determinado agir ou sua omissão”, é o direito que temos de fazer, pensar, e nos expressarmos de acordo com a nossa vontade e entendimento, é a escolha de autonomia individual.
Como complemento, o art. 4º da Declaração dos Direitos do Homem[1] e do Cidadão, editada pela Assembleia Nacional Constituinte da França revolucionária, aprovada em 26 de agosto de 1789, inspirada na Revolução Americana de 1776 e conforme as ideias filosóficas do iluminismo, aborda que: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei. Sendo acrescentado no artigo seguinte que: ‘A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade”.
Dito isso, Liberdade de Expressão é um princípio fundamental da constituição federal brasileira de 1988, que em uma visão simplista significa o direito de exteriorizar sua opinião, pensamentos e ideias sem medo de represálias ou qualquer outro meio punitivo advindo da sociedade ou governo que impeça ou repreenda o exercício da livre manifestação. Tal princípio é indispensável para que uma sociedade seja democrática. Para melhor entendimento acerca do conceito, Emerson Santiago (2015) expõe: “Recebe o nome de liberdade de expressão a garantia assegurada a qualquer indivíduo de se manifestar, buscar e receber ideias e informações de todos os tipos, com ou sem a intervenção de terceiros, por meio de linguagem oral, escrita, artística ou qualquer outro meio de comunicação. O princípio da liberdade de expressão deve ser protegido pela constituição de uma democracia, impedindo os ramos legislativo e executivo o governo de impor a censura”. (SANTIAGO, 2015).
Esta garantia nos traz a liberdade de ter acesso às informações, sejam elas através da escrita, de manifestações artísticas, linguagem oral, entre outros. Esse direito teve início com a criação da constituição federal de 1988, pondo fim a uma era de ditadura militar, e dando surgimento a uma nova democracia, na qual as pessoas podem manifestar seus ideais sem medo de censuras.
1.2 Conceito de intolerância religiosa
Intolerância é a falta de capacidade de suportar o que é diferente, é não aceitar concepções, ideologias ou práticas que são divergentes da sua. No âmbito da intolerância religiosa, tratar de forma desrespeitosa, preconceituosa e até mesmo violenta pessoas que possuam crenças e religiões distintas.
Acerca do conceito de Intolerância Religiosa, no site da revista do Senado Federal encontra-se a seguinte definição: “A intolerância religiosa é um conjunto de ideologias e atitudes ofensivas a crenças e práticas religiosas ou a quem não segue uma religião. É um crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana. O agressor costuma usar palavras agressivas ao se referir ao grupo religioso atacado e aos elementos, deuses e hábitos da religião. Há casos em que o agressor desmoraliza símbolos religiosos, destruindo imagens, roupas e objetos ritualísticos. Em situações extremas, a intolerância religiosa pode incluir violência física e se tornar uma perseguição”. (STECK, 2013)
É importante ressaltar que a prática da intolerância religiosa não se conceitua somente à violência física, mas também a psicológica, quando é manifestada através do desrespeito a fé, tratando-se de algo subjetivo e pessoal, e a ofensa objetiva quando direcionada a cultos e rituais religiosos. Nesse sentido, é importante corroborar com Celso Gabatz, ao assegurar que: “É preciso lembrar sempre que a Intolerância Religiosa se expressa em pequenos conflitos cotidianos, quando se desqualifica pessoas por não pensarem do mesmo modo de quem as desqualifica; ou quando se destroem locais de culto ou símbolos de religiões consideradas adversárias, inimigas, incorretas. Pior ainda quando o indivíduo se arroga o direito de qualificar a crença alheia de forma depreciativa se valendo de uma terminologia autoritária, […]” (GABATZ, 2012, p. 53).
A Intolerância Religiosa configura a prática de violar a liberdade de outrem em expressar a sua fé, as suas crenças, o modo como enxerga o mundo. Não concordar com pessoas que divergem da sua crença religiosa é uma faculdade de cada um, respeitar o outro é uma obrigação coletiva.
