Izabella Carvalho Machado¹
Resumo: Por maturação da responsabilidade civil, entende-se o desenvolvimento do instituto com as significativas e cotidianas alterações sociais, históricas, políticas e legislativas. Sendo assim, o intuito do presente artigo é a demonstração da evolução de um sistema inoperante a um sistema amplamente reconhecido e aplicado pelos profissionais do direito. A análise da teoria geral, seus conceitos e elementos, natureza jurídica, excludentes e atenuantes, possibilitarão o estabelecimento de quais são as perspectivas para o futuro.
Palavras-chave: responsabilidade civil; evolução no ordenamento jurídico, perspectivas para o futuro.
Abstract: The maturation of civil responsability means the development of the institute with significant and daily social, historical, political and legislative changes. Therefore, the purpose of this article is to demonstrate the evolution from an inoperative system to a system widely recognized and applied by legal professionals. The analysis of the general theory, its concepts and elements, legal nature, excluding and mitigating, will allow the establishment of what are the perspectives for the future.
Keywords: civil responsability; evolution in the legal system, perspectives for the future.
Sumário: Introdução. 1. Teoria Geral da Responsabilidade Civil. 1.1 Evolução no Ordenamento Jurídico. 2. Conceito. 3. Natureza Jurídica. 4. Excludentes e Atenuantes. 4. Perspectivas para o futuro. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O objetivo do presente artigo é explanar a evolução do instituto da responsabilidade civil no ordenamento jurídico. O direito, enquanto disciplina, além de amparar-se nas legislações, pauta-se em fontes formais (analogia, jurisprudência, doutrinas, costumes) e materiais, como, por exemplo, a evolução social, sendo esta última, importante fonte de evolução normativa. Nesse sentido, o instituto da responsabilidade civil, em muito, evoluiu com a promulgação e outorga de novas constituições, publicações de novas leis e da respectiva evolução da sociedade. A presente pesquisa, sem pretensão de esgotar o assunto, possui objetivo de demonstrar como um instituto praticamente imóvel e não atuante, evoluiu, sendo aplicado com bastante frequência nas ações levadas à apreciação do poder judiciário, tornando-se um efetivo garantidor de direitos. Por fim, após discorrer sobre o amadurecimento do instituto, pretende-se tecer indagações acerca da perspectiva da responsabilidade civil para o futuro.
1.1 Evolução no Ordenamento Jurídico
É consenso que o Direito, enquanto disciplina, pauta-se no estudo das decorrentes modificações sociais, amoldando-se à realidade inerente de cada período histórico. Assim, o ordenamento jurídico é estritamente dependente do momento em que está inserido bem como pela organização social, influência cultural e política sobre ele.
A intenção de reparar o sofrimento decorrente de um dano é inerente à condição humana. As primeiras demonstrações quanto à atribuição de responsabilidade ocorreram ainda na era primitiva. A civilização cultuava objetos conhecidos como “totens”. Os primeiros castigos foram chamados de totêmicos, ou seja, havia uma reparação do infrator perante a divindade que ele cultuava. Isto estava constante no Código de Manu, séc. XI a.C, sob o fundamento de que a pena purificava o infrator. CARVALHO NETO (2000, p.23) exemplifica “o corte de dedo dos ladrões, o corte de língua de quem insultasse (…) podendo atingir também a família do condenado”.
No Direito Romano, enquanto vigorava a Lei de Talião, teve sobressalto o princípio do “olho por olho dente por dente”.
Dessa forma, os ideais de justiça eram perseguidos com independência da atuação estatal. Logo, o indivíduo que, sendo lesado ou tendo algum familiar lesado por outrem, agia por vontade própria e dentro dos limites que, unilateralmente, julgava conveniente para reparar o injusto sofrido.
Em seguida surgiu o período da compensação. Dessa forma, compensava-se a desproporção ocasionada pela denominada “justiça pelas próprias mãos”. Nesse compasso, o prejudicado era ressarcido economicamente pelo infortúnio que havia sofrido.
