Resumo: O presente trabalho trata da mutação do conceito de família previsto na vigente Carta Magna. A definição de entidade familiar vem sendo objeto de fervescente processo de mutação constitucional nos últimos anos, especialmente em virtude das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal. Julgados do Pretório Excelso, a exemplo do que elevou ao status familiar a união homoafetiva, representam com clareza a alteração de sentido do Art. 226 da CRFB/1988. Neste ínterim, a ampliação das espécies de famílias juridicamente reconhecidas representa matéria de estudo deverás importante aos aplicadores do Direito, dada a premente necessidade de delimitação da proteção estatal nos casos concretos. A incerteza acerca do conceito constitucional de família traz problemas na vida forense dada a complexidade dos casos postos sob apreciação do Poder Judiciário. Busca-se, pois, perquirir acerca da amplitude deste processo de mutação e se entidades outras, v.g. uniões concubinárias, também estariam sendo agraciadas com o mencionado processo não formal de reforma constitucional.
Palavras-chave: Mutação Constitucional. Conceito Constitucional de Família. Proteção Estatal às Famílias.
Sumário: introdução. 1. A família na Constituição Federal de 1988; 2. Mutação constitucional do conceito de família; 3. O reconhecimento jurídico de novas entidades familiares mediante mutação constitucional; 4. Considerações finais; 5. Referências.
INTRODUÇÃO
A presente obra versa sobre a mutação constitucional do conceito de família na vigente Carta Magna, analisando os dispositivos legais, entendimentos doutrinários e a prática jurisprudencial da temática.
A mutação constitucional é um processo informal de reforma através do qual são atribuídos novos sentidos ao texto constitucional, mediante atividade interpretativa, sem alteração do seu conteúdo. As recentes decisões do Supremo Tribunal Federal denotam uma relevante ampliação do conceito de família previsto no Art. 226 da CRFB/1988, com inclusão de espécies familiares não dispostas na norma positiva, a exemplo da união homoafetiva. Assim, cuida o trabalho em tela dos limites deste processo mutacional, bem como das consequências do mesmo no ordenamento pátrio.
No Brasil, as entidades familiares consagradas no plano constitucional e reconhecidas expressamente pelo Direito são a família matrimonializada, a oriunda da união estável e a monoparental. O processo de mutação constitucional do conceito de família trouxe à tona o reconhecimento jurídico da união homoafetiva como entidade familiar, havendo uma tendência de inclusão de outras espécies familiares, a exemplo da união concubinária.
Neste diapasão, questionamentos surgem acerca da amplitude da mutação constitucional do conceito de família. Quais espécies de arranjos familiares foram incluídas no conceito constitucional de família e qual a participação do processo de mutação constitucional na relação EstadoXFamília? Quais as implicações jurídicas do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar? Haveria possibilidade de inclusão do concubinato adulterino como entidade familiar?
Quando da formulação das hipóteses elucubrou-se que além da família matrimonializada, da família oriunda da união estável, e da monoparental, já consagradas pela CRFB/1988, a mutação constitucional pode ensejar no reconhecimento da família homoafetiva, da paralela ou concubinária, da reconstruída ou pluriparental e da anaparental como entidades familiares.
Quanto às implicações do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar cogitou-se que são amplos e nos mais diversos ramos do Direito. Já em relação ao eventual reconhecimento do concubinato como entidade familiar, supôs-se que é necessário atribuir juridicidade ao concubinato para disciplinar seus efeitos negativos e positivos.
A pertinência jurídica e social da obra se faz nítida ante a grande efervescência da mutação constitucional do conceito de família e recorrência de certames jurisprudenciais sobre o tema.
Do ponto de vista acadêmico a obra apresenta relevância em virtude do caráter controvertido da temática, da necessidade de aprofundamento no estudo da questão e pelo estímulo a pacificação das controvérsias. Ademais, o trabalho serve como base para futuros estudos deste tema, estimulando a complementação das pesquisas realizadas.
O marco teórico da obra baseia-se numa perspectiva constitucional do conceito de família. Utiliza-se, dentre outros, especialmente as obras de autores como Rodrigo da Cunha, Rolf Madaleno e Guilherme Gama.
Para consecução dos objetivos propostos utilizar-se-á, inicialmente, o método histórico-analítico, com estudo histórico do conceito de família. Posteriormente passa-se a aplicação do método indutivo, com exame de casos específicos para soluções gerais.
