Direito de Família

Multiparentalidade: A nova família do século XXI

Autor: Luan Godinho Pereira – acadêmico de Direito no Centro Universitário Luterano de Manaus, AM. (luanpereira87@rede.ulbra.br)

Orientador: Armando de Souza Negrão – especialista e professor do Centro Universitário Luterano de Manaus, AM. (armando.negrão@ulbra.br)

Resumo: Este artigo apresenta uma discussão teórica acerca do novo instituto familiar que vem sofrendo mutações ao longo dos anos por conta das mudanças ideológicas que regem a sociedade brasileira. Como se sabe, o poder familiar saiu da esfera masculina, na figura do pai, e passou a ser igualitária entre ambos os pais ou até mesmo entre demais membros da família, fazendo assim com que surgissem novos modelos de família, de maneira que fosse sempre almejado o amor e a busca pela felicidade. Partindo da ideia de que o ordenamento jurídico não estabeleça essencialmente o que é família, é a partir daí que surge o que hoje se chama de socioafetividade, que por conseguinte faz nascer a multiparentalidade, que tem se tornado um tema muito relevante no século atual, em virtude de ser cada vez mais comum os desafios que envolvem aas relações parentais e de filiação. Além disso, a coexistência de vínculos tanto biológicos como afetivos hoje em dia é perfeitamente viável, o que já não se mostra como meramente direito, mas como obrigação, uma vez que preserva os direitos fundamentais de todos os envolvidos. Ademais, apresenta-se o novo conceito de paternidade não somente levando em consideração a via biológica, mas também deve-se considerar a paternidade como aquela que vem da relação parental e socioafetiva.

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Palavras-chave: Família. Multiparentalidade. Filiação. Efeitos jurídicos.

Abstract: This article presents a theoretical discussion of the new family institute that has been gone through mutations over the years due to ideological changes that regulates society. As it is known, family power is not just related to masculine figure, the father figure, and it became equal between both parents or even among other members of the family, thus causing new models of family, so that it is always longed for love and the search for happiness. Starting from the idea that the legal system does not essentially establish what is a family, hence the emergency of what is known today as socio-affectivity arises, which consequently gives rise to multi-parenting, which has become a very relevant theme in the current century, due to the challenges that involve parental and parenting relationships being increasingly common. In addition, the coexistence of both biological and affective bonds today is perfectly feasible, which is no longer shown as merely a right, but as an obligation, since it preserves the fundamental rights of all those involved. In addition, the new concept of paternity is presented not only taking account the biological pathway, but also paternity must be considered as that which comes from the parental and socio-affective relationship.

Keywords: Family. Multiparentality, Membership, Legal effects.

Sumário: Introdução. 1. Evolução história da família. 2. As famílias na contemporaneidade brasileira. 3. Possibilidades e consequências jurídicas da multiparentalidade. 4. Filiação e afeto. 5. Reconhecimento e registro da multiparentalidade socioafetiva à luz dos Provimentos nº 63/2017 e 83/2019, do CNJ. 6. Direito ao patronímico paterno/materno socioafetivo. Conclusão. Referências.

Introdução

A multiparentalidade tem sido um tema de notória relevância no século XXI em virtude de serem cada vez mais comuns os desafios enfrentados nas relações parentais e de filiação. Como se sabe, a família tem se estruturado e se constituído de diversos padrões e formas e que é ultrapassada a concepção de que família é somente aquela que decorre dos laços biológicos, decorrentes de casamento civil. Hoje em dia não se pensa apenas na proteção de patrimônio, mas também no direito de cada um dos envolvidos, de maneira que as relações interpessoais existentes na sociedade sejam reconhecidas.

Historicamente a estrutura familiar tinha como modelo a estrutura patriarcal que era originada e baseada no direito romano, o que atualmente é reconhecido no Código Civil Brasileiro de 2002, fazendo com que o conceito de família sofresse mutações, uma vez que aquilo que era delimitado pela parentalidade que era formada apenas por laços sanguíneos hoje é mais ampla e se estende e se reconhece, inclusive, na instituição afetiva. Houve uma evolução no conceito de família no que se refere a hábitos, costumes, direitos humanos, respeito e as variações afetivas como se constituem os atuais modelos de família.

