Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar o fenômeno dos poderes empresariais, cujo exercício encontra balizas no respeito aos direitos fundamentais do trabalhador e no princípio da boa-fé. Não se tem a pretensão de esgotar o tema, mas apenas trazê-lo à reflexão daqueles que com ele lidam, na medida em que a lógica empresarial e da subordinação do trabalhador é sempre uma potencial ameaça à violação dos direitos fundamentais, especialmente em um país como o Brasil, que ainda não tem grande estima pelo respeito a essa espécie de direito e onde a discriminação é ainda algo muito arraigado nas práticas empresariais.
Palavras-chave: Poderes empresariais. Dignidade do trabalhador. Direitos fundamentais. Boa-fé.
Sumário: Introdução; Conceito e fundamento do poder empresarial; Limites dos poderes empresariais; Direito à intimidade; Direito à imagem e à honra; Direito à liberdade ideológica e religiosa; Direito à não discriminação; Discriminação dos trabalhadores portadores de doença ocupacional, vítimas de acidente do trabalho ou acometidos por doenças infecto-contagiosas; Formas de discriminação; Conciliação entre os direitos fundamentais laborais e os poderes de direção empresarial; Considerações finais; 5. Referências.
Introdução
O ordenamento jurídico, inclusive o constitucional, reconhece ao empresário poderes de autotutela privada que lhe permitem defender seu próprio interesse, de forma unilateral e extrajudicial.
O empresário, todavia, deve exercitar esses poderes e seus direitos segundo as exigências da boa-fé e com respeito aos direitos fundamentais do trabalhador. Quando exorbita ou abusa desses poderes, com afetação às balizas representadas pela boa-fé e pelo respeito aos direitos fundamentais do trabalhador, o juiz poderá, instado pelo afetado e tomando em conta o que estabelecido nos arts. 12, 187 e 422 do Código Civil, aplicáveis às relações laborais por força do previsto nos arts. 8º e 769 da CLT, declarar a ilicitude do exercício do direito ou poder, em virtude da função limitativa da boa-fé e dos direitos fundamentais sobre os poderes de direção empresarial.
O reconhecimento da ilicitude ou abuso do ato determina, em cada caso, que se impeça ou faça cessar o exercício abusivo com a declaração de ineficácia do ato e a remoção das situações criadas pelo ato, com a correspondente indenização quando haja causado danos e prejuízos, embora em geral o ordenamento jurídico reserve para os atos do empresário contrários aos direitos fundamentais, às liberdades públicas e à boa-fé, a sanção de nulidade.
Desse modo, há que se distinguir entre a declaração da ineficácia do ato, a remoção das situações criadas pelo exercício do direito ou poder, o direito de resistência do trabalhador e a indenização pelos danos sofridos. Por conseguinte, no ordenamento jurídico nacional (legal e constitucional) há uma tutela ampla a esse tipo de direito como se pode ver das normas constantes dos arts. 11, 12, 21, 187 e seguintes do Código Civil e 5º da Constituição de 1988, que por óbvias razões incidem nas relações laborais, até mesmo em obséquio ao princípio da subsidiariedade expresso no art. 769 da Consolidação das Leis do Trabalho.
O presente trabalho tem por objetivo tecer algumas considerações a respeito dessas questões decorrentes do exercício dos poderes empresariais e seus limites, sem a pretensão de esgotar o tema, mas apenas trazê-lo à reflexão daqueles que com ele lidam, na medida em que a lógica empresarial e da subordinação do trabalhador é sempre uma potencial ameaça à violação dos direitos fundamentais, especialmente em um país como o Brasil que não tem grande estima pelo respeito a essa espécie de direito e onde a discriminação, na maioria das vezes por pura desinformação ou por preconceito, é ainda algo muito arraigado na cultura geral, inclusive nas práticas empresariais.
Assim, discutir sobre esse tema é sempre necessário e de grande valia, até mesmo para que sejam desfeitos equívocos e evitadas injustiças, e, como conseqüência, as relações laborais tornem-se mais justas e democráticas.
É esse, em síntese, o objetivo a que se propõe o presente trabalho.
1. Conceito e fundamento do poder empresarial
O empresário é ao mesmo tempo titular da organização em que os trabalhadores a seu serviço prestam a atividade laboral e parte do contrato de trabalho que celebra com cada trabalhador. Em virtude de ambos os títulos jurídicos, exerce uma série de direitos, poderes, faculdades de modo a dirigir a empresa e a força de trabalho que nela se insere. A esse conjunto de direitos, poderes e faculdades conferidos ao empresário para dirigir a empresa e a força de trabalho que nela se insere, denomina-se poder diretivo empresarial.
Como empregador o empresário tem, normalmente, a gestão empresarial, e no domínio do contrato de trabalho, de algum modo relacionado com essa gestão, lhe é conferido o poder de direção.
Desse modo, de um lado, como titular da organização empresarial, da liberdade de empresa e, também, do direito de propriedade dos meios de produção, o empresário tem a seu dispor um conjunto de instrumentos jurídicos que lhe permitem dirigir a totalidade da empresa. Mas, de outro lado, as faculdades de direção dos trabalhadores devem ser consentidas por eles através do contrato.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o poder diretivo empresarial, em sentido amplo, é a capacidade, oriunda do seu direito subjetivo, ou então da organização empresarial, para determinar a estrutura técnica e econômica da empresa e dar conteúdo concreto à atividade do trabalhador, visando à realização das finalidades daquela.
De acordo com Manuel Carlos Palomeque López e Manuel Alvarez La Rosa[1]:
“El contrato de trabajo está inmerso en un ámbito donde una de las partes, el empresario, tiene la facultad de organizar el sistema de producción de bienes y servicios que libremente ha decidido instalar; esta capacidad organizativa se concreta en la ordenación de las singulares prestaciones laborales. La potestad para organizar y ordenar el trabajo, inicialmente y durante toda la ejecución del contrato, recibe el nombre de poder de dirección” (<<dirección y control de la actividad laboral>>).
O empresário ou empregador, como único responsável numa economia capitalista, dispõe de seu pessoal escolhendo livremente os seus trabalhadores, decidindo suas tarefas, sua promoção, uma eventual alteração do contrato, a despedida individual ou coletiva, apreciando soberanamente sua aptidão profissional[2].
É, pois, acertada a assertiva doutrinária de que é no poder de direção e no correspondente dever de obediência que se encontra o núcleo central da subordinação[3]. Trata-se, pois, de um poder jurídico de tipo obrigacional. Como averba Maria Dolores Santos Fernandez[4], citando H. Sinzheimer, ninguém poderia por em dúvida que o empresário pode dar ordens ao trabalhador e que este tem a obrigação de obedecer. Essa submissão evidencia que no mundo do trabalho o empresário não apenas tem um direito como credor, como no campo obrigacional, mas também um direito de poder, de caráter jurídico pessoal.
No Brasil, o poder de direção do empregador, entendido como prerrogativa de determinar a forma pela qual ocorrerá a prestação dos serviços por parte do empregado, tem por fundamento primeiro a própria Constituição na medida em que esta adota o sistema econômico de produção capitalista, estabelecendo a liberdade de iniciativa e de empresa no âmbito das relações de trabalho e o direito de propriedade, embora subordinada à sua função social (arts. 5º, incisos XIII, XXII e XXIII e 170, incisos II e III, da Carta de 1988).
Em segundo lugar, no campo infraconstitucional, o art. 2º da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT garante ao empregador o poder de, assumindo os riscos da atividade econômica, admitir, assalariar e dirigir a prestação pessoal de serviços incorporando assim, e de forma expressa, o poder de direção empresarial como um dos elementos tipificadores da figura do empregador, autorizando, inclusive, a despedida do trabalhador por justa causa (art. 482), quando deixar de obedecer as ordens daquele[5].
Como se vê, no ordenamento nacional, o poder de direção empresarial encontra justificação e fundamento jurídico tanto no texto expresso da Carta de 1988 como na própria CLT.
No campo doutrinário, diversas teorias têm sido formuladas para justificar o fenômeno. Todavia, prevalece atualmente a tese de que o poder de direção tem fundamento contratual. Isso decorre da natureza assimétrica do contrato de trabalho, em que um dos contratantes – o empregador – detém superioridade jurídica, com extenso e profundo conjunto de prerrogativas, com elevado poder de conformação do contrato, podendo alterar as condições de trabalho, inclusive unilateralmente.
É, pois, correto afirmar que o contrato de trabalho é a razão e o fundamento do poder de direção empresarial, pois como lembrado por Manuel Carlos Palomeque López e Manuel Álvarez de La Rosa “el fundamento del poder para organizar y ordenar las prestaciones de los trabajadores es el propio contrato de trabajo que, sin duda, justifica tanto el poder de dirección y su alcance, como sus propios límites”[6].
De fato, é praticamente unânime na doutrina a consideração de que o poder de direção empresarial emana do contrato de trabalho, ou mais concretamente da obrigação do trabalhador de submeter-se a ele, ainda quando na configuração do mesmo deva ter-se em conta também a posição que o empresário ostenta na organização, ou seja, a titularidade da liberdade de empresa, pois juridicamente não pode se articular de outra forma.
Deveras, o empresário, como acima se deixou anotado, é titular da liberdade de empresa e em tal condição goza de uma posição ativa integrada por um grupo de direitos destinados a pôr em funcionamento e desenvolver sua atividade empresarial. Dentro destes direitos se enquadram também aquelas faculdades que lhe permitem organizar a força laboral, mas para que tenha alguma relevância jurídica em cada um dos casos individuais, deve o trabalhador submeter-se a seu poder mediante a celebração de um contrato, através do mecanismo do consentimento.
O contrato é assim, pressuposto necessário para o exercício do poder de direção, mas é algo mais que simples pressuposto, é o título que legitima a própria existência do poder de direção, entendido como poder de direção da prestação laboral do trabalhador concreto, e não como faculdade organizativa destinada à ordenação e direção da empresa, em especial, em matéria pessoal. Portanto, a própria estrutura do contrato, sua causa, seu conteúdo e seus perfis fazem do contrato de trabalho a “razão técnica” desse poder de direção[7].
Desse modo, o ajuste que dá origem à relação de emprego implica também no reconhecimento da existência de um complexo de direitos e deveres entre os contratantes, e uma das formas como esses direitos e deveres se revelam é exatamente no poder de direção empresarial.
De acordo com Antonio Monteiro Fernandes[8], o empregador como detentor dos restantes meios de produção, ainda que não como proprietário, mas tendo, de qualquer forma, acedido a eles, e empenhado num projeto de atividade econômica, corporizado na empresa obtém, por contrato, a disponibilidade de força de trabalho alheia. Por conseqüência, passa a pertencer-lhe certa autoridade sobre as pessoas dos trabalhadores admitidos, caracterizando-se, lentamente, por um poder de direção legalmente reconhecido, o qual corresponde à titularidade da empresa.
A situação subseqüente à celebração de um contrato de trabalho permite que se identifiquem, segundo o doutrinador lusitano[9], os seguintes vetores da posição jurídica do empregador:
a) um poder determinativo da função, em cujo exercício é atribuído ao trabalhador um certo posto de trabalho na organização concreta da empresa, definido por um conjunto de tarefas que se pauta pelas necessidades da mesma empresa e pelas aptidões ou qualificação do trabalhador.
