Juliana Xavier Lima – Graduada em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) – 2017
RESUMO: O presente artigo trata-se de uma pesquisa bibliográfica que visa analisar o instituto e aplicabilidade da multiparentalidade de acordo com as modificações no ordenamento jurídico, com inicio da apresentação da evolução histórica, observando o surgimento de diferentes modelos de arranjos familiares no decorrer do tempo, visto que nos últimos anos o conceito de família passou por mudanças pela ampliação e garantia de direitos. Serão estudados os princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, melhor interesse da criança e do adolescente, afetividade, proibição do retrocesso social, e do pluralismo das entidades familiares, também será abordado os efeitos jurídicos da multiparentalidade, no nome, parentesco, alimentos na multiparentalidade, direito a guarda, visitas, direitos previdenciários e sucessórios, tratando da possibilidade do reconhecimento jurídico da múltipla paternidade, até chegar à averbação e desconstrução da multiperentalidade, embasando a concessão de direitos iguais a todos os filhos independentemente da origem de sua filiação. Assim, apronta-se pela viabilidade da multiparentalidade, bem como a necessidade de lei específica que regulamente o tema para garantir a proteção dessa realidade cada vez mais comum à sociedade brasileira.
Palavras-chave: Direito de Família. Família. Afetividade. Efeitos Jurídicos. Multiparentalidade.
ABSTRACT: This article is a bibliographical research that aims to analyze the institute and the applicability of multiparentality according to the changes in the legal order, we begin it with the presentation of historical evolution, observing the appearance of different models of family arrangements over the time, since in the last years the concept of family has passed by changes by the extension and guarantee of rights. The constitutional principles such as the dignity of the human person, the best interest of the child and the adolescent, affectivity, prohibition of social regression, and the pluralism of family entities will be studied, we will also approach the legal effects of multiparentality, in name, kinship, food in multiparentality, right to custody, visits, pension rights and inheritance, treating the possibility of the legal recognition of multiple paternity, until arriving to the annotation and deconstruction of multiparentality, supporting the granting of equal rights to all children regardless of their affiliation origin. Thus, it is pointed out for the viability of multiparentality, as well as the need for a specific law that regulates the theme to guarantee the protection of this reality more and more common Brazilian society.
Keywords: Family Law. Family. Affectivity. Legal Effects. Multiparentality.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Evolução Histórica do Conceito de Família. 2. A Multiparentalidade: uma análise legal e principiológica. 2.1. Princípios Constitucionais da Multiparentalidade. 2.1.1. Princípio da Dignidade Humana. 2.1.2. Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente. 2.1.3. Princípio da Afetividade. 2.1.4. Princípio da Proibição do Retrocesso Social. 2.1.5. Princípio do Pluralismo das Entidades Familiares. 2.2. A Multiparentalidade e sua regulamentação. 2.2.1. Critérios para Determinação da Multiparentalidade. 2.2.2. Lei de Registros Públicos. 3. Os Efeitos da Multiparentalidade no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 3.1. No Nome. 3.2. Parenteceso. 3.3. Alimentos na Multiparentalidade. 3.4. Direito à Guarda. 3.5. Direitos as visitas. 3.6. Direitos Previdenciários. 3.7. Direitos Sucessórios. 3.8. Averbação da Multiparentaliade. Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Recentemente o instituto familiar é tema presente em decisões atuais no âmbito jurídico, considerando a realidade contemporânea, quebrando muitos paradigmas. Mas apesar das mudanças culturais, políticas e sociais que ocorrem na sociedade, acompanhada da ampliação da interpretação do conceito de família, sua abordagem gera opiniões diversas, visto que envolvem debates de ordem moral, jurídica e religiosa. A Constituição Federal de 1988 incorporou no ordenamento jurídico valores e princípios fundamentais passando a amparar diversos modelos de entidades familiares. Desta forma, a Carta Magna consubstanciada nos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, promoveu a reflexão sobre diversos institutos considerados imutáveis, a exemplo do conceito de família.
Dentro do núcleo familiar destaca-se a multiparentalidade como objeto de estudo deste trabalho, analisando-a sobre o enfoque de diferentes critérios que a fundamenta. Sendo este um instituto familiar provido de afeto no qual a criança ou adolescente poderá obter o reconhecimento judicial dos pais biológicos e socioafetivos, sem a exclusão de qualquer um deles do registro civil, estabelecido pela lei dos registros públicos, Lei federal n. 6.015/73.
A ausência de legislação própria que regule o tema gera insegurança jurídica, dificultando o posicionamento do Poder Judiciário nas demandas voltadas à temática. Desta forma, a criança e o adolescente são os mais afetados por essa lacuna legislativa que impede a construção de novos arranjos familiares, contrariando o princípio do melhor interesse do menor que garante o acesso ao convívio familiar, não apenas biológico como também afetivo, enquadrado na realidade fática existente e sem a exclusão de nenhum destes elementos.
Ante ao exposto, os questionamentos que motivaram a construção deste estudo foram: é possível inserir a multiparentalidade no conceito de família hodierno? Quais as consequências da multiparentalidade no ordenamento jurídico brasileiro?
Desta forma, este trabalho trata-se de uma pesquisa bibliográfica e tem por objetivo analisar o fenômeno da multiparentalidade de acordo com a realidade atual da sociedade, as modificações na estrutura do instituto das famílias, tendo os princípios previstos na Lei Maior como fundamento.
1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE FAMÍLIA
O Direito de Família consiste nma formação social mais antiga da história, seu surgimento foi sistematizado pelo direito romano que, por sua vez, teve influência do modelo grego, modelo este existente no Brasil. O núcleo familiar iniciava-se com o casamento onde o exercício do pátrio poder era conferido ao homem e, à mulher, cabia a função de gerar e cuidar dos filhos (MACHADO, 2000). No código civil de 1916 a família tinha predominância matrimonial, hierarquizada e patrimonial, tratava os filhos fora do casamento como ilegítimos sem direito ao reconhecimento jurídico.
Para Oliveira e Hironaka (2006, p. 06) o Direito de Família:
Em sua versão original, trazia uma estreita e discriminatória visão de família, limitando-a ao grupo originário do casamento. Impedia a dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações.
No Brasil, com a vinda da família real de Portugal no período colonial, era vigente as Ordenações Filipinas de 1603, legislação que regulamentou as ações jurídicas por mais de duzentos anos. Somente em 1824 foi elaborada a primeira Constituição Brasileira, mas mantendo as ordenações e normas legais em vigor até o aparecimento do Código Civil de 1916, que conduziam consideráveis consequências jurídicas e sociais mantendo sem reconhecimento as uniões que não decorressem do matrimonio (CÂMARA, 1966). O Estatuto da Mulher Casada foi introduzido ao ordenamento jurídico brasileiro através de do artigo 233, da Constituição Federal de 1962, “O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos…” (BRASIL, 1962).
