Resumo: O objetivo do presente artigo está assentado em analisar a (in)existência do direito à morte digna, a ser invocado em casos de abreviação do sofrimento do paciente que se encontra em estado terminal ou cujas técnicas médicas sejam incapazes de eliminar o sofrimento vivenciado por aquele. A discussão envolvendo o direito à vida e o direito à morte, no que toca ao ordenamento jurídico, reveste-se de complexidade e, de maneira comum, traz para o debate concepções que ultrapassam o formalismo contido na lei. Para tanto, os valores e os princípios comuns da Bioética e do Biodireito são invocados para provocar uma reflexão acerca dos contornos éticos sobre a abreviação da vida, em hipóteses de um indivíduo estar em graves condições de saúde. Neste sentido, a abreviação da vida apresenta por escopo colocar fim ao sofrimento apresentado pelo paciente. Logo, exsurge de tal debate a eutanásia como o ato de proporcionar morte sem sofrimento a um doente acometido por doença incurável, capaz de produzir dores atrozes. Em que pese a tipificação penal existente, o debate se apresenta como necessário em decorrência da liberdade e da autonomia que o indivíduo possui de abreviar o seu sofrimento, devendo, desta feita, o Estado assegurar meios aptos para que haja uma morte digna. O método empregado foi o indutivo, auxiliado por revisão bibliográfica. [1]
Palavras-chave: Morte Digna. Direito de Morrer. Eutanásia.
Abstract: The aim of this article is to analyze the (in) existence of the right to a dignified death, to be invoked in cases of shortening the suffering of the patient who is terminally ill or whose medical techniques are incapable of eliminating the suffering experienced By that. The discussion involving the right to life and the right to die, in terms of the legal system, is complex and, in a common way, brings to the debate conceptions that go beyond the formalism contained in the law. To this end, the values and common principles of Bioethics and Biolaw are invoked to provoke a reflection about the ethical contours about the abbreviation of life, in the hypothesis of an individual being in serious health conditions. In this sense, the abbreviation of life has the purpose of putting an end to the suffering presented by the patient. Thus, euthanasia exhurges from such a debate as the act of providing death without suffering to a patient afflicted by an incurable disease capable of producing atrocious pain. In spite of the existing penal classification, the debate appears as necessary due to the freedom and autonomy that the individual has to abbreviate their suffering, and, in this case, the State must ensure adequate means for a dignified death. The method used was the inductive one, aided by a bibliographical review.
Keywords: Dignified Death. Right to Die. Euthanasia.
Sumário: 1 Introdução; 2 Ortotanásia: delimitações conceituais; 3 Os Princípios Bioéticos e sua essência hermenêutica; 4 O direito à morte digna e o princípio da dignidade da pessoa humana; 5 Conclusão
1 INTRODUÇÃO
A morte é uma condição inerente à vida humana. É sabido e esperado que todo ser vivo, uma hora ou outra, tenha suas atividades vitais encerradas, seja de forma natural ou não. Entretanto, especialmente a partir da década de 19904, vem se acalorando no meio científico e jurídico do mundo ocidental a discussão a respeito da possibilidade de se encerrar uma vida, ou de antecipar a morte de um indivíduo que esteja em graves condições de saúde e com o objetivo de colocar fim ao seu sofrimento, ou até mesmo atendendo a própria vontade do indivíduo em colocar fim a sua vida diante de tal situação e garantir-lhe o direito a uma boa morte.
Conforme apresentado por Dworkin (1993), nesta década alguns países aprofundaram a questão do direito de morrer ao debate público e jurídico, ampliando assim as discussões acerca da eutanásia. Nas palavras de Houaiss (1836 apud AITH, 2007, p. 174), “a eutanásia é o ato de proporcionar morte sem sofrimento a um doente atingido por afecção incurável que produz dores intoleráveis”. Alguns estados dos Estados Unidos da América, a partir do final da década de 1980 e início dos anos 1990, passaram a identificar a possibilidade de poder a vida ser sim interrompida propositalmente. De forma mais significativa o Canadá e a Holanda, nesta mesma época, passaram a permitir que, em alguns casos a vida poderia ser encurtada pela vontade de um paciente final ou por decisão de sua família ou ainda poderia o paciente recusar-se a ser submetido a tratamento médico ou suporte vital. Na Holanda, mais especificamente, passou a não ser considerado como ato criminoso a ação do médico que viesse a praticar algum procedimento de encurtamento da vida do paciente em alguns casos identificados como passíveis de eutanásia.
Vale ressaltar que estas mudanças no entendimento jurídico foram (e ainda são) acompanhadas de um forte debate político e social. Várias são as questões levantadas nestes debates, dentre elas algumas apresentadas por Dworkin (1993), tais como a possibilidade de se descobrir novos tratamentos e avanços médicos; a possibilidade de diagnósticos errados; as consequência sociais e os precedentes que esta prática poderia trazer para a sociedade; as consequências da eutanásia sobre a ética médica; até onde vai o direito de uma pessoa decidir sobre o fim de sua própria vida, ou de transferir a uma outra pessoa a capacidade de decidir sobre quando por fim à vida dela; a religiosidade sobre a vida humana, dentre outros pontos. São discussões de cunho ético, moral, social e religiosas e que são, de fato, pertinentes ao se analisar uma demanda social conhecida por direito de morrer dignamente.