Liberdade de expressão é um príncipio constitucional elencado no capítulo das garantias fundamentais, sendo ele um dos maiores privilégios assegurado pela Carta Magna. Ele garante a livre manifestação do pensamento, e protege o cidadão de represálias ou censuras, o que era comum décadas atrás.
Com o aumento da diversidade cultural no Brasil, houve também a disseminação da Intolerância Religiosa, prática esta condenável pelo nosso ordenamento jurídico, pois fere a dignidade do outro e o direito de manifestar livremente sua crença.
2.1 A proteção constitucional da liberdade de expressão
No direito brasileiro, a Constituição Federal em seu artigo 5° assegura a liberdade de expressão como um direito fundamental. Vejamos: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
II – Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;”
No mesmo sentido, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas de 1996 (e em vigor no Brasil em 1992), através do Decreto n. 592 explicita que: “Art. 19 Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
A Liberdade de expressão elencado no capítulo dos Direitos e Garantias fundamentais da Carta Magna é um princípio constitucional ligado a natureza humana e a dignidade da pessoa, com respaldo inequívoco, sendo este, inerente para uma sociedade democrática.
2.2 Intolerância religiosa e a importância de sua criação no ordenamento jurídico brasileiro
Com o crescimento da população no Brasil, cresceu também a diversidade cultural e religiosa no país, o que gerou um notável aumento da discriminação religiosa, como o caso da Iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, que faleceu em decorrência de um ataque motivado pela intolerância religiosa na Bahia.
Em homenagem a este fato, foi instituído o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa (21 de janeiro) por meio da Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como uma forma do próprio Estado reconhecer a existência do problema.
De acordo com dados do serviço de proteção dos direitos humanos, o Disque 100, no primeiro semestre do ano 2019 foram registradas 354 denúncias, um aumento de 67,7% comparado com o mesmo período do ano anterior, números que infelizmente só aumentam a cada ano. Levando em consideração este aumento, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), se pronunciou afirmando que o tema seria uma das prioridades em 2020. Ainda em dezembro do ano passado, foi criado o Comitê da liberdade de Religião ou Crença, com o objetivo de atuar promovendo o respeito as diferentes crenças, convicções e a preservação do princípio constitucional de laicidade.
A Carta Magna em seu artigo 5° dos incisos VI ao VIII ressalta que todos temos direitos igualitários perante a lei, não sendo admitidos a estes serem violados, desrespeitados ou vítimas de qualquer tipo de intolerância ou preconceito, a livre manifestação a crença e o exercício de cultos religiosos é uma garantia blindada pela própria constituição (Constituição Federal, 1988).
Versando sobre a punição da Intolerância Religiosa, o Código Penal brasileiro prevê:
“Art. 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena – detenção, de um mês a um ano ou multa.
Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência”.
Além de Inconstitucional, a Intolerância Religiosa é vista como uma prática ilegal, sendo esta considerada como um crime inafiançavel e imprescrítivel, com pena prevista podendo chegar, segundo a Lei de nº 9.459/1997, a três anos de reclusão e pagamento de multa.
A Liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais que a Carta Magna trouxe ao cidadão, mas com a Constituição também vieram limites a este princípio que devem ser respeitados igualitariamente.
Expressar-se através de manifestações, pensamentos, ideais, críticas, é um direito individual protegido pelo princípio fundamental da liberdade de expressão, todavia quando essas formas de expressões escarnecem ou incitam o ódio a outrem por motivos religiosos, ultrapassam os limites legais e éticos ferindo a dignidade humana do próximo, e assim cometendo a prática da Intolerância Religiosa, vista pela lei como um crime de ódio.
3.1 Quais os limites legais para a liberdade de expressão
Para introduzir os limites acerca da Liberdade de expressão Lellis et al dispõe: “Liberdade de expressão é um elemento fundamental de toda sociedade democrática, pois garante aos indivíduos o direito fundamental de serem livres e de expressarem livremente. Contudo, tal liberdade não significa entrar pelas veredas do desrespeito ao próximo”. (LELLIS, 2013 p.59).