Historicamente, a filiação era definida pelo fator biológico, o Brasil adotava legalmente esse critério agregando ao casamento. Sobre a definição de família, o civilista Venosa (2003, p. 23) afirma que “a família é um fenômeno fundado em dados biológicos, psicológicos e sociológicos regulados pelo direito”.
O Conceito de família para Diniz (2008, p.9):
Família no sentido amplíssimo seria aquela em que indivíduos estão ligados pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade. Já a acepção lato sensu do vocábulo refere-se aquela formada além dos cônjuges ou companheiros, e de seus filhos, abrange os parentes da linha reta ou colateral, bem coo os afins (os parentes do outro cônjuge ou companheiro). Por fim, o sentido restrito restringe a família à comunidade formada pelos pais (matrimônio ou união estável) e a da filiação.
O marco das mudanças normativas que reconheceu outros arranjos familiares foi com a promulgação da Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, igualando as relações em família, adotando o pluralismo familiar existente de fato, com o surgimento dos novos tipos de famílias que se formaram ao longo do tempo. Neste sentido (TEPEDINO, 2004) entende que o art. 226, da Constituição Federal de 1988, incorpora a pluralidade familiar, numa cláusula geral, em um quadro exemplificativo, desde o casamento, famílias monoparentais, igualdade de direitos entre homem e mulher na sociedade conjugal, o divórcio, o planejamento familiar à previsão de ostensiva intervenção estatal no núcleo familiar no sentido de proteger seus integrantes e coibir a violência doméstica, todos os exemplos como consequência da Constitucionalização do Direito Privado.
A Constituição de 1988 procedeu no âmbito jurídico e alavancou juntamente com o advento tecnológico, que, por sua vez, já mostrava possível a comprovação da paternidade por meio do exame de DNA. A Carta Magna consagrou o princípio da dignidade da pessoa humana, modificando os núcleos familiares, onde não era mais a formalidade que imperava, passou a ser um modelo de flexibilização familiar, que no seu art. 226 reconhece além do casamento civil, a união estável e a família monoparental como entidades familiares, considerada assim a paternidade/maternidade definida em três elementos: a biológica, presumida e afetiva. Sobre o princípio da afetividade Fachin (2003, p.317-318) se posiciona:
Na transformação da família e de seu Direito, o transcurso apanha uma ‘comunidade de sangue’ e celebra, ao final deste século, a possibilidade de uma ‘comunidade de afeto’. Novos modos de definir o próprio Direito de Família. Direito esse não imune à família como refúgio afetivo, centro de intercâmbio pessoal e emanador da felicidade possível (…). Comunhão que valoriza o afeto, afeição que recoloca novo sangue para correr nas veias do renovado parentesco, informado pela substância de sua própria razão de ser e não apenas pelos vínculos formais ou consanguíneos. Tolerância que compreende o convívio de identidades, espectro cultural, sem supremacia desmedida, sem diferenças discriminatórias, sem aniquilamentos. Tolerância que supõe possibilidade e limites. Um tripé que, feito desenho, pode-se mostrar apto a abrir portas e escancarar novas questões. Eis, então, o direito ao refúgio afetivo.
Posteriormente à descoberta biológica os juristas atentaram-se para o fator afetivo, a base familiar não era mais uma moldura de parentesco, com exclusividade sanguínea e ponderada por juízo de valores. Neste contexto, surgiu a filiação socioafetiva, que se espelha nos sentimentos e convivência, não meramente conceitos jurídicos.
Até os dias de hoje, o conceito de multiparentalidade não é de conhecimento geral, mas a família brasileira foi amplificada, o modelo da família tradicional não é o único, depois da Constituição de 1988 e as mudanças no Código Civil de 2002, outros tipos de família estão em evidência. Acerca dessa questão, (BERENICE, 2013, p. 385) conceitua: “Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos, mais do que apenas um direito, é uma obrigação constitucional reconhecê-los na medida em que preserva direitos fundamentais de todos os envolvidos, sobretudo a dignidade e a afetividade da pessoa humana”.
Acompanha o entendimento doutrinário TARTUCE (2014, p. 936) sobre o tema:
(…) parte da doutrina nacional aponta para a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade, o que conta com apoio do presente autor. O que se tem visto na jurisprudência é uma escolha de Sofia, entre o vínculo biológico e o socioafetivo, o que não pode mais prosperar. Como interroga a doutrina consultada, por que não seria possível a hipótese de ter a pessoa dois pais e duas mães no registro civil, para todos os fins jurídicos, inclusive familiares e sucessórios?
No mesmo viés, Teixeira e Rodrigues (apud ALMEIDA e RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 381) entendem que:
(…) a multiparentalidade garante aos filhos menores que, na prática, convivem com múltiplas figuras parentais a tutela jurídica de todos os efeitos jurídicos que emanam tanto da vinculação biológica como da socioafetiva, que, como demonstrado, em alguns casos, não são excludentes, e nem haveria razão de ser, se tal restrição exclui a tutela aos menores, presumidamente vulneráveis.
A realidade social, a quebra de tabus, a mudança de costumes, trouxe à tona as conhecidas famílias reconstituídas, que são aqueles casais sem filhos, mães ou pais sozinhos com filhos, netos criados pelos avós, casais homoafetivos. Modelos que sempre existiram e, depois de muito tempo, ganharam o reconhecimento jurídico. No entanto, por mais que o tempo passe o preconceito invade os valores sociais. Papa Francisco[1] em um dos seus discursos, “Não existe mãe solteira, mãe não é um estado civil”.
Com a evolução do conceito de família, e consequente surgimento de novas entidades familiares que prescindem ao casamento, o vínculo afetivo ganhou espaço no ordenamento jurídico brasileiro. Neste sentido, (DIAS, 2009), aduz a extensão do conceito de paternidade a partir do momento que a filiação passou a ser reconhecida pelo vínculo afetivo e precedendo o fator biológico na entidade familiar.
Recente julgado do Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade jurídica da multiparentalidade, o relator ministro Luiz Fux, no Agravo em Recurso Extraordinário 692.186/PB da tese de repercussão geral 622, sobre uma análise de uma possível prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica. A seguinte tese do STF: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. IMPRESCRITIBILIDADE. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO. PATERNIDADE BIOLÓGICA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. CONTROVÉRSIA GRAVITANTE EM TORNO DA PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA EM DETRIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. ART. 226, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PLENÁRIO VIRTUAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA (SUPREMO TRIBUNAL FERERAL, 2012).
A multiparentalidade é atualmente um instituto jurídico que, para a realidade existente na sociedade, surgiu mediante à necessidade da formação de famílias reconstituídas, que garante aos filhos, que já convivem com figuras socioafetivas, a chance de reconhecimento e seus efeitos jurídicos. Nesse sentido, sua funcionalidade é agregar esse ente e não excluir, dessa forma é diferente da adoção unilateral e que resulta o rompimento de vínculos jurídicos. Nesse tema, reconhece de fato a paternidade biológica juntamente com a socioafetiva. Como foi decidido no acórdão de 2012, TJSP:
EMENTA: MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Preservação da Maternidade Biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família. Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes – A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Recurso provido.” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, 2012).