O empresário ou empregador tem o poder e até mesmo o dever, de conformar a prestação do trabalhador em função dos interesses que pretende perseguir. Esta possibilidade de conformação da prestação do trabalhador relaciona-se com o caráter genérico da atividade laboral, que tem de ser concretizada e adaptada pelo empregador, tendo em conta a finalidade que visa alcançar[10];
b) um poder conformativo da prestação, que consiste na faculdade de determinar o modo de agir do trabalhador, mas cujo exercício tem como limites os próprios contornos da função previamente determinada. Por conseguinte, o poder conformativo tem outro alcance, na medida em que encontra como correlativo, na esfera do trabalhador, um dever de obediência ligado à tutela disciplinar. Trata-se, pois, aqui, de definir as modalidades concretas que a atividade do empregado deve assumir para que a execução do contrato se ajuste às finalidades com que foi celebrado;
c) um poder regulamentar, conferido à organização globalmente, mas naturalmente projetado também sobre a força de trabalho disponível que nela se comporta, vale dizer: sobre todos e cada um dos trabalhadores envolvidos.
Esse poder consiste em estabelecer regras, inclusive por instrumento único, dotado de aplicabilidade genérica aos elementos que constituem a organização, como o regulamento interno da empresa, por exemplo. O poder regulamentar do dador de trabalho diz respeito à organização e disciplina do trabalho e somente se justifica, via de regra, nas empresas maiores, de grandes dimensões e complexidade;
d) um poder disciplinar, que se manifesta e se revela tipicamente pela possibilidade da aplicação de sanções internas aos trabalhadores cuja conduta se revele desconforme com ordens, instruções e regras de funcionamento da empresa. Consiste, pois, na faculdade, atribuída ao empresário ou empregador, de aplicar, internamente, sanções aos empregados que venha ter conduta conflitante com os padrões de comportamento definidos na empresa ou se mostre inadequada à correta execução do contrato. Diz-se, assim, que ocorre uma infração disciplinar. Embora a norma legal nem sempre forneça uma noção completa de seu conteúdo, quase sempre indica “tipos avulsos” de infração que podem ser objeto de sua incidência como, por exemplo, o art. 474 da CLT que prevê a figura da suspensão disciplinar do empregado em caso de cometimento de falta que não justifique o rompimento do contrato por justa causa.
Desse modo, no conteúdo do poder de direção empresarial incluem-se as faculdades de, atendendo à categoria do trabalhador, lhe indicar a atividade a ser desenvolvida, o modo de ser efetuada, o local onde será realizada, etc. (art. 2º da CLT)[11], bem como possíveis alterações à atividade, modo, local, etc, desde é claro, que as mesmas não pressuponham alterações proibidas, como as que são vedadas pelo art. 468 da CLT, caso em que poderá estar em causa o jus variandi.
Além das faculdades acima mencionadas, também se incluem no poder de direção empresarial, especialmente, a fiscalização da atividade, as instruções quanto à sua realização, ou a determinação em que momento certa tarefa deva ser desenvolvida.
É claro que o poder de direção empresarial tem limites derivados do seu próprio conteúdo e dos direitos dos trabalhadores: o trabalhador não deve obediência ao empregador sempre que as ordens ou instruções se mostrem contrárias aos seus direitos e garantias, especialmente aquelas ligadas aos direitos fundamentais ou quando alheias às obrigações assumidas por força do contrato de trabalho.
Nesse passo, pode-se afirmar que os poderes de direção empresarial encontram seu limite nos direitos fundamentais do trabalhador e nas obrigações assumidas por força do contrato de trabalho, conforme se verá à continuação.
2. Limites dos poderes empresariais
Deve-se registrar, desde logo, que o contrato de trabalho é uma grande contribuição para o reconhecimento e o desenvolvimento dos direitos fundamentais laborais, porquanto são eles oponíveis a todos, inclusive, e especialmente, ao empresário, cujo poder de direção encontra limite na dignidade da pessoa humana do trabalhador, pois a base dos direitos fundamentais é a dignidade da pessoa e dos direitos invioláveis que lhe são inerentes[12]. Por conseguinte, a ordem do empregador tem de ser justificada e atenta à inviolabilidade do direito à integridade moral e física das pessoas e ao reconhecimento do direito à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, ao bom nome e à reputação e à imagem que é conferido a todas as pessoas, independentemente da condição social ou profissional. Tanto assim, que o Código Civil (arts. 11,12 e 21) e a Carta de 1988 (art. 5º, incisos V e X) tutelam esses valores como direitos de natureza fundamental e, portanto, indisponíveis, irrenunciáveis e imprescritíveis.
Há, pois, uma conscientização da necessidade de se repensar os poderes de direção empresarial, na medida em que, apesar de legitimados, inclusive constitucionalmente, eles encontram limite no respeito à dignidade humana do trabalhador revelada especialmente no respeito à vida privada, à honra e imagem, à vida pessoal de modo a protegê-lo na sua privacidade no local de trabalho com a conseguinte limitação das faculdades de organização, direção e controle do empresário, considerando especialmente que a lógica contratual da subordinação e a organizacional do empresário conspiram contra o exercício dos direitos fundamentais dentro da empresa.
Os poderes empresariais constituem uma ameaça potencial para os direitos fundamentais do trabalhador, dada à forte implicação da pessoa na execução da prestação laboral[13]. Apesar de esses poderes terem legitimação na própria Constituição e não serem intrinsecamente perversos, a lógica empresarial e da subordinação pode limitar e condicionar o exercício desses direitos. Por isso, os direitos fundamentais se impõem aos poderes empresariais durante o seu exercício, e isso ocorre ainda quando, como entre nós a norma laboral (CLT) não tenha incorporado, pelo menos expressamente, um sistema específico de proteção a esses direitos, embora em certos momentos a eles haja se referido, como por exemplo, no art. 483. Mas, apesar dessa omissão, os direitos fundamentais se impõem de forma automática a partir da Constituição, limitando e controlando o exercício das faculdades empresariais de modo a impedir que o trabalhador possa ter sua dignidade afetada pelo exercício abusivo dos poderes empresariais pelo empregador.
De outro lado, o princípio da boa-fé que, indubitavelmente incide nas relações laborais, na medida em que, como princípio geral (art. 422 do Código Civil) informa todo o ordenamento jurídico, gera deveres recíprocos no contrato de trabalho. A inserção do princípio da boa-fé no Direito do Trabalho na atualidade, já afirmamos certa feita[14], parece não mais merecer nenhum reproche ou questionamento, pois o dever de atuar com fidelidade, lealdade e que tem relação direta com os critérios de colaboração e solidariedade das partes, tem implicação no contrato individual de trabalho constituindo um limite ao poder de direção empresarial balizando o atuar empresarial na fase pré-contratual, na execução do contrato e posteriormente ao rompimento deste.
Assim, trabalhadores e empregadores devem cumprir suas obrigações e exercer suas faculdades, direitos e poderes também de acordo com o princípio da boa-fé, na medida em que esta é concebida como norma de comportamento legal e honesto de ambas as partes. Hoje em dia, se exige a boa-fé não só do trabalhador, mas, sobretudo, do empresário. Por isso, a boa-fé pode se converter em um meio eficaz, juntamente com os direitos fundamentais, de limitação e controle dos poderes empresariais fazendo ociosa a referência a outras noções, como o interesse da empresa.
Como lembra abalizada doutrina[15], na atualidade, a boa-fé não constitui apenas um instrumento de submissão, mas também de informação, cooperação e adaptação, para responder as necessidades de transparência, diálogo, participação, gestão antecipada das competências e qualificações. Por conseguinte, a boa-fé permite assegurar o dinamismo próprio da vida social e é uma condição de viabilidade da empresa: uma comunidade não pode subsistir se está fundada na deslealdade. É, pois, uma noção prometedora no Direito do Trabalho, constituindo, sem dúvida, um limite ao exercício dos poderes de direção empresarial.
Dessa forma, no campo das relações laborais os direitos fundamentais dos trabalhadores apenas poderão ser limitados se, e na medida em que, haja colisão com interesses relevantes da empresa, ligados ao bom funcionamento da mesma e ao correto desenvolvimento das prestações contratuais, e, ainda assim, guardada em qualquer caso, a boa-fé, e sempre em obediência aos critérios de proporcionalidade e de respeito pelo conteúdo mínimo do direito atingido. Por isso, e como mecanismos de limitação ao poder de organização e disciplina empresarial, há todo um arcabouço interno (constitucional e legal) e internacional (tratados e convenções, especialmente as convenções da OIT) de proteção aos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador. Entre os direitos que podem ser afetados no seio da relação de trabalho e antes mesmo que ela tenha início, e que são especialmente protegidos, pode ser citado, exemplificativamente, o direito de proteção à intimidade, à honra, à imagem, bem como o direito do trabalhador de não ser discriminado, conforme se verá nos itens seguintes do presente trabalho.
2.1 Direito à intimidade
Doutrinariamente, o direito à intimidade vem sendo definido como aquele direito que visa resguardar as pessoas dos sentidos alheios, especialmente da vista e dos ouvidos de outrem[16]. Pressupõe, portanto, ingerência na esfera íntima da pessoa através de espionagem e divulgação de fatos íntimos obtidos ilicitamente. Seu fundamento é o direito à liberdade de fazer e de não fazer.
De acordo com o pensamento de René Ariel Dotti,[17] a intimidade se caracteriza como “a esfera secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais”. É, pois, o modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento de outrem de quanto se refira à pessoa mesma[18].
Para Delia Matilde Ferreira Rubio[19], a intimidade pode ser vista sob três aspectos: a) a tranqüilidade, que nas palavras utilizadas pelo juiz Cooley em 1873 significa “o direito de ser deixado só e tranqüilo” ou “o direito de ser deixado em paz”; b) a autonomia, consubstanciada na liberdade que cada indivíduo tem para escolher entre as diversas possibilidades que se lhe apresentam, em todas as instâncias de sua existência, sem intromissões indesejadas que desvirtuem a sua escolha; c) o controle de informação pessoal, no sentido de manter ocultos certos aspectos da vida e de possibilitar que o indivíduo controle o manejo e a circulação da informação que, sobre a pessoa, haja sido confiada a um terceiro.
Pode-se, pois, afirmar que a intimidade é o âmbito do exclusivo que alguém reserva para si, sem a intromissão e sem nenhuma repercussão social, nem mesmo ao alcance de sua vida privada, na medida em que, por mais isolada que seja, é sempre um viver entre os outros em que a comunicação, ainda que reservada, é inevitável[20].
Para Carlos Alberto Bittar[21], o direito à intimidade é “o direito a não ser conhecido em certos aspectos pelos demais. É o direito do segredo, a que os demais não saibam o que somos ou o que fazemos”.
O direito à intimidade é, assim, o direito personalíssimo que permite subtrair a pessoa da publicidade ou de outras turbações à vida privada, mas que está limitado pelas necessidades socais e pelo interesse público.