Trazendo esta discussão para o meio jurídico e acadêmico brasileiro, de acordo com Vaz e Andrade (2015), a dignidade da pessoa humana e o direito à vida são fundamentos básicos da Constituição Federal do Brasil de 1988 e são a partir destes princípios que emanam e que são possíveis a prática dos demais direitos. Assim, é um dos objetivos básicos da República Federativa do Brasil zelar pela vida humana. Porém, indagam os mesmos autores: “até que ponto a manutenção desmedida da vida de uma pessoa é de fato o cumprimento de seus direitos e de sua dignidade?” Existe então alguma dignidade da morte e no direito de escolher morrer e ainda no direito de auxiliar a morte do outro devido a sua própria vontade ou pela vontade de sua família?
A discussão sobre a eutanásia e sua relação com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e a conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro é assunto que merece importante análise. Deve ser considerado também os princípios e os limites adotados pela bioética, provenientes das discussões entre a relação de práticas aceitáveis entre a ciência e o meio social em que se vive (MOREIRA, 2013), que fortemente influenciam as discussões no meio jurídico, mais precisamente no campo do Biodireito onde seus reflexos são mais incisivos.
No Brasil, atualmente, a prática da eutanásia ativa, passiva, indireta ou qualquer outra forma de tentar se encurtar a vida de forma proposital e voluntária é proibida pelo ordenamento jurídico nacional. A Resolução do Conselho Federal de Medicina nº. 1.805/2006 prevê a possibilidade de abreviamento do sofrimento de um paciente de morte certa e sem qualquer condição de cura ou melhora, o que para alguns estudiosos pode ser entendido como uma regulação da prática de Ortotanásia, que será abordada mais detalhadamente no decorrer deste trabalho, assim como as diferentes formas de eutanásia. Entretanto, por não haver lei específica que verse sobre eutanásia ou outras formas de encurtamento da vida, o médico que realizar tal procedimento não fica imune de eventuais ações penais por crimes contra a vida, conforme bem salientado por Aith (2007, p. 177).
Em conformidade com o salientado por Melo (2015) diante da omissão da Lei Penal Brasileira em tipificar a eutanásia como crime, ou de qualquer outra legislação que verse sobre o assunto, existe no meio jurídico nacional, mais precisamente no âmbito do estudo do Biodireito um amplo debate sobre a extensão da interpretação de princípios constitucionais no que tange às liberdades individuais e de escolha, vida digna, dignidade da pessoa humana e se há espaço para estas interpretações no sentido de dar ao indivíduo o direito de escolha em autorizar o fim de sua própria vida e garantir a si uma morte digna, quando compelido por uma situação de saúde que lhe trará grande sofrimento por morte certa ou por doença incurável.
2 ORTOTANÁSIA: DELIMITAÇÕES CONCEITUAIS
Maria Helena Diniz (2011, apud, GOMINHO, 2017, s. p.) entente eutanásia como a antecipação deliberada da morte de um doente em quadro irreversível ou terminal, a pedido seu ou da família diante do fato de sua incurabilidade, sofrimento e inutilidade do tratamento. Para Antônio Fernandes Rodrigues (2011 apud, MELO, 2015, s.p.) “A eutanásia, ou morte misericordiosa é a que é dada a uma pessoa que sofre de uma enfermidade incurável ou muito penosa, para suprimir a agonia demasiada longa e dolorosa”. São muitas as definições de eutanásia e todas elas levarão, em resumo, à prática da morte antecipada de alguém em grave situação de saúde ou estado terminal para cessar o um sofrimento que poderia ser prolongado desnecessariamente. A eutanásia então é o ato de levar alguém à morte por misericórdia, conforme também entende Fernando Aith (2007). Importante compreender que a eutanásia não se trata de apenas uma técnica de morte, existem diferentes técnicas de abreviação ou encurtamento da vida que são chamadas por Eutanásia. Neste trabalho, cabe explicar as definições de Eutanásia Ativa, Eutanásia Indireta, Eutanásia Passiva e mais precisamente a Ortotanásia, que serão mais relevantes para este estudo e que são comumente confundidas como um termo único por Eutanásia.
Melo (2015), resume a eutanásia ativa como o procedimento em que a vida do paciente é eliminada de forma súbita, com o emprego de drogas letais ou com o desligamento de aparelhos que mantém a vida. A eutanásia ativa, então, requer uma atitude ativa por parte de um terceiro, geralmente médico, que conforme elucidado por Santos e Duarte (2016), pode se dar através da utilização de medicamentos controlados, overdoses ou injeções letais, com o objetivo de interromper a vida do paciente. Santos e Duarte (2016) também apresentam o conceito de eutanásia de duplo efeito, que seria a administração de medicação que ajuda a aliviar o sofrimento, mas que, com o tempo, esta medicação causará a morte do paciente. Assim, na tentativa de aliviar a dor do paciente e mantê-lo vivo, este morreria justamente pela administração desta técnica.