Entretanto, a aceitação do instituto da multiparentalidade ocorre de maneira lenta, apesar da jurisprudência cada vez mais ter se posicionado a favor do seu reconhecimento. Essas decisões fundamentam-se no princípio da dignidade da pessoa humana, inexistindo lei que regule a multiparentalidade. A omissão no âmbito jurídico é suprida por novos arranjos de família, as reconstituídas. É assim que a multiparentalidade vem obtendo seu reconhecimento no Brasil. Para alguns doutrinadores, o reconhecimento desses novos arranjos seria a quebra do modelo tradicional de família, consubstanciada no fator sanguíneo, para inserção do modelo socioafetivo.
2 A MULTIPARENTALIDADE: UMA ANÁLISE LEGAL E PRICIPIOLÓGICA
2.1 Princípios Constitucionais aplicados à multiparentalidade
A evolução histórica do Direito de Família colaborou para a constitucionalização de novos institutos e o surgimento de novos direitos, tornando assim possível os novos modelos de família no Brasil. Os princípios constitucionais são a base estrutural do sistema jurídico, somente a letra da lei não é suficiente para suprir uma decisão judicial, mas agregada à luz dos princípios constitucionais, doutrina e jurisprudência. Desta forma, por ser uma ciência social, o Direito deve acompanhar a evolução da vida em sociedade, fato que reafirma a importância das diversas fontes do direito, pois uma decisão judicial pode ser fundamentada nos precedentes judiciais, bem como nos princípios.
Sobre os vínculos familiares e a tridimensionalidade, concernente aos princípios no direto de família, (WELTER, 2009a, p. 310) tem o seguinte parecer:
A compreensão do texto que se extrai da leitura do direito de família não é uma verdade única, sagrada, eterna, como pretende a dogmática jurídica. (…) em cada nova leitura extrai-se um novo texto (um novo ser humano, uma nova família), sendo comum descobrir que a obra, conhecida de várias leituras anteriores, ainda surpreende com conhecimentos que não haviam sido percebidos.
E continua (WELTER, 2009), sobre a compreensão do direito de família no sentido em que os princípios constitucionais têm extrema importância na aplicabilidade da lei, por ser um instituto fundado nas relações familiares que não possuem um modelo único na prática, por sua condição humana tridimensional e complexidade, quando o intérprete se atenta aos princípios constitucionais existe maior possibilidade na solução de conflitos.
2.1.2 Princípio da dignidade da pessoa humana
A Constituição Federal tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, princípio de importância indiscutível em todos os ramos do direito, sobretudo no Direito de Família, uma vez que mudou paradigmas, colocando a preocupação com o indivíduo à frente da tutela patrimonial. Esse princípio é orientador dos valores e direitos inerentes à pessoa humana.
Neste viés, a multiparentalidade encontra respaldo nesse princípio, pois muitas famílias brasileiras vivem da maneira que sentem felizes, com direito a uma vida digna. O princípio da dignidade humana assegura que o direito não poderá ditar o modo como as pessoas devem viver, porém deve fornecer suporte legal para que vivam adequadamente da maneira que escolherem.
A Constituição brasileira deu ênfase à proteção da pessoa humana, garantindo o reconhecimento e desempenho da sua condição de titular de direitos na sociedade em que vive, proibindo qualquer tipo de descriminação. A respeito do tema Sarlet (2010, p. 70) expressa que:
Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.
Segundo Madaleno (2011, p.42), “a família passou a servir como espaço e instrumento de proteção à dignidade da pessoa, de tal sorte que todas as esparsas disposições pertinentes ao Direito de Família devem ser focadas sob a luz do Direito constitucional”.
2.1.3- Princípio de melhor interesse da criança e do adolescente
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, estabelecido na convenção sobre os Direitos da criança, não está expressamente prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, mas é baseado pelo princípio da prioridade absoluta e da proteção integral, situado no atr. 227 da Constituição Federal:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).
Reforçado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente que externa em seu artigo primeiro que “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente” (BRASIL, 1990). Além disso, o artigo 4° do mesmo código dispõe sobre o princípio da prioridade absoluta:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
Continuando no seu artigo 6º, com o princípio da condição peculiar da pessoa em desenvolvimento: “Art. 6º. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.” (BRASIL, 1990).
A colaboração da criança e do adolescente nas decisões relacionadas ao seu melhor interesse é de extrema importância e obrigatoriedade, observados juntamente com o entendimento do legislador, com a finalidade de garantir a sua dignidade, assegurando não somente a sua proteção, mas também os seus direitos.
2.1.4 Princípio da afetividade
O princípio da afetividade situa-se de forma dispersa na legislação, pois não está expresso na Constituição Federal, mas implicitamente quando define o reconhecimento dos modelos de entidades familiares. O casamento, a união estável e a família monoparental, são formas explicitamente contidas na Constituição de 1988, enquanto implicitamente está a união de pessoas do mesmo sexo, a entidade familiar unipessoal, e atualmente, a multiparentalidade, norteada pelo princípio da afetividade.
Para a multiparentalidade o afeto é característica indispensável, ou seja, para os novos modelos familiares fundados em relações advindas do afeto, requisito básico para caracterização de parentalidade socioafetiva. Neste raciocínio, Lobo (2012, p.70-71) conceitua:
O princípio da afetividade especializa, no âmbito familiar, os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da solidariedade (art. 3º, I), e entrelaça-se com os princípios da convivência familiar e da igualdade entre cônjuges, companheiros e filhos, que ressaltam a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família.
O afeto converteu-se no pilar da jurisprudência sobre a multiparentalidade. O princípio da afetividade tem se mostrado crescentemente usado. Assim, decidiu a ministra Nancy Andrighi no REsp 1000356/SP de 2010:
RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SANGÜÍNEA ENTRE AS PARTES. IRRELEVÂNCIA DIANTE DO VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO.
– Merece reforma o acórdão que, ao julgar embargos de declaração, impõe multa com amparo no art. 538, par. único, CPC se o recurso não apresenta caráter modificativo e se foi interposto com expressa finalidade de prequestionar. Inteligência da Súmula 98, STJ.
– O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação socioafetiva é fato que não pode ser, e não é desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil.
– O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação socioafetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai socioafetivo. A contrário sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica. Recurso conhecido e provido.
Diante do reconhecimento implícito, que seja, mas onde o sentimento toma forma em meio a uma legislação seca, evoluindo perante à formalidade de normas, onde o amor é adotado como a fonte de todos os princípios.