O Estado, em seguida, passou a assumir a função punitiva e os delitos foram definidos como públicos e privados. Eram públicos quando perturbavam a ordem e o ressarcimento econômico era recolhido aos cofres do Estado. Em contrapartida, nos delitos privados a pena convertida em montante monetário, destinava-se ao prejudicado. Portanto, havia tanto responsabilidade penal como também, civil.
Posteriormente, foi aferida a Lex Aquilia (286 a.C) durante o governo do imperador romano Justiniano. Este ordenamento previa a atribuição de culpa aos causadores de danos e eventual ressarcimento, caso aquela restasse comprovada. O que, fulminou na atual responsabilidade subjetiva, também conhecida como aquiliana.
O elemento culpa restou melhor aferido pelo Código de Napoleão (1804) ou também conhecido como Código Francês, pois havia expressado a culpa contratual e delitual e estas, por sua vez, eram os pressupostos para a indenização.
No ordenamento jurídico brasileiro, o instituto amoldou-se no Código Criminal de 1830 atrelando a noção de responsabilidade à esfera civil. Assim, não havendo possibilidade de restituir o prejuízo com objeto da mesma natureza e espécie, fazia-se necessário o ressarcimento em valor monetário.
Com a independência das instâncias civis e penais, a figura da culpa tornou-se presente nos demais ordenamentos jurídicos e, no Brasil se expressou no art. 159 do Código Civil de 1916, prevendo que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código.”.
Nesse sentido, aduz GONÇALVES (2014 p.48):
Aos poucos foram sendo estabelecidos certos princípios, que exerceram sensível influência nos outros povos: direito à reparação sempre que houvesse culpa, ainda que leve, separando-se a responsabilidade civil (perante a vítima) da responsabilidade penal (perante o Estado); a existência de uma culpa contratual (a das pessoas que descumprem as obrigações) e que não se liga nem a crime nem a delito, mas se origina da negligência ou da imprudência. (g.n)
Quanto ao elemento culpa, no estudo da responsabilidade civil, pode-se dizer que este foi dividido em responsabilidade subjetiva por culpa provada (o ônus de comprovar o dano decorrente de uma conduta ilícita era atribuído à vítima) e responsabilidade civil por culpa presumida (nesta, houve inversão do ônus da prova a depender da atividade exercida pelo causador do dano, pois, atribuí-la à vítima seria dispendioso).
No século XX, com amparo nas mudanças sociais decorrente do despertar tecnológico, econômico e social, houve importante alteração neste instituto que, como estatuído por JOSSERRAND (1986, p. 548) em conferência na Universidade de Coimbra no ano de 1936, “foi tão rápido, tão fulminante que levou a teoria da reponsabilidade civil a novos destinos”.
Ensina CAVALIERI FILHO (2016, p. 5) que:
A implantação da indústria, a expansão do maquinismo e a multiplicação dos acidentes deixaram exposta a insuficiência da culpa como fundamento único e exclusivo da responsabilidade civil. Pelo novo sistema, provados o dano e o nexo causal, exsurge o dever de reparar, independente de culpa. (g.n)
Neste mesmo sentido, VENOSA (2014, p.21) conclui que:
A história da responsabilidade civil na cultura ocidental é exemplo marcante dessa situação absolutamente dinâmica, desde a clássica ideia de culpa ao risco das modalidades clássicas de indenização para as novas formas como a perda de uma chance. (…) Todas as novas conquistas jurídicas refletem um desejo permanente de adequação social. (g.n.)
Retoma-se, portanto, a necessidade de o direito adequar-se às alterações sociais. E, foi mediante esta premissa que o instituto da responsabilidade evoluiu, abarcando situações, antes desacreditadas.