A eutanásia indireta, também apresentada por Vaz e Andrade (2015) como suicídio assistido, consiste na hipótese em que o próprio paciente venha a tirar sua vida, porém, orientado e auxiliado por um terceiro, geralmente médico. Neste caso, por exemplo, o médico disporia ao alcance do paciente um medicamento letal e este tomaria a decisão de utilizá-lo por sua conta.
Santos e Duarte (2016), apresentam a eutanásia passiva como a interrupção dos tratamentos até então empregados no paciente. Deste modo, o paciente vem a morrer com o tempo. Para Vaz e Andrade (2015) na eutanásia passiva, o paciente terminal não tem sua vida encerrada antecipadamente. Ela ocorre por uma atitude omissiva, por isso passiva, por parte dos médicos e a pedido do próprio paciente ou de seus familiares, para que este não seja submetido a tratamentos invasivos e desnecessários que poderiam trazer e prolongar ainda mais o sofrimento, sem qualquer expectativa de cura em uma situação em que a morte do paciente é considerada certa.
Já a Ortotanásia, para Nogueira (2017), é uma forma de humanização da morte, sem abreviá-la nem prolonga-la desproporcionalmente. Neste caso a morte é considerada como morte natural e no seu tempo certo e não induzida ou antecipada. Com ou sem tratamento, a morte do paciente é considerada irreversível. Para Melo (2015) a Ortotanásia representa um processo de morte natural porque ao não interferir em um quadro de saúde em que a morte é irreversível o médico está contribuindo para que a morte siga o seu curso normal, apenas.
Conforme apresentado por Aith (2007), faz-se importante ainda a distinção entre eutanásia voluntária, involuntária e eutanásia por consentimento. A voluntária é quando ocorre o consentimento explícito pelo paciente, ainda em plenas capacidades psíquicas e mentais. A por consentimento é quando um representante legal, quando o doente não tem mais consciência, autoriza a realização do procedimento. E por último, a eutanásia involuntária seria quando, apesar se não haver o consentimento de um representante legal e nem a vontade expressa do paciente ou até mesmo existe a vontade expressada em negativa pela eutanásia, mas, ainda assim o médico decide, por sua conta, realizar o procedimento.
Nogueira (2017) apresenta o conceito de Distanásia, que também é interessante de compreender. É quase o sentido oposto da eutanásia. Enquanto esta busca encurtar a vida para evitar o prolongamento do sofrimento, aquela se trata de uma técnica em que o médico visa prolongar a vida de um paciente terminal, a qualquer custo, mediante técnicas médicas de efeitos inúteis, pois não irão melhorar nem curar o enfermo, trazendo ainda mais sofrimento e dor. Trata-se de um tratamento médico “fútil ou de obstinação”. Para Melo (2015) a distanásia nada mais é que o prolongamento artificial da morte e por consequência também o prolongamento do sofrimento do paciente que ao invés de garantir-lhe uma boa morte ou uma morte natural o que acabaria por “prolongar sua agonia”.
No Brasil a grande discussão em torno da eutanásia paira sobre o sentido de Eutanásia Passiva e a Ortotanásia. Estes dois procedimentos, apesar de muito semelhantes, são diferentes, mas podem ser entendidas como fruto de uma atitude omissiva do agente. A Resolução do Conselho Federal de Medicina – CFM nº. 1.805/2006 traz a regulamentação da atividade médica quanto a prática de suspensão da vida. Esta, apesar de não expressa, pode ser entendida como Ortotanásia, mas também poderia ser confundida com a prática de Eutanásia Passiva. A mencionada resolução diz que é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. Deve ainda o médico esclarecer sobre quais as modalidades terapêuticas adequadas para cada caso e ainda fundamentar a decisão a cerca desta interrupção. Ao paciente também é garantido o direito de ter uma segunda opinião sobre o caso.
Para Roberto Luis Luchi Demo (2010),/a prática regularizada pela Resolução CFM nº. 1.805/20116 não deve ser confundida com a.eutanásia passiva, pois, no entendimento deste, trata-se da regularização da Ortotanásia e esta significa morte certa enquanto a eutanásia passiva se traduz em ação omissiva do médico em permitir, mesmo diante de meios terapêuticos possíveis, a morte do paciente, quando a inevitabilidade da morte ainda não estaria estabelecida. Na Ortotanásia, então, o médico deixa de intervir no desenvolvimento inevitável e natural da morte. Apesar das divergências de conceitos entre eutanásia passiva e Ortotanásia, este juiz federal decidiu em favor da resolução, entendendo que não há crime de homicídio nos casos de Ortotanásia devidamente comprovados pelo médico.
“Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.” (BRASIL, 2016).
Entende-se, neste caso, que, não havendo mais técnicas e procedimentos médicos capazes de prolongar a vida do paciente de maneira digna, a melhor decisão a se fazer é nada fazer e garantir-lhe uma morte natural. Entretanto, alguns outros conceitos devem ser analisados, como, quem pode ser considerado um doente terminal ou um doente com morte certa e como se tomar a decisão pela aplicação de um procedimento destes? São algumas das questões iminentes que podem ser levantadas. Para Bomtempo (2011) à possibilidade da eutanásia garante respeito a autodeterminação da vontade e dignidade do indivíduo que se encontra nesta situação de saúde em que não há mais chances de se manter sua vida ou expectativa de cura.