Nessa perspectiva, o direito à intimidade, que emana da dignidade humana, supõe o reconhecimento da existência de um âmbito reservado, pessoal e privado que seu titular pode subtrair ao conhecimento alheio, seja privado ou público, isto é, âmbito de privacidade que resulta imprescindível para manter uma qualidade mínima de vida humana, própria da cultura ocidental a que pertencemos.
Nessa perspectiva, o direito à intimidade, como reconheceu o Tribunal Constitucional Espanhol[22], por seu próprio conteúdo e alcance, se refere à vida privada das pessoas individuais, em que nada pode imiscuir-se sem que esteja devidamente autorizado, e sem que, em princípio, as pessoas jurídicas como as sociedades mercantis, possam ser titulares dos mesmos.
Embora o Direito do Trabalho não faça menção aos direitos à intimidade e à privacidade, que constituem “direitos da personalidade”, consagrados em nível constitucional, esses direitos são oponíveis contra o empregador, devendo merecer o devido respeito, independentemente do seu titular se encontrar dentro do estabelecimento empresarial. Como lembra Alice Monteiro Barros[23], a inserção do trabalhador no processo produtivo não retira do empregado os direitos da personalidade, cujo exercício pressupõe liberdades civis, na medida em que o contrato de trabalho não pode ser erigido como um título legitimador para a violação de seus direitos como cidadão, mas mais que isso, como ser humano.
A condição de ser humano, portador de uma dignidade pessoal e profissional, jamais poderá ser afetada quando o trabalhador se insere na organização empresarial. Admite-se, como se verá na continuação, apenas modulações, em caráter excepcional, dos direitos fundamentais na medida imprescindível do correto desenvolvimento da atividade produtiva (art. 11 do Código Civil).
Não há dúvida de que o direito à intimidade também penetra nas relações laborais, erigindo-se, por conseguinte, em um importante limite da potestade discricionária do empresário, e ao mesmo tempo em garantia do exercício de outros direitos fundamentais. Por isso, de forma expressa e como mera especificação de um direito pré-existente do trabalhador enquanto cidadão, este direito se recolhe entre os direitos básicos dos trabalhadores no Texto de 1988 (arts. 1º, I, e 5º, X).
Desse modo, e apesar de não ter dado a necessária e indispensável importância à tutela da vida privada do trabalhador que, diga-se de passagem, sempre é afetada de algum modo pelo poder diretivo empresarial, a velha CLT, no seu art. 483, contém proibição de ofensa à honra e à boa fama do empregado pelo empregador. Consequemente, não só os delitos de calúnia, injúria ou difamação, mas também outros comportamentos capazes de atingir o trabalhador em sua dignidade pessoal devem ser tidos como atentórios à honra, enquanto ofensa à boa fama implica expor o empregado ao desrespeito de outrem.
Constitui, pois infração muito grave, a conduta ou ato empresarial que resultar contrário à intimidade e a consideração devida à dignidade do trabalhador. Tanto assim, que o Código Civil (art. 12) autoriza medidas judiciais que visem não apenas a reparação dos danos decorrentes da violação, inclusive danos morais (art. 5º, inciso X, do Texto Maior), mas também, e principalmente, que façam cessar a ameaça a essa espécie de direito (direito da personalidade[24]), valendo anotar que essas medidas tendentes à proteção da dignidade e da intimidade do ser humano, trabalhador ou não, podem ser propostas não apenas pela vítima da agressão ou da ameaça, mas também pelo cônjuge (ou companheiro) sobrevivente ou qualquer parente na linha reta ou colateral até o quarto grau, o que evidencia a importância que o legislador emprestou à tutela dessa espécie de direitos[25].
No campo das relações de trabalho o direito à dignidade e à intimidade do trabalhador atua como uma espécie de blindagem dos dados e do comportamento a seu respeito frente ao empresário, bem como em relação às demais pessoas que operam no meio laboral. E isso, por evidente, entranha proibições e limitações não apenas no curso da execução do contrato, mas também na hora da solicitação do trabalho, proibições estas que se estendem mesmo após o rompimento do vínculo laboral impedindo que o empresário venha fazer considerações ou emitir informações desabonadoras da conduta pessoal do ex-empregado como costuma acontecer, especialmente quando este acede à Justiça do Trabalho em busca de reconhecimento de eventuais direitos violados.
É claro que o dever de respeitar a dignidade do trabalhador, aí compreendido o direito à intimidade, deve ser observado e respeitado não apenas pela empresa empregadora, mas também por todos aqueles que operam no meio laboral, inclusive as agências de contratação e intermediação de mão-de-obra e as prestadoras de serviços.
De outro lado, o armazenamento e a manipulação dos dados pessoais do trabalhador podem causar grave lesão ao seu direito à intimidade e à vida privada, o que implica afirmar que neste ponto o poder de direção da empresa encontra limites no direito de autodeterminação informativa[26] do trabalhador que se manifesta na relação laboral, nas seguintes hipóteses:
a) a empresa ou empregador ou agência de contratação de mão-de-obra ou prestadoras de serviços não poderão coletar os chamados dados “sensíveis”, considerados como aqueles relativos à religião, à raça, à ideologia política, religiosa ou sindical, ao tipo físico, à cor, ao peso, à tendência psíquica, à orientação sexual, aos vícios ou outras práticas pessoais que poderiam ser usados como instrumento de ações discriminatórias, vedadas por força de expressas disposições constitucional e legal[27].
De fato, a forma como o trabalhador decide relacionar-se na sua vida privada não pode constituir uma informação importante para o empregador, e, por isso, não constitui uma aptidão profissional necessária para a execução da prestação laboral. Por conseguinte, qualquer atuação do empregador que tente indagar sobre esses dados ou fatos sensíveis é ilícita e ao trabalhador é legítimo recusar-se a responder e, quando for mesmo necessário dar uma resposta, poderá não dar elementos, pois a não prestação de dados que são irrelevantes para a celebração do contrato é lícita, na medida em que se apresente como uma das possíveis defesas de seus direitos fundamentais.
O trabalhador, é certo, embora tenha determinados deveres de informação em relação ao empregador, não está obrigado, contudo, a lhe fornecer informações que não sejam diretamente pertinentes para aferir a sua aptidão ou idoneidade para o posto de trabalho como aquelas relacionadas com a sua vida íntima[28].
Assim, perguntas referentes a esses dados sensíveis[29] não podem ser feitas por ocasião da contratação, e quando feitas, o candidato ao emprego pode justamente se recusar a respondê-las. Se vier a não ser contratado em razão da recusa, terá direito a ser indenizado pelos danos sofridos, inclusive morais, a teor do que previsto no art. 5º, inciso X, do Texto Maior.
Os dados sensíveis por se referirem a aspectos mais íntimos do indivíduo, necessitam da prévia e expressa permissão do titular ou do seu representante para serem tratados, exceto se houver autorização legal, quando será dispensável essa manifestação que em nenhuma hipótese pode ser presumida.
b) no que concerne aos dados “nominativos” ou não sensíveis, assim considerados aqueles que identificam a pessoa, como por exemplo, contas bancárias, propriedades, etc, é permitido o armazenamento deles pela empresa desde que se encontrem relacionados com o contrato de trabalho ou ainda quando houver autorização expressa do trabalhador;
Entretanto, como lembra Tatiana Malta Vieira[30], mesmo esses dados necessitam de proteção – garantindo-se sua integridade, autenticidade e confidencialidade – uma vez que, ao serem confrontados com outros dados, podem revelar aspectos que o titular gostaria de manter em sigilo, por afrontarem diretamente seu direito à privacidade, pois ainda que certos dados pessoais não deixem transparecer mensagem significativa, quando analisados isoladamente, devem ser submetidos a procedimentos e medidas especiais de proteção, na medida em que agrupados, permitem a definição do perfil de seu titular.
c) a divulgação dos dados pessoais do trabalhador somente poderá ocorrer com o seu expresso consentimento, mesmo após rompida a relação laboral ou quando sequer foi ele admitido;
d) a empresa não pode impedir que o trabalhador possa ter acesso a esses dados, podendo este, em caso de recusa do empregador ou ex-empregador, para permitir o acesso lançar mão do remédio judicial adequado (habeas data) para obter os dados a seu respeito, inclusive visando a correção de equívocos existentes nos registros. E quando a negativa ou a incorreção dos dados tiver sido levada a efeito no seio da relação de trabalho ou em face dela, a medida deve ser requerida perante a Justiça do Trabalho, na forma da inteligência do art. 114, inciso IV, da Carta de 1988, na redação que lhe foi dada pela Emenda 45/2004;
e) extinta a relação laboral, a manutenção dos dados pela empresa depende de autorização do trabalhador, exceto para os casos previstos em lei, como por exemplo, aqueles necessários à fiscalização da Previdência Social e do Ministério do Trabalho;
f) a existência de equívocos ou falsificações nos registros do trabalhador dá a este o direito a proceder a devida retificação, inclusive por meio da ação judicial cabível, como acima se afirmou;
g) enfim, a empresa ou empregador não pode lançar mão dos dados pessoais do trabalhador para finalidade estranha à relação laboral.
Todavia, parece razoável entender que a empresa ao admitir um trabalhador, dele possa solicitar através de questionários ou outro procedimento, dados pessoais indispensáveis para a seleção e para a contratação, mas somente aqueles que se fizerem absolutamente necessários.
De acordo com a doutrina espanhola[31], a solicitação dos dados pessoais do trabalhador por ocasião da admissão somente é aceitável quando observados os seguintes princípios:
a) somente poderão ser solicitados ou coletados dados de caráter pessoal quando seu tratamento e conservação ou manipulação “sejam adequados, pertinentes e não excessivos” em relação com o fim que se persegue;
b) os interessados de quem se pede os dados pessoais deverão ser previamente informados de modo expresso, preciso e inequívoco sobre o objeto do pedido, o uso dos dados e os direitos que lhes assistem;
c) o tratamento de ditos dados requer o consentimento inequívoco do afetado, salvo quando a lei disponha de forma diversa ou quando necessários para a manutenção ou cumprimento do contrato ou de uma relação jurídica, incluída, é claro, a relação laboral.
Nesse passo, o princípio da boa-fé tem uma grande relevância desempenhando um importante papel no controle dos poderes empresariais a respeito não apenas da coleta de dados pessoais do trabalhador, mas também quanto ao armazenamento e divulgação desses dados.
De fato, fare ao mencionado princípio a coleta de dados pessoais sem o consentimento de seus titulares, seguida da formação de um banco de dados utilizado para se traçar o perfil desses indivíduos, informações depois mercantilizadas com empresas de publicidade, marketing ou quando repassadas a outra empresa sem autorização do trabalhador, como costuma acontecer no meio empresarial. Afeta igualmente agride o princípio da boa-fé a coleta de dados com a tática anuência do trabalhador para fins de execução de um contrato de prestação de serviços ou representação de algum produto, seguida da utilização dos mesmos dados para atender a interesses comerciais alheios aos fins para os quais foram coletados e não autorizados para aquele mesmo titular[32].
