Bárbara Fayanne de Alencar Diógenes1
Resumo: O abandono digital da criança e do adolescente e a responsabilidade civil abordou em seu desenvolvimento a conceituação do que seria o abandono digital através de artigos e da doutrina disponível, amparando a pesquisa nos princípios dispostos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Arguiu-se ainda um possível conflito aparente de normas entre a PEC nº 185/2015 e os artigos 226, §6º e 227 da Carta Magna do Brasil. Verificaram-se ainda, a partir do estudo de estatísticas e pesquisas realizadas por instituições nacionais e internacionais, dos efeitos na vida do menor de 18 anos pelo abandono digital quais sejam a pornografia de vingança e a adultização da criança e do adolescente, este último enfocando-se principalmente no trabalho infantil artístico. Por fim, analisou-se a possibilidade quanto à aplicação do instituto da responsabilidade civil em relação aos pais pelo abandono digital, bem como a condenação destes a compensação pecuniária pelos danos morais causados aos menores sob sua guarda.
Palavras-chave: Direito Civil. Abandono digital. Adultização da criança e do adolescente. Responsabilidade civil e danos morais.
Abstract: The digital abandonment of children and adolescents and civil responsibility approached in its development the conceptualization of what would be the digital abandonment through articles and the available doctrine, supporting the research on the principles set forth in the Federal Constitution and the Statute of the Child and Adolescent. It was also argued a possible apparent conflict of rules between the PEC no. 185/2015 and articles 226, §6 and 227 of the Brazilian Constitution. It was also verified, from the study of statistics and researches made by national and international institutions, of the effects in the life of the minor of 18 years for the digital abandonment, which are the revenge pornography, and adulization of the child and adolescent, the latter focusing mainly on artistic child labor. Finally, it was analyzed the possibility of applying the institute of civil responsibility in relation to parents for digital abandonment, as well as the condemnation of parents to monetary compensation for moral damages caused to minors under their custody.
Keywords: Civil Law. Digital abandonment. Adulization of children and adolescents. Civil liability and moral damages.
Sumário: Introdução; 1. Evolução Histórica do Direito a Infância e a Juventude; 2. Do Abandono Digital; 2.1. Conceito de Abandono Digital; 2.2. Princípios Norteadores do Abandono Digital; 2.2.1. Da Dignidade da Pessoa Humana; 2.2.2. Da Paternidade/Maternidade Responsável; 2.2.2.1. Da PEC nº 185/2015 e o Dever de Vigilância dos Pais; 2.2.3. Do Direito ao Respeito; 2.2.4. Da Intimidade e Privacidade; 3. Efeitos na Vida da Criança e do Adolescente pelo Abandono Digital; 3.1. Da Pornografia de Vingança; 3.2. Da Adultização da Criança e do Adolescente; 3.2.1. O Trabalho Infantil Artístico; 4. Aplicação da Responsabilidade Civil dos Pais Pelo Abandono Digital e a Possibilidade de Condenação em Danos Morais. 5. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho abordará acerca do abandono digital da criança e do adolescente pelos seus genitores ou responsáveis e a responsabilidade civil destes em relação ao menor pelos possíveis danos causados ao seu desenvolvimento. Será realizada análise dos reflexos do abandono digital na vida do infante e do jovem, com a análise do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014).
É possível perceber que um dos direitos constitucionais que albergam os menores de 18 anos é o direito à liberdade e privacidade que vai ao encontro do princípio da parentalidade responsável, bem como o dever de cuidado que se impõe aos pais e responsáveis por aquele indivíduo em formação. Percebe-se que nos dias atuais as crianças e os adolescentes acessam a internet com cada vez mais facilidade e mais liberdade, agindo praticamente sem qualquer supervisão daqueles que deveriam fazê-la. Ante esse choque de direitos e deveres, levanta-se a questão problemática do abandono digital pela negligência da vigilância dos pais em relação aos filhos menores, abordando-se ainda os efeitos na vida daqueles que foram abandonados e até mesmo expostos indevidamente ao mundo cibernético prematuramente.
A pesquisa científica se demonstra como algo contemporâneo que vem avançando cada vez mais na sociedade atual, sendo a problemática de inquestionável relevância, pois com o desenvolvimento das tecnologias e o contato precoce da criança e do adolescente sem supervisão dos pais gera prejuízos muitas vezes irreparáveis a ordem psicológica do menor, expondo-o a realidades nocivas no mundo cibernético. O tema foi escolhido também com base na identificação com o direito civil e da criança e do adolescente que são vastamente abordados nesse trabalho.
