Resumo: Um novo desenho de Estado (Primeiro Setor), subsidiário e fomentador, reforça novos modelos de contratação que envolvem instituições privadas sem fins lucrativos (Terceiro Setor) à frente de serviços sociais de relevância (saúde, educação, tecnologia). Para cumprir com as obrigações firmadas com o ente público (obrigações-fim), o Terceiro Setor realiza contratações (para realizar suas obrigações-meio) com o Segundo Setor (Mercado), donde se inserem Microempresas e Empresas de Pequeno Porte. O presente estudo pretende um olhar reflexivo sobre estas contratações, geralmente fruto de processos licitatórios simplificados, a fim de verificar se as mesmas se dão com observância das prerrogativas e do tratamento diferenciado dispensado às micro e pequenas empresas em competição com outras sociedades empresárias. Optou-se, afora uma abordagem bibliográfica, por uma abordagem investigativa, comparando as realidades nos Estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, sob o ponto de vista de duas organizações sociais que possuem contratos de gestão na área da saúde com entes públicos e realizam contratações com sociedades empresárias (com foco em ME’s e EPP’s), a fim de considerar os meios e os termos em que tais contratos têm sido elaborados.
Palavras-chave: Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – Parcerias com o Terceiro Setor.
Abstract: A new perspective in the design of the State figure (as known as the First Sector) reinforces the new models of contractions, involving private, nonprofit institutions (as known as the Third Sector) ahead relevant public services (in health, education, technology). In order to fulfill their obligations into the promotion of those public services, the Third Sector contracts with micro and small enterprises (as known as the Second Sector). This study intends a glance into the dynamic of those contractions, in order to realize if their rules respect the privileges that micro and small enterprises has in Brazilian law regulations and if those privileges are really making any difference in the reality of the relation between micro and small enterprises and the third sector.
Keyword: Micro and small enterprises – Third Sector – Contracts in public services.
1. INTRODUÇÃO
Primeiramente, é necessário contextualizar o cenário no qual pretendemos nos debruçar. Desta feita, as reflexões se darão no contexto das relações das micro e pequenas empresas com o dito Terceiro Setor, que aqui, superadas as polêmicas e divergências conceituais, trataremos de forma bem simplificada (e direcionada), como aquelas pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que em parceria (aqui realmente uma parceria propriamente dita) com o poder público (Primeiro Setor), realizam serviços públicos de relevância. Também não nos interessa empreender uma profunda reflexão acerca das críticas existentes ao tratamento diferenciado dispensado a micro e pequenas empresas, especialmente no que diz respeito aos privilégios das mesmas no âmbito dos certames licitatórios. Nos interessa as contratações firmadas entre micro e pequenas empresas (Segundo Setor = mercado), com entes do Terceiro Setor prestadores de serviços públicos e se nestas relações existe o respeito ao tratamento legal que lhes é afeto.
Os entes do Terceiro Setor – Organizações Sociais – OS’s, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP’s e Organizações Não-Governamentais – ONG’s, ao firmarem suas parcerias com os entes públicos se encontram inseridos na dinâmica do regime de direito público. Os Contratos de Gestão, Termos de Parceria e Convênios, cujo objeto invariavelmente dizem respeito à realização de um fim público (educação, saúde, cultura, tecnologia) são elaborados sob o manto de prerrogativas e cláusulas exorbitantes típicas do regime de Direito Público. Neste momento, em especial, os entes do Terceiro Setor se colocam em notável posição de submissão em relação ao ente público e, ademais o discurso de independência e autonomia que caracterizaria a gestão do Terceiro Setor, tal submissão perpassará por toda a relação contratual.
Em paralelo à relação que se estabelece entre o poder público e o ente do Terceiro Setor, outras relações desabrocham. Surgem, o que chamaremos de obrigações-meio, a serem firmadas com entes privados, pertencentes ao Segundo Setor (Mercado). Interessa-nos mais de perto esta relação, especialmente, a firmada entre os entes do Terceiro Setor e as micro e pequenas empresas e todos os seus desdobramentos. Pretende-se verificar quais são e como se dão as contratações, fruto de processos licitatórios simplificados promovidos pelos entes do Terceiro Setor e se as mesmas acontecem em respeito ao tratamento favorecido dispensado àquelas.