Como explicado por CAVALIERI FILHO (2016, p.9), “a responsabilidade, antes centrada no sujeito causador do dano, volta-se agora para a vítima e a reparação do dano por ela sofrido. O dano deixa de ser apenas contra a vítima para ser também contra a coletividade”.
Entrementes, diante da possibilidade de aferir responsabilidade aos ilícitos cometidos à esfera alheia, fala-se, atualmente, em uma indústria da responsabilidade ou do dano moral, em sentido pejorativo.
Ocorre que este pensamento não merece amparo, pois o instituto atualmente possui essa abrangência em virtude do aumento dos danos e de sua vultuosa frequência. CAVALIERI FILHO (2016, p.3) aduz que “a consciência de cidadania ganhou um enorme impulso, provocando a busca da prestação jurisdicional. Ninguém permanece inerte diante da lesão, sabendo que possui direito a reparação”.
Logo, faz-se necessário o amparo judicial diante da lesão a um direito. Reparando, por sua vez, a vítima pelos eventuais prejuízos sofridos. Contudo, é importante mencionar que, apesar disso, é necessário também observar os limites dessa responsabilidade, pois existem situações que a ilidem, afastando-a ou atenuando-a.
Houve evolução do instituto também nas constituições outorgadas e promulgadas pelo Estado Brasileiro.
Inicialmente, falava-se em irresponsabilidade estatal. Nesse compasso, era o dirigente quem estatuía o que era certo e o que era errado, mediante a máxima: the king do not wrong (o rei nunca erra). Havendo culpa ou não, o Estado não respondia pela conduta danosa. No Brasil essa fase não foi expressiva, apesar de alguns doutrinadores sustentarem que a mesma ocorreu durante o período colonial.
A primeira constituição brasileira conhecida como Imperial ou Constituição da Mandioca (1824) apresentou atribuição de responsabilidade pelos abusos e omissões cometidas, em seu artigo 179, nº 29, ao disciplinar que “os empregados públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões praticados no exercício de suas funções, e por não fazerem efetivamente responsáveis seus subalternos”.
Outro avanço no que tange o tema da responsabilidade civil que influenciou o ordenamento jurídico brasileiro originou-se no Tribunal de Conflitos, instituído na França, em 1873, muito embora nele se tenha fixado que a responsabilidade do Poder Público “não é nem geral nem absoluta”, regulando-se por regras especiais.
A respeito do caso mencionado DI PIETRO (2007, p.598) explica que restou estabelecido que “a responsabilidade do Estado não pode reger-se pelos princípios do Código Civil, porque se sujeita a regras especiais que variam conforme a necessidade do serviço e a imposição de conciliar os direitos do Estado com os direitos privados”.
Em 1891, foi promulgada a Constituição Republicana. Conforme explica CARVALHO (2012, p.31) “o texto constitucional continha a mesma disposição acima, atribuindo responsabilidade ao Estado pela conduta lesiva de seus agentes”. A ressalva estava contida no parágrafo único do artigo 82 prevendo que, no ato da posse, o funcionário prestava compromisso de exercer seus deveres legais.
Ocorre que em ambas (Constituição de 1824 e Constituição de 1891) era necessário comprovar a ocorrência de imprudência, imperícia ou negligência na citada conduta. Entendia-se haver solidariedade do Estado quanto à ação ou omissão de seus agentes.
Com fulcro nesses dispositivos, o Código Civil de 1916 em seu artigo 15 aduziu que:
As pessoas jurídicas de Direito Privado que nessa qualidade causarem danos a terceiros, são civilmente responsáveis por atos de seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao Direito ou faltando ao dever prescrito por lei, salvo o direito de regresso contra os causadores do dano. (g.n)
Em relação a essa previsão, CAVALIERI FILHO (2016, p. 326) explica que:
Foi consagrada a teoria da culpa como fundamento da responsabilidade civil do Estado. Tanto é assim que se fala em representantes, na ideia de que representantes seriam prepostos do Estado, tal como ocorre no Direito Privado. Ademais, as expressões “procedendo de modo contrário ao Direito ou faltando a dever prescrito por lei” não teriam sentido se não relacionados à culpa do funcionário público.