Para Genival Veloso de França (2016 apud NOGUEIRA, 2017, s.p. ), é paciente terminal aquele que não mais responde a qualquer técnica médica e terapêutica conhecida e aplicada para o caso em questão durante a evolução da doença, sem qualquer condição de cura ou prolongamento da sobrevivência do paciente. Nestes casos, cabe apenas garantir os cuidados que tragam o máximo de conforto. Este autor destaca ainda que o quadro de paciente terminal não se confunde com o quadro de coma, o qual é reversível e nem com a demência, que apesar de ser irreversível não é garantia de morte certa. Há que se considerar ainda a Resolução nº. 1995/2012, também do CFM, que versa sobre a regularização da consideração das diretivas antecipadas de vontades e desejos de pacientes que no momento de decisões sobre seus cuidados e tratamento se encontrem incapazes de se comunicar ou expressar-se de maneira livre e independente.
“Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade. § 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico. § 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. § 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.” (BRASIL, 2012).
Segundo Melo (2015), a morte de uma pessoa pode ser separada em duas situações, a saber: a morte clínica e a morte biológica. A morte clínica consiste na morte do organismo como um todo, é quando todos os sistemas orgânicos do ser deixam de funcionar de forma integrada (MELO, 2015, s.p. ). Já a morte biológica é a morte de todo o organismo vivo e seus órgãos, não há mais atividades vitais e este processo é irreversível (MELO, 2015, s.p. ). Esta é a morte em essência e é com ela que o direito brasileiro considera a cessação da personalidade da pessoa de direito, adquirida com o seu nascimento vivo. A questão da eutanásia não paira somente neste enorme abismo entre a morte clínica e a morte biológica e todos os dilemas éticos, morais, científicos, religiosos e todas as possibilidades e dúvidas que existem sobre ela, mas advém antecipadamente ao momento da morte clínica, pois existem discussões acerca do direito do paciente optar pela eutanásia ainda de forma consciente, ou até mesmo previamente a uma condição de saúde que implique nesta tomada de decisão.
Independentemente do tipo de Eutanásia ou da Ortotanásia, a discussão sobre a eutanásia não decorre somente da discussão filosófica em antecipar ou não a morte, mas também sobre quais métodos, quais circunstâncias e o que ser considerado. Ora, conforme abordado por Dworkin, em seu livro “Domínio da vida”, capítulo primeiro (1993), as implicações sociais são gigantescas, podendo abrir precedentes e até mesmo contribuir com uma cultura de banalização da morte. Mas, nem por isso, o assunto deve ser deixado de lado e vale considerar as possibilidades em que se possa garantir uma morte com dignidade a um paciente, a depender do caso.
3 OS PRINCÍPIOS BIOÉTICOS E SUA ESSÊNCIA HERMENÊUTICA
A eutanásia apresenta-se como tema complexo e caminha nos campos da Bioética e do Biodireito, ou seja, as ramificações das discussões no campo da moral civil e social assim como da moral religiosa em que se considera a vida humana como algo sagrado. Deworkin (1993, cap. 7), diz que talvez seja justamente este princípio sagrado da vida que traz a principal oposição à eutanásia, neste sentido, independe se a pessoa tem interesse ou direito a uma boa e digna morte, sendo a vida algo inviolável. “O investimento natural em uma vida humana é fundamentalmente mais importante do que o investimento humano e a opção por uma morte prematura” (DWORKIN, 1993, p.302.?). Todavia, este mesmo autor argumenta que, se os defensores desta visão divina sobre a vida refletissem sobre o próprio significado da vida, poderiam utilizar-se do mesmo argumento justamente para o contrário, para justificar a eutanásia, entendendo o prolongamento da vida de forma artificial como um legítimo atentado à natureza sagrada da vida humana.
“Podem, plausivelmente, acreditar que prolongar a vida de uma pessoa muito doente, ou que já perdeu a consciência, em nada contribui para concretizar a maravilha natural da vida humana e que os objetivos da natureza não são atendidos quando artefatos de plástico, a sucção inspiratória e a química mantém o coração batendo em um corpo inerte e sem mente, um coração que a própria natureza já teria feito calar-se.” (DWORKING, 1993, p. 304).
Já na perspectiva da moral civil e social, a crítica à eutanásia se dá pelo medo da banalização da morte, sobre a ingerência e a pressão de terceiros no direito à vida de um indivíduo e sobre o entendimento do papel do médico na sociedade, por exemplo, Dworkin (1993, passim). Segundo o autor, pessoas mais idosas e com graves doenças poderiam se sentir pressionadas a autorizar a antecipação de sua morte por se sentirem como um peso financeiro e psicológico sobre a família (DWORKIN, 1993, p. 269?). Poderia trazer consequências graves para o debate sobre a vida e a morte e, cada vez mais, haver legislações mais permissivas ao induzimento da morte de alguém. E ainda, alterar a concepção do papel do médico que salva vidas para o médico que encerra vidas, dentre inúmeras outras possibilidades. Dworkin (1993) abrange mais as implicações sociais sobre a eutanásia, pois, sendo esta considerada um homicídio e vindo o Estado a legaliza-lo, viria o assassinato legal tornar a sociedade mais insensível perante a morte? Caso positivo, alusivamente, não teria o mesmo efeito a pena de morte ou o clamor social pela pena de morte? São perguntas eloquentes e complexas que este trabalho não tem por objetivo responder, mas sim levantá-las para a ponderação crítica do assunto em questão.