De toda forma, antes de adentrarmos nesta problemática, passar-se-á, primeiramente, à análise das prerrogativas e privilégios das ME’s e EPP’s e o cenário do empreendedorismo no Brasil. Na sequência, passa-se, obrigatoriamente, por todo o processo que culminou na mudança do paradigma estatal, com o maior comprometimento da sociedade civil e do direcionamento do que se entende por Terceiro Setor. Finalmente, optando por uma abordagem investigativa, empreendemos um levantamento das contratações realizadas por entes do Terceiro Setor (organizações sociais parceiras de entes públicos na área da Sáude – uma no Estado de Minas Gerais – Missão Sal da Terra e outra no Estado do Rio de Janeiro – VIVA RIO SAÚDE – VIVA Comunidade), a fim de verificar se as mesmas se dão com respeito às prerrogativas de ME’s e EPP’s e se estas têm conseguido se destacar nestas dinâmicas de contratação.
2. MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE – PERSPECTIVAS E PRIVILÉGIOS
Desde 2000, O Brasil participa da GEM – Global Entrepreneurship Monitor, pesquisa de âmbito mundial, que pretende o levantamento de dados dos países envolvidos (em 2012, foram 69 países), a fim de verificar as condições para o desenvolvimento de novos negócios. Por aqui, a pesquisa é conduzida pelo Instituto Brasileiro da Qualidade e Produtividade – IBPQ – e conta com a parceria do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE. Em 2012 o GEM Brasil[1] apresentou curiosidades (e novidades) ao demonstrar, por exemplo, que o sonho de ter um negócio próprio, superou o sonho dos brasileiros de fazer carreira em uma empresa. A realidade limitadora dos negócios no Brasil, com impostos e sistemas burocráticos sem igual, tolhem a plena capacidade empreendedora do país, servindo o universo das micro e pequenas empresas como experiência para construção de novas possibilidades.
Como fizemos questão de direcionar em nossas considerações introdutórias, nos interessa pontuar nestas linhas o tratamento diferenciado recebido pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte em nosso ordenamento, reconhecendo o esforço do legislador brasileiro de favorecer o empreendedorismo no país. Tal direcionamento inical se faz necessário, na medida em que nos interessa mais de perto conduzir o leitor a uma realidade contraposta, que parece deixar em segundo plano quaisquer privilégios daqueles entes quando da relação com o dito Terceiro Setor.
A Constituição Federal de 1988, especialmente em seus artigos 170, IX e 179, delimita claramente a pretensão de se dar às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte um tratamento especial a fim de que se concretize efetivamente toda a sua força empreendedora. Os artigos constitucionais reafirmam a potência de micro e pequenas empresas no universo do empreendedorismo brasileiro, como sociedades que representam a maior fatia deste universo.
Nesta ordem, enquanto a Constituição Federal faz as vezes de mandatária deste tratamento favorecido, a Lei Complementar n. 123, de 14 de dezembro de 2006, que veio instituir o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, é quem dita as normas gerais de tratamento diferenciado a essas empresas. Tais prerrogativas se dão, especialmente, nos processos de contratação pública, a exemplo do direito de comprovar condição de regularidade fiscal apenas por ocasião da contratação e o direito de preferência no caso de empate, na forma da Lei (arts. 42 a 45). Bastaria, a princípio, para gozar destas prerrogativas, seu enquadramento como Microempresa (receita bruta igual ou inferior a R$ 360.000,00 ano-calendário) ou como Empresa de Pequeno Porte (receita bruta superior a R$ 360.000,00 e igual ou inferior a 3.600.000,00 ano-calendário).