Assim, informações coletadas para determinado propósito poderão ser utilizadas para finalidades diversas tão-somente em casos em que haja prévio e expresso consentimento do seu titular legal, pena de agravo ao princípio da boa-fé. Lembra a doutrina nacional[33] que a única hipótese em que os dados poderão ser utilizados para finalidades diversas daquela para as quais foram colhidos diz respeito à situação em que o próprio Estado promove o recolhimento, e para fins de preservação de outros interesses públicos, como a investigação criminal e o exercício da atividade de inteligência. Nessas hipóteses, há o entendimento de que se instala uma situação de colisão entre o direito fundamental à privacidade e à intimidade e o valor constitucional segurança pública, devendo ser aplicado em qualquer hipótese o princípio da proporcionalidade para resolução do conflito.
Mas, se é certo que o contrato de trabalho não pode constituir, por si só, título hábil para a introdução de limitações aos direitos fundamentais que correspondem ao trabalhador como tal e como cidadão, não é menos verdadeiro que o direito à intimidade, à própria imagem, ao segredo das comunicações não é absoluto. Portanto, pode ceder ante interesses constitucionalmente relevantes, sempre que a limitação que possa experimentar se revele necessária para alcançar o fim previsto, proporcionado para alcançá-lo e, em qualquer caso, seja respeitado o conteúdo essencial do próprio direito[34].
Não existe uma obrigação geral incompatível entre o necessário respeito aos direitos fundamentais do trabalhador e ao emprego, pela empresa, no âmbito de suas faculdades de organização nos sistemas que permitem obter informações reveladoras do grau de cumprimento das obrigações laborais, suscetíveis de sua posterior reprodução como meio de prova das irregularidades apreciadas desde, é claro, que seja estabelecido um ponto de equilíbrio entre o emprego e as restrições e o sacrifício que supõe para os direitos considerados. Por conseguinte, é necessário fazer a adaptabilidade dos direitos do trabalhador aos objetivos da organização produtiva a que ele se integra, levando em conta a razoabilidade destes.
Desse modo, parece razoável defender com Javier Gárate Castro[35] ser possível a limitação proporcionada desses direitos pelo recurso a mecanismos de captação de imagens, sons, palavras ou outros dados e, por extensão a reprodução do conteúdo captado como prova:
a) quando restar suficientemente comprovado que aquele recurso é adequado ou útil para a satisfação de um interesse empresarial legítimo e, portanto, merecedor de tutela e seja relacionado com o correto e ordenado desenvolvimento da atividade produtiva, de forma que não basta a mera invocação do interesse para justiçar a limitação;
b) a própria limitação ou modificação do direito fundamental afetado se mostre proporcionada para o fim que se pretende alcançar, ou seja, resulte indispensável ou estritamente necessária para lograr referida satisfação do interesse empresarial da maneira menos agressiva ou restritiva do direito sobre o qual se projeta.
No Brasil, a doutrina[36] entende que o direito à autodeterminação informática do trabalhador – candidato a emprego ou empregado –, por constituir uma nova fase do direito à intimidade e à vida privada, tem proteção efetiva no disposto no art. 5º, inciso X, Constituição de 1988, não sendo necessária a existência de legislação regulamentadora da garantia, o que parece correto, na medida em que o direito à intimidade, constituindo uma dimensão da dignidade humana, garantida como um dos fundamentos da República Brasileira no expresso da Constituição, é auto-aplicável, máxime porque também garantido em vários Tratados Internacionais sobre os direitos humanos de que o Brasil é parte. Aplica-se, pois, o disposto no art. 5º, § 1º da Carta de 1988.
A dignidade e a intimidade do trabalhador implicam o uso ponderado dos poderes empresariais de direção e organização do trabalho e, particularmente, no tocante ao controle e vigilância.
Com efeito, se é certo que o empresário pode adotar medidas que entenda mais oportunas de vigilância e controle, entre elas podendo figurar meios audiovisuais, óticos ou outros de igual eficácia, a contratação dos serviços de profissionais, ou o registro sobre a pessoa ou dados pessoais do trabalhador, não é menos verdadeiro que tais medidas somente podem ser consideradas legítimas se referidas à verificação do cumprimento das obrigações laborais. Não se pode jamais admitir a intromissão na esfera íntima ou na vida privada do trabalhador, devendo, por isso mesmo, guardar sempre a consideração devida à sua dignidade humana (art. 1º, III e 5º, X da Constituição de 1988).
Desse modo, a revista pessoal, que envolve os objetos que acompanham o trabalhador, assim como a sua própria pessoa, somente pode ser admitida – sempre em caráter excepcional – para salvaguardar o patrimônio do empregador e a segurança dos demais trabalhadores. Todavia, sua admissão não pode em hipótese alguma colocar o trabalhador em situação vexatória, pois o direito de propriedade não pode jamais se sobrepor à dignidade do trabalhador.
Nesse sentido, vale trazer à colação o seguinte julgado que bem soube interpretar e garantia:
“DANO MORAL – REVISTA ÍNTIMA – DIREITO À INTIMIDADE X DIREITO DE PROPRIEDADE – COLISÃO ENTRE DIREITOS CONSTITUCIONALMENTE TUTELADOS – TEORIA DA PONDERAÇÃO DE INTERESSES. Em razão do princípio específico da unidade da Constituição, na hipótese de colisão entre direitos constitucionalmente tutelados, o método a ser utilizado é aferir entre os interesses contrapostos aquele que possui, no caso concreto, maior preeminência e menor restrição na ordem jurídica constitucional, limitando-se um direito fundamental para salvaguardar outro. No caso em apreço, o poder de fiscalização da propriedade do empregador é limitado à garantia de preservação da honra e da intimidade da pessoa física do trabalhador, que encontra no princípio da dignidade da pessoa humana sua maior expressão”[37].
Nessa perspectiva, parece razoável afirmar que entre nós, a doutrina e a jurisprudência consideram e admitem a revista pessoal (realizada diretamente tanto no corpo do trabalhador feita em objetos que ele carrega consigo, como bolsas e sacolas) uma forma de concretização do poder de controle do empregador, no sentido de fiscalizar as atividades desempenhadas pelo empregado. Todavia, não é menos verdadeiro dizer que mesmo quando indispensável, a revista somente pode ser realizada na saída do trabalhador dos locais de trabalho e quando existirem fatos concretos que a recomendem. Mas nessa hipótese, somente poderá ser realizada através de instrumentos que não violem a intimidade do empregado. Mesmo tolerada e considerada pelos tribunais brasileiros como um direito de fiscalização do empregador, se tornará abusiva e desrespeitosa à dignidade humana quando efetivada de forma imoderada ou desproporcionada.
Nesse sentido, por exemplo, já decidiu o Tribunal Superior do Trabalho, conforme se vê da seguinte ementa[38]:
“EMENTA: DANO MORAL – PRESENÇA DE SUPERVISOR NOS VESTUÁRIOS DA EMPRESA PARA ACOMPANHAMENTO DA TROCA DE ROUPAS DOS EMPREGADOS – REVISTA VISUAL. Equivale à revista pessoal de controle e, portanto, ofende o direito à intimidade do empregado a conduta do empregador que, excedendo os limites do poder diretivo e fiscalizador, impõe a presença de supervisor, ainda que do mesmo sexo, para acompanhar a troca de roupa dos empregados no vestuário. O poder de direção patronal está sujeito a limites inderrogáveis, como o respeito à dignidade do empregado e à liberdade que lhe é reconhecida no plano constitucional. Irrelevante a circunstância de a supervisão a ser empreendida por pessoa do mesmo sexo, uma vez que o constrangimento persiste, ainda que em menor grau. A mera exposição, quer parcial, quer total, do corpo do empregado, caracteriza grave invasão à sua intimidade, traduzindo incursão em domínio para o qual a lei franqueia o acesso somente em raríssimos casos e com severas restrições, tal como se verifica até mesmo no âmbito do direito penal (art. 5º, XI e XII, da CF). Despiciendo, igualmente, o fato de inexistir contato físico entre o supervisor e os empregados, pois a simples visualização de partes do corpo humano, pela supervisora, evidencia a agressão à intimidade da Empregada. Tese que se impõe à luz dos princípios consagrados na Constituição da República, sobretudo os da dignidade da pessoa, erigida como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso II) e da inviolabilidade da intimidade e honra (art. 5º, inciso X). Recurso de Revista que se conhece e a que se dá provimento para julgar procedente o pedido de indenização por dano moral.”
Quando não atendidas as exigências da ponderação e do respeito à intimidade do trabalhador, a revista será considerada como atentatória à dignidade do empregado, que pode justificadamente usar o jus resistentia, sem que esse seu comportamento caracterize desobediência, que daria ensejo ao rompimento do contrato por justa causa.
No que se refere à revista em objetos e armários, a jurisprudência tem admitido com o fim de salvaguardar o patrimônio do empregador e para garantir a segurança dos demais trabalhadores. Porém, também aqui, os requisitos para que ela seja admitida são os mesmos para a revista pessoal: imprescindibilidade para a proteção da propriedade; realização no final do expediente, com sistema de seleção automática e anuência ou acompanhamento do trabalhador.
O empregador não pode fiscalizar sem o consentimento do empregado os bens que este tem para seu uso e gozo e que, portanto, mesmo tendo sido reservados em razão do trabalho, passam a integrar a sua esfera íntima e privada. Daí porque não se pode concordar com o entendimento de que o empregador possa monitorar o e-mail do trabalhador pelo mero fato do computador ser de propriedade da empresa e usado como ferramenta de trabalho.
O fato do e-mail ser ou não meio de comunicação e ferramenta de trabalho não autoriza a intromissão do empregador na esfera privada do trabalhador. O e-mail é ferramenta de trabalho, mas ao mesmo tempo serve ao indivíduo. Não é porque o empregador forneceu o equipamento que pode invadir a privacidade do empregado que se manifesta por tal meio, naturalmente. Na verdade, como lembra Jorge Luiz Souto Maior[39], “por detrás da postura do empregador de defender seu “direito” de visualizar as mensagens enviadas e recebidas por seu empregado está embutida uma nova forma de controle, baseada muitas vezes no falso argumento da moralidade, para, no fundo, apenas potencializar o estado de sujeição do empregado”.
Ao comentar algumas sentenças dos tribunais espanhóis a respeito da possibilidade do empregador ter acesso ao conteúdo do e-mail do empregado, Javier Gárate Castro[40] afirma que esse entendimento não permite concluir que esse acesso seja sempre alheio ao segredo das comunicações e constitua uma medida que não entra em contradição com esse direito ou o relativo à intimidade. Para ele:
“El principio de proporcionalidad rige también aquí y, por lo tanto, hará que valorar si no existe otra medida menos agresiva que permita satisfacer el legítimo interés de la empresa de controlar el correcto uso de la herramienta o comprobar la sospecha de comisión de irregularidades por parte del trabajador controlado. No creo que la irregularidad en el uso del correo electrónico, sancionable como incumplimiento contractual, justifique cualquier tipo de control. Al respecto, interesa tener presente que, tanto si se trata de la fiscalización del uso del correo electrónico como de otras posibles aplicaciones del ordenador, desde el punto de vista de la adecuación a principio de proporcionalidad, la menor agresividad de los derechos fundamentales afectados corresponde, como también han tenido oportunidad de señalar los Tribunales laborales, al control o registro informático que se circunscribe a los aspectos externos de la información registrada, como son el tipo de programas o aplicaciones utilizadas, el tipo de paginas web consultadas o la cantidad de correos enviados y la fecha de la misión. Se a la empresa le basta para satisfacer su interés con el acceso a ese tipo de datos, no debe ir más lejos, salvo que quiera correr el riesgo de su actuación se estime contraria a los derechos fundamentales del trabajador.”