Em virtude da dificuldade enfrentada pelo particular para comprovar a culpa estatal, foi incluído no ordenamento jurídico a culpa pelo serviço ou pelo fato do serviço. Assim, bastava o particular, lesado, demonstrar que o serviço não foi prestado ou foi prestado de maneira ineficiente. Ocorre que o conjunto probatório permaneceu dispendioso para a vítima. Dessa forma, a culpa passou a ser presumida.
Entretanto o referido artigo causava distorções de interpretação, pois, conquanto a conduta do agente estatal, a “culpa” era entendida como presumida, mas em relação à conduta de particulares era relevante à comprovação da ocorrência de culpa, em sentido estrito. Assim, a Constituição de 1946 consagrou os primeiros ideais da responsabilidade civil distinta da culpa, de forma objetiva.
Portanto, no artigo 194 era previsto que “as pessoas jurídicas de Direito Público Interno são civilmente responsáveis pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros”. A menção ao elemento culpa era prevista no parágrafo único, atribuída, tão só, à possibilidade regresso ao causador do dano.
Dessa forma, as demais Constituições: 1967 e 1969 (apesar de outorgadas enquanto vigorava o regime militar) bem como a Constituição de 1988, sendo esta última diferente das anteriores, pois foi promulgada, acataram o ideal de responsabilidade objetiva.
Outro dispositivo que amparou este instituto e foi incluso na Carta Cidadã (Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88) é o art. 5º, incisos V e X que reconhecem a responsabilidade civil decorrente tanto do dano material como do moral.
A Responsabilidade Civil é um encargo imposto ao indivíduo que, mediante uma ação ou omissão, viola norma jurídica. Ao prejuízo ocasionado a terceiro, atribui-se, por meio da tutela jurisdicional, obrigação de reparar o dano. Nesse ínterim, assevera CAVALIERI FILHO (2016, p.16) “é possível dizer que toda conduta humana que, violando dever jurídico originário, causa prejuízo a outrem é fonte geradora de responsabilidade”. Diante do exposto, o instituto da responsabilidade civil é organizado como o conjunto de princípios e normas veiculadas à obrigação de indenizar.
Segundo STOCCO (2007, p.114), o entendimento de responsabilidade é relacionado à origem etimológica da palavra:
A noção da responsabilidade pode ser haurida da própria origem da palavra, que vem do latim respondere, responder a alguma coisa, ou seja, a necessidade que existe de responsabilizar alguém pelos seus atos danosos. Essa imposição estabelecida pelo meio social regrado, através dos integrantes da sociedade humana, de impor a todos o dever de responder por seus atos, traduz a própria noção de justiça existente no grupo social estratificado. Revela-se, pois, como algo inarredável da natureza humana. (g.n.)
A reparação à vítima de um dano, praticado por terceiro, é uma obrigação secundária, pois, deriva da obrigação originária de não lesar o bem jurídico de terceiro. Os vocábulos obrigação originária e obrigação secundária são utilizados porque os indivíduos, vivendo em sociedade, são regidos por um Estado Democrático de Direito e este estabelece deveres de cunho positivo como dar ou fazer e, negativos (não fazer ou tolerar alguma coisa). Submeter-se a esses deveres é obedecer aos ditames legais da obrigação originária. Em contrapartida, ao contrariar esses mesmos dispositivos, cria-se uma obrigação secundária de reparar o prejuízo ocasionado.
Logo, o fundamento jurídico para a atribuição da reponsabilidade civil, independente da modalidade, é o dever jurídico preexistente (seja ele contratual ou legal) de não lesar a esfera jurídica de outrem. Portanto, não havendo dano, não há que se falar em responsabilidade.