Poderíamos citar outras prerrogativas, principalmente de ordem tributária (art. 146, III, d, CF/88), mas o regime de tributação simplificado – SIMPLES não guarda correlação com o objetivo que ora nos debruçamos, no sentido de descortinar as relações das micro e pequenas empresas no universo de contratações com o Terceiro Setor.
Desta feita, empreendemos, na sequência, algumas considerações acerca do Terceiro Setor, a fim de contextualizarmos o campo de reflexões inicialmente proposto.
3. O TERCEIRO SETOR
Reconhece-se, desde já, que há algum tempo a Administração Pública brasileira não mais realiza o exercício de suas competências públicas somente por intermédio dos órgãos da Administração Direta e das entidades da Administração Indireta (autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas). Em um profícuo cenário de mutações e de reforma administrativa, a sociedade civil se fortalece e ganha corpo através do denominado Terceiro Setor. Chamado a realizar aquelas competências inicialmente a cargo da Administração Pública, o Terceiro Setor se encontra à frente de ações na área da cultura, saúde, educação e tecnologia.
No processo de transformação do Estado contemporâneo que ora nos atrai, alguns elementos se destacam: “(i) a cooperação mais ou menos sistemática e a conjugação ordenada dos papéis de actores públicos e privados no desenvolvimento das tradicionais finalidades do Estado Social e de Serviço Público; (ii) Sob o mote de uma ‘modernização administrativa’, um complexo processo de ‘empresarialização’ que, por vezes, passa pela ‘privatização das formas organizativas da Administração Pública’; (iii) A promoção de mecanismos de envolvimento e de participação de particulares ‘interessados’ na gestão de um largo leque de incumbências públicas” (GONÇALVES, 2005, p. 27).
Diante deste cenário, passa a ganhar destaque uma sistemática estatal mais colaborativa, de um Estado fomentador, negocial, que vai em busca de parcerias para realizar de forma efetiva suas competências públicas e é nesta dinâmica que se estrutura e desabrocha o Terceiro Setor. Do inglês third sector, o Terceiro Setor se difundiu a partir da década de setenta, se referindo às organizações formadas pela sociedade civil, cujo objetivo maior é a satisfação do interesse social e não o mero lucro.
Em contraposição aos chamados Primeiro Setor (representado pela figura do Estado) e o Segundo Setor (Mercado), o Terceiro Setor é tradicionalmente entendido como área dentro da qual se encontram todas as entidades que não fazem parte do Estado nem do mercado. Sob a metodologia estabelecida pelo Handbook on nonprofit institutions in the system of national accounts, editado pela Organização das Nações Unidas, fariam parte do Terceiro Setor as entidades que detenham, cumulativamente: (i) natureza privada; (ii) ausência de finalidade lucrativa; (iii) institucionalizadas; (iv) auto-administradas; (v) voluntárias (SALAMON; ANHEIER, 1994, p. 79).
Apesar desta referência, ela não se presta à adoção de um conceito satisfatório à dogmática jurídica, mormente pela amplitude e pelos contornos assumidos pela matéria no cenário institucional pátrio. De toda forma, na tentativa de conceituar o Terceiro Setor uma concepção prevalece: a idéia de delegação social. É o que alerta Diogo Figueiredo Moreira Neto (2000, p. 124), ao inserir os entes do Terceiro Setor no que denomina entes intermédios, para os quais haveria a transferência de serviços de interesse público “(…) em favor de entes criados por ela própria sociedade, dedicados à colaboração no atendimento de interesses legalmente considerados como públicos”.
Diante dos mais variados conceitos apresentados pela doutrina do que se entenda por Terceiro Setor, citamos o conceito de Gustavo Justino de Oliveira (2008, p. 46), por sua variedade de elementos, senão vejamos: “o conjunto de atividades voluntárias, desenvolvidas por organizações privadas não-governamentais e sem ânimo de lucro (associações ou fundações), realizadas em prol da sociedade, independentemente dos demais setores (Estado e mercado), embora com eles possa firmar parcerias e deles possa receber investimentos (públicos e privados)”.