Assim, mesmo que se admita a possibilidade do acesso pelo empregador ao e-mail do empregado, isso somente poderá ocorrer, excepcionalmente, para verificar o correto uso da ferramenta ou para comprovar eventual cometimento de irregularidades por parte do trabalhador controlado, na medida em que tal procedimento implica limitação ao direito à privacidade ou a intimidade do empregado e ainda ao sigilo de suas correspondências, constitucionalmente garantido que jamais poderá ser violado apenas em nome do poder diretivo empresarial e do direito de propriedade.
Deve-se levar em conta, sempre, que a restrição de direito fundamental, embora excepcionalmente admitida, deve ser justificada pela necessidade de garantir outro bem ou direito constitucionalmente protegido, pois como averba Rafael Naranjo de la Cruz[41] “la restricción del derecho fundamental deve tener en cuenta también que éste disfruta igualmente de protección constitucional, aí como el carácter supremo de la misma. Por tanto, el limite ha de aparecer justificado por la necesidad de garantizar otro bien o derecho constitucionalmente protegido; ser adecuado, esto es, útil para consecución del fin propuesto; necesario, por no existir otro igualmente apto para garantizar el bien que se le opone que, sin embargo, no afecta el derecho fundamental en cuestión, o lo haga en menor medida; y finalmente, debe ser proporcional en sentido estricto, es decir, corresponderse a la importancia que, desde un punto de vista constitucional, cabe atribuir a cada una de las manifestaciones de los bienes en juego”.
Desse modo, não é possível comungar com o entendimento daqueles que admitem que o empregador possa monitorar o e-mail do trabalhador pela mera circunstância de ser proprietário do computador. Sendo o e-mail mera ferramenta de trabalho o empresário pode “monitorar e rastrear a atividade do empregado no ambiente de trabalho, em e-mail corporativo, isto é, checar suas mensagens, tanto do ponto de vista formal quanto sob o ângulo material ou de conteúdo”[42]. Ao se admitir essa tese como válida, estar-se-ia privilegiando o direito de propriedade em detrimento ao direito à privacidade, à intimidade do trabalhador e ao sigilo de correspondência, constitucionalmente garantidos (art. 5º, incisos X e XII da Carta de 1988).
O simples fato de uma linha telefônica e aparelhos pertencerem a uma empresa evidentemente não confere à organização o direito de interceptar as ligações de seus empregados sem autorização judicial. Deve-se, pois, entender quanto às comunicações eletrônicas, que não podem ser monitoradas sob a alegação tanto da titularidade do contrato com o provedor de acesso à internet quanto da propriedade dos recursos eletrônicos.
Dessa forma, o monitoramento do e-mail do empregado impede, sem dúvida, o exercício de outros direitos fundamentais além do direito à privacidade, como o direito à liberdade de expressão, à crítica e até mesmo de reflexão sobre as condições de trabalho. Ademais, como observa com propriedade Mario Antônio Lobato de Paiva[43], o poder de direção e a necessidade de controle de tráfego de informações da empresa podem ser implementados recorrendo-se a outros recursos menos invasores à privacidade, sendo desnecessário o rastreamento de todas as mensagens do empregado.
Nessa perspectiva, se deve conclui pela inconstitucionalidade do monitoramento generalizado de todas as comunicações dos empregados realizadas por meio de recursos computacionais da empresa, ainda que tal previsão exista em norma interna da empresa ou mesmo tenha sido inserida como cláusula do contrato de trabalho, por violação da garantia constante do inciso XII do art. 5º, do Texto de 1988 que regula o sigilo das comunicações sem estabeler qualquer distinção entre comunicação profissional e comunicação pessoal permitindo a interceptação apenas para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, porém mediante ordem judicial e desde que observado o devido procedimento previsto em lei específica, hipótese que evidentemente não se encaixa a auto-restrição em contrato de trabalho – relação marcadamente assimétrica em que não existe nem mesmo a liberdade do empregado na decisão de limitação do direito de personalidade. Por conseguinte, o entendimento que vem sendo dado pela jurisprudência laboral a respeito do tema não se coaduna com a garantia constitucional acima mencionada mostrando-se completamente desproporcional.
2.2 Direito à imagem e à honra
O direito à imagem é um valor fundamental da dignidade humana. O art. 5º, inciso X, da Constituição declara invioláveis a honra e a imagem das pessoas.
Para José Afonso da Silva[44] o direito à preservação da imagem e da honra, como o nome, não caracteriza propriamente um direito à privacidade menos à intimidade. Tanto assim, que a Carta de 1988 reputa-os valores humanos distintos.
O indivíduo tem a faculdade de decidir que aspectos de sua pessoa deseja preservar da divulgação pública, a fim de garantir um âmbito privativo para o desenvolvimento da personalidade alheia a ingerências externas, o que termina por se projetar em outro direito fundamental, qual seja, o direito à honra aqui entendido como fama, reputação, bom nome.
A honra é assim, o conjunto de qualidades que caracterizam a dignidade da pessoa, o respeito aos concidadãos, o bom nome, a reputação. É, pois, o direito fundamental da pessoa de resguardar essas qualidades, de preservar a própria dignidade.
Desse modo, o direito de proteção e valorização externa da pessoa é dotado das notas de imanência – a própria estimação –, e de transcendência – o reconhecimento externo da própria dignidade. É, pois, um direito de natureza personalíssimo e, portanto, de titularidade individual que não admite réplica contrária.
Também no âmbito das relações laborais o trabalhador tem o direito à sua própria imagem que é uma derivação de sua dignidade e que tem por escopo a proteção da dimensão moral de sua pessoa atribuindo-lhe um direito de determinar a informação gráfica gerada pelos seus traços físicos pessoais que pode ter difusão pública, bem como a faculdade para evitar essa difusão incondicionada de seu aspecto físico, na medida em que constitui o primeiro elemento configurador da esfera pessoal de todo indivíduo, enquanto instrumento básico de identificação e projeção exterior e fator imprescindível para seu próprio reconhecimento como sujeito individual.
Essa reserva pessoal, referente ao aspecto físico, que também se reflete na personalidade moral do indivíduo, além de satisfazer a uma exigência espiritual de isolamento, é ao mesmo tempo uma necessidade iminentemente moral.
No direito à honra, a pessoa é tomada frente à sociedade, no círculo social em que se insere, função do valor ínsito à consideração social. Daí, a violação a esse valor produzir reflexos na sociedade, acarretando para o lesado diminuição social, com conseqüências pessoais (humilhação, constrangimento, vergonha) e patrimoniais (no campo econômico, como o abalo de crédito, descrédito da pessoa ou da empresa; abalo de conceito profissional).
Com efeito, sendo a honra, objetivamente considerada, um atributo valorativo da pessoa na sociedade (pessoa como ente social), a lesão se reflete, induvidosamente, de imediato, na opinião pública, considerando-se perpetrável por qualquer meio possível de comunicação (escrito, verbal, sonoro)[45].
No marco laboral, a violação à honra se mostra ainda mais grave, pois o contrato de trabalho tem como um dos seus elementos mais importantes, a fidúcia do empregador na pessoa do empregado, que pode simplesmente desaparecer colocando em risco o próprio emprego em caso de comentários ou notícias desabonadoras da honra pessoal ou profissional do trabalhador.
Nessa perspectiva, a violação desse direito pelo empregador ou preposto seu com a divulgação de imagens não autorizadas, de notícias ou comentários desabonadores da honra pessoal ou profissional do trabalhador constitui evidente atentado à dignidade deste implicando no dever de indenização pelos danos morais e materiais causados, inclusive pela eventual perda de nova colação no marcado de trabalho[46], na forma do previsto no art. 5º, incisos V e X, do Texto Maior combinado com que se encontra expresso nos arts. 11, 12 e 21 do Código Civil.
Esse direito que acompanha a pessoa desde o nascimento, por toda a vida e, mesmo após a morte, como se viu, tem por escopo tutelar a reputação do ser humano no seio da coletividade e a preservação da própria dignidade humana. E por óbvias razões, incide também e com muito maior ênfase, nas relações laborais, onde a lógica da subordinação e da dependência do emprego torna o trabalhador mais vulnerável à violação de seus direitos fundamentais, entre o quais se inscreve o direito a honra, ao bom nome e a boa fama como, aliás, a velha, mas, sempre lembrada CLT previu no art. 483.
2.3 Direito à liberdade ideológica e religiosa
De acordo com o inciso VI, do art. 5º da Carta Maior, é inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o inciso VIII que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política.
Como se vê, a Constituição garante a liberdade ideológica, religiosa e de culto aos indivíduos e as comunidades sem mais limitação, em suas manifestações.
No campo laboral, por força da garantia antes mencionada, o trabalhador tem direito de não ser discriminado para o emprego, ou uma vez empregado, por razões de “crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”, direito esse que também se recolhe na Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela ONU em 1948.
Aos poderes públicos incumbe, pois, o dever de não sancionar, nem desmerecer ou prejudicar a nenhuma pessoa em razão de suas crenças ideológicas, proibida toda ingerência na dimensão externa ou no agir lícito dessa liberdade.
Nesse passo, o mesmo dever se impõe aos poderes privados ou em geral às condutas dos particulares, e especialmente, às decisões empresariais no marco da relação de trabalho ou emprego.
O direito de liberdade ideológica, religiosa e de culto, bem como o direito de não declarar sobre sua ideologia, religião ou crenças, que se encontra conectado com a dignidade e a intimidade da pessoa do trabalhador, com relação ao âmbito laboral permite ao empregado decidir livremente sobre suas idéias, suas opções vitais ou suas convicções de tipo religioso, político ou sindical, e lhe protege frente a possíveis indagações ou medidas de represália por conta da mesma.
Entretanto, se deve mencionar, aqui, por necessário, a questão das empresas de tendência, em que o exercício dos direitos fundamentais por parte do trabalhador pode sujeitar-se a limitações quanto à organização empresarial face à exigência de eficaz ou concreta difusão do trabalho ideológico da empresa.
De acordo com a doutrina[47] ainda que não haja como regra geral obrigação de declarar os dados referentes às convicções ideológicas, religiosas ou sindicais, a comunicação a seu respeito em alguns casos concretos se fez necessária para que o empresário possa dar cumprimento a determinadas obrigações legais, como por exemplo, descanso em dias solenes, proteção especial frente à despedida, entre outras.
A jurisprudência espanhola, por exemplo, tem se mostrado um tanto indecisa a respeito dessa questão, pois o Tribunal Constitucional tem entendido que na hipótese das empresas de tendência se admite a limitação do direito quando justificada na estrita medida em que seja necessária para salvaguardar o normal desenvolvimento da atividade ideológica, também garantida constitucionalmente, porém ressalvando que terceiros como o sindicato e os representantes do trabalhador não podem revelar os dados, mas sem estabelecer critérios seguros para que, respeitando os direitos do trabalhador, possa o empresário ter conhecimento de uma situação geradora de obrigações.