Em decorrência da evolução do instituto, atribuiu-se à Responsabilidade Civil “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, ou seja, são incorporados ditames constitucionais à ordem privada. Assim, como lecionado por BERNARDES e VIANNA (2016, p. 664), “a teoria da eficácia horizontal está logicamente circunscrita aos direitos fundamentais que, se estritamente considerados, teriam como sujeitos passivos apenas órgãos estatais, mas que, conceitualmente, podem estender-se às relações privadas”. Isto, pois, o epicentro do ordenamento jurídico são as relações humanas, sendo o homem sujeito e detentor de direitos.
A Responsabilidade Civil antes pautada, pura e simplesmente, no patrimônio do indivíduo, enquanto Estado Liberal, cedeu espaço à atribuição de princípios constitucionais a esfera privada, de forma que, a solução das controvérsias não seja a caráter individual, mas coletivo.
Assim, conclui TARTUCE (2008, p. 311):
A harmonização entre os pontos de interseção do Direito Público e do Direito Privado, decorre da adequação de institutos que são, em sua essência, elementos de Direito Privado, mas que estão na Constituição, sobretudo em razão das mudanças sociais do último século e das transformações das sociedades ocidentais.
ZAMPIER (2017. p.236) ensina:
Sob o ponto de vista de um Direito Civil Constitucional a função da responsabilidade civil seria dar concretude às normas constitucionais, tais como a dignidade da pessoa humana e o solidarismo constitucional. A vítima surge como o principal personagem da Responsabilidade Civil. (…) O princípio da reparação integral, representa a necessidade de indenizar todos os danos suportados pela vítima, sejam eles materiais, morais, estéticos, perda de uma chance, reflexos etc.
Vê-se, portanto, que o estudo da Responsabilidade Civil, preocupa-se em proteger o lícito, reprimir o ilícito e reparar os eventuais prejuízos oriundos da ocorrência destes. Cabe ressaltar, ainda, que o ressarcimento ao prejuízo ocasionado à vítima, não deve ser ínfimo a ponto de tal conduta repetir-se ou oneroso a ponto de enriquecê-la demasiadamente (locupletamento indevido).
Conforme outrora relatado, ocorre a Responsabilidade Civil quando um sujeito, mediante ação ou omissão, adentra na esfera jurídica alheia, ocasionado prejuízos/danos.
É possível, inclusive, responsabilizar o causador do dano, a depender da situação, civilmente, penalmente e administrativamente. Vale ressaltar que a “tríplice responsabilidade” é perfeitamente aceita no ordenamento jurídico, pois, conforme orienta o art. 125 da Lei nº 8.112/1990 (Estatuto do Servidor Público Federal), “as sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se e serão independentes entre si”.
Excepcionalmente, haverá comunicação se o infrator for absolvido no processo penal pelos moldes do art. 126 do mencionado estatuto. Isto, pois, nessa situação específica, haverá negativa da autoria e inexistência do fato ilícito. Outro fator preponderante é o reconhecimento de uma das excludentes de ilicitude (estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal, exercício regular de um direito e legítima defesa). Este reconhecimento acarreta coisa julgada no cível, impedindo posterior rediscussão do fato.
A responsabilidade civil, para fins didáticos, é separada em modalidades. Assim, é possível aferi-la nas esferas: contratual e extracontratual; civil, penal e administrativa; objetiva e subjetiva bem como nas relações de consumo.
A responsabilidade contratual deriva de uma obrigação firmada por um contrato sinalagmático, ou seja, mediante manifestação de vontade, as partes contraentes assumem obrigações e estabelecem previamente as sanções decorrentes ao descumprimento deste acordo.
Diferentemente, tem-se a responsabilidade extracontratual. Nesta, não existe contato prévio entre as partes, a atribuição de responsabilidade é decorrente da norma jurídica. Assim, a norma impõe aos indivíduos a não transgressão (neminem laedere) e quando atentada, estabelece a sanção decorrente.