Na realidade brasileira, tal modelo surge, a princípio, pela prestação de serviços de interesse público pela Igreja Católica, por meio de confrarias e irmandades que, posteriormente, ganharam companhia de entidades criadas por outras igrejas e de associações de imigrantes. No século XX, frente aos processos de urbanização e industrialização, este quadro se alteraria sensivelmente. Surgem numerosas associações profissionais, associações de classe e sindicatos, como instrumentos de amparo ante a ausência de normas regulatórias das relações de trabalho.
Com a Constituição de 1934, o Estado brasileiro assume o modelo de Estado social, ocorrendo uma aproximação entre Estado e sociedade, caracterizada por um movimento de “socialização do Estado e estadualização da sociedade” (NOVAIS, 1987, p. 197), ou melhor, “(…) absorção da Sociedade pelo Estado, isto é, a politização de toda a sociedade” (BONAVIDES, 1993, p. 231). Como expressão máxima do modelo intervencionista de Estado, foram criadas nessa época, empresas públicas para atuação na área econômica, bem como foi ampliado o aparato estatal destinado à prestação de serviços sociais. Nesta perspectiva, surgem a Legião Brasileira de Assistência – LBA e os serviços sociais autônomos (entidades do chamado sistema “S” – SENAI, SESI, SESC, SENAC, SEBRAE, SENAR), pessoas jurídicas de direito privado, mantidas por contribuições sociais e dotação orçamentária, com o objetivo de prestar educação profissional e assistência aos cidadãos vinculados ao setor produtivo.
Com a promulgação da Constituição de 1988 reconhece-se que, pela primeira vez, uma Constituição brasileira tratou de maneira expressa acerca da sociedade civil, atribuindo à mesma, em inúmeros dispositivos (art. 199, §1º; art. 204, I; art. 205; art. 213, I e II; art. 216, §1º; art. 227, §1º), o dever de contribuição para a consecução dos objetivos do Estado brasileiro.
Neste panorama surge o Plano de Reforma do Estado que, adotando um modelo conceitual baseado na distinção de quatro setores específicos de ação estatal, conforme a natureza de suas atividades, associa-os às modalidades de propriedade (pública, pública não-estatal e privada) e formas de gestão. Nestes setores, destacam-se um Núcleo estratégico, um Setor de atividades exclusivas do Estado, Setor de serviços não-exclusivos do Estado e um Setor de produção de bens e serviços para o mercado. O Terceiro Setor faria parte, em franca redundância, daquele terceiro Setor (Setor de serviços não-exclusivos do Estado).
Este Plano de Reforma do Estado previu a criação de entidades denominadas Organizações Sociais, exteriorizando a tentativa de redefinir o plano de relações entre o Estado e as entidades prestadoras de serviços de interesse público. Outras entidades destacaram-se neste cenário, no que citamos, especialmente, a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP.
Como já antecipado, nos interessa mais de perto, a fim de reduzir o objeto de estudo uma reflexão acerca da realidade das Organizações Sociais (OS’s), a fim de justificar nossa pesquisa exploratória empreendida no dia a dia de duas Organizações Sociais, uma no Estado de Minas Gerais (Missão Sal da Terra) e outra no Estado do Rio de Janeiro (VIVA RIO SAÚDE – VIVA Comunidade) e sua relação contratual com ME’s e EPP’s.
A princípio, as Organizações Sociais surgiram para absorver as atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos, fator de sucessivas (e justificadas) críticas ao modelo. De toda forma, com o desenvolvimento da matéria e com o advento da Lei Federal 9.637/1998 muito se modificou e estas instituições privadas sem fins lucrativos se tornaram legitimadas a firmar parcerias com o Poder Público, via contratos de gestão.