O trabalho se estruturou em três capítulos, assim intitulados, em ordem crescente de numeração: A Família na Constituição Federal de 1988; Mutação Constitucional do Conceito de Família e, por fim, O Reconhecimento Jurídico de Novas Entidades Familiares Mediante Reforma Constitucional.
1. A FAMÍLIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O TERMO FAMÍLIA
Em linhas gerais, pode-se definir a família[1] como uma unidade de pessoas integradas pela possibilidade de manifestação de afeto através da convivência, publicidade e estabilidade de relações intersubjetivas.[2]
Segundo o historiador James Casey[3], no início da história humana as famílias pré-históricas eram, em sua maioria, de formação eminentemente matriarcal. Na antiguidade, conforme afirma a professora Kátia Regina[4], a família constituía-se por meio de celebrações religiosas ou por simples convivência de um homem e uma mulher.
Logicamente não havia homogeneidade nas estruturas familiares dos grupos de regiões espaciais diferentes. Enquanto em uma determinada região as unidades familiares eram formadas por um homem e uma mulher em outras poderia haver entidades matriarcais ou patriarcais com pluralidade de mulheres (poliginia) e ainda, embora menos frequentes, formadas por uma mulher e vários homens (poliandria).[5]
Na Roma antiga a família era patriarcal e organizada pelo princípio da autoridade do pater familias. Havia pleno controle do chefe da família sobre a vida e o destino dos seus descendentes. Era possível, inclusive, a aplicação da pena de morte. O ascendente vivo e comum mais velho exercia as funções de sacerdote dos cultos familiares, chefe político e juiz.[6]
Com o passar do tempo passou a haver uma maior interferência do Estado no casamento e nos relacionamentos familiares. Isto ocorreu em Roma e nas demais sociedades, especialmente nas que sofreram interferência religiosa do cristianismo.
Na Idade Média a interferência da Igreja Católica foi salutar para a formação do conceito de família. A monogamia[7] era postulado básico da família imposta pela Igreja Católica e o casamento tornou-se instituto imprescindível para formação da entidade familiar. Segundo o mestre Orlando Gomes[8] preponderou no sistema feudal o elemento político, apresentando-se a família como organismo compacto de interesses.
Na idade moderna e com fortalecimento dos Estados a família passou a ter cada vez mais expressiva normatização. Os conhecidos Estados Modernos estavam alicerçados por códigos e leis que regulavam, dentre outras coisas, as relações familiares.
O Código Napoleônico, importante compilamento de leis com repercussão em diversos ordenamentos jurídicos, inclusive no brasileiro, possuía cerca de 500 (quinhentos) artigos reservados a disciplina das relações pessoais.[9]
Pode-se inferir, conforme já dito, que o conceito de família se amolda a realidade social e econômica de cada época e região do planeta. Desta forma, cada sociedade cria um modelo geral de família, um regramento de conduta que norteia as relações intersubjetivas e que nem sempre é seguido.
O fator sanguíneo é apenas um dos utilizados para formação do conceito de família, podendo ser mais ou menos destacado, aliado a fatores culturais, econômicos e religiosos. Em virtude das constantes transformações sociais das famílias é tarefa árdua para o legislador a conceituação jurídica do termo, contando com o auxílio da hermenêutica para aliar a norma aos padrões contemporâneos.
1.2. A FAMÍLIA NA HISTÓRIA DO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO
O Brasil é um dos países que sofreu processo de colonização portuguesa. Tal fato trouxe inúmeras consequências para a formação cultural, política e religiosa da sociedade brasileira, na medida em que a nação absorveu diversos aspectos do país lusitano, a saber: a predominância da religião católica, a segregação racial, o ordenamento jurídico do tipo civil law e o modelo de família monogâmico.
A primeira constituição brasileira (Constituição Política do Império do Brasil de 1824) era omissa no que tange a definição jurídica de família. No âmbito infraconstitucional vigoravam as Ordenações Filipinas, compilado de normas oriundas do ordenamento jurídico português e que mantinha um modelo de família pautado no patriarcalismo.
Cumpre destacar que a Constituição de 1824 instituía a religião Católica como a oficial do Império do Brasil, o que denotava a primazia dos dogmas da Igreja Católica na formação das famílias.[10] O casamento civil inexistia à época e somente foi instituído no final daquele século.[11]
Em 1889 é proclamada a república no Brasil pelo então Marechal Deodoro da Fonseca. Em 1891 entrava em vigor a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. A partir daí abrolha a necessidade de criação de uma ordem jurídica infraconstitucional própria, adaptada aos ditames do novo regime político. Surge o Código Civil de 1916.