2.1.5 Princípio da proibição do retrocesso social
Em meio a tantos conflitos políticos, de diversos partidos, até dos sem partido, o termo retrocesso é tema bastante discutido em diversos olhares. Princípio baseado na Constituição, com a ideia de não retroceder os direitos sociais conquistados pela sociedade e que nenhuma norma possa restringir ou diminuir os direitos alcançados.
A proibição do retrocesso social decorre de um estado democrático de direito que prioriza a ideia de justiça, não vedando o debate e a expressão popular, desde que não prejudique diretos fundamentais e sociais em vigor. Para Maria Berenice Dias sobre esse princípio:
A consagração constitucional da igualdade, tanto entre homens e mulheres, como entre filhos, e entre as próprias entidades familiares, constitui simultaneamente garantia constitucional e direito subjetivo. Assim, não podem sofrer limitações ou restrições da legislação ordinária. É o que se chama de princípio da proibição do retrocesso. (DIAS, 2015, p. 51).
Canotilho (2002) denomina o princípio da proibição de retrocesso social como “efeito cliquet” dos direitos humanos, significa que os direitos não podem retroagir, podendo avançar na proteção dos indivíduos. Para o mesmo autor “Significa que é inconstitucional qualquer medida tendente a revogar os direitos sociais já regulamentados, sem a criação de outros meios alternativos capazes de compensar a anulação desses benefícios” (CANOTILHO, 2002, P. 336).
2.1.6 Princípio do pluralismo das entidades familiares
Anterior à Constituição de 1988 apenas o casamento era reconhecido como entidade familiar. Com a sua promulgação outros modelos de entidades familiares foram reconhecidos, deixando de existir a diferenciação entre família legitima e ilegítima. Com o advento do princípio da igualdade entre os filhos e da equiparação da união estável ao casamento, surge o pluralismo das entidades familiares.
Segundo Dias (2007, p.64), “o princípio do pluralismo das entidades familiares é encarado como um reconhecimento pelo Estado da existência de várias possibilidades de arranjos familiares”. Ainda com o entendimento de Dias (2009, p.51), o novo modelo familiar está baseado na afetividade, independentemente da forma que possa revestir, dessa forma:
Negar a existência de famílias paralelas – quer um casamento e uma união estável, quer duas ou mais uniões estáveis – é simplesmente não ver a realidade. […] Verificada duas comunidades familiares que tenham entre si um membro em comum, é preciso operar a apreensão jurídica dessas duas realidades. São relações que repercutem no mundo jurídico, pois os companheiros convivem, muitas vezes têm filhos, e há construção patrimonial em comum. “Não ver essa relação, não lhe outorgar qualquer efeito, atenta contra a dignidade dos partícipes e filhos porventura existentes”.
Dessa forma, a noção de família consubstanciada exclusivamente no vínculo matrimonial passou a dividir espaço com outras entidades familiares, as quais já coexistiam no meio social, regularizando a situação de diversos indivíduos que assim já viviam com seus parceiros, ampliando, desta forma, o conceito de família no Direito brasileiro.
2.2 A multiparentalidade e sua regulamentação
Analisando a legislação brasileira, ela não traz expressamente a possibilidade de reconhecimento de dois pais ou duas mães, nem a relação socioafetiva. Como já dito, somente quando analisado implicitamente a junção dos princípios aqui elencados, é que surge tal possibilidade. Portanto, as decisões judicias favoráveis a multiparentalidade são frutos da aplicação dos princípios implícitos ou explícitos no texto constitucional, com ênfase para o princípio da afetividade e da dignidade da pessoa humana.
Neste contexto, de Barcellos (2008, p.32) discorre sobre a importância dos princípios constitucionais, sobretudo, no Direito de Família:
A Constituição Federal de 1988 ao fixar a dignidade como princípio central do Estado, jurisdicizando o valor humanista, disciplinou a matéria ao longo do texto através de um conjunto de princípios, subprincípios e regras, que procuram concretiza-lo evidenciando os efeitos que destes devem ser extraídos.
No ordenado jurídico existem lacunas sobre a multiparentalidade e seus efeitos. Apesar do respaldo princípio lógico a ausência de previsão legal dificulta o reconhecimento da multiparentalidade. Invocar princípios constitucionais não é algo ao alcance de todos, está sujeito a interpretações e morosidade judiciária. Os dispositivos e emendas constitucionais precisam ser atualizados para acompanhar a luz dos fatos na sociedade atual, e em relação aos efeitos sucessórios, motivo de discursão doutrinaria, possa determinar a partilha paras as partes de maneira justa.
Somado a análise dos princípios ora mencionados bem como dos precedentes judiciais é importante, para configuração da multiparentalidade, ouvir a criança e o adolescente envolvidos na situação fática. Assim, Lopes (2011) externa o Decreto nº 99.710, assegura em seu art. 12 que a criança tem o direito de expressar suas opiniões livremente, sobre todos os assuntos relacionados a ela, sendo levadas em consideração essas opiniões, quando capacitada a formular seus próprios juízos, em função da sua idade e maturidade. Continua o mesmo autor: “no Estatuto da Criança e do Adolescente, o direito de ser ouvido está expresso no art. 16, II, e previsto no art. 28, §1º, garantindo que sua expressão e opinião devem ser consideradas” (LOPES, 2011, p. 134).
2.2.1 Critérios para determinação da multiparentalidade
Certamente não há como abalizar exatamente os critérios da multiparentalidade, esse é um ponto muito discutido do tema, pois existem opiniões diversas. O interprete ou julgador deve estar atento aos princípios constitucionais, assim como a legislação. Seu parecer não surgirá da maneira que lhe condisser.
Esse foi o ensinamento dado pela Desembargadora Substituta Denise Volpato em acórdão de sua relatoria:
Ora, a tendência atual do Direito, e mais especificadamente do Direito de Família, é a de gradativamente abandonar as formas jurídicas rígidas e em confronto com a realidade social em nome da satisfação da plena liberdade de desenvolvimento dos cidadãos no seio social. Assim, com base na Teoria Neoconstitucionalista, a interpretação das normas exige um exercício mais apurado do jurista porquanto o Direito necessita ser compreendido como uma ferramenta de promoção da dignidade humana e integração social, assim, como tal, devem amoldar-se à realidade na qual está inserido, e não a desprezar em nome de conceitos arcaicos e superados de célula familiar e sociedade. (TJSC, Apelação Cível n. 2011.021277-1, de Jaraguá do Sul, rela. Desa. Denise Volpato, j. 14-5-2013).
A justificativa para inclusão do pai ou mãe afetiva no registro será se a criança ou adolescente os reconhece como pais, mesmo com a ausência do vinculo biológico, configurando o acréscimo de pais socioafetivos ou biológicos que irão desemprenhar o papel paterno /materno.