Atualmente existem novas estruturas familiares que se moldam totalmente diferente da antiga estrutura da família patriarcal, que envolvia laços matrimoniais, biológicos e hierárquicos. Frequentemente se depara com modelos de família em mosaico, monoparentais, poliafetivas, paralelas, entre outras. Porém, existe um modelo familiar que buscou proteção jurídica e hoje tem seu reconhecimento, que é a parentalidade socioafetiva, o que representa a multiparentalidade.

Como se trata de um assunto recentíssimo, o Poder Judiciário tem feito, em alguns momentos, as vezes do legislador de maneira a adequar a legislação vigente à realidade, visando o atendimento de todas as questões constitucionais, principalmente aquelas que se remetem à dignidade da pessoa humana e à afetividade, que estão presentes em todas as relações familiares.

O presente estudo, fundando-se com base na legislação brasileira e entendimentos jurisprudenciais, busca demonstrar como se formou o novo modelo familiar, e também demonstrar que essa nova forma de família não é simplesmente ter pra si o afeto de alguém ou transmiti-lo a alguém, mas que essa relação vai muito mais além disso: gera direitos e obrigações; responsabilidades de pais biológicos e socioafetivos, recaindo diretamente sobre as consequências e benefícios para os envolvidos. Busca-se também demonstrar os meios legais para aquisição do reconhecimento e registro da parentalidade e multiparentalidade socioafetiva bem como seus efeitos jurídicos.

Diante do exposto, este artigo visa uma contextualização na qual o leitor poderá compreender a conceituação e evolução da família, os efeitos sociais e jurídicos aos envolvidos nessa nova forma de família, consubstanciado na possibilidade de um mesmo filho poder ter mais de um pai e/ou mãe e demais graus de parentesco que decorrem após o reconhecimento socioafetivo.

  1. Evolução histórica da família

Inicialmente, se faz necessário entender um pouco da origem do vocábulo latino famulus, que significa servo ou escravo. Esse conceito teve sua origem pelo fato de as mulheres, à época, deverem obediência ao marido e os filhos pertenciam a seus pais, a quem deviam a vida. Os pais tinham direito absoluto sobre a prole que haviam gerado, no sentido de posse. Em outros termos, o surgimento da palavra família se deu na Roma Antiga, conhecida em latim como “fâmulos”, que significava o conjunto de empregados de um senhor, esse atributo era dado devido a exploração de escravos, entendia-se que o termo família era legalizado somente ao casal e seus filhos (TORRINHA, 1998, p. 326).

A sociedade se transformou e com ela a família também evoluiu, e passou a ser considerada como agrupamento humano, onde as pessoas se reuniam, inicialmente, por razões que envolviam afeto, como num projeto de vida em comum.

Durante todo esse período de evolução da humanidade ocorreram inúmeras mudanças significativas no que se relaciona a aspectos sexuais, religiosos, profissionais, normativos, dentre outros, que geraram reflexos no conceito de família, a qual é constituída com valores atuantes no espaço e no tempo.

De outro giro, para Kobner (2008, p. 26) a família tinha como estrutura familiar o paternalismo, todos os poderes se concentravam no chefe, que era o pater-família.

Partindo da ideia de Kobner, a mulher renunciava tudo ao casar e passava a ser responsável pelos afazeres de casa, dos filhos, a cultuar a religião e se dedicar ao marido, e dessa forma a família se constituía pelo matrimônio; era um estrutura familiar medieval, que tinha como estrutura familiar a autoridade do pai. Nessa época, a família era a base para o desenvolvimento de cada indivíduo na sociedade; era a base para o processo formativo do sujeito e sua concepção de ser humano.

A formação do modelo de família de antigamente tinha, em suas diretrizes, a liderança de uma única pessoa que era intitulada como o patriarca, que era o responsável por prover o sustento da família, os bens patrimoniais, econômicos. Era a imagem que deveria ser seguida para a estruturação social; era símbolo de respeito pois era ele quem tomava as decisões, decisões essas indiscutíveis.

Contudo, a instituição familiar do passado tinha como visão a liderança de uma única pessoa (modelo patriarcal). Segundo Araújo Júnior (2017, p. 01), o conceito de família encontrava-se pautado “na entidade formada por duas ou mais pessoas, unidas pelo casamento ou em razão de união estável (marido e mulher; marido, mulher e filho; marido e filho; mulher e filho; companheiros; companheiros e filho etc.)”.

A partir da visão do modelo familiar de antigamente, pode-se inferir que conceituar família nos moldes de hoje é uma tarefa árdua, visto que não temos qualquer diploma legislativo que defina o conceito de família.