Primariamente é importante ressaltar que a Liberdade de expressão é um princípio fundamental previsto na Constituição Federal, que garante o direito de todos os indivíduos de se manisfestarem, sem intervenção ou algum tipo de punição estatal, mas que possui limites impostos pela própria Carta Magna. Tais limites não podem ser confundidos com a censura, ato de desaprovação capaz de repreender manifestações pessoais, literárias, artísticas e sociais, com o intuito de reprimir a circulação de opiniões, informações, notícias e manifestações em geral, visando o interesse e proteção de um indivíduo, grupo ou Estado.
Os limites impostos à Liberdade de expressão estão previstos na Constituição Federal, no artigo 5º, incisos IV, V e X. Analisa-se, in verbis:
“IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
A liberdade de expressão, assim como outros princípios constitucionais não são absolutos, estando eles sempre atrelados a deveres e obrigações a serem respeitadas, podendo tratar essas restrições como limites impostos pela própria constituição.
Vale ressaltar que tais limites não foram criados para censurar a liberdade de expressão, mas para limita-la a outros direitos existentes. Nada no Ordenamento Jurídico brasileiro é absoluto, para que exista uma sociedade democrática, é necessário que as leis sejam harmônicas entre si, sem sobrepor-se aos direitos de outrem, como é citado pelo jargão popular “o seu direito termina, quando o do outro começa”.
Tal direito a liberdade jamais deve ser visto como subterfúgio para responsabilidade social de cada cidadão em respeitar a opinião e o modo de vida religioso do outro, bem como de utilizar da sua liberdade a manifestações para disseminar discursos de ódio e atitudes violentas.
3.2 Quando liberdade de expressão e intolerância religiosa se convergem
A faculdade de criticar princípios e doutrinas religiosas é assegurado pelo o direito à liberdade de expressão, entretanto quando tais atitudes partem para as veredas das ofensas e atos violentos a terceiros em decorrência de sua crença ou segmento religioso, é visto como crime de discriminação, sendo este imprescrítivel e inafiançável, ou seja, é o príncipio da liberdade de expressão sendo usada de maneira abusiva.
“Numa sociedade, a tolerância é característica essencial e inescusável, com todos aceitando e sendo aceitos com suas diferenças. Tem, portanto, o Estado o dever de coibir e punir os intolerantes, concedendo assim o direito a não discriminação”. (Lima, 2014).
Sobre tais limites é válido ressaltar que a Intolerância Religiosa se difere da crítica religiosa, sendo a segunda a manifestação de livre opinião, resguardada e protegida pela liberdade de expressão.
Versando sobre tal assunto, final do ano de 2019 o judiciário foi confrontado por um caso que gerou grande discussão onde Intolerância religiosa e a liberdade de expressão supostamente se convergiam. O especial de Natal do Porta dos fundos, com o título “A primeira tentação de Jesus”, que foi ao ar no início de dezembro de 2019 na netflix, retratando um Jesus pouco ortodoxo, fora dos padrões da bíblia e irreverente, gerou grande revolta entre os fiéis do cristianismo. Após o lançamento, a Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura ajuizou ação civil pública visando á proibição da transmissão do programa e a condenação do porta dos fundos e da Netflix ao pagamento de indenização por danos morais, alegando a ofensa à honra e a dignidade de “milhões de católicos brasileiros”.
Tal pedido foi indeferido pelo juízo da 16° Vara Cível do Rio de Janeiro e pelo desembargador plantonista do TJ-RJ, todavia, ele determinou que ao início do programa ou em anúncios versando sobre o assunto, fosse inserido um aviso para informar que se tratava de “uma sátira que envolve valores caros e sagrados da fé cristã”. O relator do agravo de instrumento da associação Dom Bosco determinou a retirada do programa do ar, argumentando que a medida seria conveniente para “acalmar ânimos”.