Os contornos na multiparentalidade são os mais diversos possíveis, no Direito de Família contemporâneo, após a publicação da Constituição de 1988, além dos critérios legais, situado no artigo 1.597 do atual Código Civil, e biológico, onde se configura geneticamente. Os juristas e doutrinadores adotaram o critério afetivo como base de reconhecimento de paternidade ou maternidade.
No critério afetivo será verificada a paternidade afetiva, mais o vinculo de afetividade entre pais e filhos, no relacionamento diário baseado nos laços de afeto. Nesse sentido, Nogueira (2001) elucida que determinar a identidade de pai ou mãe nas relações familiares está além da comprovação cientifica ou escrita, dessa forma a paternidade socioafetiva passou a ser evidenciada aos vínculos afetivos na construção diária paterno-filial.
A legitimidade se enquadra como um desses critérios, mas causa discursões sobre quem possui verdadeiramente a legitimidade de arguir uma ação de reconhecimento de multiparentalidade. A dúvida é se somente o filho pode requerer ou se um pai ou mãe também pedem reconhecimento, sabendo que essa pessoa já possui registro legal.
Sobre a discussão esclarece o artigo 1606 do Código Civil de 2002 “A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz. Parágrafo único. Se iniciada a ação pelo filho, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo.” (BRASIL, 2002). Ainda sobre a temática, o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça” (BRASIL, 1990).
Por muito tempo foi assimilado que essa competência cabe ao filho, pois geralmente ocorre no meio jurídico, mas novos quadros familiares surgiram e o acréscimo de pais biológicos ou socioafetivos que reivindicaram o reconhecimento.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina julgou contrariamente a sentença de primeiro grau e deferiu o reconhecimento de multiparentalidade pleiteado pelo pai afetivo, conforme a ementa:
SANTA CATARINA. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. APELAÇÃO CÍVEL N. 2011.021277-1, DE JARAGUÁ DO SUL, REL. DES.DENISE VOLPATO, J. 14-05-2013. […] Segundo o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o direito ao reconhecimento do estado de filiação é personalíssimo. Isso significa que tão somente os sujeitos diretamente vinculados à relação parental sub examine detém legitimidade para reclamar a intervenção judicial nos registro públicos de nascimento. O texto do referido diploma legal não circunscreve à pessoa do filho o direito de perseguir o (re) conhecimento de sua verdade familiar biológica ou afetiva (declaração de posse do estado de filho), mas significa igualmente poder o pai biológico ou afetivo buscar o reconhecimento judicial dessa situação.
Entende-se que no contexto social que qualquer um dos envolvidos pode requerer a ação, independente do vinculo ser biológico ou socioafetivo, ou se o pleito for de origem do filho ou do pai pelo reconhecimento de fato.
2.2.2 Lei de Registros Públicos
A Lei Federal n. 6.015/73, a popular Lei de Registros Públicos de 1973, é anterior a constituição de 1988, e não prevê o reconhecimento da multiparentalidade no registro. Segundo a referida lei, a certidão de nascimento é o documento que valida a filiação, devendo conter expressamente o nome de um pai, uma mãe, dois avós maternos e dois avós paternos, conforme exposto a seguir:
Art. 54. O assento do nascimento deverá conter: (Renumerado do art. 55,pela Lei nº 6.216, de 1975).
1°- o dia, mês, ano e lugar do nascimento e a hora certa, sendo possível determiná-la, ou aproximada;
2º- o sexo do registrando; (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975).
3º- o fato de ser gêmeo, quando assim tiver acontecido;
4º-o nome e o prenome, que forem postos à criança;
5º- a declaração de que nasceu morta, ou morreu no ato ou logo depois do parto;
6º- a ordem de filiação de outros irmãos do mesmo prenome que existirem ou tiverem existido;
7º- Os nomes e prenomes, a naturalidade, a profissão dos pais, o lugar e cartório onde se casaram a idade da genitora, do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílio ou a residência do casal.
8º- os nomes e prenomes dos avós paternos e maternos;
9º- os nomes e prenomes, a profissão e a residência das duas testemunhas do assento, quando se tratar de parto ocorrido sem assistência médica em residência ou fora de unidade hospitalar ou casa de saúde. (Redação dada pela Lei nº 9.997, de 2000).
Segundo Póvoas (2012), não se poderia aguardar que uma lei de 1973, quando ainda nem se cogitava a realização de exame de DNA e nem se falava em socioafetividade, trouxesse em seu bojo a possibilidade de registro de mais de um pai ou mãe para uma mesma pessoa. Desta forma, levando em consideração a letra fria da lei, não há como fazer constar no assento de nascimento dois pais (ou mães) e, como consequência, quatro avós paternos (ou maternos). Mas isso não pode ser nunca, empecilho para esse reconhecimento. A lei 6015/73 jamais pode ser óbice ao reconhecimento da dupla filiação parental, porque esta é baseada em princípios constitucionais hierarquicamente superiores a ela.
No mesmo sentido, externa Rodrigues e Teixeira (2010, p.106):
O registro não pode ser um óbice para a sua efetivação, considerando que sua função é refletir a verdade real; e, se a verdade real concretiza-se no fato de várias pessoas exercerem funções parentais na vida dos filhos, o registro deve refletir esta realidade.
A incumbência do registro é contemplar a verdade social na vida real, uma vez que não pode ser obstáculo para a multiparentalidade, assim deve refletir o registro e todos os seus efeitos jurídicos, como nome, guarda alimentos, visitas e sucessórios. Contudo, o provimento nº 2 do CNJ, nivelou o padrão dos registros de nascimento passando a constar, na certidão, somente os termos “filiação” e “avôs”, com um espaço, apresentando um local podendo conter o nome de mais de um pai/mãe e avós. Além de que, o provimento nº 03 do CNJ, em seu artigo 5º, vem orientar a uniformização das certidões, expondo que:
Artigo 5º do provimento nº 03 do CNJ: “Orientar que as certidões pré-moldadas em sistema informatizado devem possuir quadros capazes de se adaptar ao tamanho do texto a ser inserido”. E não devem consignar quadros pré-estabelecidos para o preenchimento dos nomes dos genitores e progenitores, a fim de que seja evitada desnecessária exposição daqueles que não possuem paternidade identificada (BRASIL, 2009b, p.02).
Está evidente que a lei de registros públicos de 1973, não acompanhou os novos modelos e arranjos no Direito de Família. No entanto, o provimento n 3 do CNJ declara que é perfeitamente cabível o nome de dos pais/mães e dos avôs e a possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade na certidão de nascimento sem algum obstáculo.
3 OS EFEITOS DA MULTIPARENTALIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O reconhecimento da multiparentalidade além da convivência familiar, depois de legalizada pelo registro, acarreta inúmeros efeitos jurídicos. Mesmo sem a devida previsão legal, o reconhecimento concomitante de dois pais e/ou mães, baseado nos princípios constitucionais e na jurisprudência, reflete significativamente em várias áreas do direito, a exemplo da constituição das relações de parentesco, alterações no nome, prestação de alimentos, guarda, direito à visitas, direitos sucessórios e previdenciários.