A análise do julgado mencionado anteriormente toma especial dimensão ao se entender o meio social em que a situação está inserida, que a prática descrita pela resolução do CFM refere-se à ortotanásia e não a uma prática de Eutanásia Passiva. Para Demo (2010), cabe analisar as considerações feitas no âmbito da Bioética ou do Biodireito para a compreensão do assunto. Neste sentido, configura-se a interpretação do que está escrito na resolução e busca-se confrontar esta norma com os princípios constitucionais de direito aos quais o ordenamento jurídico brasileiro está submetido, assim como aos anseios sociais ora vigentes. Nota-se a importância do trabalho da hermenêutica em interpretar a norma do CFM e não configurá-la com ilícitos de crimes contra a vida tipificados no Código Penal Brasileiro e entender que a regulação da ortotanásia encontra-se balizada na Constituição Federal Brasileira. Na opinião de Tereza Rodrigues Vieira (ano apud DEMO, 2010, p. xxx), a Ortotanásia não é a antecipação da morte, mas sim a morte correta em seu processo natural e em um processo de se evitar a distanásia.
Conforme apresentado por Queiroz (2011) com o progresso das inovações terapêuticas e a emancipação do paciente faz-se necessária a regulação da ciência através de uma Bioética, que pode ser entendida como a discussão sobre as práticas profissionais da área de ciências e da saúde e suas implicações nas relações sociais entre os homens e também entre os homens e outros seres, com o objetivo de garantir a proteção da integridade humana sob o princípio da dignidade da pessoa humana. (SÁ; NAVES, 2009, p. 6 apud QUEIROZ, 2011). Para Dworkin (2007 apud QUEIROZ, 2011, s.p.) os princípios éticos devem ser considerados uma exigência de justiça ou equidade, ou alguma outra dimensão da moralidade .
Neste sentindo da relação da Bioética com a prática da Ortotanásia ou da eutanásia em geral, cabe enquadrar a discussão dentro dos princípios que regem o pensamento bioético. A Bioética rege-se pelos princípios da não maleficência, da beneficência, respeito à autonomia e da justiça. O princípio bioético do respeito à autonomia, conforme explicitado por Queiroz (2011), refere-se ao respeito da vontade do indivíduo e seus representantes, quando cabível, respeitado também os seus valores morais, religiosos e a sua intimidade. É o reconhecimento de suas liberdades de escolha, de seus limites como pessoa desde que não venham suas escolhas prejudicar outros ou ferir princípios fundamentais de direitos. Seria a capacidade de se autogovernar do indivíduo.
Para o princípio da Beneficência, o mesmo autor destaca sua característica de complacência, a prática de um ato de boa vontade para outrem. É um princípio de garantia do bem-estar através de ações positivas em busca deste fim. Seria, em resumo, fazer o bem. Este autor também detalha o princípio da não maleficência, que se refere a obrigação de não se causar dano ao paciente utilizando-se de métodos e práticas terapêuticas. São derivados de ações positivas e negativas em que, além de ter a obrigação de fazer o bem, o médico ou outro profissional das áreas de ciências e saúde deve também deixar de fazer aquilo que possa ser prejudicial, maléfico ao paciente. E por último, aborda o princípio da justiça que visa a distribuição justa e equitativa das ações médicas e científicas, dentro do que for necessário e permitido pelas normas e pelo ordenamento jurídico como um todo. A ação do profissional não pode ultrapassar os limites legais.
É por meio de questionamentos éticos, pautados nestes princípios que se permite a interpretação de normas, leis e princípios com o objetivo de pensar e regular a prática da eutanásia, não só no Brasil, mas também no mundo. Como já mencionado, no Brasil através da interpretação do ordenamento jurídico a Ortotanásia é tolerada. Conforme apresentado por Demo (2010), tal procedimento pode ser aceito bom base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana; da não tortura e não submissão a tratamento desumano; da autonomia da vontade e ademais, de leis que autorizam o paciente a recusar determinados procedimentos médicos com os quais não concorde e que reconhecem a autonomia do paciente como seu direito. Deste modo, respeita-se a vontade do indivíduo ou daquele que legalmente o representa e, assim, garantido a vontade do indivíduo em manter-se sua morte em curso natural, não há o que se falar em malefícios ao paciente, mas sim em benefícios, visto que sua morte é certa e este não quer ver prolongado seu sofrimento. Conforme exposto por Maria Elisa Villas Boas (não informado, Apud DEMO, 2010, p. 10) “Não é crime morrer em casa, ou sob cuidados que mais se aproximem dos domiciliares […] é a morte mais natural e humana, quando já não se pode evitar ou adiar a contento”.