A sociedade brasileira, nas primeiras décadas do século XX, era majoritariamente rural. Carlos Ruzyk caracteriza a família juridicamente reconhecida à época como marcada pelo patriarcalismo, a hierarquização, a origem fundada exclusivamente no matrimônio e o ainda forte caráter transpessoal.[12]
A separação entre Estado e Igreja no âmbito do direito matrimonial apenas restou configurada com o advento da Carta Magna de 1891, que dispôs no seu Art. 72, parágrafos 4º, in verbis: § 4º "A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita". Ainda no parágrafo 7º do mesmo artigo apregoou que nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados.[13]
A Constituição de 1934 versava não haver distinções nem privilégios, por motivo de sexo (Art.113, I). Consagrou o direito ao voto da mulher, sendo o mesmo facultativo para as mulheres que não exercessem função pública.[14] A Constituição de 1937 não trouxe inovações significativas acerca do Direito de Família.
A Constituição de 1946 ratificava, em seu Art. 163 a indissolubilidade do casamento ao dispor que: “A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado.” [15] A Constituição de 1967 não trouxe previsão de indissolubilidade do casamento.
Em 1988, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, houve ampla transformação na conceituação jurídica da família, resultado das alterações na estrutura social, econômica e política do Brasil, ocorridas na segunda metade do século XX. A economia deixou de ser predominantemente agrária, a urbanização e a industrialização eram crescentes e a mulher passou a ter maior participação no mercado de trabalho.
Tudo isto, aliado à conjectura política de redemocratização política, fizeram com que a nova ordem constitucional de 1988 consagrasse uma nova e revolucionária disciplina da família. A Constituição da sociedade plural também consagrou o pluralismo familiar, representando um avanço marcante na história jurídica brasileira.
1.3. O CONCEITO CONSTITUCIONAL DE FAMÍLIA – ART. 226 DA CRFB/1988
A Constituição Federal de 1988 revolucionou completamente a concepção normativa de família existente à época de sua entrada no ordenamento jurídico pátrio. Em um contexto político de redemocratização a Carta Magna foi a concatenação de um longo movimento histórico que operou profundas mudanças na estrutura familiar.
O Art. 226 da CRFB/1988 assim apregoa:[16]
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º – O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º – O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º – Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º – Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º – O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.
§ 7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”
Como visto alhures, o ordenamento jurídico vigente à época da promulgação da CRFB/1988, em especial o CC/1916, tinha por base o conceito de família constituída exclusivamente pelo casamento civil, havendo gritantes desigualdades entre homens e mulheres.
Com o advento da novel constituição houve explícita alteração do conceito dado às entidades familiares. Estudando o teor do Art. 226 da CRFB/1988, se depreende que a família passa a ter peculiar proteção do Estado, sendo consagrada como estrutura básica/celular da sociedade. Tal fato denota a especial atenção dada às famílias na nova ordem jurídica, fato inédito na história do constitucionalismo brasileiro.
O casamento civil é a forma institucionalizada de celebração do matrimônio, reafirmando-se ser o Brasil uma nação laica. Logo, os dogmas que a Igreja Católica ou qualquer outra religião impõe as relações conjugais não interferem na disciplina legal do casamento. Todavia, convêm lembrar que há previsão de conferência de efeitos civis à celebração religiosa das núpcias, independentemente da religião dos nubentes.
O § 3º do Art. 226 da CRFB/1916 reconhece a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, prevendo que a legislação infraconstitucional deve facilitar sua conversão em casamento. O dispositivo reconheceu juridicamente situação de fato que há muito existia.
Homens e mulheres desimpedidos de casar e que viviam como companheiros não tinham suas uniões reconhecidas como entidades familiares. A Constituição, desta forma, pôs a termo a exclusividade do casamento como forma de instituição de famílias.
Em seguida a Carta Política reconhece juridicidade às entidades familiares formadas exclusivamente por um homem ou por uma mulher e sua prole, o que a doutrina denominou de família monoparental.
A igualdade de direito e deveres entre homens e mulheres nas relações familiares está consagrada no § 5º do Art. 226. Rompe-se, destarte, com a manifesta superioridade jurídica dada ao homem nas relações familiares.