O conceito que se tinha sobre família na Idade Média era de que a família se apoiava na união que tinha como objetivo a conservação dos bens, preservação da honra e vida, sofrendo muita influência da Igreja Católica. A partir daí o direito canônico começa a ter mais força, o Império Romano declinou, o cristianismo passou a ser conhecido como a religião oficial daqueles ditos civilizados. Tudo isso influenciou o direito de família. Estabeleceu-se a monogamia como única forma de relação aceita por Deus, de maneira que pudesse garantir a ancestralidade, seriedade e duração do casamento, e daí surgiriam os filhos naturais, tidos como legítimos e incestuosos.

No início do surgimento da Igreja Católica, a igreja era muito rígida e se opunha diretamente a qualquer outro modelo familiar que não fosse aquela formada através do casamento. Foi no cristianismo que a instituição familiar foi reconhecida como entidade religiosa, daí o matrimônio ser um dos sacramentos da igreja. A família passou a ser a base da igreja e célula vital da sociedade, hierarquizada e organizada a partir da figura masculina. Aos maridos cabia, exclusivamente, o juízo de valor acerca do intervalo entre os nascimentos e não era lícito ao Estado interferir de forma direta ou indireta nesta decisão. A família, para o catolicismo, era a primeira sociedade natural, fundada no matrimônio como forma de vínculo perpétuo entre homem e mulher.

Já na contemporaneidade, Vasconcellos (2014, p. 18) enfatiza que o modelo de família contemporâneo se iniciou a partir do século XIX, e foi precedido pelas Revoluções Francesa e industrial, quando, àquela época, o mundo vivia em constante processo de crise e renovação.

No final do século XVII, a Revolução Francesa trouxe mudanças de paradigmas até então tidos como absolutos, porém o direito francês não foi favorecido com a revolução, pois sofria grande influência do direito canônico, onde qualquer outra forma de constituição de família que não fosse através do matrimônio, não produzia efeitos jurídicos.

Após o período da Revolução Industrial, foram sendo descobertos mitos avanços científicos e tecnológicos, inclusive no que tange à reprodução humana. A partir daí, alguns desses modelos de família foram sendo inseridos na sociedade como nova concepção de família, que tinha como base a construção social pelo afeto entre seus membros.

Ademais, na atualidade, pensar em família requer não apenas pensar na diversidade familiar e na dinâmica de seus relacionamentos, mas deve-se levar em consideração sua relevância para o desenvolvimento da individualidade. Dessa forma, pode-se pensar que os indivíduos estão inseridos por laços afetivos ou consanguíneos. Na contemporaneidade o direito é baseado em princípios democráticos assentados na dignidade da pessoa humana, e não se pode mais considerar família como apenas a relação entre homem e mulher unidos pelo laço do matrimônio. Aquele pensamento de casamento-convivência-reprodução é atrasado. Se faz necessária a busca por novos conceitos que incluam todas as formas atualmente existentes.

  1. As famílias na contemporaneidade brasileira

Muitos novos arranjos familiares foram apresentados à sociedade ao longo dos anos como como novo modelo familiar que se adotou na contemporaneidade, tendo seu conceito em alguns momentos como uma construção social constituída pelo afeto entre os seus membros. Sem dúvidas, a família foi uma das instituições jurídicas que mais passou por modificações conceituais e estruturais no decorrer da história. E, sem dúvidas, as questões ligadas à filiação tem sido temas extremamente sensíveis a todas as modificações socioculturais e surgimento de novos arranjos vivenciais encontrados na sociedade pós-moderna e pluralista que se fortalecem no princípio da dignidade da pessoa humana e na afetividade.

Antigamente havia um grande problema: muitas pessoas criavam outras pessoas como se filhos fossem, e tinham o que no direito romano se chama de nome, trato e fama, ou seja, dava-se tudo àquela pessoa como se filho fosse,  e em relação aos efeitos jurídicos nada acontecia, então essa pessoa  falecia e os filhos biológicos já excluíam as outras pessoas do rol de sucessão; se necessitasse de alimentos, por exemplo, não teria como pleitear esses alimentos, dentre muitos outros efeitos pela ausência da parentalidade nessas situações. 

Pouco importa se a família é biológica ou socioafetiva; se surgiu do casamento ou da união estável, se é poligâmica ou monogâmica, biparental ou multiparental, se é anaparental, desconstituída ou recomposta, virtual ou real, binuclear ou nuclear. Enfim, independente do termo que se denomine família, todos esses novos arranjos existem e podem comprovar as inúmeras mudanças e os múltiplos modelos viáveis e possíveis de constituição familiar que devem, sem sombra de dúvidas, ter a tutela adequada à complexidade contemporânea.