Desse modo, pode-se dizer que no âmbito das empresas de tendência o trabalhador pode sofrer alguma mitigação no direito à crença ou liberdade ideológica, religiosa e de culto e, como conseqüência, na prática não há âmbito de total exclusão dessas empresas a respeito do campo de aplicação da proibição de discriminação[48] e da garantia da indenidade pelo exercício de tais liberdades[49].
Assim, pode-se afirmar que o direito à liberdade ideológica termina sofrendo certa mitigação quando se tratar de empregado de empresas de tendência, porém o que não pode acontecer é que o trabalhador seja discriminado em razão de sua ideologia.
2.4 Direito à não discriminação
Discriminação é a conduta pela qual se nega à pessoa tratamento compatível com o padrão jurídico assentado para a situação concreta por ela vivenciada, tendo como causa, muitas ou na maioria das vezes, um juízo sedimentado desqualificador de uma pessoa em razão de uma característica sua, determinada externamente, e identificadora de um grupo ou segmento mais amplo de indivíduos, como cor, raça, sexo ou orientação sexual, nacionalidade, estado civil, riqueza, etc[50].
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a discriminação constitui a diferenciação de tratamento, sem que haja motivos lógicos para tanto, como decorrência de algum tipo de preconceito em face de determinado atributo pessoal do discriminado como sexo, orientação sexual, cor, etnia, etc.[51]
De acordo com os termos da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação, ratificada pelo Brasil e, portanto, integrante do ordenamento jurídico nacional, discriminação é:
“Qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha o propósito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em outro qualquer da vida pública.”
Registre-se que a aludida Convenção Internacional ao delimitar o conceito de discriminação, elegeu, como elementos constitutivos, aqueles que são característicos naturais ou culturais do individuo que, historicamente, têm sido recorrentes, sem, todavia, com isso estabelecer um sistema taxativo. Por conseguinte, e embora o texto não mencione exclusão, restrição ou preferência baseada no critério da compleição física ou mental, é claro que a definição de discriminação engloba também as pessoas que são portadoras de alguma deficiência física ou mental[52].
De outro lado, o fato da normativa internacional mencionar apenas o campo da vida pública, situando, inicialmente, o problema no âmbito da eficácia vertical dos direitos fundamentais – o Estado em face do particular – não impede que a noção seja estendida às relações entre particulares e, portanto, se desloque para os domínios de sua eficácia horizontal, máxime porque como sabemos, muitas vezes o vilão da discriminação não é um agente público, especialmente no campo das relações laborais em que a discriminação acontece até mesmo entre colegas de trabalho, inclusive através da insidiosa figura do assédio moral[53] e sexual[54]. Mas nem por isso o Estado está isento do seu dever indeclinável de dá proteção aos indivíduos perante os particulares, que na realidade não passam de terceiros vinculados pela irradiação do princípio da igualdade[55], inclusive a jurisprudência do STF aponta nesse rumo ao admitir a possibilidade da incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, consideradas as peculiaridades do caso concreto[56].
Como se pode perceber do texto da aludida normativa internacional, a discriminação nele prevista assume um caráter negativo, ilícito, de exclusão, de reprovabilidade. É esse tipo de discriminação que nos interessa analisar no presente trabalho, e mais que isto, sua incidência e repercussão no campo das relações laborais.
Para a Convenção 111 da OIT que trata do tema, o termo discriminação compreende: a) toda “distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão”; b) qualquer “outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão que poderá ser especificada pelo Membro interessado depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados”.
Tomando em conta o que estabelecido na mencionada normativa internacional, no campo da relação de trabalho, discriminação é a diferenciação de tratamento, sem que houvesse motivos lógicos para tanto, como decorrência de algum tipo de preconceito em face de determinado atributo pessoal do trabalhador (sexo, orientação sexual, etnia, nacionalidade, etc), “que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão”.
É claro que as hipóteses de discriminação no campo das relações laborais não estão limitadas aquelas previstas na aludida normativa internacional.
Como lembra Elaine Machado Vasconcelos[57], entre as muitas condutas discriminatórias na atividade laboral brasileira, destacam-se as seguintes:
a) os negros, os homossexuais e os portadores do vírus HIV, têm acesso dificultado e muitas vezes negado nas seleções para vagas de determinados empregos;
b) os negros, as mulheres e os homossexuais são preteridos nas ascensões funcionais;
c) as mulheres sofrem assédio como instrumento de pressão no trabalho;
d) sob a alegada “responsabilidade familiar” especial da mulher, esta sofre discriminação no acesso a postos de trabalho;
e) mulheres são demitidas ou não admitidas por motivo de gravidez;
f) o pretexto da “boa aparência” tem permeado a seleção de trabalhadores “bonitos” para determinados cargos, configurando a descriminação estética no trabalho;
g) a “boa aparência” também tem servido de pretexto para a exclusão de obesos, pessoas de baixa estatura, pessoas tatuadas, adornadas por percing, pessoas com cicatrizes, quelóides, queimaduras, feridas ou manchas, homens que usam cabelo e barbas longas, caracterizando também casos de discriminação estética;
h) os portadores de deficiência física ou mental, ou ainda os portadores de certas doenças (como o diabetes) não têm tratamento especial que lhes assegure o ingresso no mercado de trabalho;
i) a utilização do direito de ação por trabalhadores, mediante ajuizamento de reclamatórias trabalhistas contra seus ex-empregadores, tem significado de óbice à obtenção de novas colocações no mercado de trabalho;
j) os idosos são praticamente excluídos do mercado de trabalho e compelidos, consequemente, a destinarem-se ao mercado informal de trabalho[58];
k) certas enfermidades, mesmo assim consideradas pela medicina, não são aceitas como tais por muitos empregadores, que insistem em classificá-las como “desvio de caráter”, a exemplo do alcoolismo, ensejando a demissão motivada em preterição das recomendações de suspensão do contrato de trabalho para tratamento de saúde do empregado, mesmo sendo reconhecido pela Organização Mundial de Saúde que o alcoólatra é um doente, inclusive, aqui no Brasil, pela própria previdência social.
2.5 Discriminação dos trabalhadores portadores de doença ocupacional, vítimas de acidente do trabalho ou acometidos por doenças infecto-contagiosas.
Menção especial se deve fazer a respeito dos trabalhadores portadores de doença ocupacional, vítimas de acidente do trabalho ou acometidos por doenças infecto-contagiosas, como a SIDA/AIDS.
Em que pese o disposto no art. 118 da Lei 8.213/91 e as normas da Lei 9.029/95, os trabalhadores integrantes desses grupos têm sido vítimas de dispensas sem nenhuma justificação.
Parece evidente afirmar que em todos esses casos, a ocorrência da dispensa, mesmo quando não motivada e ainda que com pagamento de verbas resilitórias, algumas vezes até mesmo com indenização do período de garantia do emprego, como no caso dos trabalhadores protegidos pela garantia constante do art. 118 da Lei 8.213/91, deve ser tida como discriminatória, e como averba respeitada doutrina[59] “com elementos de mais intensa gravidade”.
Esse tipo de dispensa, além de ser fruto do preconceito e, portanto, discriminatória, revela na prática inaceitável abuso do poder empresarial. Portanto, deve ser anulada com a reintegração do trabalhador, inclusive para permitir o direito ao devido e adequado tratamento médico.
A dispensa do trabalhador acidentado ou doente, especialmente quando o evento tenha tido como causa o trabalho ou as condições em que este é executado, a par de revelar o preconceito do empregador, resulta no imediato desemprego do trabalhador, pois a ninguém é dado desconhecer que a pessoa que padece de algum mal encontra óbice praticamente intransponível para se inserir no mercado de trabalho. Por conseguinte, é razoável defender que a dispensa imotivada desses trabalhadores deve ser considerada discriminatória e obstativa ao constitucional e fundamental direito ao trabalho complemento do próprio direito à vida e à igualdade da pessoa humana.
Ademais, por meio desse tipo de dispensa se suprime do trabalhador o acesso ao tratamento médico adequado que, por ventura lhe era conferido através de plano de saúde fornecido ou subsidiado pela empresa agredindo-se, por conseqüência, também o direito fundamental à saúde, com manifesta afronta aos arts. 1º, inciso III; 3º, inciso IV; 5º; 6º; 193 e 196 da Carta de 1988, bem como às normas da Lei 9.029/95 e aos princípios albergados pelas Convenções 111 da OIT proibitiva da discriminação no campo da relação de trabalho, e ainda a Convenção 155 que trata da saúde e segurança do ser humano no ambiente do trabalho, ambas incorporadas ao ordenamento jurídico nacional e, portanto, de cumprimento e aplicação obrigatória.
Nesse sentido, aliás, se encaminha a jurisprudência pretoriana.
Vale trazer à colação uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região[60], nos seguintes termos:
“Ementa: Estabilidade. Portador do vírus HIV. Na relação empregatícia o empregador detém o poder potestativo quanto à dispensa dos empregados, mediante o pagamento de verbas indenizatórias previstas na legislação trabalhista. Contudo, referido poder encontra limitações nas garantias de emprego, assim como no respeito aos princípios que informam todo nosso ordenamento jurídico, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no artigo 1º, inciso III, da Carta Magna, quando a dispensa do empregado se mostra fundada em ato discriminatório”.
No voto condutor do acórdão, o relator deixou assentado:
“O Direito é considerado como o conjunto de normas que regem as relações sociais. Dessa forma, a AIDS, no aspecto social que envolve a doença, passa a estar intimamente ligada ao direito, na medida em que cria situações múltiplas entre o portador da doença e o mundo em que vive.
Lembrando a grande TEORIA TRIDIMENSIONAL, desenvolvida pelo Jurista MIGUEL REALE, o direito surge da conjugação de três fatores: fato, valor e norma. Ocorrido o fato, a sociedade lhe dá uma valoração e dessa nasce a norma jurídica. Assim, a norma jurídica é mais morosa que o fato social, podendo ocorrer situações em que o fato existe, a sociedade já lhe deu valoração e a norma ainda não nasceu. É o caso dos trabalhadores portadores do vírus da AIDS, frente ao direito ao trabalho previsto na Constituição Federal como de índole fundamental (artigo 6º).
Pouco se tem na legislação que possa ajudar na solução de problemas relacionados com a doença e com isso, a situação da sociedade se agrava, buscando alívio nas definições do Poder Judiciário. A Justiça Obreira tem seguidamente se manifestado no sentido de condenar atos discriminatórios, independentemente de regulamentação jurídica expressa embasadora das postulações apresentadas, mas apenas com fulcro nos princípios maiores insculpidos nos artigos 1o, inciso III, 3o, inciso IV e 5o, inciso XLI e parágrafo 1º, todos da Constituição Federal.
Não se pretende, ao condenar violentamente a discriminação negativa, provocar reação social e legal, de forma a consubstanciar a discriminação positiva ao aidético. Deve ele ter e merecer do Estado, a mesma proteção que o obreiro acometido de outras tantas graves doenças ou vítimas de atos discriminatório de todos os tipos. Privilegiar o aidético é tão deletério quanto segregá-lo. Ser portador de moléstia fatal jamais será um benefício, mas sim, fator digno de compreensão e nunca piedade.