Ao igualar homens e mulheres em direitos e deveres a Constituição Federal de 1988 transformou essencialmente as relações das uniões afetivas (casamento e união estável). Alicerçado no princípio da igualdade, previsto primeiramente no Art. 5º, I, o Art. 226, § 5º trouxe uma “bilateralidade” até então inexistente, transformando o modelo tradicional de família, até o momento patriarcal, para uma nova estrutura familiar onde o homem não é mais o “chefe da casa.” [17]
Segundo a doutrinadora Maria Berenice Dias, citando Zelo Venoso em sua obra “Homosexualidade e Direito” a Constituição Federal de 1988 em um único dispositivo espancou séculos de hipocrisia e preconceito. Instaurou a igualdade entre o homem e a mulher e esgarçou o conceito de família, passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros. Estendeu igual proteção à família constituída pelo casamento, bem como à união estável entre o homem e a mulher e à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, que recebeu o nome de família monoparental.[18]
Para Rolf Madaleno[19], a Constituição Federal de 1988 realizou a verdadeira revolução no Direito de Família brasileiro, a partir de três eixos, quais sejam, o da família plural, com várias formas de constituição (casamento, união estável e monoparentalidade familiar), a igualdade no enfoque jurídico da filiação, antes eivada de preconceitos e a consagração do princípio da igualdade entre homens e mulheres.
A nova concepção constitucional de família valorizou a questão da afetividade entre os seus membros. Tanto o é que a união estável foi reconhecida como entidade familiar, demonstração clara da valorização dada ao afeto, público e duradouro, dos companheiros. Guilherme Calmon Nogueira da Gama[20] afirma que as transformações ocorridas no seio das famílias foram mais profundas do ponto de vista interno (relações entre os seus partícipes) do que externo (relações com a sociedade e o Estado).
Os demais parágrafos do Art. 226 da CRFB/1988 tratam do divórcio e da interferência estatal para o adequado planejamento familiar e respeito mútuo entre os membros das famílias.
Assim, percebe-se que a CRFB/1988 transformou o conceito jurídico de família tornando-o plural, reconhecendo, além do casamento civil, a união estável e a monoparentalidade como formas de constituição de famílias, pondo em pé de igualdade homens e mulheres nas relações familiares. Buscou-se, pois, adequar a lei à realidade social que há muito se fazia presente.
2. MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO CONCEITO DE FAMÍLIA
2.1 CONCEITO DE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é classificada como rígida, ou seja, pode ter seus dispositivos alterados mediante um processo legislativo mais árduo do que o empregado para as normas infraconstitucionais, a exceção das denominadas cláusulas pétreas. A este processo de mudança do texto constitucional mediante atividade do Poder Constituinte Derivado Reformador dá-se o nome de Reforma Constitucional.
Ocorre que o sentido da norma constitucional também pode ser transformado mediante atividade interpretativa dos operadores do Direito, que atribuem novos sentidos, novos alcances ao seu texto sem variação do conteúdo gramatical. Esse método de metamorfose do texto constitucional, sem atuação do legislador e caracterizado por ser informal, denomina-se Mutação Constitucional.
O Ministro Gilmar Mendes apregoa que a mutação constitucional ocorre quando há alteração no sentido da norma, mantendo-se a sua grafia, ressaltando a ideia de que a norma não se confunde com o texto. Prossegue sustentando, em suas palavras, que a modificação decorre de uma evolução na situação de fato sobre a qual incide a norma ou ainda por força de uma nova visão jurídica que passa a predominar na sociedade[21]
Segundo leciona Dirley, “Mais do que co-participante do processo de criação do Direito, o juiz passa a desempenhar, por meio da interpretação constitucional, uma atividade de atualização da Constituição, operando uma verdadeira mutação constitucional ou mudança informal do texto constitucional”[22]
2.2 O PLURALISMO FAMILIAR CONSAGRADO PELA CRFB/1988 E A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO CONCEITO DE FAMÍLIA
Consoante exposto alhures, a Constituição Federal de 1988 rompeu drasticamente com o modelo de família até então reconhecido juridicamente, abandonando a visão patriarcal e exclusivamente matrimonializada das famílias.
