Na última sexta-feira (10/11/2006), o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Edson de Oliveira Andrade, acompanhado dos diretores e membros da Câmara Técnica sobre a Terminalidade da Vida, Roberto d´Avila e Clóvis Constantino, concedeu uma entrevista coletiva, na sede do Conselho, em Brasília, para esclarecer eventuais dúvidas acerca da resolução aprovada pelo plenário da entidade sobre a suspensão de procedimentos e tratamentos que permitam o prolongamento da vida em fase terminal de enfermidades graves e incuráveis. Em outras palavras, o texto, aprovado por unanimidade na tarde do dia 9 de novembro, afirma que é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou seu representante legal. Trata-se, em outras palavras, da institucionalização em nosso país, ainda que em nível normativo inferior, da denominada ortotanásia, também conhecida como eutanásia passiva.
Já expressamos em outro momento nosso posicionamento acerca da impossibilidade de institucionalização desta prática por meio de norma infraconstitucional, especialmente considerando a posição que a proteção à vida possui na Carta Magna de nosso país (Santos, 2005). Assim, não pretendemos aqui fazer uma análise da resolução do CFM sob o ponto de vista legal, mesmo porque o texto integral da mesma somente será divulgado após sua publicação no Diário Oficial da União, o que, ao nosso conhecimento, ainda não ocorreu. Todavia, o impacto da medida é tão significativo que esta por merecer uma análise inicial sobretudo pelos aspectos éticos (bioéticos) que envolve.
Já há muito tempo se argumenta acerca de uma distinção entre eutanásia ativa e eutanásia passiva. A idéia que permeia esta discussão é a de que pode ser permissível, como agora parece tornar a resolução do CFM em questão, não realizar determinado tratamento deixando que um paciente morra naturalmente (eutanásia passiva), não sendo, por outro lado, aceitável que se tome qualquer ação que possa conduzir à morte (eutanásia ativa).
Veja o seguinte caso narrado por Sir Gustav Nossal, eminente médico australiano (Singer, 1993) de uma situação que, segundo ele, pode ser bastante corriqueira.
Uma senhora idosa de 83 anos foi admitida [em um asilo para idosos] em virtude de seu crescente grau de confusão mental impossibilitá-la de permanecer em sua própria casa, e por não haver ninguém que deseja dela cuidar. Ao longo de três anos suas condições se deterioram. Ela perde a habilidade de falar, necessita ser alimentada, e tem incontinência urinária. Finalmente, não consegue mais sentar em uma poltrona e fica permanentemente confinada à cama. Um dia ela contrai pneumonia.
Em um paciente com razoável qualidade de vida pneumonia seria rotineiramente tratada com antibióticos. Devem-se administrar os antibióticos a esta paciente? Nossal continua:
Os parentes são contatados e a direção do asilo informa-os que possuem com um médico cujo serviço freqüentemente utilizam possuem um acerto informal para casos deste tipo. Com demência senil avançada eles tratam as três primeiras infecções com antibióticos e, depois disto, considerando o ditado de que “pneumonia é amiga dos idosos”, eles deixam a natureza seguir seu curso. A direção enfatiza que, se os parentes desejarem, todas as infecções serão vigorosamente tratadas. Os parentes concordam com a regra informal. A paciente morre de infecção urinária seis meses depois.
Será que há alguma dúvida de que esta paciente morreu por omissão deliberada? Há quem possa achar inclusive justificada tal omissão. Aliás, como pergunta o próprio Singer, será que não teria sido melhor nem sequer administrar os antibióticos da primeira vez, afinal, não há qualquer mágica moral no número três. Será que não seria também justificável aplicar uma injeção letal no momento da omissão? O que se fez realmente, prolongou-se a vida ou a ampliou-se a agonia da morte? No primeiro caso, aplicando-se uma injeção letal, o médico certamente estaria cometendo homicídio nos termos do Código Penal vigente, enquanto no segundo estaria agindo por compaixão e exercendo eticamente a medicina. Será? Concordamos plenamente com Singer em sua afirmativa de que, em ambos os casos, o médico é sim o responsável pela morte da paciente. Não fazer nada nesta situação é uma escolha deliberada, com conseqüências que devem necessariamente ser assumidas por quem a efetivou. Afinal, por que matar seria errado e deixar morrer não?
Esta distinção entre eutanásia ativa e passiva já foi contestada por inúmeros filósofos e pensadores, dentre eles James Rachels em um trabalho publicado em 1975 no New England Journal of Medicine.
Em primeiro lugar ele argumenta que a eutanásia ativa é, em muitos casos, mais humana do que a passiva. Em segundo lugar, esta doutrina conduz a decisões acerca da vida e da morte em bases de certa forma irrelevantes. E, terceiro, por não ver ele qualquer significado moral na distinção entre matar e deixar morrer. Diz o autor:
Comecemos com uma situação familiar, um paciente que está morrendo de um câncer de garganta incurável e sente dores terríveis, que não podem mais ser satisfatoriamente aliviadas. Ele esta certo de que vai morrer em alguns dias, mesmo se o atual tratamento tiver continuidade, mas não quer continuar vivendo por aqueles dias uma vez que a dor é insuportável. Então ele pede ao médico que ponha um fim nisto, e a família se une à sua solicitação.