A família matrimonial é definida pelos seus laços matrimoniais de forma monogâmica, se concretizando através do casamento civil formalizado, seguindo todos os protocolos de habilitação em Cartório de Registro Civil e sendo realizado pela composição de atos solenes e formais.

A família constituída pela união estável se dá diante da informalidade pública, sem documentos que tenham que comprovar a união, sem necessidade de casamento com atos solenes.

Quanto a família monoparental, esta caracteriza-se pela forma desvinculada da ideia formalizada do tradicionalismo, devendo a família ser composta por um casal e seus filhos.

A família anaparental consiste na relação de parentesco entre si e que decorram da comunhão para uma convivência familiar, como por exemplo dois irmãos.

A multiparental é descrita pela formação do método de reprodução assistida, ou pelo vínculo organizado pela afetividade no qual o sujeito terá a figura de dois pais e/ou duas mães como referência familiar. Trata-se de uma formação na qual os membros advêm de outras famílias compostas anteriormente. Família homoafetiva são consideradas famílias por relações homoafetivas, organizadas por casais do mesmo sexo.

Família eudemonista busca a formação da família para buscar a felicidade e os valores morais. O vínculo ocorre por consanguinidade ou afinidade dos companheiros, filhos ou até mesmo por parentes da linha reta ou colateral, ou de parentes de outro companheiro.

Por óbvio, não há como fixar um modelo uniforme, sendo necessário levar em consideração os movimentos que constituem as relações sociais ao longo do tempo. É certo que surgiram, nos últimos anos, uma série de novas configurações familiares.

Para o direito contemporâneo, a família deve ser entendida como um instrumento de realização pessoal do homem para alcançar sua felicidade, levando em conta os laços afetivos e o desenvolvimento do ideal de solidariedade.

  1. Possibilidades e consequências jurídicas da multiparentalidade

Uma das grandes inovações da Constituição Federal de 1988 foram as novas formas de filiação advindas das novas formas de relacionamento interpessoal na sociedade, fato que vai muito além do requisito biológico e partindo para o reconhecimento e a importância dos relacionamentos socioafetivos, ou seja, aqueles que se constituem à base do afeto, independentemente da existência de vínculo sanguíneo. Não se trata, portanto, de adoção, visto que o reconhecimento socioafetivo reconhece a existência do direito da convivência familiar da criança, adolescente ou adulto, com a paternidade/maternidade biológica socioafetiva simultaneamente, enquanto que na adoção propriamente dita ocorre a quebra total dos vínculos jurídicos, morais, sociais, biológicos que existiram enquanto pais biológicos.

Sendo o ser humano um reflexo da maneira de ser no mundo genético, (des)afetivo e ontológico, é considerado tridimensional, logo tanto as paternidades/maternidades biológicas quanto as afetivas devem ser reconhecidas igualitariamente e conjuntamente quando necessário (SCHWERZ, 2015).

Logo, a filiação socioafetiva é a relação de parentesco que se inicia a partir do convívio social, devendo ser preenchidos alguns requisitos, onde nasce o afeto, laços sociais e culturais entre pais e filhos; é um vínculo que vai muito além do biológico. O fato é que perante a sociedade, não interessa mais a origem da filiação.

Segundo aponta a doutrina, os princípios constitucionais foram transformados em alicerces normativos sobre o qual está acomodado o ordenamento jurídico, alterando o modo de interpretar a lei. (TARTUCE, 2014, 05-42).

Nas últimas décadas o Código Civil Brasileiro adaptou-se à sociedade de maneira que pudesse incluir em seu texto as variadas modificações no conceito família, de maneira que pudesse preservar a entidade familiar e valores culturais, dando à família um tratamento de acordo com a realidade da sociedade, atendendo basicamente às necessidades dos filhos.

De fato, as leis acabam sendo reeditadas em virtude das modificações temporais e surgimento de novos costumes e conforme as necessidades se apresentam. A multiparentalidade, quando reconhecida, traz inúmeros efeitos, tanto na esfera jurídica como na vida das pessoas envolvidas. A partir do momento que é feita a alteração no registro de nascimento do(a) filho(a) reconhecido(a) socioafetivamente, estabelece-se uma relação não somente com a pessoa reconhecida, mas com os pais biológicos.