O nível de compromisso firmado nestes contratos de gestão, com a necessidade de cumprimento de resultados e metas específicas, a realização de serviços sociais de relevância e o recebimento de recursos públicos promove a coexistência de regimes jurídicos diversos, ora público, ora privado. A princípio, as relações firmadas entre os entes públicos e estas organizações sociais se dão sob o manto de prerrogativas e cláusulas exorbitantes, típicas do regime público. Tais instituições não são independentes e autônomas como se pretende o discurso. Sujeitam-se, constantemente, ao controle de entes públicos (Ministério Público, Tribunais de Conta, Legislativo e do próprio ente contratante) e à apuração de seus atos de responsabilidade.
Em paralelo à relação que se estabelece entre o poder público e o ente do Terceiro Setor, surgem as relações que denominamos de obrigações-meio, firmadas com entes privados, pertencentes ao Segundo Setor (Mercado), cujos pormenores desenvolveremos na sequência.
4. MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE EM MEIO À DINÂMICA DE CONTRATAÇÃO DO TERCEIRO SETOR – TEORIA E PRÁTICA
As reflexões até aqui esposadas se mostraram necessárias a fim de finalmente adentrarmos na dinâmica de contratações do Terceiro Setor e se as especificidades deste modelo trazem alguma conseqüência ou mesmo algum tipo de comprometimento ao tratamento diferenciado dado a Microempresas e Empresas de Pequeno Porte.
Como já antecipamos, um regime híbrido, típico das relações firmadas pelo Terceiro Setor, marcado por relações que orbitam entre o público e o privado, é frequentemente objeto de questionamentos e desconfiança, merecendo constante reflexão. Como repetidamente antecipado, a relação que nos interessa é a das obrigações-meio que se firmam com ME’s e EPP’s em um ambiente, em regra, estritamente privado. Os entes do Terceiro Setor, não podemos esquecer, são igualmente pessoas jurídicas de direito privado. A princípio, não se justificaria qualquer tratamento favorecido sob esta perspectiva. ME’s, EPP’s e Terceiro Setor estariam em pé de igualdade e em franco uso de sua autonomia privada.
Acontece que a questão não se desenvolve de maneira tão simples. O objeto dos contratos firmados entre os entes do Terceiro Setor e o poder público são de ordem pública e sua relevância é indiscutível. Além do mais, não se pode esquecer que na origem destas contratações está a transferência de recursos públicos, o uso de bens públicos e, eventualmente, a cessão de servidores públicos, não havendo como admitir a existência de uma gestão essencialmente privada ainda que a relação se instaure somente entre pessoas jurídicas de direito privado.
Exatamente por conta destas peculiaridades, imperativa a observância pelos entes do Terceiro Setor dos princípios que movem a Administração Pública, no que citamos: a moralidade, a transparência, a impessoalidade, a publicidade e a economicidade.
Em pronto respeito ao princípio da transparência e da máxima da publicidade, os entes do Terceiro Setor devem exteriorizar ao máximo todos os seus atos, no que se insere toda a sua sistemática de contratação. A fim de concretizar citadas máximas, tais entes devem respeito ao princípio licitatório, o que, se entenda bem, não significa estarem atrelados aos ditames da Lei Geral de Licitações (Lei 8.666/93). O princípio licitatório se firmaria, portanto, pela elaboração e registro de um Regulamento Próprio, instrumento apto a descrever as etapas e regras das contratações. José Anacleto Abduch Santos (2007, p. 302), em excepcional trabalho realizado na obra Terceiro Setor – Empresas e Estado – Novas fronteiras entre o Público e o Privado, resume, nas linhas a seguir trasladadas, a exata medida destas afirmações:
“As normas para a seleção prévia aos contratos a serem firmados pelo Terceiro Setor com o uso de recursos públicos devem ser estabelecidas em regulamentos próprios. Estes regulamentos podem prever mecanismos simplificados e céleres de seleção, contanto que tenham conteúdo compatível com os princípios aplicáveis a estas entidades responsáveis pelo uso do dinheiro público. Não se exige, portanto, que os regulamentos próprios das entidades repitam as normas da lei das licitações. Dentro da moldura constitucional há espaço para inovações, sem que haja vinculação expressa a procedimentos formais da Lei n. 8666/93. Este espaço criativo foi assegurado pelo legislador, eis que de outro modo teria feito constar taxativamente a aplicação da referida lei das licitações a estas entidades. A elaboração dos regulamentos próprios constitui conduta revestida de singular natureza e especificidade. A sua concepção será fruto de um processo de tensão dialética que assegure a celeridade e dinamicidade próprias do regime de direito privado, sem descurar dos valores e princípios fundamentais ao regime de direito público, em especial, neste caso, no tocante à gestão de recursos públicos, à busca da proposta mais vantajosa, e ao princípio da isonomia”. Grifamos.