Quanto a esta primeira divisão, LIRA (2012, p.85) “ilícito extracontratual é, assim a transgressão de um dever jurídico imposto pela lei, enquanto ilícito contratual é violação de dever jurídico criado pelas partes no contrato”.
Quanto à responsabilidade penal, civil e administrativa estas são divididas em razão de haver transgressão à norma penal, à norma civil e à norma administrativa, respectivamente.
Fala-se em responsabilidade subjetiva quando se afere o elemento culpa. Essa aferição pode ser tanto stricto sensu– culpa propriamente dita- como lato senso, o dolo. O atual Código Civil de 2002 regulamenta a culpa em seu art. 186 (antigo art. 159 Código Civil de 1916).
Os pressupostos ou elementos da Responsabilidade Civil estão expressos nos artigos 186 e 187 do Código Civil de 2002. O artigo 186 prevê que: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Complementa o artigo 187 que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Destarte, conforme explicado nos dispositivos acima, para que reste configurada a responsabilidade, faz- se necessário, comprovar que mediante a conduta culposa do agente- sendo esta comissiva ou omissiva- houve dano a outrem.
Todavia, nem sempre foi possível verificar a ocorrência de culpa. Dessa forma, com amparo, principalmente, nos direitos italiano, belga e francês, surgiu a responsabilidade objetiva. Afasta-se, portanto, o elemento culpa e prova-se, tão só, o nexo causal e a conduta danosa.
Por fim, conjuga-se o entendimento acima com o artigo 927 do Código Civil, transcrito a seguir:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Estuda-se também a responsabilidade consumerista. Pautada no Código do Consumidor (Lei 8.078/1990) que regulamentou o inciso XXXII, art. 5º da Constituição Federal, o qual prevê que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Esta responsabilidade restringe-se às relações de consumo.
Para que a responsabilidade civil seja atribuída é necessário que todos os seus requisitos estejam reunidos. A falta de algum deles, consequentemente, afastará o instituto. Dessa forma, são estipulados legalmente como pressupostos: a conduta, a culpa, o nexo de causalidade e o dano ou prejuízo.
A conduta é a ação ou omissão que atinge a esfera alheia. Essa conduta deve ser voluntária como regra geral e, excepcionalmente, pode ser indireta ou por fato de outrem. Também é necessário que o indivíduo seja imputável, ou seja, possua plena capacidade para responder por seus atos. A culpa é dividida na modalidade dolosa e culpa propriamente dita. Quanto a esta última são especificadas as seguintes modalidades: negligência (não observância do dever de cuidado resultante de omissão), imperícia (ausência de aptidão técnica) e imprudência (não observância do dever de um cuidado necessário).
É importante mencionar que a fixação de indenização será decorrente da extensão do dano e não do grau de culpa da conduta praticada.
Ainda como elemento do instituto, tem-se o nexo causal que é a relação de causa e efeito entre a conduta e de seu dano decorrente. Quanto ao dano, este é a redução do bem jurídico da vítima, fato gerador de prejuízos.
Cumpre mencionar que existem situações que a responsabilidade não restará configurada em decorrência de excludentes ou atenuantes que possuirão o condão de afastá-la ou amenizá-la, respectivamente. Logo, não serão todas as condutas danosas que ensejarão a atribuição de responsabilidade.
Como visto, é necessário que a conduta seja ilícita e tenha violado direitos, causando danos, para que a responsabilidade reste configurada. Ocorre que existem condutas que, mesmo ilícitas, ensejarão outras consequências jurídicas como nulidade do ato, perda do direito material ou processual e assim por diante.
É aceito, em âmbito civil, excludentes de ilicitude tal qual no Direito Penal. Assim, o artigo 188 do Código Civil prevê que “não constituem ato ilícito os praticados no exercício regular de um direito, em legítima defesa, em estado de necessidade e no estrito cumprimento do dever legal”.
O exercício regular de um direito como explicado por CAVALIERI FILHO (2016, p.36-37) “é o direito exercido regularmente, razoavelmente, de acordo com o seu fim econômico (…); onde há ilícito não há direito; onde há direito não há ilícito”.