Curiosamente, quando há esse tipo de reconhecimento, não há que se falar em opção de escolha entre ficar com os pais biológicos ou socioafetivos. Há casos, inclusive, de pessoas reconhecidas socioafetivamente por jogo de interesse sucessório, como por exemplo, uma pessoa de posses decide reconhecer socioafetivamente uma pessoa maior de idade, e a partir daí é dado automaticamente o poder a essa pessoa reconhecida para participar na sucessão, caso o(a) pai(mão) socioafetivo(a) falecer, uma vez que o reconhecimento socioafetivo é irrevogável e irretratável; não cabe arrependimento. É o entendimento do STJ, quando entendeu que a filiação, por ser um direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, o filho pode exercitá-lo sem restrições.

Por outro lado, a existência de vínculo socioafetivo com o pai registral não impede que o filho busque o reconhecimento da paternidade biológica, com suas consequências de cunho patrimonial.

O grande desafio no reconhecimento da multiparentalidade é ampliar a proteção jurídica, que hoje é maternidade/paternidade singular. A lei não é objetiva quando trata da socioafetividade.

No que se refere à obrigação de alimentos, os critérios, deveres e obrigações dos pais socioafetivos são os mesmos dos pais biológicos, inclusive quando da impossibilidade dos pais prestar alimentos, os avós concorrem para que esse ato seja efetivamente cumprido, uma vez que estão no mesmo grau de parentesco e assim, respondem de forma sucessiva quanto as responsabilidades dos pais.

Quanto aos efeitos patrimoniais, uma vez que existe dupla vantagem ao filho, por consequência também existe duplo dever ao filho na vida adulta. Ora, este dever está elencado no artigo 229, do Código Civil Brasileiro, quando diz que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar aos pais na velhice, carência ou enfermidade.

Ainda sobre os direitos sucessórios, cabe ressaltar que a cota hereditária acaba sendo reduzida por conta do ingresso de novas pessoas habilitadas ao título de herdeiro na sucessão, uma vez que todos os filhos devem ser tratados de maneira igualitária. Ademais, cita-se o princípio geral de igualdade, presente no art. 5º, caput, e art. 226, parágrafo 5º, CF, que é um dos sustentáculos do Estado Democrático de Direito. A supremacia do princípio da igualdade alcançou também os vínculos de filiação, sendo vedado qualquer tipo de prática discriminatória entre os filhos por conta da sua origem.

Em linhas gerais, o reconhecimento da parentalidade socioafetiva gerou efeitos imediatos, uma vez que o artigo 227, § 6º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 determinou a inexistência de qualquer tipo de discriminação entre os filhos advindos ou não da relação matrimonial e, consequentemente, passou a admitir a filiação socioafetiva.

  1. Filiação e afeto

A filiação socioafetiva é comumente vista perante a sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que é repreendida por muitas pessoas que fogem à ideia da nova família do século XXI e têm em mente a imagem da família tradicional. O afeto, quando envolve a relação socioafetiva, só pode ser reconhecido por aquele que desempenha de fato o papel de protetor, de educador. O vínculo biológico não indica paternidade ou maternidade, mas a assunção de tal papel por quem assim pretenda ser reconhecido. Trocando em miúdos, “pai e mãe é quem cria, que deu amor, que deu carinho”., que valem muito mais que o meramente biológico, porque tem pai que só registra seu filho e nunca mais vai vê-lo.

Destarte, em face dos novos moldes familiares, a família contemporânea não é mais unicamente formada pela consanguinidade, sendo o afeto o principal fundamento das relações familiares. GOMES e CORDEIRO (2013, p. 178) afirmam que com efeito, a entidade familiar se torna um grupo social fundado, essencialmente em laços de afetividade, os quais se exteriorizam “em concreto, no necessário e imprescindível respeito às peculiaridades de cada um de seus membros, preservando a imprescindível dignidade de todos. Isto é, a família é o refúgio das garantias fundamentais reconhecidas a cada um dos cidadãos. […] Há, portanto, a valorização do ser e, por decorrência, o reconhecimento de que a família não é um fim, mas sim o meio pelo qual se torna possível o alcance da felicidade de seus membros, unidos, essencialmente, pelo vínculo afetivo.