Entretanto, Demo (2010) salienta que a resolução do CFM que regulamenta a Ortotanásia não dá ao médico o poder de decidir sobre a vida e a morte de um paciente. Cabe apenas identificar, através de critérios técnicos, se há degradação ou o início de um processo de morte do paciente o qual venha a justificar a Ortotanásia. Para este juiz a referida resolução, assim como a prática da Ortotanásia, asseguram os princípios da bioética, pois permite a autonomia do paciente, obrigando que tanto o indivíduo como seu representante legal estejam envolvidos no processo, assegurando também que o médico tenha que fazer de tudo o que dispuser ao seu alcance em benefício do indivíduo e deve evitar a todo custo qualquer ação que venha a causar mal de forma proposital ao paciente.
A Ortotanásia deve ocorrer em uma relação de confiança entre o paciente, a sua família e o médico. Porém, o autor salienta que a resolução não versa sobre direito penal, mas limita-se a estipular a prática medica aceitável a fim de possibilitar mais segurança ética e profissional ao médico que decida por seguir com uma Ortotanásia. Entretanto, um médico poderá vir a ser processado e responder por crime contra a vida, de acordo com o Código Penal Brasileiro, caso não venha a conseguir justificar devidamente o ato praticado. Essa distinção entre a legislação penal e a norma profissional médica não é irracional, apesar de ser crítica, pois, conforme pode ser elucidado por Dworkin (1993, p. 260) “acreditam que os médicos não devem, sejam quais forem as circunstâncias, transformar-se em assassinos.
Seguindo o proposto por Melo (2015), no Brasil inexiste legislação penal específica para a prática da eutanásia, mas também não existe legislação específica que a regule. A prática da eutanásia pode ser enquadrada na tipificação de homicídio, conforme Artigo 121 do Código Penal: “Matar alguém, pena de reclusão de seis meses a 20 anos”. Todavia, a eutanásia pode ser considerada um homicídio com atenuante de pena, como explicitado no parágrafo primeiro do Artigo 121, que no caso de matar alguém por motivo de relevante valor social ou moral ou sob domínio de violenta emoção pode haver redução de pena de um sexto a um terço. Ou ainda, pode também haver enquadramento no crime tipificado no Artigo 122 do código penal “induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça” (crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio). Também há de se atentar para o Artigo 132 “expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente” (crime de perigo para a vida ou saúde de outrem).
Para Melo (2015), nos casos de interpretação da lei penal com o caso concreto da prática médica, o segredo está na ponderação do comportamento da prática de eutanásia ou Ortotanásia empregada, para só assim poder ser tipificado e apenado algum eventual crime cometido. Mas, vale enfatizar, que só seria aceita a escusa de crime a configuração da Ortotanásia. Qualquer prática de eutanásia no Brasil, seja ativa, passiva ou indireta, será enquadrada como crime de homicídio ou de induzimento ao suicídio, respectivamente. Mas, ainda assim, caso o médico venha a praticar a eutanásia por motivo de comoção pela notável e irremediável agonia do enfermo em situação comprovada de prognose médica, poderá o médico ter sua pena reduzida ou até mesmo receber absolvição.
Os princípios da Bioética aplicados no campo do Biodireito dão subsídio fundamental à interpretação das leis e à criação de novas normas ao se tratar de assuntos polêmicos que envolvam a vida humana perante a evolução científica e social. O direito, como sabidamente já batido, é evolutivo e toda norma deve ser criada e interpretada em conformidade com o momento histórico e cultural em que ela está inserida. Com isso, por mais que haja a possibilidade de uma determinada prática, nem sempre haverá a permissibilidade, mesmo quando se alega um bem ou um princípio de direito humano maior. Em consonância com Queiroz (2011) o ideal da bioética é a instrumentalização da forma adequada dos direitos dos homens com a constante preocupação em tutelar de forma efetiva o princípio da dignidade da pessoa humana frente aos avanços científicos, para que não se venha invocar este princípio justamente para degradar a vida e a dignidade humana. “É a necessidade de se constituir novos paradigmas de cunho ético, jurídico e social”.
4 O DIREITO À MORTE DIGNA E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O caput do artigo 5º da Constituição Federal estabelece a inviolabilidade da vida, direito também garantido nos Artigos 227 e 230 do mesmo documento. Mas, o mesmo caput também garante a inviolabilidade da liberdade, e a saúde é tutelada como um direito social em diversos trechos da Constituição. A mesma Carta também previne o indivíduo de tratamentos desumanos, degradantes e de tortura, além da previsão da dignidade da pessoa humana em seu artigo 1º. É neste ambiente de aparente conflito entre princípios norteadores do direito brasileiro que, até então, entende a justiça que a prática da eutanásia no Brasil é considerada homicídio, ainda que atenuado e que a Ortotanásia pode ser tolerada. Traduz-se, deste modo, que o direito brasileiro entende ser a obrigação do Estado em zelar pela vida, superior ao direito individual de se optar pela morte, mesmo que um paciente venha a alegar que a sua vontade de morrer antecipadamente em virtude de sua condição de saúde venha a lhe garantir felicidade, dignidade e que o contrário disso seria uma situação torturante.