Nas palavras da Professora Maria Berenice Dias, “(…) os ideais de pluralismo, solidarismo, democracia, igualdade e humanismo voltaram-se a proteção da pessoa humana(…)” passando a família a adquirir função instrumental para a melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes.[23]
A constitucionalização das normas de Direito de Família fez com que a doutrina e a jurisprudência se dedicassem a apreciação de diversas espécies de arranjos familiares. Ulhoa Coelho[24], por exemplo, classifica espécies de famílias em dois grandes grupos: as famílias constitucionais e as não constitucionais. Utiliza tal nomenclatura para referir-se às espécies de família expressamente consagradas pela CRFB/1988 (constitucionais) e aquelas reconhecidas pela doutrina (não constitucionais).
As constitucionais seriam as referidas no Art. 226 da CF, ou seja, as fundadas no casamento civil, na união estável e as monoparentais (formadas pelo homem ou pela mulher e sua prole). Por sua vez, as famílias não constitucionais corresponderiam às famílias formadas por casais do mesmo sexo (homoafetivas) e por casais impedidos de contrair matrimônio ou estabelecer união estável.
Insta mencionar que há doutrinadores que entendem haver fundamento constitucional para todas as espécies de famílias, ainda que não expressamente aludidas pela legislação, fundamentando-se em princípios constitucionais explícitos, como da dignidade da pessoa humana, e implícitos a exemplo do pluralismo familiar. Para tais doutrinados o rol do Art. 226 da CRFB/1988 não é taxativos, mas apenas exemplificativo, devendo ser reconhecida como entidade familiar outros grupos de indivíduos que mantenham relações afetivas, a exemplo de relacionamentos homossexuais. Neste sentido é o entendimento de Cristiano Chaves[25], Maria Berenice Dias, Pablo Stolze e outros.
Há entendimento jurisprudencial que, interpretando as transformações da realidade social, dispõe sobre diversas espécies de arranjos familiares[26]. Os mais inovadores, inclusive, consagram entidades familiares que afrontam impedimentos matrimoniais e até ilícitos penais.[27] Destaca-se que são contínuas inovações doutrinárias e jurisprudenciais para ampliação das espécies de famílias, de modo que se aborda apenas as reconhecidas pela doutrina mais renomada
A tendência constitucional de valoração do afeto entre os membros das diversas entidades familiares aliada às diversas transformações nos costumes e práticas da sociedade brasileira fez com que a doutrina estudasse com mais afinco as variáveis de arranjos familiares.
Algumas das espécies de famílias mais mencionadas são: a família matrimonializada (resultante do casamento), a família oriunda da união estável, a família paralela, ou concubinária (quando um ou ambos os cônjuges são impedidos de casar-se por ter contraído casamento anterior e não estar separado de fato), a reconstruída ou pluriparental (estrutura familiar originada do casamento ou da união estável de um casal, na qual um ou ambos de seus membros têm um ou vários filhos de uma relação anterior), a monoparental (formada por um cônjuge e seus filhos), a anaparental e a homoafetiva.
O modelo mor de família ainda é o biparental (dois pais), formada por um homem e uma mulher, casados ou companheiros unidos em relação afetiva. Todavia, em razão das profundas modificações ocorridas com o decurso do tempo o conceito ideal de família biparental cedeu lugar à crescente evidência de outra forma de organização da família.
Segundo Fábio Ulhoa Coelho[28], não há maior desrespeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana que a ausência de disciplina legal da família constituída por pessoas do mesmo sexo.
A jurisprudência está relativizando a ausência de previsão legal das uniões homoafetivas. O Supremo Tribunal Federal, inclusive, possui entendimento no sentido da equiparação da união homoafetiva à união estável, conforme ver-se-á adiante.
Embora a Constituição Federal de 1988 tenha menos de 30 (trinta) anos, as transformações sociais, especialmente diante do processo de globalização e incremento da tecnologia de informação, levaram a drástica transformação do conceito de família. Nesta seara, houve expressiva mutação constitucional do conceito de família, de modo que a já considerada moderna concepção de família da CRFB/1988 ampliou-se.
A atividade hermenêutica exercida para interpretação do Art. 226 da CRFB/1988 trouxe à baila uma concepção plural de família, valorizando os mais diversos arranjos intersubjetivos. O Estado brasileiro passou a consagrar tutela jurídica à espécies familiares não expressamente previstas na Carta Política.
Logo, uniões a exemplo da união homoafetiva, compreendida como o relacionamento estável entre pessoas do mesmo sexo, passaram a ser englobadas como entidades familiares consagradas pelo Art. 226 da Constituição, ainda que não previstas em seu texto.