3.1. No nome
O nome da pessoa está em conjunto com o registro sendo um direito fundamental o filho usar o nome dos pais e está situado no art. artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 88 e no art. 16 do Código Civil.
A respeito dessa questão, VENOSA (2004) afirma que o nome é uma marca essencial na sociedade, como uma classificação que nos diferencia das demais, até após a morte, o nome continua a ser lembrado, conceituando o nome como demonstração para o exercício regular dos direitos e da personalidade.
Não há empecilho na lei de Registros Públicos, em casos de multiparentalidade, para o uso do prenome e do apelido de família de todos os pais. O artigo 54 da lei em questão determina que o assento de nascimento deva conter, além de outros requisitos, o nome e o prenome postos à criança (BRASIL, 1973). Desta forma, a legislação não veda a possibilidade da multiparentalidade, atentando para o melhor interesse da criança.
Sobre a possibilidade de alteração do nome em caso de multiparentalidade, Póvoas (2012, p.94) esclarece:
A lei dos Registros Públicos, em seu art. 54, não impossibilita isso. Na realidade, basta às pessoas ter um prenome e um sobrenome. Apenas um. Não há necessidade – por não haver legalmente essa exigência – de que se ostente o nome de todos os genitores, mesmo que sejam eles mais de dois. O nome, portanto, não seria problema algum quando se fala em multiparentalidade.
O nome é um direito personalíssimo, e estabelecido na constituição federal, da mesma maneira com o filho multiparental, com paternidades reconhecidas simultaneamente, como expõe Dias (2011, p.51), quando elucida que “Nada justifica, portanto, não admitir a presença de mais de um pai ou de mais de uma mãe. Restringir tal possibilidade só vem em prejuízo de quem, de fato, tem mais de um pai e mais de uma mãe”.
3.2 Parentesco
O conceito de filiação foi estendido no novo código civil de 2002 ao garantir que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou de outra origem” (BRASIL, 2002). Ao incorporar no texto o termo “outra origem” acolheu a possibilidade de outros modelos de filiações, não apenas a biológica, mas também a filiação socioafetiva.
Sobre a questão, elucida Diniz (2012) aponta o conceito de filiação na doutrina, que deslinda que o vinculo existente entre pais e filhos é a relação de parentesco consanguíneo em linha reta de primeiro grau, entre o individuo e aqueles que lhe conceberam e continua sobre a relação socioafetiva entre pai adotivo e institucional e filho adotado ou de inseminação artificial. Estabelecendo assim novos conceitos derivados de pensamentos anteriores sobre os meios de formação do vinculo paternal.
O parentesco na multiparentalidade tem o vínculo entre o filho e todos os parentes de ambos os pais. Quando esse vínculo de parentesco é estabelecido surgirão seus efeitos em todas as linhas familiares, ou seja, na linha reta e colateral. Logicamente, serão aplicadas para todos que tiverem o reconhecimento do parentesco socioafetivo as regras do art. 1.521 do Código Civil que trata dos impedimentos matrimoniais.
Art. 1.521. Não podem casar:
I – os ascendentes com os descendentes seja o parentesco natural ou civil;
II – os afins em linha reta;
III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
V – o adotado com o filho do adotante;
VI – as pessoas casadas;
VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
Desta forma, entendesse que o filho passa a ter novos colaterais e ascendentes, sendo assim a paternidade socioafetiva estabelece a extensão da parentalidade, por conseguinte, todos os efeitos de filiação e parentesco são aplicados de acordo com dispositivo, posto isto, criando seus efeitos jurídicos.
Acerca do tema, Barboza (2009, p.33-34) explana:
O parentesco socioafetivo produz todos e os mesmos efeitos do parentesco natural. São efeitos pessoais: (a) a criação de vínculo de parentesco na linha reta e na colateral (até o 4º grau), permitindo a adoção do nome da família e gerando impedimentos na órbita civil, como os impedimentos para casamento, e pública, como os impedimentos para assunção de determinados cargos públicos; (b) a criação do vínculo de afinidade. Sob o aspecto patrimonial são gerados direitos (deveres) a alimentos e direitos sucessórios. O reconhecimento do parentesco com base na socioafetividade deve ser criterioso, uma vez que como demonstrado, envolve terceiros, aos necessariamente envolvidos na relação socioafetiva, mas que certamente serão alcançados pelo dever de solidariedade que é inerente às relações de parentesco.
Evidentemente a multiparentalidade garante ao filho socioafetivo, sem diferenças, linhas de parentesco igual a todos, seja consanguíneo ou socioafetivo estabelecendo efeitos jurídicos.
3.3 Alimentos na multiparentalidade
No tocante a obrigação de alimentar, é equivalente a biparentalidade, que em consonância com o artigo 1.696 do Código Civil demonstra que “O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros”. Sendo assim a prestação de alimentos é reciproca entre o filho e todos os pais multiparentais.
O artigo 1.694 do Código Civil regulamenta sobre a reciprocidade de alimentos entre os parentes, e na multiparentalidade poderá obter alimentos assim como na biparentalidade. Sendo que na multiparentalidade poderá ser cobrado também pelos seus parentes socioafetivos, numa obrigação alimentar de mão dupla. Tendo em vista que o reconhecimento da multiparentalidade gera direitos e deveres para todos os envolvidos.
O Concelho da Justiça Federal reconheceu a tese de obrigação alimentar resultante do vínculo de parentesco socioafetivo por meio do Enunciado 341 o qual externa que: “para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar.”
Neste seguimento se posiciona a jurisprudência:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIMENTOS. PEDIDO DE EXONERAÇÃO. TRAMITAÇAO PARALELA DE AÇÃO PARA DESCONSTITUIÇÃO DE VÍNCULO DE PARENTALIDADE.
NEGARAM PROVIMENTO, À UNANIMIDADE. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº 70021582382, Sétima Câmara Cível. Relator: Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 05/12/2007.
Sendo assim, existe também o conhecimento na jurisprudência que a falta do vinculo biológico não é satisfatório para a negativa de obrigação alimentar, sabendo que a pensão alimentícia é determinada para o suprimento das necessidades básicas dos filhos.
3.4 Direito à guarda
Quando o assunto é guarda de filhos, presume-se a separação dos pais antes de qualquer coisa. O rompimento da convivência familiar dos pais não pode levar ao distanciamento com os filhos, Para Venosa (2007, p. 06) a guarda “é atributo do poder familiar. Por sua vez cinge uma série de direito e deveres”.
A determinação da guarda deve ser consubstanciada no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, situado no artigo 227 na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, artigos 4º e 5º. Insta salientar que nos casos que o menor possui maturidade, o judiciário acata sua oitiva, mas sempre presando pelo melhor interesse para o menor.