In casu, diversamente do decidido pela MM. Vara de Origem não se pode dizer que a empresa desconhecia ser o reclamante portador do vírus da AIDS. Embora a reclamada negue em sua defesa o conhecimento da doença do autor, o documento já acima referido, por ela própria emitido, demonstra exatamente o contrário. E mais, a despeito de ter a demandada afirmado que o reclamante é apenas portador do vírus HIV e que nunca teve qualquer anomalia ocasional manifestada em razão da imunodeficiência, também o prontuário médico ora em comento denuncia as inúmeras vezes em que o mesmo se serviu do departamento médico da empresa, buscando atendimento.
Sustenta a reclamada, em sua defesa, ter sido o reclamante dispensado em razão de “reestruturação” empresarial (fl. 132, item 46). No entanto, em evidente contradição, o preposto declarou em depoimento pessoal (fl. 418), que a dispensa do reclamante teria ocorrido “porque não mais se enquadrava no perfil da empresa; que o serviço desempenhado pelo reclamante não era mais necessário ao funcionamento da empresa; que outros funcionários continuaram a exercer essas funções e não houve critério específico para a dispensa do reclamante”.
As contradições acima narradas militam desfavoravelmente à ré. Sendo o autor portador do vírus HIV, situação essa do conhecimento da ré, se a dispensa do autor não ocorreu pelos motivos mencionados na peça contestatória e, ainda, sem qualquer critério específico, evidente a presunção da prática de ato discriminatório. É certa a relatividade de referida presunção, cabendo à demandada infirmá-la, por meio de prova robusta, o que não foi feito, mormente consideradas as declarações do preposto em audiência.
Também é certo que, na relação empregatícia, o empregador detém o poder potestativo quanto à dispensa dos empregados, mediante o pagamento de verbas indenizatórias previstas na legislação trabalhista. Contudo, referido poder encontra limitações nas garantias de emprego, assim como no respeito aos princípios que informam todo nosso ordenamento jurídico, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no já suso mencionado artigo 1º, inciso III, da Carta Magna.
Por meio de seu ato, a reclamada não só violou princípios constitucionais, como também obstou o direito do autor em receber tratamento previdenciário conferido aos aidéticos pela Lei 7670/88, primeira luz a brilhar no ordenamento jurídico, em proteção aos mesmos, incidindo, assim, na hipótese preconizada pela Lei 9029/95.”
No mesmo sentido, o Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região[61]:
“EMPREGADO PORTADOR DO VÍRUS DA HEPATITE -C-. FALSA CAUSA PARA O DESPEDIMENTO.DISCRIMINAÇÃO. Empregado portador do vírus HCV – hepatite C -, debilitado pela enfermidade incurável, sofrendo distúrbios colaterais que transtornaram sua fisionomia, deve ter assegurada a sua manutenção no emprego, ainda que por analogia aos artigos 1º e 4º, da Lei 9.029/95. Sua situação é similar à do portador do vírus HIV, não merecendo ser penalizado com a omissão da lei, que caminha a passos curtos. A discriminação mostra-se patente, revelando os autos a argüição, pela ré, de falsa causa para a dispensa. Recurso provido.”
Também aqui foram feitas importantes considerações a respeito da garantia do direito à saúde do trabalhador e da proibição da dispensa discriminatória por motivo de doença.
Registrou o relator do acórdão:
“A tese recursal de inexistência de norma legal que ampare o reclamante em sua pretensão, essa sim, deve ser descartada, pois, além das normas supracitadas, perfeitamente aplicável ao caso as regras gerais contidas na Lei 9029/95, a qual confere proteção aos trabalhadores contra práticas discriminatórias que impeçam a manutenção da relação de emprego.
Aplicar a um caso, não contemplado de modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma norma prevista para uma hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado, é que se denomina analogia, prevista no art. 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.
Ensina Maria Helena Diniz2 que, além da semelhança, é essencial que haja entre o caso previsto em lei e o sub judice a mesma razão.
Consigna, ainda, que o fundamento da analogia encontra-se na igualdade jurídica, já que o processo analógico constitui um raciocínio -baseado em razões relevantes de similitude- , fundando-se na identidade de razão, que é o elemento justificador da aplicabilidade da norma a casos não previstos, mas substancialmente semelhantes, sem contudo ter por objetivo perscrutar o exato significado da norma, partindo, tão-só, do pressuposto de que a questão sub judice, apesar de não se enquadrar no dispositivo legal, deve cair sob sua égide por semelhança de razão… Daí o célebre adágio romano: ubi eadem legis ratio, ibi eadem dispositivo.
O artigo 1º, da Lei 9029/95 dispõe:
… fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas neste caso as hipóteses de proteção ao menor previstas no inciso XXXIII, do art. 7º da Constituição Federal.
Entre as hipóteses previstas na lei supracitada e o caso sub judice há semelhança real de razão, qual seja, a coibição da prática discriminatória Considerar discriminatório somente atos que afrontem a cor, a raça, a idade, o sexo, nos estritos limites da Lei, e não fazê-lo em relação ao doente incurável, é o mesmo que desnudar o Judiciário do bom senso e da razoabilidade.
Embasadas no mesmo fundamento jurídico analógico (Lei 9029/95) têm sido proferidas decisões quando se trata de empregado portador do vírus HIV ou aidético, as quais são ratificadas pelo TST.
Não revela investigar se a doença alojou-se no fígado, pulmão, estômago ou intestino, pois o respeito à dignidade da pessoa se sobrepõe a isso e, também, a eventual omissão legislativa (CF, art. 1º).
Ademais, o autor, portador do vírus HCV, não pode ser penalizado com a omissão da lei, que caminha a passos curtos, sempre em descompasso com as doenças dos tempos modernos, razão pela qual a aplicação analógica da norma supracitada é medida que se impõe.
Por certo, os 18 quilos perdidos pelo autor em decorrência da enfermidade, com a conseqüente alteração de sua fisionomia, incomodaram os olhos e a mente capitalis. Por certo, os 18 quilos perdidos pelo autor em decorrência da enfermidade, com a conseqüente alteração de sua fisionomia, incomodaram os olhos e a mente capitalista da reclamada, uma vez que a função desempenhada pelo empregado – vendedor externo – poderia comprometer a imagem do produto comercializado… frangos!!!
Saliente-se que a readaptação em outra função, quando necessária, é perfeitamente aplicável em casos dessa natureza.
Substituir o empregado doente, por outro saudável, que lhe garanta o lucro, é o que se pode chamar de discriminação odiosa, pois tal atitude não acarreta a mera perda do emprego mas, também, do salário, da sobrevivência, da dignidade.
Vendar os olhos a isso, é o mesmo que condenar, antecipadamente, à morte aquele que às portas do Judiciário bate a procura de um remédio.
Oportuno transcrever ínfimas linhas do texto sagrado:
-Era desprezado e abandonado pelos homens, um homem sujeito à dor, familiarizado com a enfermidade como uma pessoa de quem todos escondem o rosto; desprezado, não fazíamos caso nenhum dele. E, no entanto, eram as nossas enfermidades que ele levava sobre, as nossas dores que ele carregava (Isaías 53, 3-4).-
Por todo o disposto, reconhece-se maculada de vício a dispensa do empregado, sendo a mesma nula de pleno direito (CLT, art. 9º).
Dou provimento ao recurso para, na forma do artigo 4º, da Lei 9029/95, determinar a readmissão, com a devida anotação da CTPS e, com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente, acrescidas dos juros legais.
Conheço do recurso e das contra-razões e, no mérito, dou-lhe provimento, para determinar a readmissão, com a devida anotação da CTPS e, com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente, acrescidas dos juros legais.”
O Tribunal Superior do Trabalho igualmente já teve oportunidade de enfrentar a questão da dispensa discriminatória do trabalhador em razão de doença, como se pode ver entre outros, do seguinte julgado[62]:
“REINTEGRAÇÃO – EMPREGADO PORTADOR DO VIRUS HIV – DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. Caracteriza atitude discriminatória ato de Empresa que, a pretexto de motivação de ordem técnica, dispensa empregado portador do vírus HIV sem a ocorrência de justa causa e já ciente, à época, do estado de saúde em que se encontrava o empregado. O repúdio à atitude discriminatória, objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (artigo 3º, inciso IV), e o próprio respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento basilar do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, inciso III), sobrepõe-se à própria inexistência de dispositivo legal que assegure ao trabalhador portador do virus HIV estabilidade no emprego. Afronta aos artigos 1º, III, 5º, caput e inciso II, e 7º, inciso I, da Constituição Federal não reconhecida na decisão de Turma do TST que concluiu pela reintegração do Reclamante no emprego. Embargos de que não conhece.”
Como se vê, a preocupação com a coibição das dispensas discriminatórias do trabalhador por razões de enfermidade, começa a ganhar relevo também na jurisprudência da Justiça do Trabalho que despertou para a gravidade do problema.
2.6 Formas de discriminação
É claro que ao lado das práticas discriminatórias dos trabalhadores doentes pelos empregadores, existem outras que costumam ser impostas pelos próprios colegas de trabalho, como aquelas ligadas à orientação sexual[63], à raça, à cor, à origem, etc. que dão margem, inclusive, à violência do assédio moral.
Esses comportamentos, ainda quando impostos por colegas devem importar em responsabilização concorrente do empregador, aparecendo aí a discriminação indireta deste, na medida em que é ele quem tem o dever de zelar para que o ambiente de trabalho seja seguro, saudável e disciplinado[64], inclusive no âmbito do Poder Público que também costuma discriminar para certas funções e às vezes até mesmo em razão da cor[65].
Há, portanto, duas formas de discriminação: a discriminação direta e a indireta.
Há discriminação direta quando uma pessoa é tratada de maneira menos favorável que outra em situação análoga por razão de origem racial ou étnica, região ou convicções, incapacidade, idade, sexo ou orientação sexual, enquanto a discriminação indireta ocorre quando uma disposição legal regulamentar, uma cláusula contratual ou convencional, um ponto individual ou uma decisão unilateral, aparentemente neutra, pode ocasionar uma desvantagem particular a uma pessoa a respeito de outras, por razão de origem racial ou étnica, religião, convicções, incapacidade, idade, sexo ou orientação sexual, sempre que objetivamente não respondam a uma finalidade legítima e que os meios para a consecução desta finalidade não sejam adequados e necessários.
De acordo com o entendimento doutrinário, dentro do princípio da igualdade e da não discriminação devem-se distinguir duas grandes regras:
a) a primeira, é um mandato de igualdade que se coloca, sobretudo ante a lei que tem como destinatário principal, se não exclusivo, os poderes públicos, em suas distintas manifestações legislativa, judicial e executiva. Para se constatar esse fato, basta se vê o que se encontra previsto no inciso I, do art. 37 da Constituição brasileira consagrando a igualdade no acesso a funções e cargos públicos;
b) a segunda regra consiste na proibição de discriminações que tem uma projeção mais ampla sob a perspectiva de seus destinatários, na medida em que também afeta os sujeitos privados e as organizações sociais, porém limitando seus efeitos a determinados fatores ou circunstâncias, especificamente aqueles que têm maiores possibilidades de causar diferenças de tratamento e que ao mesmo tempo, e por isso, são dignos de maior tutela. Esses fatores são aqueles ligados ao nascimento, à raça, ao sexo, à religião, à opinião, embora sua relação seja aberta.