Empreendendo o trabalho investigativo proposto entre as organizações sociais selecionadas – VIVA RIO SAÚDE – VIVA Comunidade (RJ) e Missão Sal da Terra (MG), foi possível verificar, em suas respectivas páginas na rede mundial de computadores, a disponibilização de dito Regulamento Próprio por parte da VIVA RIO SAÚDE – VIVA Comunidade [2], não tendo encontrado a mesma disponibilidade no sítio da Missão Sal da Terra[3]. O Regulamento de Compras de Contratação de Obras ou Serviços da VIVA RIO SAÚDE – VIVA Comunidade prevê, em seu artigo 11, que a seleção de seus fornecedores será realizada por duas modalidades: “a) cotação de preços; b) Carta Consulta”. Existe também a possibilidade de realização de “Pregão” no caso de aquisição de bens e serviços comuns. Não existe naquele documento, qualquer menção específica às ME’s e EPP’s, havendo um tratamento generalizado de “fornecedor” ou “fornecedores”. Ademais não se ter acesso ao Regulamento Próprio da Missão Sal da Terra, em seu sítio público é possível ter acesso aos editais de seus procedimentos unificados de compra, no link SAÚDE[4], no que se verifica a existência de algumas modalidades de compras (certamente legitimadas por seu Regulamento de Compras) que usam a mesma terminologia da Lei Geral de Licitações, quais sendo: Concorrência Pública, Tomada de Preços e Pregão Presencial.
Lançando um olhar sob alguns dos instrumentos convocatórios de ambas instituições a fim de buscar alguma referência ao regime diferenciado imposto às micro e pequenas empresas, pôde-se notar o seguinte: a Missão Sal da Terra possui uma cláusula que parece ser uma constante em seus editais que reafirma que “Não haverá qualquer ordem de privilégios entre as participantes, prevalecendo a estrita isonomia entre as mesmas” e ainda, não traz no corpo de seus instrumentos convocatórios qualquer menção ao tratamento diferenciado dado às ME’s e EPP’s e típico dos processos licitatórios firmados com o poder público; a VIVA RIO SAÚDE – VIVA Comunidade, por sua vez, que se utiliza do site do Banco do Brasil[5] para divulgar seus processos licitatórios, faz clara menção ao tratamento diferenciado dispensado a micro e pequenas empresas.
É certo que a VIVA Comunidade opta por seguir os ditames impostos pela Lei Complementar 123/2006, especialmente em seus artigos 42 a 49, que veio para reforçar a intenção do Governo de utilizar o poder de compra das micro e pequenas empresas, fomentar o crescimento das economias locais, incentivar a competitividade e o mandamento constitucional que determina o tratamento especial, mas o que isto realmente significaria no universo que ora nos debruçamos? Agindo de forma a prever o tratamento diferenciado em seus procedimentos licitatórios simplificados, a VIVA Comunidade não estaria se fazendo confundir com a Administração Pública, em uma relação que realmente é a única dotada de privilégios? Entendemos que sim. Não há de se confundir os entes do Terceiro Setor parceiros dos entes públicos (da Administração direta e indireta), com os entes públicos propriamente ditos, sob pena de descaracterizar toda a sistemática que separa tais modelos.