O artigo 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente elucida que o poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência (BRASIL, 1990). Em seguida, o artigo 22 externa que aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais (BRASIL, 1990).
As modalidades da guarda estão previstas nos artigos 1.583 a 1.590 do Código Civil atual poderá ser executada unilateralmente ou compartilhada, tanto pelos pais biológicos quanto aos socioafetivos. Levando em consideração que, anterior ao princípio da afetividade, o vínculo sanguíneo era prioridade nesses casos, mas nos dias de hoje os tribunais tem prezado pela afinidade e afetividade, após alteração na lei n. 11.698/2008, não ha principiabilidade no critério consanguíneo, e sim uma conciliação com o princípio do melhor interesse do menor.
O julgador, em alguns casos, pode ter o entendimento disposto no artigo 1.616 do Código Civil o qual determina que a sentença que julgar procedente a ação de investigação produzirá os mesmos efeitos do reconhecimento; mas poderá ordenar que o filho se crie e eduque fora da companhia dos pais ou daquele que lhe contestou essa qualidade (BRASIL, 2002).
Sobre o tema, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina proferiu sentença, sobre um caso de disputa de guarda de menor entre pai afetivo e o pai biológico, em que preponderou a guarda para o primeiro, demonstra emenda:
Ementa: PATERNIDADE SOCIOAFETIVA – PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE – MANTENÇA DA GUARDA COM O CASAL QUE VEM CRIANDO A MENOR – ARTIGOS 6o E 33 DO ECA – PEDIDO INICIAL PARCIALMENTE PROCEDENTE – ÔNUS SUCUMBENCIAIS MODIFICADOS – RECURSO PROVIDO.
Tendo como foco a paternidade socioafetiva, bem como os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e do melhor interesse do menor, cabe inquirir qual bem jurídico merece ser protegido em detrimento do outro: o direito do pai biológico que pugna pela guarda da filha, cuja conduta, durante mais de três anos, foi de inércia, ou a integridade psicológica da menor, para quem a retirada do seio de seu lar, dos cuidados de quem ela considera pais, equivaleria à morte dos mesmos. Não se busca legitimar a reprovável conduta daqueles que, mesmo justificados por sentimentos nobres como o amor, perpetram inverdades, nem se quer menosprezar a vontade do pai biológico em ver sob sua guarda criança cujo sangue é composto também do seu. Mas, tendo como prisma a integridade psicológica da menor, não se pode entender como justa e razoável sua retirada de lugar que considera seu lar e com pessoas que considera seus pais, lá criada desde os primeiros dias devida, como medida protetiva ao direito daquele que, nada obstante tenha emprestado à criança seus dados genéticos, contribuiu decisivamente para a consolidação dos laços afetivos suprareferidos.
A afetividade é o melhor critério de escolha em decisões sobre a guarda, pois quem deverá permanecer com o menor será quem melhor resguardar pelo interesse da criança ou adolescente e o afeto nessa situação torna-se benéfico.
3.5 Direito de visitas
O direito a visitas é cabível quando não fixada a guarda compartilhada com os demais genitores, pode ser decido em acordo pelos pais ou em sentença judicial. Deve contemplar o melhor interesse do menor, pois a restrição da visita em excesso poderá causar o distanciamento entre pais e filhos em detrimento de quem não possui a guarda.
Com a promulgação da Lei nº 12.398/2011, o direito de visitas foi amplificado para os avós, pois até esta data era permitido somente aos genitores. A vista disso foi inserido o parágrafo único ao artigo 1.589 do Código Civil, que passou a ter a seguinte redação:
Art. 1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação.
Parágrafo único. O direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente. (BRASIL, 2002).
Sobre o tema, Lôbo (2011) menciona que direito de visita, interpretado à luz da Constituição Federal, é direito recíproco dos pais e dos filhos à convivência, de assegurar a companhia de uns com os outros, independentemente da separação. Por isso é mais correto dizer direito à convivência, ou à companhia, ou ao contato (permanente) do que direito de visitas (episódica). Ainda segundo o mesmo autor, o direito de visita não se restringe a visitar o filho na residência do guardião ou no local que este designe.
Abrange o de ter o filho “em sua companhia” e o de fiscalizar sua manutenção e educação, como prevê o art. 1.589 do Código Civil. O direito de ter o filho em sua companhia é expressão do direito à convivência familiar, que não pode ser restringido em regulamentação de visita. Uma coisa é a visita, outra, a companhia ou convivência (LOBO, 2011).
Na percepção de Póvoas (2012), na multiparentalidade o direito de visita deve estar no mesmo formato estabelecido na biparentalidade. De maneira que o art. 1.589 do Código Civil deverá ser inteiramente aplicado em casos de multiparentalidade.
3.6 Direitos previdenciários
O artigo 16, incisos I e II, e parágrafo 3° da Lei n°8.213 de 1991, no tocante ao direito previdenciário, determinam que:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente;
II – os pais; § 3o Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3° do art. 226 da Constituição Federal. (BRASIL, 1991).
Sendo assim, independente do vinculo biológico ou socioafetivo, tanto os filhos, quanto aos pais serão beneficiários recebendo a condição de dependente do segurado. Haja vista, necessita que exista uma união estável, como em qualquer relação familiar amparada pela Constituição, neste caso, também, de multiparentalidade.
Quando existir dependentes de uma classe, os integrantes da classe subsequente não poderão exercer o direito ao beneficio. Portanto, a subordinação econômica entre os cônjuges, filhos e companheiros é presumida. Constando mais de um pensionista, deve ser dividida a pensão por morte entre todos os dependentes igualmente, acabando o direito de um, a quota será regressado em beneficio dos demais.
Sobre os efeitos previdenciários no tocante à parentalidade socioafetiva, conclui Cassettari (2014) que existindo a parentalidade socioafetiva, também se aplicará todas as regras sucessórias e o reconhecimento dos direitos previdenciários. Os filhos socioafetivos menores de 21 anos ou inválidos, não emancipados, entre 16 e 18 anos de idade, de acordo com o princípio da igualdade serão beneficiários da pensão por morte, assim como os pais e irmãos socioafetivos, menores de 21 anos, não emancipados.
Concernente a multiparentalidade e os direitos previdenciários o filho multiparental será beneficiário de todos os pais/mães, visto que em qualquer relação de filiação, inclusive na multiparental, os filhos biológicos ou afetivos e pais adquirem o status de dependentes do segurado.
3.7 Direitos sucessórios
O reconhecimento da filiação está disposto no artigo 227, § 6 da Constituição Federal e no artigo 1.593 do Código Civil, igualando os critérios biológicos e socioafetivos no ordenamento jurídico brasileiro. Consolidando essa questão a Constituição Federal garante no seu artigo 5º, inciso XXX, o direito a herança.