O trabalho foi elaborado através de vasta pesquisa bibliográfica, que se baseou nos ensinamentos de grandes doutrinadores como Patrícia Peck Pinheiro, que aborda diretamente o abandono digital em sua obra, assim como nomes renomados na doutrina jurídica como Andrea Amin Rodrigues, Maria Berenice Dias, Jones Figueiredo Alves, Álvaro Villaça Azevedo, entre outros. Utilizaram-se ainda sensos realizados pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, entrevistas divulgadas nos meios de comunicação, outros artigos científicos que abordaram o tema tratado, jurisprudências que trataram de casos concretos que giram em torno da problemática, tudo com a finalidade de demonstrar um conciso posicionamento crítico.
A pesquisa jurídica está dividida em 4 (quatro) seções, a primeira seção trata quanto a evolução histórica dos direitos a infância e a juventude, falando sobre a doutrina da proteção integral que revolucionou o cenário nacional da época, conferindo uma vasta gama de direitos aos menores de 18 anos, já na segunda seção disserta-se sobre o conceito de abandono digital, partindo das relações afetivas entre pais/responsáveis e filhos até se tratar do dever de cuidado e ainda os princípios que amparam o abandono digital, bem como o potencial conflito aparente de normas entre a legislação constitucional e a proposta de emenda à constituição n.º 185/2015.
Na terceira seção são abordados os efeitos do abandono digital na vida da criança e do adolescente, onde são analisados fenômenos como: a pornografia de vingança, com análise do posicionamento jurisprudencial dos casos concretos envolvendo principalmente adolescentes; a adultização da criança e do adolescente pelo uso precoce e desordenado das mídias sociais e o trabalho infantil artístico como grande causador de danos ao desenvolvimento psicossocial do menor de 18 anos. Por fim, na última seção se trata quanto à aplicação da responsabilidade civil em relação aos pais e responsáveis, analisando ainda a possibilidade de condenação destes em danos morais pelos prejuízos causados ao menor.
1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO A INFÂNCIA E A JUVENTUDE
Durante o século XVIII fora registrado um número alarmante de mulheres que abandonavam seus filhos, sendo incontáveis as crianças que eram jogadas em rios, ou abandonadas ao tempo onde acabavam morrendo acometidas por doenças, desnutrição, entre outros motivos. Ante essa realidade, o Papa Inocêncio III determinou que fossem criadas em todas as casas de Misericórdia as chamadas “Roda dos Expostos” também conhecida como “Roda dos Enjeitados”.
O objeto se tratava de um cilindro instalado na parede da casa que girava de dentro para fora, tendo por propósito oferecer a possibilidade de uma vida digna aos bebês rejeitados por suas mães, que poderiam fazer a entrega dos infantes de forma anônima. As primeiras rodas surgiram em Portugal, a partir de um esforço conjunto do clero, da coroa e da sociedade, tendo chegado ao Brasil tão somente no ano de 1726 na Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, localizada na Bahia. Com o passar dos anos ficou difícil manter as casas de misericórdia espalhadas pelo Brasil, devido ao alto número de crianças abandonadas, que não conseguiam mais prestar assistência aos expostos, motivo pelo qual foram extintas as rodas em todo o mundo.
Em 1942 ocorreu a criação do SAM – Serviço de Assistência ao Menor, órgão ligado ao Ministério da Justiça que tinha dois principais objetivos, quais sejam: (i) funcionar como reformatórios e casas de correção para adolescentes infratores, e (ii) patronatos agrícolas e escolas que ensinavam os ofícios urbanos aos infantes carentes e abandonados. Com o golpe militar ocorrido em 1964, o SAM foi extinto e em seu lugar surge a FUNABEM – Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor e a FEBEM – Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor em cada Estado da federação.
No ano de 1979 foi promulgado o 2º Código de Menores, contendo desde então a doutrina da proteção integral que proibia castigos físicos, caminhando para uma assistência mais aberta, dando ainda ao Estado o poder de recolher crianças e adolescentes em situações irregulares e condenar esses menores ao internato até se tornarem indivíduos em pleno gozo de seus direitos civis e aptos a responder legalmente por seu comportamento, isso porque mesmo com a doutrina protecionista essa legislação ainda considerava que a criança e o adolescente seriam inferiores aos adultos em termos de cidadania.