Por fim, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, suspendeu a decisão do relator, que havia determinado a retirada do programa especial de natal porta dos fundos. Em sua decisão declarou:
“Não se descuida da relevância do respeito à fé cristã (assim como de todas as demais crenças religiosas ou a ausência dela, […] não é de supor, contudo, que uma sátira humorística tenha o condão de abalar valores da fé cristã, cuja existência retrocede há mais de dois mil anos, estando insculpida na crença da maioria dos cidadãos brasileiros”. (MEDIDA CAUTELAR NA RECLAMAÇÃO 38.782. RIO DE JANEIRO).
A decisão do Supremo Tribunal Federal não caracterizou o Episódio Especial de Natal do Porta dos fundos como um ato de Intolerância Religiosa, observando isto, é necessário compreender que o princípio à Liberdade de Expressão é um direito amplo que protege não somente as informações consideradas como não ofensivas, agradáveis, que estão de acordo com a opinião da maioria, mas também aquelas que “possam causar transtorno, resistência, inquietar as pessoas, pois a democracia somente existe a partir da consagração do pluralismo de ideias e pensamentos, da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo” diz Alexandre de Moraes(2004). Entretanto é preciso ser cauteloso com a expressão de pensamentos e críticas as religiões, pois o que separa a Liberdade de expressão da Intolerância Religiosa é uma linha tênue, não devendo usar de tal garantia constitucional para disfarçar o ódio e a violência aos que seguem um viés ideológico diferente.
Com o avanço notório dos meios de comunicação em um país desenvolvido e que protege o direito à liberdade de expressão como o Brasil, tornou-se cada vez mais fácil expressar os seus ideais e maneira de ver o mundo através das mídias sociais, não sendo somente receptores de informações, mas criadores e propagadores dela. Detendo desse poder em mãos é preciso ter responsabilidade com os conteúdos produzidos para não ultrapassar o direito do próximo, ferindo assim a dignidade humana. Acerca do assunto, Stroppa aborda: “O exercício abusivo da liberdade de expressão é potencializado com a generalização do acesso à internet que permite às pessoas assumirem uma posição ativa na relação comunicacional ao saírem da posição de receptores da informação e passarem à posição de criadoras de conteúdos, os quais podem ser divulgados de maneira instantânea, sobretudo nas mídias sociais como Facebook, Twitter e Instagram, com acentuada velocidade de, propagação e uma aparente possibilidade de anonimato. Com isso, os discursos discriminatórios (hate speech) ganharam sua versão cibernética e, nesse contexto, a reflexão prática a respeito dos limites da liberdade de expressão em razão da veiculação de mensagens preconceituosas que atingem as pessoas e os grupos vulneráveis também precisa ser feita”. (STROPPA; ROTHENBURG, 2015; p. 451).
A famosa frase “A liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro.”, atribuída por vários estudiosos ao filósofo inglês Herbert Spencer, ensina que a liberdade verdadeira respeita o outro, e o seus direitos.
4.1 Exemplos de casos de intolerância religiosa no brasil retratados pela mídia
Embora seja uma prática condenável pela Constituição Federal e caracterizada como crime de ódio inafiançavel no Brasil, a Intolerância Religiosa ainda é um problema frequente e que cresce a cada dia.
Tornou-se famoso no país Sérgio Von Helder, intitulado Pastor na Igreja Universal do Reino de Deus, que no ano de 1995, em rede nacional de televisão, chutou uma estátua de Nossa Senhora Aparecida como um ato de intolerância. Não são poucas as denúncias relacionadas ao depreciamento de imagens e estátuas de orixás do candomblé ou de santos do catolicismo.