Entretanto, se no exercício regular do direito for excedido os limites previamente estabelecidos pela licitude do ato, haverá abuso de direito e, contra este, haverá atribuição de responsabilidade.
Por legítima defesa tem-se a agressão iminente e injusta sofrida pelo titular do direito que ensejará atuação, moderada e proporcional, da vítima com intuito em repelir a situação danosa.
O estado de necessidade ocorre quando há deterioração ou destruição da coisa alheia, ou lesão causada em terceiro para a remoção de perigo iminente. Sacrifica-se, portanto, um bem jurídico para evitar resultados piores ou mais prejudiciais. Nesse caso, exclui-se a ilicitude, mas a indenização resta intacta.
O estrito cumprimento de um dever legal ocorre quando o indivíduo, exercendo sua função, ocasiona danos a terceiros. Isenta-se da atribuição de responsabilidade como também do pagamento de indenização.
Assevera GONÇALVES (2014, p. 54) que:
Se o ato foi praticado contra o próprio agressor, e em legítima defesa, não pode o agente ser responsabilizado civilmente pelos danos provocados. […]
Em regra, pois, todo ato ilícito é indenizável. A restrição a essa regra geral está consagrada no art. 188, I e II, do Código Civil, que excepciona os praticados em legítima defesa, no exercício regular de um direito reconhecido e a deterioração ou destruição da coisa alheia, a fim de remover perigo iminente, fazendo expressa remissão aos arts. 929 e 930. […]
Exige-se, para que o estado de necessidade (v. parágrafo único do art. 188) e a legítima defesa autorizem o dano, a obediência a certos limites. Preleciona Pontes de Miranda que, se o ato praticado em legítima defesa for excessivo, torna-se contrário ao direito. Entretanto, mesmo assim, pode o agente alegar e provar que o excesso resultou do terror, do medo, ou de algum distúrbio ocasional, para se livrar da aplicação da lei penal. Na esfera cível, a extrapolação da legítima defesa, por negligência ou imprudência, configura a situação do art. 186 do Código Civil. (g.n.)
As excludentes outrora mencionadas afastam o ilícito. Ou seja, isenta a reparação do dano, a exceção do estado de necessidade. Existem também excludentes de responsabilidade que atuam interrompendo o nexo causal, são elas: a culpa exclusiva da vítima, o fato de terceiro, o caso fortuito e a força maior. Como atenuante ao nexo de causalidade existe a culpa recíproca.
Assim, como afirma SERRANO JUNIOR (apud MARTIGNAGO, 2017, p.29):
Na presença de tais situações, não é que se exima o agente de responsabilidade. Ao contrário. Sua responsabilidade não se configura por não ter contribuído, de forma alguma para o eventus damni. O dano não lhe pode ser atribuído nem a uma ação a omissão sua ou de seu agente, nem como decorrência da atividade de risco por ele desenvolvida.
A culpa exclusiva da vítima ocorre quando esta contribui para o fato danoso. O fato de terceiro é decorrente de uma conduta de pessoa alheia àquela relação jurídica existente entre vítima e o agente que pratica a ação determinada pela lei. Neste último, o indivíduo que causa dano à vítima é mero instrumento para a concretização do ilícito. O caso fortuito e a força maior, por sua vez, são fatos imprevisíveis que fogem da esfera de atuação do agente.
Diferentemente de tais situações é a culpa concorrente. Nesta há contribuição para o dano tanto por parte do agente como por parte da vítima. Assim, não se fala em excludente e afastamento da responsabilidade, mas em atenuação, dividindo o valor da indenização para os respectivos responsáveis.
Existem situações, ainda, que afastam a responsabilidade em decorrência da cláusula de não indenizar presente em alguns contratos. GONÇALVES (2014, p. 643) destaca que “para alguns, seria uma cláusula imoral, porque contraria ao interesse social. […]. Outros, entretanto, defendem-na, estribados no princípio da autonomia da vontade: as partes são livres para contratar, desde que o objeto do contrato seja lícito”.