Suponha que o médico concorde em suspender o tratamento…A justificativa é a de que o paciente esta em terrível agonia, e uma vez que vai morrer de qualquer forma, seria errado prolongar seu sofrimento sem necessidade. Mas, agora atente para isto. Se ele simplesmente suspender o tratamento o paciente poderá levar mais tempo para morrer, e portanto ele pode sofrer mais do que se alguma ação direta for efetivada e uma injeção letal administrada. Este fato fornece motivos fortes para pensar que, uma vez que a decisão inicial de não prolongar a agonia tenha sido tomada, a eutanásia ativa é, na verdade, preferível à eutanásia passiva, ao invés do contrário.
Será que deixar morrer é realmente melhor do que matar? E do ponto de vista moral, será que há realmente diferença entre estas duas coisas? O que Rachel quer na verdade dizer é que consideremos, do ponto de vista moral, a seguinte situação:
João é o herdeiro de uma grande fortuna por parte de seu avô. Um dia vê seu avô em uma banheira e aproveita a oportunidade para afogá-lo e receber todo o dinheiro.
Mario, por outro lado, também é herdeiro de uma grande fortuna de seu avô. Um dia vê o velho escorregar e cair em uma banheira. Deixa o avô se afogar e recebe todo o dinheiro.
Por acaso o comportamento de João é moralmente errado e o de Mario não? Se a diferença entre matar e deixar morrer é um elemento moralmente importante então a resposta deveria ser sim, ou seja, condena-se João e absolve-se Mario. Será que realmente concordamos com isto?
Afinal, o que é cessar um tratamento, ou omiti-lo, se não provocar intencionalmente o termino da vida de um ser humano? Assim, a distinção entre eutanásia ativa e passiva (ortotanásia), não parece fornecer qualquer distinção moral útil.
Concordamos com a posição de Robert D. Lane, em seu artigo publicado em 2006 sobre o tema, de que, em algumas circunstâncias a eutanásia ativa pode ser a opção moralmente mais adequada. Como afirma ele, é evidente que há, e deve haver, grande preocupação com a legalização da eutanásia, especialmente com base no medo de seu mau uso, ou uso excessivo, assim como pelo continuado desrespeito à vida humana a que pode conduzir. Devemos, assim, proceder com toda a cautela. Necessitamos é de uma discussão ampla e aberta, envolvendo toda a sociedade. Não há resposta única, aceitável por todos. Nem opositores, nem defensores da eutanásia, ativa ou passiva, devem esperar do lado “oposto” uma solução única, capaz de abarcar todas as possíveis situações que já estamos enfrentando, e que vamos enfrentar de forma cada vez mais intensa com o avanço da medicina. Esta não é apenas uma questão médica, não se podendo deixar somente aos profissionais desta área a grande responsabilidade envolvida em tais decisões.
Do ponto de vista legal talvez a melhor opção seja tornar a eutanásia uma excludente de antijuridicidade, tal como a legítima defesa. Assim como o homicídio é aceitável em casos de legítima defesa, talvez, e digo talvez, possa também ser aceitável em casos nos quais a motivação seja a compaixão. Obviamente parâmetros específicos deverão ser estabelecidos, e que incluam a manifestação prévia, quem sabe na forma de um testamento de vida, e a aprovação do paciente ou da família, ou ainda do Poder Judiciário em procedimento próprio. Necessária também, como já expressamos anteriormente (Santos, 2005), prévia alteração constitucional, especialmente considerando os princípios de respeito à vida nela insculpidos.
Eutanásia, seja ativa ou passiva, é homicídio. Alguns homicídios talvez sejam justificáveis.
Graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis/Brasil) (1978), graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande (Rio Grande/Brasil) (2004), especialização em Fisiologia de Animais Marinhos pela Pontificia Universidad Católica de Chile (Talcahuano/Chile) (1985), diploma de Direito do Mar (United Nations Convention on the Law of the Sea) (Rhodes Academy Scholar) pela Rhodes Academy of Oceans Law and Policy (Rodes/Grécia) (2008), doutorado em Ciências (Fisiologia Geral) pela Universidade de São Paulo (1984) e pós-doutorado pela Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität (Bonn/Alemanha) (1993). Atualmente é Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande atuando nas áreas de Ciências Biológicas e de Oceanografia. Tem experiência em pesquisa em Biologia Marinha, sobretudo em Fisiologia Comparada. Mais recentemente vem se dedicando aos estudos de Bioética e Biodireito, assim como Direito do Mar. Representa o Brasil no âmbito da Convênção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar com vistas a organização de Tribunais Arbitrais Especiais (Anexo VIII da Convenção) na área de pesquisa em Ciências do Mar
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