Por outro lado, importa refletir se a Missão Sal da Terra não incorreria em alguma ilegalidade/inconstitucionalidade ante a ausência em seus processos licitatórios simplificados do tratamento diferenciado dispensado a micro e pequenas empresas. Entendemos, por sua vez, que não. Primeiro, porque entendemos que a Missão Sal da Terra, como organização social que é, ainda que prestadora de serviços públicos relevantes, não pode ser colocada em uma situação análoga a de Administração Pública. Além do mais, ainda que em interpretação equivocada se colocasse a Missão Sal da Terra como obrigada a seguir os ditames legais que privilegiam micro e pequenas empresas, ainda assim, não estaríamos diante de qualquer irregularidade visto que julgamos que o tratamento diferenciado dispensado àquelas empresas é uma norma de ordem pública, e como comando constitucional dotado de plenitude, prevalece ademais quaisquer especificidades editalícias. Neste sentido, nos coadunaríamos com o entendimento do Tribunal de Contas (apesar da polêmica que cerca o assunto), que em seu Acórdão 702/2007[6] afirma que a ausência de previsão editalícia não impede a aplicação dos benefícios previstos nos artigos 45 e 46 da LC 123/2006.
Nesta ordem, cumpre sempre voltarmos para a realidade ora objeto de estudo, lembrando que estamos vendo toda a questão do tratamento diferenciado de micro e pequenas empresas sob a ótica do Terceiro Setor e não do Poder Público. Os entes do Terceiro Setor não podem se pautar pelas mesmas regras dos entes com os quais realiza contratos para gerir serviços públicos de extirpe, sob pena de transformar-se em mais um braço deste ente público. Não nos intriga a ausência de tratamento diferenciado dispensado a micro e pequenas empresas em processos licitatórios realizados pelos entes do Terceiro Setor, nos intriga os entes do Terceiro Setor não se utilizarem dos expedientes privilegiados na busca pelo melhor preço. Não vemos, a princípio, justificativa plausível para não se utilizarem de tratamento que poderia os fazer cumprir o princípio da economicidade, o qual devem respeito.
Uma vez que também devem respeito ao princípio da publicidade, empreendemos uma busca nos sítios públicos das organizações sociais em estudo a fim de se verificar se as mesmas disponibilizam os extratos e resultados de seus processos de seleção de fornecedores. De toda forma, é fato consumado, que um simples passar de olhos pelo mundo de compras e serviços dos entes que balizaram estas investigações é suficiente para concluir que seu universo de contratação é considerável, perpassando pelos mais diversos objetos contratuais. Verifica-se também, conforme extratos de contratos (Missão Sal da Terra/MG) e atas das licitações (Viva Comunidade/RJ) presentes nos sítios públicos respectivos, que em cada uma das organizações sociais pesquisadas as conclusões são diferentes. Na VIVA RIO SAÚDE – VIVA Comunidade, apesar do respeito ao tratamento diferenciado dispensado a micro e pequenas empresas, é pequena a participação destas no universo dos processos licitatórios simplificados e o número daquelas que efetivamente são contratadas (vez que muitas são desclassificadas ao longo do processo licitatório) chega a ser insignificante[7]. Chegamos a esta conclusão com base em uma amostragem feita nas atas dos resultados de licitações já finalizadas e presentes no sítio do Banco do Brasil Licitações[8]. Na Missão Sal da Terra (MG), que não discrimina em seus processos licitatórios o tratamento diferenciado, a participação de micro e pequenas empresas é significativa e chega a ser maior do que as de outras formas societárias, inclusive nas formas de contratação direta, que se dão via processos de inexigibilidade e dispensa de licitação.
Difícil saber os reais motivos destas discrepâncias (se são diferentes as exigências do mercado mineiro para o mercado carioca, se o despreparo de micro e pequenas empresas para este tipo de licitação é maior em um ou outro Estado) e se realmente a ausência de reforço do tratamento diferenciado que alcança micro e pequenas empresas teria alguma coisa correlação com estes resultados observados. Exatamente por conta disto, o leque de discussões sobre este modelo de contratação deve, a todo o momento, se ampliar.