O conceito de filiação há tempos vem sendo mitigado pelo fato de ambos os companheiros deverem colaborar no sustento, guarda, proteção, representação e educação dos filhos. Um dos princípios constitucionais relacionados ao direito de família é o Princípio da Igualdade na chefia familiar, elencado no art. 226, § 5º, 227, § 7º, da Constituição Federal de 1988, e 1.566, incisos III e IV, e 1.634, do Código Civil de 2002.

Assim, considera-se filiação socioafetiva aquela que não advêm de origem biológica, mas sim do afeto. Decorre do ato de vontade, amor constituído ao longo do tempo, reciprocidade no respeito diariamente, com bases afetivas, independente da consanguinidade.

A filiação socioafetiva é comumente vista perante a sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que é repreendida por muitas pessoas que fogem à ideia da nova família do século XXI e têm em mente a imagem da família tradicional. O pensamento contemporâneo das relações familiares acaba por valorizar a visão principiológica-valorativa dos fatos sociais com a predominância do afeto aos vínculos hereditários. Dessa forma, o rigor conservador da formatação tradicional da família foi deixado pra trás e o vínculo pautado no amor e afeto foi priorizado. A lei, doutrina e jurisprudências caminharam para a aceitação de ligações familiares não sanguíneas, dando, por exemplo, ao padrasto ou madrasta a situação de pai ou de mão em todos os seus direitos e deveres, inclusive no que se refere a ter seus nomes no registro do filho pré-reconhecido, visto que será a partir dessa alteração que se cria o vínculo jurídico da socioafetividade. Da mesma forma, foram impostas penalidades e até mesmo a perda do pátrio poder dos genitores que abandonarem seus papéis para com seus filhos, o que, de fato, colabora para a ocorrência do abandono afetivo.

  1. Reconhecimento e registro da multiparentalidade socioafetiva à luz dos Provimentos nº 63/2017 e 83/2019, do CNJ

O reconhecimento público da multiparentalidade se dá a partir da averbação desse ato no Cartório de Registro Civil. Para tanto, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento nº 63/2017, modificado pelo Provimento nº 83, do mesmo Conselho, que viabilizou esse procedimento diretamente nas serventias extrajudiciais sem a intervenção judicial.

Antes de entrar no mérito do Provimento, é preciso diferenciar multiparentalidade de socioafetividade. Em termos mais claros, a multiparentalidade é o resultado da socioafetividade. A multiparentalidade consiste na situação de se ter três ou mais pais no registro de nascimento e não se confunde com socioafetividade, que nada mais é que o vínculo afetivo criado com a pessoa que tem como filho.

Quanto ao provimento supramencionado, ele estabelece que se a pessoa a ser reconhecida for menor de 18 anos, a mãe deste deve anuir para o reconhecimento socioafetivo. Sendo ela maior de idade, basta sua anuência. A averbação pertinente deve ser feita às margens do registro de nascimento onde se encontra o registro originário.

Importantíssimo frisar que o reconhecimento de paternidade socioafetiva se dá para pessoas acima de 12 anos, e será autorizado perante os oficiais de registro civil, e somente podem ser pretensos pai ou mãe pessoas maiores de idade, e não podem requerer o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva os irmãos entre si nem os ascendentes. Se o filho for maior de 12 anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá também o seu consentimento. A anuência do pai e da mãe e do filho maior de 12 aos deverá ser feita pessoalmente no cartório de registro civil das pessoas naturais e, na falta da mãe ou do pai do menor, na impossibilidade de manifestação válida destes ou do filho, quando exigido, o caso deverá ser apresentado ao juiz competente. Logo, se filho maior de 12 anos e menor de 18 anos, deve-se ter anuência tanto do menor quanto dos pais biológicos, se ambos forem declarados no registro, e a ausência de anuência um deles impossibilita o reconhecimento de reconhecimento de paternidade ou maternidade socioafetivo diretamente nos cartórios de registro civil.

Também é de suma importância salientar que o Provimento nº 63/2017, do CNJ teve alterações pelo Provimento nº 83/2019, do CNJ, no tocante  a autorização do procedimento de reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva direto no cartório. Quando se diz “autorização direta no cartório de registro civil”, antes disso se faz necessária a manifestação do MP, tanto para reconhecimento de pessoas maiores de 12 anos e menores de 18 anos, quanto para maiores de 18 anos.

De igual modo, ressalta-se somente é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno. A inclusão de mais de um ascendente socioafetivo deverá tramitar pela via judicial. Com isso, resta comprovado que nem tudo são flores, e que, sem querer, esse procedimento que tem sido tão habitual nas serventias extrajudiciais acabam sendo judicializados, quer seja encaminhando ao Ministério Público, quer seja enviando à Vara de Família.