Esta atividade de mutação constitucional trouxe diversas implicações no ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que a atribuição de status familiar gera implicações no âmbito do Direito de Família, Direito Previdenciário e outros,
Do exposto percebe-se que existe tendência de ampliação do número de espécies de famílias mediante mutação constitucional, embora a legislação vigente só consagre a família matrimonializada, a união estável e a monoparental. Deste modo, diversas entidades familiares não consagradas expressamente pela Lei vêm sendo consagradas pela atividade hermenêutica, dando ensejo a divergências conceituais e jurisprudenciais que merecem especial atenção dos aplicadores do Direito.
3. O RECONHECIMENTO JURÍDICO DE NOVAS ENTIDADES FAMILIARES MEDIANTE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
3.1 A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E O RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS UNIÕES HOMOAFETIVAS COMO ENTIDADES FAMILIARES
A família homoafetiva é aquela formada por um casal homossexual, ou seja, por dois homens ou por duas mulheres. É indubitável que se trata de uma realidade no seio social brasileiro e mundial, fato este seguramente deverás antigo e notório.
A Constituição Federal vigente não consagrou expressamente, quando de sua promulgação, as uniões homoafetivas. No âmbito infraconstitucional, outrossim, inexiste regramento acerca da matéria.
Ocorre que, em virtude da expressiva ocorrências de relacionamentos homossexuais duradouros, o Poder Judiciário passou a ser constantemente acionado para solucionar questões relativas a uniões homoafetivas, seja relativas a sucessões, direitos previdenciários, qualidade de dependente em planos de saúde e outras.
Inicialmente, havia certo rechaço da jurisprudência ante a ausência de previsão constitucional da família homoafetiva. Todavia, com o tempo, os tribunais superiores passaram a emprestar juridicidade a este tipo de arranjo pessoal, alinhando-se as novas concepções da sociedade brasileira.
O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, apresentou julgado equiparando a união homoafetiva à união estável ao possibilitar a inclusão de parceiro homossexual no plano de saúde de seu companheiro.[29] Após algum tempo, o Supremo Tribunal Federal foi acionado para enfrentar a questão da constitucionalidade da união homoafetiva como entidade familiar.
Não obstante o teor do alhures transcrito Art. 226 da CRFB/1988, ao dispor em seu §3º que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar” (grifo nosso), em decorrência do processo de mutação constitucional, de uma interpretação sistemática da Constituição e do emprego do método hermenêutico científico-espiritual, a união homoafetiva foi elevada ao status de entidade familiar constitucionalmente reconhecida.
Foram ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132/RJ (proposta pelo governador do Rio de Janeiro pugnando pela equiparação da união homoafetiva como união estável para os servidores públicos estaduais) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277/DF (iniciada pelo Procurador Geral da República pedindo, em suma, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar).
O julgamento conjunto da ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DF foi relatado pelo então Ministro Ayres Britto. Por unanimidade, o Pretório Excelso julgou ambas as ações procedentes.
Através de um nítido processo de mutação constitucional, o Supremo Tribunal Federal discorreu sobre a constitucionalidade das uniões homoafetivas enquanto entidades familiares juridicamente tuteladas.
O trabalho de exegese foi no sentido de que a Constituição Federal não limita a expressão “família” aos casais heterossexuais. Empregando uma interpretação sistemática do texto, o Supremo entendeu que o Art. 5 da CRFB/1988 tutela a intimidade e vida privada e a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos, garantindo a ambos o direito subjetivo à formação de uma família.
O julgamento, no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, teve efeitos vinculantes para atribuir à união homoafetiva status de entidade familiar e, ainda, dando interpretação conforme a Constituição ao Art. 1.723 do Código Civil garantir o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar.[30]
Cumpre transcrever, por oportuno, trecho relevante da ementa do singular julgado:
“EMENTA: (…) 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma ADPF 132 / RJ autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.”
“4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no §3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não pretendeu diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do §2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”(…)[31]
Depreende-se, pois, que o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar é um salutar exemplo de processo informal de reforma do texto constitucional – mutação constitucional. Representa um tendência de ampliação do rol de famílias juridicamente tuteladas e um avanço na hermenêutica constitucional.
3.2 O PRINCÍPIO DA MONOGAMIA E PESPECTIVAS DE TUTELA JURÍDICA DO CONCUBINATO MEDIANTE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
Assim como outrora ocorreu em relação às uniões homoafetivas, as relações concubinárias também não encontram amparo ou regulamentação no ordenamento vigente. Como visto, entende-se por relacionamento concubinário a união, não eventual, entre homens e mulheres impedidos de casar-se em virtude de união anterior e não separados de seus cônjuges respectivos.