Por fim, há a figura da prescrição. Esta ocorre pela perda da pretensão em virtude do decurso do tempo, ocasiona-se, portanto, pela inércia do interessado. Assevera o mesmo autor, outrora mencionado, que “prescrita a pretensão à reparação de danos, fica afastada qualquer possibilidade de recebimento da indenização. A responsabilidade do agente causador do dano se extingue”.
Nas últimas décadas a responsabilidade civil caminhou para a independência do elemento culpa, ou seja, de forma objetiva. Assim, houve socialização dos riscos, fazendo com que a tendência seja a atribuição de responsabilidade nessa modalidade para todos os tipos de danos sofridos pelos indivíduos. Isto, pois, a vítima do dano e não mais o autor do ilícito é a figura central desse movimento.
CAVALIERI FILHO (2016, p. 12) ensina que:
A responsabilidade deve pautar-se em dois princípios: prevenção e precaução. Prevenção quando há um risco certo e conhecido a se evitar e em precaução quando o risco é incerto, não confirmado, mas que, mesmo na dúvida, é preciso evitá-lo. (…) Em última instancia, a prevenção e a precaução na responsabilidade civil representam a passagem de um sistema repressivo para um sistema proativo, preventivo que antecede a ocorrência de danos.
Nesses termos, JOSSERRAND (apud Cavalieri Filho, 2016, p. 12-13) verberou:
A responsabilidade civil continuará dominando todo o direito das obrigações, toda a vida em sociedade. E será a grande sentinela do direito civil mundial. Sua história é estória do triunfo da jurisprudência e da doutrina; e, mais geralmente, o triunfo do espírito e do senso crítico.
Como visto, a responsabilidade civil evoluiu de uma legislação praticamente imóvel para um instituto amplamente debatido nas ações levadas à apreciação do poder judiciário, principalmente em virtude das decisões jurisprudenciais e visões doutrinárias. Espera-se que continue com tal visão expansionista de modo que os ilícitos sejam evitados e a eventual reparação sirva de exemplo para sua não repetição uma vez que a responsabilidade possui, como princípio, função pedagógica, não apenas reparadora.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme visto nas linhas anteriores, o entendimento de Responsabilidade Civil tal qual conhecido atualmente decorreu de diversas alterações jurídicas, sociais, políticas e históricas.
Em síntese, a responsabilidade é um dever secundário, decorrente do dever originário de não lesar a esfera jurídica de outrem. Portanto, o prejuízo decorrente de uma ação/omissão ensejará responsabilidade de reparação à vítima por parte do legítimo causador do dano. Esta pode dividir-se em civil, penal, administrativa, objetiva, subjetiva, consumerista etc.
O instituto da responsabilidade civil encontra-se devidamente amparado pelo Código Civil, pelo Código de Processo Civil e pela Constituição da República Federativa do Brasil. Todavia, em virtudes das diárias mutações sociais e a dificuldade enfrentada pelo poder legislativo que, frequentemente, esbarra na morosidade no processo de elaboração das leis, a responsabilidade civil, frequentemente, se ampara nas visões doutrinárias e atuações do poder judiciário em seus casos concreto.
Portanto, é notória e significativa a alteração da responsabilidade civil nos últimos anos, sendo de extrema importância a presente discussão, pois houve transmutação de um sistema praticamente imóvel e não aplicado a um sistema reconhecido em diversas demandas levadas à apreciação do poder judiciário.
Dessa forma, conclui-se que essa é a perspectiva do futuro para o instituto: uma aplicação racional, humanizada, de forma a precaver a ocorrência de novos ilícitos e não apenas repará-los.
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¹ Advogada OAB/GO: 60.072 – Goiânia – izabella.cm@hotmail.com
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