Quanto a averbação pertinente no registro civil, esta deve ser feita às margens do registro de nascimento onde se encontra o registro originário.

Diante do exposto, a proteção jurídica referente as famílias brasileiras vêm se transformando e colocando a frente “o afeto, a solidariedade e a dignidade como norteadores de um novo ordenamento ético-jurídico” (PENA JUNIOR, 2008, p. 01).

O fato é que os tempos atuais são de valorização do contexto social através da união efetiva pelos laços afetivos. É o que entende Dias (2017, p. 432), no seguinte: “Para o reconhecimento da filiação basta flagrar a presença do vínculo de filiação com mais de duas pessoas. É reconhecida sob o prisma da visão do filho, que passa a ter dois ou mais novos vínculos familiares. Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos, mais do que apenas um direito, é uma obrigação constitucional reconhecê-los, na medida em que preserva direitos fundamentais de todos os envolvidos, sobretudo o direito a afetividade”.

O reconhecimento de filiação socioafetiva se concretiza, então, pelo afeto criado entre indivíduos e a vontade para que além do tratamento de amor, conste também o nome do pai/mãe socioafetivo. Dessa forma, entende-se que o afeto é um requisito essencial para tal condição. Esse reconhecimento consiste no reconhecimento do vínculo filial com a pessoa que não é ascendente ou descendente biológico. Em outros termos, é o mesmo que dizer que é uma relação de filiação vivenciada na prática, por afeto, no dia a dia, com quem não seja pai ou mãe biológico. Mas há situações em que padrasto ou madrasta tem uma ligação precisa e pontual com o filho do companheiro ou companheira, mas não tem o laço de afetividade para consolidar a paternidade ou maternidade socioafetiva.

Assim, quando há o reconhecimento voluntário pelas partes, subentende-se que os cumprimentos das obrigações familiares ali existentes deverão ser cumpridos de forma espontânea, sem que haja intervenção judicial. Ressalta-se, ainda, que o reconhecimento socioafetivo de filiação é irrevogável e irretratável, tendo a pessoa reconhecida os mesmos direitos como se filho(a) biológico(a) fosse, e isso quer dizer que caso tenha qualquer descumprimento dos deveres e obrigações legais, a pessoa reconhecida pode valer-se das vias judiciais para o fiel cumprimento das obrigações.

  1. Direito ao patronímico paterno/materno socioafetivo.

O uso do sobrenome de origem paterna ou materna advinda do reconhecimento socioafetivo é um direito personalíssimo do filho, de ordem pessoal que se baseia no vínculo de parentesco que se estabelece, quer pelos vínculos biológicos, quer pelos laços socioafetivos. Não há óbice. É um direito. Sobre essa prerrogativa, nos ensina DIAS (2011, p. 130) que o nome é um dos direitos mais essenciais da personalidade e goza de todas essas prerrogativas. Reconhecido como bem jurídico que tutela a intimidade e permite a individualização da pessoa, merece a proteção do ordenamento jurídico de forma ampla. Assim, o nome dispõe de um valor que se insere no conceito de dignidade da pessoa humana.

Hoje, com as modificações pelas quais a família vem passando, famílias essas compostas por cônjuges e filhos de diferentes relacionamentos, popularmente conhecidos como “bagagem”, casamentos homoafetivos, dos filhos que nascem das conhecidas barrigas de aluguel (solidárias), o nome passa a ocupar representatividade não somente em relação ao aspecto biológico, mas no aspecto afetivo e real.

O patronímico materno ou paterno, como já dito, é um direito da personalidade de muita importância, visto que se trata da identificação do cidadão perante a sociedade e no meio familiar em que vive, associando-o, num primeiro momento, às suas origens biológicas, porém, face à nova realidade do conceito de família, essa ideia não se sustenta mais apenas no vínculo sanguíneo, mas estende-se Às relações afetivas.

Ainda nessa seara, a Lei nº 11.924, de 17 de abril de 2009 já previa, muito antes dos Provimentos 63 e 83, da Corregedoria Nacional de Justiça, que o enteado ou a enteada adotasse o nome de família do padrasto ou da madrasta, sem prejuízo dos seus apelidos de família. Nesse sentido, a inclusão do sobrenome do padrasto ou madrasta não alterava a filiação.