Entretanto, o direito a uma morte digna também pode ser compreendido como o direito a uma boa vida. De que adiantaria o Estado garantir a vida, a qualquer custo, se neste sentido uma série de outros princípios seriam violados e se a própria manutenção da vida do indivíduo poderia estar sendo entendida por este como uma condição desumana, degradante e indigna? Tomando como exemplo a relação da eutanásia com a pena de morte, apresentada por Dowrkin (1993), a instituição ou o clamor da pena de morte parece ser muito mais plausível e aceita perante a sociedade. Seria então o direito de o Estado assassinar o criminoso, mesmo contra sua vontade individual, mais justo e digno que o direito de um indivíduo optar pela sua morte digna? Há de se entender que nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida é absoluto no ordenamento jurídico brasileiro. No artigo 5º, inciso XLVII, é apresentada a exceção à pena de morte em caso de guerra. O artigo 23 do Código Penal apresenta as hipóteses de excludentes de ilicitude e que também se aplicam no caso de homicídio, não sendo crime o ato de matar alguém, por exemplo, em legítima defesa. Deste modo, a morte já tem no Brasil algum contorno de regularização e situações em que o homicídio pode não ser considerado como crime, mas discute-se a eutanásia como uma condição de legalização do homicídio e violação do direito à vida.
Ainda em consonância com o que é tratado na obra de Dworkin (1993), a discussão sobre a eutanásia deve levar em consideração o que a pessoa entende por vida digna e a forma de vida que essa pessoa levou até o momento em que venha optar pela sua cessação. Pois o desejo do indivíduo que quer adiantar sua morte diante de uma situação de doença e sofrimento sem cura e com morte presumida, na verdade, deve ser encarado como um desejo de vida, um desejo de vida que não é mais possível ter. Então, nesses casos levando em consideração que estas pessoas, nestas condições, e que entrarão em um estado de total incompetência para responder por seus atos, devem ter o direito de escolher o seu tratamento médico mais adequado? Devem ter o direito à opção de escolher que não querem ser mantidas vivas após entrarem em determinado estado vegetativo, ou ainda mais incisivo, poderiam autorizar que terceiros venham a tomar estas decisões por eles mesmos quando já não assim o puderem?
Outra importante questão a ser pensada é também verificar se poderiam pessoas, saudáveis, sem qualquer quadro clínico negativo, vir a realizar testamentos de vida expressando seus desejos quanto a uma possível antecipação de sua morte caso, um dia, incertamente, venham a se encontrar em estado de saúde grave, irreversível, incurável e com morte presumida? Até onde vai o direito do indivíduo em decidir sobre sua morte em respeito aos princípios da individualidade, da autonomia da vontade, da vida boa e digna e até onde vai poder do Estado em interferir na individualidade humana para garantir o cumprimento de princípios de direito? Mais uma vez, são questionamentos que não possuem respostas certas e nem momentâneas, mas que abrem o caminho e a mente para se discutir o direito a uma boa morte como garantia da dignidade da pessoa humana.
O Princípio da Legalidade traz especial ligação com o princípio da autonomia da vontade do indivíduo, pois de acordo com o Inciso II do Artigo 5º da Constituição Federal, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei” (BRASIL, 1988). A mesma ideia de que tudo é livre de acordo com a vontade do indivíduo também é expressa, no inciso XXXIX do mesmo dispositivo constitucional, mas encontra-se aí também a garantia do Estado reprimir ou penalizar uma conduta: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 1988). De acordo com Toaldo (2001), a Constituição de 1988 promoveu profundas alterações nos valores jurídicos e alterou significativamente a noção de direito privado baseado nos interesses individuais. Apesar da autonomia da vontade o direito privado também se mistura com o direito público e é papel do Estado promover a relação e a interação entre eles. O Estado ganha significativo interesse em assuntos que, ora parecem exclusivos da esfera privada, mas que também ganham contornos diante de “interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos”, como é a questão da Eutanásia, que além de realizar a vontade do indivíduo também traz significativos impactos na vida social de todos, como já levantado.
Entretanto, de acordo com Santos e Duarte (2016), o direito à vida posto na Constituição Federal deve ser analisado sob duas perspectivas, a vida biológica e a vida digna. Neste sentido, ainda que havendo a vida biológica, seria cabível defender que uma pessoa tem o direito de escolher morrer devido à sua condição de saúde, a qual não o garante mais a possibilidade de uma vida digna. Nestes casos, prolongar a morte seria submeter o ser humano a condições não humanas de dor, cansaço e prolongamento de um sofrimento desnecessário no ponto de vista da dignidade da pessoa. Para este autor o indivíduo deve sim ter garantida sua autonomia, como essência de liberdade, em tomar decisões que dizem respeito à sua própria vida a partir de suas convicções.
“Ser livre para decidir pela morte, quando não há mais vida, nem a garantia que vai tê-la, é a expressão mais sublime de que a autonomia da vontade ocupa espaço elevadíssimo no ordenamento jurídico, que só existe e se justifica no respeito à pessoa humana”. (SANTOS; DUARTE, 2016, s.p.).
Assim, o Estado não teria então o direito de retirar do paciente o direito de morrer quando não mais o convém viver. Este direito é renunciado pela própria vontade e condições do indivíduo, que, apesar de ainda vivo, não o estaria mais se não fosse pelas condições artificiais que o mantém, ou já nem se quer possui condições de interagir com o meio e que se, lúcido estivesse, não aceitaria estar sendo mantido em tais condições e nem submetendo seus familiares a tão doloroso sofrimento, um sofrimento sem esperanças de solução.