Novos estudos certamente deverão ser empreendidos a fim de se ter base outras realidades, alargando o número de entes pesquisados e experiências comparadas, a fim de se buscar uma explicação ou mesmo um padrão para a omissão e a presença do tratamento diferenciado conferido a micro e pequenas empresas em processos licitatórios realizados pelo Terceiro Setor e se isto é capaz de trazer algum tipo de prejuízo a micro e pequenos empresários.
5. CONCLUSÃO
As Microempresas e Empresas de Pequeno Porte representam a força de um Brasil empreendedor. Os privilégios e prerrogativas presentes na legislação complementar, nada mais são que uma resposta aos mandamentos constitucionais que reconhecem a necessidade de construir caminhos para a efetivação do empreendedorismo no país.
A reflexão presente neste estudo pretendeu acompanhar a realidade das ME’s e EPP’s, especialmente no universo de seus privilégios e prerrogativas, tendo por referência as obrigações firmadas na dinâmica de contratações instituídas com o dito Terceiro Setor. Invariavelmente objeto de críticas, o Terceiro Setor tem o constante desafio de demonstrar ao que veio, que não se trata apenas de um modelo pela metade, que orbita entre o público e o privado, sem quaisquer restrições. De fato, esta hibridez do regime causa insegurança principalmente entre aqueles que contratam com os entes do Terceiro Setor e promovem situações de vácuo, palco para irregularidades e para a ocorrência de um “Direito mais ou menos” (LUDWIG, 2002, p. 67). Quando se deparam com processos licitatórios que aqui chamamos de simplificados (somente para se contrapor aos processos licitatórios realizados pelo Poder Público), que tem uma dinâmica toda própria, as ME’s e EPP’s sentem na pele a incerteza causada por este regime de hibridez.
A abordagem investigativa empreendida, comparando as realidades de duas organizações sociais que tem contrato de gestão na área da saúde, respectivamente com o Município de Uberlândia, Estado de Minas Gerais (Missão Sal da Terra) e o Estado do Rio de Janeiro (VIVA RIO SAÚDE – VIVA Comunidade) e as contratações firmadas com ME’s e EPP’s, algumas conclusões pontuais se fazem necessárias: 1) não existe nos Regulamentos Próprios de compras e prestação de serviço encontrados menção a qualquer tratamento privilegiado às micro e pequenas empresas; 2) A Missão Sal da Terra (MG), em seus editais de compras e aquisição de bens ou serviços não privilegiam ME’s e EPP’s, enquanto a VIVA RIO SAÚDE – VIVA Comunidade (RJ) é clara em seus processos ao firmar “Tratamento aplicado: com tratamento diferenciado para ME/EPP/COOP”; 3) No âmbito de compras e contratações geridas pela Missão Sal da Terra, a participação de micro e pequenas empresas é maior do que na VIVA RIO SAÚDE – VIVA Comunidade; 4) Reflexões mais amplas acerca deste tema se fazem compulsórias, tendo por referência outras organizações sociais, na medida em que a amostragem ainda é muito pequena para alguma conclusão que venha a se firmar pela utilidade ou desnecessidade da sistemática de tratamento favorecido dado a micro e pequenas empresas no que se refere a seu relacionamento com o Terceiro Setor.
Bolsista CAPES. Mestrando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense UFF linha de Pesquisa Conflitos Urbanos Rurais e Socioambientais
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES
Acidentes de trânsito podem resultar em diversos tipos de prejuízos, desde danos materiais até traumas…
Bloqueios de óbitos em veículos são uma medida administrativa aplicada quando o proprietário de um…
Acidentes de trânsito são situações que podem gerar consequências graves para os envolvidos, tanto no…
O Registro Nacional de Veículos Automotores Judicial (RENAJUD) é um sistema eletrônico que conecta o…
Manter o veículo em conformidade com as exigências legais é essencial para garantir a sua…
Os bloqueios veiculares são medidas administrativas ou judiciais aplicadas a veículos para restringir ou impedir…