Quanto ao âmbito de aplicação, as normas internas bem assim as de natureza internacional sobre a proibição da discriminação no ambiente laboral, têm incidência tanto no momento da contratação ou do acesso ao emprego, aí compreendida a expressão acesso ao emprego no sentido de busca do emprego, acesso a programas de formação e capacitação profissional, acesso a entrevistas ou atividades de seleção, etc., bem como no curso da própria relação de trabalho ou emprego (condições de emprego e trabalho, designação para funções, possibilidades de promoções, extinção da relação laboral, entre outras) e sua incidência se dá tanto no emprego privado como no público afetando, por conseguinte, a todos os sujeitos e instâncias que se encontram presentes nas relações de trabalho, como a Administração Pública, inclusive quando contrata através de interposta pessoa mediante a forma de terceirização, prática bastante usual do Brasil, organizações sindicais, escritórios ou empresas de contratação de mão-de-obra, etc. que na prática se projetam sobre a ação institucional, normativa ou organizativa de todos esses sujeitos.
Assim, o destinatário principal no contexto da relação laboral do princípio da igualdade de tratamento e da não discriminação é o empresário ou empregador, pois é ele que, titularizando o poder de direção empresarial e como conseqüência, o poder disciplinar, toma a maioria das decisões com possibilidade de afetar quem trabalha e inclusive aquele que busca o próprio emprego ou trabalho, justificando, por conseguinte, a preocupação do legislador em garantir a aplicação da proibição do tratamento discriminatório relativamente a determinadas condições de emprego.
É evidente, todavia, que o princípio da igualdade e da não discriminação não é absoluto e isso a própria Convenção 111/OIT deixa claro[66]. Por conseguinte, não impõe ao empresário ou empregador uma obrigação de igualdade absoluta no tratamento, mas apenas impede que se dispense a pessoa nas mesmas condições tratamento diferente devido a fatores como a raça, a cor da pele, o sexo ou orientação sexual, religião, convicções ideológicas, etc., bem como aqueles que possam trazer para o trabalhador situações vexatórias ou causar lesão de direitos, admitindo, entretanto, que o tratamento diferenciado se sustente em motivos razoáveis e justificados, como no exercício das faculdades empresariais de organização e direção do trabalho ou das necessidades de gestão ou organização da empresa.
De acordo com a doutrina espanhola[67]:
“El juicio constitucional de igualdad no ha tenido así una consecuencia <<desestablizadora>> en nuestro Derecho del Trabajo. Como limite al legislador, la igualdad ha operado solo para evitar desigualdades irrazonabeles no justificadas objetivamente, e se ha limitado a exigencia de no diferenciar sin razón suficiente entre situaciones de hecho equiparabeles. Que esta autorestricción del órgano de justicia constitucional esté fundada posiblemente en estimar que un juicio más incisivo de la igualdad, que incorpora la proporcionalidad y la valoración del fin perseguido por la norma diferenciadora, supondria el riesco de sustituir las valorizaciones e interpretaciones del legislador por las propias del órgano de justicia constitucional. Este es el probable fundamento de la concepción minimalista del principio de igualdad, que ha dado lugar a una moderación y automitación de nuestro órgano de justicia constitucional, y que es la característica más destacada del <<modelo español de igualdad>>. Sin embargo, ese modelo no es huérfano de críticas también en el Derecho del Trabajo, donde además no ha operado ni en todos los aspectos de la igualdad ni respecto a otros destinatarios de la igualdad distintos al legislador.”
Assim, quando a desigualdade provém de uma justificação objetiva e razoável não constitui discriminação. A existência da justificação suficiente deve ser apreciada tomando-se como parâmetro o princípio da proporcionalidade, ou seja, deve-se levar em conta a finalidade e os efeitos da medida considerada devendo ser tida como legítima quando existe uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida.
Nessa perspectiva, o princípio da igualdade no âmbito da relação ou contrato de trabalho, nos termos da jurisprudência acima citada tem um alcance bastante mitigado, pois impede abusos do empresário e sua posição, porém exclui apenas a desigualdade de tratamento “especialmente perversa”, por ser expressão de uma liberdade caprichosa e inexplicável, dado o seu “caráter irracional e aberrante” (Martinez Rocamora), na linha de valoração ética que rechaça o “insuportavelmente injusto” (García Figueroa)[68].
3. Conciliação entre os direitos fundamentais laborais e os poderes de direção empresarial
Quanto à questão da conciliação dos direitos fundamentais com os poderes empresariais deve-se registrar a existência de uma eficácia horizontal permitindo que haja a colisão entre normas de direitos fundamentais e aquelas que garantem os poderes empresariais. Nesta hipótese, o conflito é resolvido de acordo com princípio da proporcionalidade através do qual o julgador deve fazer uma ponderação entre os eventuais direitos em jogo[69].
Todavia, vale anotar que, quanto às relações privadas, não existe colisão verdadeira com os direitos fundamentais, na medida em que eventuais conflitos devem ser resolvidos de acordo com as regras da autonomia privada através de uma mediação tomando-se em conta o conteúdo e os limites dos direitos em jogo: leva-se em consideração o princípio da concordância prática, em que a delimitação dos conteúdos constitucionalmente reconhecidos deve ser sopesada em cada caso concreto.
Para colocar em prática esses princípios há necessidade de se garantir o sistema de direitos através do labor hermenêutico dos Tribunais, especialmente do Tribunal Constitucional. Por conseguinte, é necessário criar mecanismos de facilitação do acesso à justiça com a introdução de regras processuais que aumentem os poderes do juiz, nomeadamente quanto à prova dando-se, em conseqüência, maior efetividade às normas do processo.
Cabe lembrar, por oportuno, que aos juizes e aos Tribunais que integram o Poder Judiciário está reservada uma função e ao mesmo tempo, um dever essencial de assegurar por força de suas decisões os direitos e as liberdades dos cidadãos. Por conseguinte, parece óbvio afirmar que a proteção jurisdicional que deve ser dispensada pelos órgãos jurisdicionais ordinários não esgota o sistema de garantias dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos ou em outros diplomas, inclusive aqueles de produção internacional. Na verdade esse dever decorre do próprio princípio do Estado Democrático de Direito, e está presente desde o preciso momento que nasce a lei que regula esses direitos fazendo parte da obrigação de respeitar o núcleo essencial da própria Constituição. Tanto assim, que protegidos até mesmo contra o querer democrático, na medida em que se encontra vedada qualquer tipo de alteração ou emenda constitucional tendente a abolir os direitos fundamentais[70].
Acertada, pois, a observação de Faustino Cavas Martínez[71] de que a pedra angular da proteção dos direitos fundamentais é o controle judicial, pois somente quando o direito pode ser alegado por seu titular ante um Tribunal de Justiça instando sua restauração ou preservação (quando violado ou danificado), é possível se falar realmente e em sentido integral de proteção.
“No cabe, en definitiva, reconocimiento efectivo de um derecho subjetivo, fundamental o de outra naturaleza, si no se prevê paralelamente uma acción procesal encaminada a hacerlo valer”[72].
Lembra, a propósito, Carmem Sáez Laram que [73]:
“El derecho a la tutela judicial efectiva, como derecho fundamental, protege, antes que nada, <<a los indivíduos frente al poder>>. Hay que tener presente, como ha destacado nuestro Tribunal Constitucional (TC, en adelante), que <<es la falta de poder de cada individuo para imponer sus derechos e intereses – consecuencia necesaria del deber de respeto a los demás y de la paz social a que se refiere el art. 10.1 CE – la que dota al derecho a la tutela judicial efectiva de su carácter materialmente esencial o fundamental, en tanto necesario para la realización de los derechos e intereses de los particulares>>.
Éste es un derecho relacionado con la dignidad humana que pertenece a la persona en cuanto tal y como ciudadano. Por ello, como as sabe, el derecho a la tutela judicial corresponde por igual al español e al extranjero, siendo irrelevante la legalidad o ilegalidad de la situación del extranjero”[74].
Na verdade, os direitos fundamentais laborais somente poderão torna-se efetivos com a consolidação de um sistema de emprego que garanta no campo prático trabalho digno à maioria dos cidadãos, o que o Direito não tem a aptidão de conseguir, máxime porque o sistema de consolidação dos direitos fundamentais laborais encontra-se inexoravelmente ligado ao trabalho estável e a prestação ou medidas de proteção contra o desemprego, cuja realização depende não apenas da edição de normas, mas, principalmente, de uma política econômica que seja capaz de gerar trabalho e riqueza para todos ou pelo menos para a maior parte dos trabalhadores o que, aliás, é recomendado pelo art. 3º da Carta da República.
4. Considerações finais
A boa-fé e os direitos fundamentais laborais funcionam como balizas ao poder de direção empresarial impedindo que a dignidade do trabalhador enquanto pessoa humana seja afetada.
Nesse contexto, os direitos fundamentais laborais são aqueles direitos que têm a capacidade e a aptidão de atribuir a todos os trabalhadores direitos inerentes à dignidade humana porque dotados de uma característica especial: são atribuíveis a todos os trabalhadores de forma igual e, por conseguinte, indisponíveis sendo reconhecidos em normas supra ordenadas e a boa-fé enquanto princípio geral, impregna todo o ordenamento jurídico, inclusive o laboral de modo a servir de baliza dos poderes de direção do empresarial.
Desse modo, embora reconhecidos e legitimados, inclusive constitucionalmente, os poderes empresariais encontram o seu limite no princípio da boa-fé no respeito devido aos direitos fundamentais do trabalhador enquanto pessoa humana e como cidadão.
Entretanto, a garantia concreta e efetiva dos direitos fundamentais do trabalhador, especialmente o mais importante de todos eles, qual seja, o direito ao trabalho, somente se tornará concreta com a implementação de políticas públicas de investimentos no setor produtivo da economia e na educação.
Como assevera Antonio Baylos Grau trabalhar, e trabalhar dignamente, “é a condição de exercício de importantes prerrogativas de cidadania e a privação dessa qualidade, de maneira incorreta ou injustificada, não só implica a vulneração do direito ao trabalho, mas a dificuldade de exercício de outros direitos fundamentais reconhecidos constitucionalmente” [75] .
Sem que se respeite a dignidade do trabalhador como pessoa humana e o trabalho como valor social, sem que se garanta a ele o principal direito que é o direito a um trabalho decente que possa lhe proporcionar meios para viver com dignidade juntamente com aqueles que dele dependam, nenhum outro direito lhe poderá verdadeiramente ser assegurado.
O direito ao trabalho é, pois, o primeiro e o principal direito fundamental do trabalhador que deve ser levado em conta quanto se trata de limitações aos poderes de direção empresarial de modo e impedir demissões em massa, discriminatórias, em razão de doenças, da violência do assédio e outras violências que ocorrem no ambiente laboral, pois sem ele certamente nenhum outro direito poderá valida e concretamente ser afirmado no campo da realidade da vida. Sem trabalho, o homem não tem honra, não tem dignidade, e sem honra e sem dignidade, não se vive: se morre.
Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região. Mestre em Direito pela UNB. Mestre e doutorando em Direito Social pela UCLM (Espanha)
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