Em continuidade, o Código Civil em seu artigo 1.784, aduz que a herança é transmitida aos herdeiros legítimos e testamentários (BRASIL, 2002). Deste modo, regulamentada por lei, a sucessão legitima dispensa a vontade da pessoa falecida, com exceção quando há testamento, nesse caso irá dispor apenas parte dos seus bens, pois a sucessão legitima será destinada aos bens não contemplados.
Na ordem vocacional sucessória os filhos têm garantia privilegiada, sucedendo de condição exclusiva, na falta do cônjuge ou companheiro concorrente, portanto a herança será dividida por cabeça, quando transmitida pela sucessão legitima, sem nenhuma distinção entre eles (Diniz, 2007).
No tocante aos direitos sucessórios advindos do parentesco socioafetivo, Nader (2009) aponta que no vínculo afetivo os efeitos de reconhecimento imprescindivelmente devem expandir-se do plano teórico e atingir a essência do ordenamento jurídico.
Na sucessão não poderá existir diferenciação entre os filhos decorridos fora do casamento ou adotados, a igualdade é garantida pelo art. 277, § 6º da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Todavia, os filhos socioafetivos estão em desvantagem no tocante a este entendimento, estes filhos pleiteiam perante os tribunais o reconhecimento da filiação para efeitos sucessórios.
De maneira, não restando duvidas, que o reconhecimento sucessório é inerente ao instituto da multiparentalidade, e que o direito a herança ou qualquer outro, está pautado no princípio da dignidade humana.
3.8. Averbação da multiparentalidade
É preciso declarar as decisões do sistema registral, exteriorizar, correspondente aos princípios que norteiam esse instituto. Qualquer alteração no registro civil das pessoas naturais estabelecidas pela Lei Federal n. 6.015/73, lei de registros públicos (BRASIL, 1973), deve se dar por averbação, que pode ser por decisão judicial ou em casos que a alteração esteja expressamente em lei. O código civil de 2002 trata sobre o tema:
Art. 10. Far-se-á averbação em registro público:
I – das sentenças que decretarem à nulidade ou anulação do casamento, o divórcio, a separação judicial e o restabelecimento da sociedade conjugal;
II – dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação.
O registro de reconhecimento multiparental será feito de acordo com o art. 97 da lei de registros públicos que delimita que a averbação será feita pelo oficial do cartório em que constar o assento à vista da carta de sentença, de mandado ou de petição acompanhada de certidão ou documento legal e autêntico, com audiência do Ministério Público (BRASIL, 1973).
Deste modo, eventualmente, numa sentença declaratória de multiparentalidade, será feita pelo oficial do registro civil das pessoas naturais, por meio do mandado de averbação, lançando á margem do assento os dados dos pais/mães, nos termos da decisão judicial.
A decisão do Conselho Nacional de Justiça- CNJ reafirma a possibilidade da averbação da multiparentalidade, certificando a fixação dos formatos de certidões de nascimento, casamento e óbito, estipulando a padronização desses documentos em todo o País.
O vínculo de afeto na paternidade sociafetiva é construído pela convivência, como já exposto, e mesmo diante do termino da entidade familiar não altera essa relação de afeto que foi construída. Em vista disso, na filiação socioafetiva, como consequência da vontade espontânea do registro, não pode haver a desconstrução da paternidade que em outro tempo foi espontâneo, e produziu responsabilidades com a criança, de modo que pai biológico seria.
Nesse entendimento, Sanches e Arantes (2014, p. 92) mencionam que:
Diante o reconhecimento da paternidade socioafetiva verifica-se a impossibilidade de ser fundada a anulação do registro civil desconstituindo a paternidade, tendo em vista que o reconhecimento foi baseado na vontade de ser pai, ocasionado por um vínculo familiar constituído na criação do indivíduo, no dia a dia de seu desenvolvimento, não podendo ser argumentado qualquer defeito no ato praticado, pois este foi de livre e espontânea vontade.
A vista disso, (ALFRADIQUE, 2009) observa que a desconstrução da paternidade não será desfeita somente por recorrência da separação dos pais, pois a paternidade socioafetiva é um ato voluntário e não admite anulação de registro de nascimento, salvo se ocorrer vício de vontade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ordenamento jurídico brasileiro não reconhece expressamente a multiparentalidade como modelo familiar, contudo não há distinção quanto a origem da filiação. O instituto da multiparentalidade contém diferentes critérios, que podem ser afetivo, biológico e o registral. Sendo o critério afetivo o responsável pelo conceito do pai no sentido de convivência com o filho, enquanto que o biológico, adotado diretamente e agregado ao casamento, pressupondo o laço familiar e, por fim, o critério registral, que é o exercício do reconhecimento pelo sistema jurídico.
Todavia, destaca-se a transição entre o modelo biológico ao socioafetivo e os conflitos que se manifestaram nas jurisprudências, de forma a atentar para o enfrentamento entre paternidades embasadas em diferentes critérios, porém sem hierarquia. Conclui-se nesse aspecto, que a paternidade é baseada na afetividade, tendo em vista que esta é intrínseca ao exercício de pai/ mãe no modelo familiar.
De tal forma, não é admitido à desconstrução do vínculo paterno depois de reconhecido de fato, pois o reconhecimento registral não pode ser desfeito, é um ato irrevogável, personalíssimo e irretratável, com exceção do erro ou vício da vontade. Logo, ocorre da mesma maneira, a impossibilidade de desfazer a paternidade biológica, pois o genitor não poderá ausentar-se dos seus deveres como pai/mãe, mesmo com um vínculo socioafetivo inexistente e, em consequência do reconhecimento, todos seus efeitos gerados em diversos âmbitos do direito.
Portanto, é inquestionável a importância dos laços afetivos para a sociedade atual, bem como para a construção de um novo conceito de família, o qual deve ter como pressuposto a construção de um núcleo existencial formado por indivíduos unidos por um vínculo afetivo. Assim, a despeito da ausência de previsão legal, a multiparentalidade deve ser vista como uma nova possibilidade de arranjo familiar. Uma vez constituída, traz alento para aqueles que estão envolvidos em relações pautadas no afeto e almejam o reconhecimento social e, sobretudo, jurídico dos seus efeitos.
REFERÊNCIAS
ALFRADIQUE, Aline Nazareth. A quebra da paternidade socioafetiva com a superveniência do vínculo biológico. Disponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/1semestre2009/trabalhos_12009/alin ealfradique.pdf . Acesso em: 12 de Nov. 2017.
ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito civil: Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
BARBOZA, Heloisa Helena. Efeitos jurídicos do parentesco socioafetivo. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte, 2009, p.33-34.
BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia jurídica dos Princípios Constitucionais. 2 ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.32.
BERENICE, Maria Dias. Manual de Direito das Famílias. 9ª ed. Revista dos Tribunais: 2013 p. 385.
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[1] O Papa Francisco em discurso proferido durante sua passagem pelos Estados Unidos em 03 de Set. de 2003.
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