A ausência de regulamentação do concubinato é fato que causa insegurança jurídica. Tanto para os envolvidos no relacionamento concubinário, para os cônjuges ou companheiros traídos, seus filhos e para o próprio Estado a incerteza acerca das consequências de um fato social tão frequente é negativa e preocupante.
Demandas envolvendo relacionamentos concubinários são frequentes e os tribunais não possuem entendimento consolidado acerca do tema. Ante a ausência de previsão da família concubinária existe celeuma acerca da possibilidade de inclusão deste arranjo no rol das famílias constitucionalmente consagradas.
Neste contexto, emerge um processo hermenêutico de estudo da natureza jurídica destes arranjos pessoais. Discute-se, pois, acerca do processo de – mutação constitucional que pode ensejar no reconhecimento do concubinato adulterino como entidade familiar.
O entendimento da Suprema Corte era no sentido de negar a atribuição de efeitos jurídicos ao concubinato adulterino, ante a ausência de amparo legal e constitucional. Sequer havia interesse na discussão acerca da temática, estando pacificada a questão. Neste sentido:
“COMPANHEIRA E CONCUBINA – DISTINÇÃO. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel. UNIÃO ESTÁVEL – PROTEÇÃO DO ESTADO. A proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato. PENSÃO – SERVIDOR PÚBLICO – MULHER – CONCUBINA – DIREITO. A titularidade da pensão decorrente do falecimento de servidor público pressupõe vínculo agasalhado pelo ordenamento jurídico, mostrando-se impróprio o implemento de divisão a beneficiar, em detrimento da família, a concubina. (RE 590779 / ES – ESPÍRITO SANTO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO”
Julgamento: 10/02/2009)
Entrementes, no ano de 2012 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral em uma ação que visava o reconhecimento do direito ao rateio da pensão por morte entre esposa e concubina. Percebe-se, desta forma, uma tendência de mudança de sentido da corte constitucional, ou, ao menos, o interesse em melhor debater o tema. Senão vejamos:
“PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. CONCUBINATO IMPURO DE LONGA DURAÇÃO. EFEITOS PARA FINS DA PROTEÇÃO DO ESTADO À QUE ALUDE O ARTIGO 226, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.” (grifo nosso)
(RE 669465 RG, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 08/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-202 DIVULG 15-10-2012 PUBLIC 16-10-2012 )
Maria Berenice Dias é uma das juristas que mais se destaca na defensa do reconhecimento das “famílias paralelas”. Cumpre transcrever trecho de sua obra doutrinária elucidativa de seu entendimento sobre o tema:[32]
Negar a existência de famílias paralelas – quer um casamento e uma união estável, que duas ou mais uniões estáveis – é simplesmente não ver a realidade. Com isso a justiça acaba cometendo enormes injustiças. Mas não é esse sentido que vem se inclinando a doutrina e decidindo a jurisprudência. Ao contrário do que dizem muitos – e do que tenta dizer a lei (CC 1.727) -, o concubinato adulterino importa, sim, pata o direito. Verificadas dias comunidades familiares que tenham entre si um membro em comum, é preciso operar a apreensão jurídica dessas duas realidades. São relações que repercutem no mundo jurídico, pois os companheiros convivem, muitas vezes tem filhos, e há construção patrimonial em comum. Não ver essa relação, não lhe outorgar qualquer efeito, atenta contra a dignidade dos partícipes e filhos porventura existentes
Em não havendo norma ou súmula vinculante disciplinando os efeitos (negativos e positivos) do concubinato qualquer sujeito envolvido direta ou indiretamente no relacionamento concubinário pode ser surpreendido por uma decisão judicial completamente contrária ao princípio da monogamia e que surtirá efeitos até a sua revisão pelo respectivo tribunal ad quem.
A normatização do concubinato é questão delicada e necessária. Pensar em uma sociedade que se rege pelo princípio da monogamia nas relações afetivas é pensar em uma sociedade onde este postulado pode ser contrariado. As leis existem para se cumpridas e porque as pessoas as descumprem. Ao uma norma jurídica o legislador deve preparar-se para o seu eventual descumprimento e criar sanções e soluções para futuros embates.