Vinte anos atrás, no dia 21 de janeiro, data esta que foi intitulada o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, a lyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, popularmente conhecida como Mãe Gilda de Ogum, morreu em decorrência de um ataque movido pela Intolerância Religiosa. O terreiro de Candomblé, IlÊ Axé Abassá de Ogum, situado nas mediações da Lagoa da Abaeté, no bairro de Itapuã – Salvador, Estado da Bahia, foi invadido e depreciado por fanáticos da Igreja Universal do Reino de Deus, que agrediram violentamente o marido de Gildasia dos Santos. Alguns meses depois a igreja autora do atentado, publicou um folhetim com a foto de Gildasia e a seguinte manchete: “Macumbeiros charlatões lesam a vida e o bolso de clientes”. Ao ler a manchete, Gildasia, senhora de 65 anos, foi vítima de um ataque cardíaco fulminante e fatal.
Comuns são os casos de desrespeito e intolerância a fé do próximo, mas vale ressaltar que não ter fé ou não acreditar em nada do divino também é um direito que deve ser respeitado. A rede de televisão Bandeirantes foi condenada pela Justiça Federal de São Paulo por desrespeitar à liberdade de crenças, quando em julho de 2010, o apresentador José Luiz Datena comentou um crime cruel relacionando-o a “ausência de Deus”, em suas palavras ele disse: “Um sujeito que é ateu não tem limites. É por isso que a gente vê esses crimes por aí”. A TV Bandeirantes foi condenada a exibir, no mesmo programa e horário, uma retratação esclarecendo sobre intolerância e a diversidade religiosa.
No artigo 18 da Declaração Universal de Direitos Humanos[2], dispõe: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião: este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos”.
A religião de uma pessoa não deveria erguer barreiras entre as relações humanas, pelo contrário, deveria ser motivo de união e conexão entre os indíviduos.
É uma obrigação e dever de todos respeitar uns aos outros, independente de religião ou crença.
4.2 Os meios de comunicação como forma de propagação da intolerância religiosa
Segundo a Constituição Federal, o Brasil é um país laico e não discrimina ou repudia nenhuma religião, todavia, na prática infelizmente a realidade é outra.
Devido ao grande aumento da população em nosso território, houve também o crescimento da diversidade cultural e religiosa na federação. Com isso vieram as divergências de pensamentos, ideias e opiniões religiosas, o que é normal em uma sociedade pluralista, entretanto existem pessoas intolerantes que não conseguem lidar com a incompatibilidade de opinião do próximo em relação ao divino, reagindo de forma agresssiva, violenta e desrespeitosa. Tais indivíduos, em sua maioria usam a internet como meio de propagação da intolerância e da discriminação, por se sentirem resguardados na mesma. Acerca do assunto, Cardozo corrobora: “Quando o indivíduo se sente resguardado na força da comunidade virtual e, ao mesmo tempo, no pseudo anonimato proporcionado pelo distanciamento de seu eu real, pode surgir ou emergir as mais intensas manifestações de ódio, preconceito, discriminação, perseguição, violência verbal ou imagética, enfim, toda sorte de intolerância que, muitas vezes, são socialmente reprimidas em ambientes ditos reais. É a sensação de que a persona virtual tudo pode, que não há limites ou sanções a qualquer tipo de manifestação no mundo virtual” (CARDOZO, 2016, p. 6).
A ampliação dos meios de comunicação nos últimos anos evidenciou o problema da intolerância religiosa. Segundo dados da ONG Safernet, entre os anos 2016 e 2018, aumentaram em mais de 300% o número de denúncias contra páginas que divulgaram conteúdos de intolerância religiosa, dentre outras maneiras de discriminação e preconceito.
Para muitos, os meios de comunicação provocaram o problema, mas a verdade é que eles somente trouxeram a luz algo já existente, que perdura no Brasil desde os tempos da colonização. Na internet, com a falsa sensação de anonimato, as pessoas são mais propensas a destilarem seu ódio sobre aqueles que não compartilham dos mesmos pensamentos.
A Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/SP, publicou o “Manifesto pelo Fim da Intolerância Religiosa na Internet”, o qual ressalta que: “É preciso zelar, dia após dia, para que a arbitrariedade, o preconceito e a intolerância de alguns não desfigurem a beleza da paisagem de um Estado laico que respeita todas as religiões ou mesmo sua ausência”. […]Urge, portanto, que os provedores de aplicações, de acordo e nos limites de suas atividades, conforme seus respectivos termos de uso, que já proíbem ou devem proibir quaisquer atividades ilegais, quando cientificados, adotem medidas eficazes e céleres que coíbam a propagação de conteúdos intolerantes e aviltantes, visando a redução da sua disseminação, de forma a mitigar os nefastos efeitos do ódio empregado na Internet […]”.
Segundo Budke (2013), a intolerância religiosa tem sido praticada com grande frequência nos ambientes virtuais, sendo registrado em segundo lugar nas denúncias, fato esse de grande preocupação.
Com o mundo virtual vieram inúmeras vantagens, mas também problemas como a disseminação do preconceito e da Intolerância Religiosa. Trata-se de uma ferramenta bastante acessível, que conecta milhares de pessoas, o que aumenta o alcance dos discursos de ódio, e atingindo assim uma quantidade maior de indivíduos vítimas do ódio e da intolerância por simplesmente proclamarem sua fé.
A liberdade de expressão é um dos princípios constitucionais mais inerentes e importante à dignidade da pessoa humana, um país que em sua história já foi privado desse direito, sabe na pele a importância deste.
Embora seja um príncípio fundamental resguardado pela Constituição federal, a liberdade de expressão possui limites, quando convergente por exemplo com a Intolerância Religiosa, prática esta condenável no Brasil, mas que infelizmente é crescente a cada ano.
Cada cidadão é livre para concordar ou não com a religião e maneira de ver o mundo do outro, o que o ordenamento jurídico condena são as práticas de intolerância expressadas através de onfensas, desrespeitos, vilipêndios e até mesmo agressões em decorrência da discordância com a crença alheia.
Tais práticas tiveram um enorme aumento nos últimos anos devido o avanço da tecnologia, os meios de comunicação trouxeram mais facilidade à disseminação dos discursos de ódio e incitação a violência ao que é diferente, as redes sociais e outras ferramentas de comunicação geram uma falsa sensação de anonimato, o que instiga as pessoas a destilarem seus preconceitos com maior naturalidade.
Podemos observar que não rara as vezes, liberdade e intolerância entram em conflito, contudo é necessário discernimento para distingui-las, e consciência e sabedoria para compreender, ou ao menos respeitar a religião do outro, algo subjetivo de cada ser humano.
O que separa a liberdade de expressão da intolerância religiosa é uma linha tênue, assim dizendo é preciso ter clareza do livre exercício à liberdade e de suas limitações no âmbito da legitimidade democrática, ou seja o direito em expressar opiniões, pensamentos, ideais, críticas somente é juridicamente legítimo quando não vem em companhia do animus difamandi juriandi, em outras palavras, o intuito de desmoralizar ou ofender o outro, diminuir um grupo ou alguém em decorrência de sua crença, incitar a intolerância e a violência.
Em um país tão pluralista e diversificado como o território brasileiro é preciso ter cautela com o usufruto da Liberdade de expressão através de opiniões e críticas emitidas, principalmente pelos canais de comunicação, por possuírem maior alcance, pois tal garantia quando usada exarcebadamente pode adentrar no direito de outrem, ferindo assim a dignidade alheia. O que muitas das vezes não aflinge você, pode denegrir e ofender o próximo, a considerar quando se trata de religião, algo tão intríseco e íntimo de cada pessoa.
BERNARDES, Juliano Taveira; FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Direito Constitucional. Tomo II. 7ª ed. Salvador: Juspodivm, 2017.
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[1] A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (em francês: Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen) é um documento culminante da Revolução Francesa, que define os direitos individuais e coletivos dos homens (tomada, teoricamente, a palavra na acepção de “seres humanos”) como universais.
[2] A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um documento que delimita os direitos fundamentais do ser humano. Foi estabelecida em 10 de dezembro de 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU), à época composta por 58 Estados-membros, entre eles o Brasil.
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