Traz a lei 11.924/2009 o seguinte:

“Art. 1º. Esta lei modifica a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro 1973 – Lei de Registros Públicos, para autorizar o enteado ou a enteada a adotar o nome de família do padrasto ou madrasta, em todo o território nacional.”

“Art. 2º. O art. 57 da Lei nº. 6015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar acrescido do seguinte § 8º:”

“Art. 57.  ……………………………………………………………

…………………………………………………………………………………”

§ 8o  O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2o e 7o deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.” (NR) “

“Art. 3o. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

Desta sorte, o direito ao uso do sobrenome paterno ou materno parte de um princípio constitucional da dignidade humana, visto que individualiza a pessoa e a identifica perante a sociedade. Mas independente de tudo isso, cabe frisar que é o reconhecimento da filiação perante a sociedade, após as devidas averbações no registro civil, que tutela os direitos da pessoa reconhecida, e não o uso do sobrenome recém adquirido. A posse de estado de filho em relação a simples adoção do sobrenome do padrasto ou madrasta, não se constitui em reconhecimento de paternidade ou da maternidade no âmbito jurídico brasileiro, o que se torna apenas um acréscimo do sobrenome, como forma de identificação.

Importante salientar que se houver vontade dois pais socioafetivos em alterar o prenome do filho socioafetivo, este procedimento somente poderá ser feito pela via judicial, e não mais pela extrajudicial.

Em que pese essa espécie de modificação não estar expressa na legislação, a Lei de Registros Públicos dispõe acerca da possibilidade de modificação do sobrenome por qualquer motivo justo e com fundamento. Assim, a exclusão do sobrenome do genitor que abandonou seu filho, ainda que biológico, tem sido amplamente aceito pela doutrina, e também há entendimentos jurisprudenciais quanto ao tema.

Seria inadmissível, dado o reconhecimento do abandono afetivo, obrigar aquele que já sofreu com a ausência daqueles que mais deveriam lhes proteger, apoiar, a usar seu patronímico como forma de recordar constantemente o relacionamento árduo e sofrido ao qual foram submetidos. Nesse sentido, há, inclusive, decisão do STJ que possibilita a retificação no assento de nascimento de filho cujo pai o abandonou na infância, ainda que se considere o princípio da imutabilidade. Nesse caso, restou comprovado que esse princípio não deve ser considerado absoluto no ordenamento jurídico brasileiro, vez que o nome desempenha papel importante na formação e consolidação da personalidade de uma pessoa.

Dessa forma, deve-se considerar que é possível a uma pessoa alterar seu nome com o intuito de eliminar a má lembrança que tem daquele que nunca deu se preocupou em sustentar, guardar e educar.

Conclusão

A nova Constituição Federal do Brasil de 1988 promoveu a igualdade entre os filhos e fez com que a ideia de filiação e família tomasse novas formatações e interpretações, tanto o é que agora é possível fazer o reconhecimento de paternidade ou maternidade socioafetivo, desde que haja o vínculo afetivo.

Nesse contexto, entende-se que atualmente a família não está mais fundada no tradicionalismo de antigamente; que a família não se finca apenas no vínculo biológico, mas no afetivo também, numa relação de amor, carinho, respeito, atenção, guarda, ou seja, um conjunto de atos afetuosos, de solidariedade e dedicação, construindo a afetividade que vem sendo objeto de muitas discussões doutrinárias e jurisprudenciais.

De fato, o direito de família está em constante evolução e como prova disso temos o reconhecimento do sentimento afetivo como fator considerável que cria laços e relações familiares, bem como possibilita a inclusão de pais socioafetivos no registro civil.

Em síntese, a afetividade está cada vez mais concentrada, o que deixa de lado os formalismos tradicionais e dá espaço para nossos interesses reais face as novas modalidades de família na atualidade brasileira.

Referências

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SCHWERZ, Vanessa Paula. Multiparentalidade: possibilidade e critérios para o seu reconhecimento. In: Revista do CEJUR/TJSC: Prestação Jurisdicional, v. 1, n. 03, p. 192 – 221, dez. 2015.

 

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GOMES, Josiane Araújo e CORDEIRO, Carlos José. Temas Contemporâneos de Direito das Famílias. São Paulo, Ed. Pillares, 2013, p. 172.

 

PENA JUNIOR, Moacir César. Direito das pessoas e das famílias: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2008.

 

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais 2011 p. 130.

 

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