De acordo com Melo (2015), respeitar a autonomia da vontade e da dignidade da pessoa humana é entender que o paciente tem o “controle sobre o seu próprio corpo, mente e espírito”. A medicina deve ser humanizada, e diante do sofrimento e da agonia de um indivíduo que implora para morrer ou que tenha expressado tacitamente tal vontade, não se pode a medicina e a lei se prender a princípios religiosos, que as vezes podem nem ser compartilhados pelo indivíduo em questão, mas sim basear-se pela razão e pelo amor ao próximo. Para a autora, a humanidade consiste em reconhecer que o prolongamento desnecessário da vida é desumano e indigno. Entretanto, a lei é falha, a vontade do legislador é pequena, pois esbarra em muitos conceitos morais sensíveis à sociedade e em nenhum momento há uma preocupação focada no sofrimento do indivíduo ou da humanização de sua morte. Quando o direito de uma morte digna é negado a um paciente que assim a deseja, essa negativa não é feita para garantir-lhe seus direitos (os quais muitas vezes ele nem irá mais usufruir), o que está sendo garantido, neste momento, é a vontade de outros, preceitos de outras pessoas que não se encontram ali na dor e no sofrimento e que se julgam detentoras do poder de definir que, apesar de não haver mais esperanças para a vida daquele paciente ele não tem o direito de morrer, mas tem o direito de permanecer em sofrimento e agonia por tempo indeterminado.
No caso da Ortotanásia, especificamente, conforme justificado em julgado por Demo (2010), sob a ótica constitucional é plenamente possível sustentar tal procedimento e não tipificá-lo como homicídio. Demo considera ainda que a resolução em nada inova no ordenamento jurídico, pois apenas busca trazer segurança e transparência para uma situação que já era praticada e corriqueira, porém “escamoteada” pelos médicos por medo, justamente pela falta de regulamentação.
Para Aith (2007), o princípio da dignidade da pessoa humana possui um valor incerto e que aparentemente se volta como um princípio jurídico à proteção de todos, mesmo sobre aqueles que não possuem mais consciência de sua própria dignidade. Para o autor, merece uma discussão mais aprofundada no Brasil sobre essa relação da dignidade da pessoa humana e o seu possível direito a uma morte digna, pois é uma situação fundamental para se garantir o respeito à dignidade de uma pessoa doente em fim de vida. A resolução do CFM que regulariza a Ortotanásia já possui um viés mais humanista, ainda que restrito, ao se considerar a permissibilidade de deixar o doente morrer naturalmente ao invés de submetê-lo a um tratamento injustificável, penoso e sem qualquer possibilidade de eficácia.
5 CONCLUSÃO
O princípio da dignidade da pessoa humana e todos os outros princípios a ele coligados trazem amplo poder de interpretação ao ordenamento jurídico e é neste cenário que se debate os limites das liberdades individuais, bem como os limites de interferência do estado sobre estas liberdades. O discurso torna-se ainda mais delicado e importante, quando se toca nos limites da vida e da morte, nos limites da interferência do homem sobre sua própria vida e sobre a sua consciência ou não consciência ao decidir quando e como morrer, por exemplo. São as interferências das relações sociais, da moral social, da religião, da política, da justiça, da vontade individual dentre outras mais, que enriquecem e aquecem as argumentações sobre a eutanásia.
A bioética, por sua vez, tem papel fundamental em introduzir no ordenamento infralegal as regulações da prática médica profissional quanto aos procedimentos controversos à luz da justiça, como no caso da prática de Ortotanásia no Brasil. Apesar de não haver um respaldo legal sobre a prática, a citada resolução do CFM traz mais segurança ao profissional médico que assim decidir, em conformidade com o paciente ou seu representante legal, em seguir com o método. Ainda assim, este profissional não estará imune a eventuais embates com o Estado diante da justiça criminal. Do mesmo modo, a prática ética regulamentada supre a justiça nestes eventuais embates e elucidam o direito com novas concepções e visões que dão suporte ao trabalho hermenêutico da justiça e na função legislativa quando da criação de eventuais novas normas legais.
Não se pode entender a discussão sobre Eutanásia de forma simplista, como a legalização de homicídio ou como a autorização e banalização da morte a qualquer tempo e custo. Deve ser entendida sim como um debate justo sobre quais as condições específicas, restritas, quais as técnicas regularizadas, procedimentos de formalização de limites para que, só assim, o direito a uma morte digna possa ser introduzido formalmente no ordenamento jurídico brasileiro, de forma séria e destinado ao seu objetivo que é garantir a autonomia do indivíduo frente à sua condição de sofrimento como forma de garantia da dignidade da pessoa humana.
Acadêmico de Direito da Faculdade Metropolitana São Carlos FAMESC Unidade de Bom Jesus do Itabapoana. Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Cândido Mendes UCAM. Membro do Grupo de Pesquisa: Faces e Interfaces do Direito: Sociedade Cultura e Interdisciplinaridade do Direito
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES
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