Ao analisar o crime de furto, por exemplo, o legislador previu o direito de reparação por ato ilícito. Logo, a vítima do crime de furto pode requerer ressarcimento pelos danos materiais e morais sofridos em razão do ilícito e o autor do fato poderá ser condenado a cumprir pena prevista na lei penal. O mesmo não ocorre com o concubinato.
É fato que o princípio da monogamia deve ser mantido no ordenamento jurídico pátrio por apresentar diversas vantagens, como já exposto. Todavia, negar a existência do concubinato adulterino não parece ser medida das mais válidas para afirmação da monogamia.
A ausência de normas relativas ao concubinato é uma ofensa ao princípio da monogamia. Na medida em que os julgadores analisam os casos concretos de acordo com seu convencimento pessoal, implicando em alguns casos no reconhecimento do pluralismo familiar, a monogamia acaba sendo mitigada.
Nas questões referentes ao Direito de Família a norma deve ser sensível e maleável o bastante para garantir a paz social, o menor dano psicológico possível e a estabilidade das relações familiares. A monogamia deve e precisa ser preservada, mas para tanto se faz necessária uma coerente e suficiente normatização do concubinato adulterino.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mutação constitucional é um processo não formal de transformação do sentido do texto normativo que a cada dia ganha maior relevo no Brasil, dada a relevante atuação interpretativa exercida pelo Supremo Tribunal Federal. A Excelsa Corte apresenta inúmeros julgamentos nos quais, mediante trabalho hermenêutico, amplia ou restringe o alcance das disposições constitucionais, adequando-as sem mutação do seu conteúdo gramatical.
Esta atividade interpretativa, de adequação da norma ao seu contexto contemporâneo, é ainda mais marcante em relação ao conceito constitucional de família previsto na Carta Magna vigente.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi revolucionária no que tange a ampliação do conceito de família. Valorizou o vínculo afetivo entre os membros das entidades familiares, elevando a união estável como entidade familiar e consagrando a família monoparental. Trouxe um conceito jurídico de família plural, igualando homens e mulheres nas relações familiares.
Não obstante a concepção plural de família da CRFB/1988, as constantes transformações no seio social trouxeram a demanda pelo reconhecimento jurídico de novos arranjos familiares, não expressamente consagrados na Constituição pátria.
Nesta conjectura, o conceito de família sofreu flagrante processo de mutação constitucional para englobar entidades familiares outras. O exemplo mais relevante do exposto é o reconhecimento do caráter familiar das uniões homoafetivas, em nível constitucional, conforme julgamento da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132/RJ.
O importante julgado demonstra, claramente, que a constituição deve ser aberta e interpretada de forma sistemática para que possa adaptar-se à realidade que regula. Os eminentes ministros entenderam que os princípios da igualdade, dignidade da pessoa humana e da isonomia, bem como da liberdade de escolha, inclusive de opção sexual, e da proibição da discriminação, não permitem ignorar o caráter familiar das uniões homoafetivas.
Assim, as uniões homoafetivas passaram a ser reconhecidas como entidades familiares, nos moldes do que ocorre com as uniões estáveis entre homens e mulheres. O Art. 226 da Constituição sofreu metamorfose de sentido, sem alteração do seu texto, inclusive do seu parágrafo 3º, transcrito no corpo deste trabalho.
Esta ampliação no rol de famílias juridicamente reconhecidas é uma forte tendência. Tanto o é que as famílias paralelas, que recentemente sequer mereciam debate por parte do Supremo Tribunal Federal, estão sendo objeto de maior estudo.
O reconhecimento de repercussão geral em demanda que discute a juridicidade das relações concubinárias é forte indício de que a Corte Suprema reconhece a necessidade de se discutir à proteção estatal a estas entidades. Ainda que inexista qualquer certeza, tal fato por si só já representa uma mudança relevante de concepção, na medida em que rompe com o pretérito engessamento de entendimento.
Tal qual ocorreu com a união homoafetiva, a união concubinária merece um maior debate da Suprema Corte, que talvez venha a permitir sua inclusão no roal de famílias constitucionalmente tutelada, mediante processo de reforma.
O que se infere, pois, é que a mutação constitucional consagrou uma expressiva transformação do conceito de família, ainda que tenha transcorrido um período de tempo relativamente curto desde a promulgação da Constituição Federal.
Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Advogada.Assessora Jurídica dos municípios de Ipecaetá/BA e Santo Estevão/BA. Conciliadora do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
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