A doutrina da situação irregular defendia que os menores seriam considerados sujeitos de direito merecedores de atenção judicial quando estivessem em situações tidas por irregulares, devidamente definidas em lei, não sendo as demais crianças e jovens sujeitas à ingerência da legislação jurídica. Em contrapartida, a doutrina da proteção integral, posteriormente adotada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente trouxe grandes modificações, tais como: (i) toda criança e adolescente passou a ser agora sujeito de direito afastando-se da disposição passiva que se encontravam na legislação anterior, (ii) se transformaram em destinatários de extrema prioridade e (iii) tornaram-se indivíduos merecedores de respeito quanto a peculiar situação de pessoa em desenvolvimento.
A doutrinadora Andréa Rodrigues Amin classificou a doutrina da proteção integral da seguinte forma:
Assim, podemos entender que a doutrina da proteção integral é formada por um conjunto de enunciados lógicos, que exprimem um valor ético maior, organizada por meio de normas interdependentes que reconhecem criança e adolescente como sujeitos de direito. (AMIN, A. R., Curso de direito da criança e adolescente: aspectos teóricos e práticos, 2017, p. 44).
Conclui-se, portanto, que a nova doutrina firmou a ideia de que toda criança e adolescente seja ela abandonada, vítima, autora de atos infracionais ou não, deve receber o mesmo tratamento legal, à luz da dignidade da pessoa humana e tantos outros princípios que complementam a referida teoria, vedando-se qualquer discriminação.
Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988, dentre tantos outros direitos e garantias fundamentais, mais precisamente em seu artigo 227, senão vejamos:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988)
Foi, portanto, instituído que o bem-estar da criança e do adolescente seria responsabilidade comum do Estado, dos genitores e da sociedade, de modo a preparar o campo jurídico, que já vinha se modificando ao longo dos anos numa doutrina protecionista, que teve seu apogeu com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, datada de 20 de novembro de 1989, sendo ratificada pelo Brasil em 24 setembro de 1990, guardando como objetivo principal a proteção das crianças e adolescentes.
Sem demora, em 13 de julho de 1990, surge o Estatuto da Criança e do Adolescente no ordenamento jurídico brasileiro sob a Lei nº 8.069/90, como resposta a movimentos sociais da época que partiam da premissa que as crianças também deveriam ser destinatárias de direitos, devendo estar sob a proteção do Estado, sendo ainda reflexo do cenário internacional daquele período. O ECA representou a época uma total ruptura com o panorama jurídico anterior, adotando definitivamente o Princípio da Proteção Integral que se conduzia de forma antagônica ao princípio da situação irregular prevalecente na legislação revogada.
Ocorre que, desde então o Brasil encontra-se numa frequente evolução dos direitos inerentes a proteção da criança e do adolescente, aprimorando a própria Lei nº 8.069/90, bem como criando institutos legais com a verdadeira intenção possibilitar que os direitos Constitucionais se cumpram no seu plano prático, tirando um número crescente de menores que se encontram em situações esdrúxulas, como: prostituição infantil, trabalho escravo, violências físicas e morais, dentre as mais diversificadas circunstâncias.
2. DO ABANDONO DIGITAL
2.1. CONCEITO DE ABANDONO DIGITAL
Inicialmente, faz-se mister atentar para o princípio da afetividade, tão necessário ao Direito de Família nos dias atuais. Flávio Tartuce menciona que “o afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares.” Com a evolução do conceito de família, o parentesco passou de algo que somente diz respeito somente ao gene que se herda dando forma as características genéticas de cada ser humano, seu DNA, para ser agora a ligação afetiva entre duas pessoas, que vai muito além de meras ligações sanguíneas. Os laços afetivos são capazes de construir relacionamentos tão fortes, que a herança genética fica em segunda plano. (TARTUCE, Flávio. 2019, p. 55).
O professor Rolf Madaleno faz algumas importantes considerações quanto ao assunto abordado, que tomo a liberdade de transcrever abaixo:
(…) o afeto decorre da liberdade que todo indivíduo deve ter de afeiçoar-se um a outro, decorre das relações de convivência do casal entre si e destes para com seus filhos, entre os parentes, como está presente em outras categorias familiares, não sendo o casamento a única entidade familiar. (MADALENO, Rolf. Direito de Família, 2018, p. 145)
Na concepção deste ilustre doutrinador o afeto dá significado e dignidade à existência humana, podendo variar em sua intensidade ante as particularidades de cada caso concreto.
Tendo a afetividade como elemento integrante as relações familiares e sendo um dos principais pilares da família, exige-se dos genitores o dever de criar e educar sua prole sem deixar de lhes guarnecer com o carinho necessário para construção integral de sua personalidade.
Maria Berenice Dias menciona que dada à importância do convívio familiar entre pais e filhos e a criação de laços afetivos entre si, motivou vultosos debates que não se pode mais falar sobre afeto sem correlacioná-lo com o que a ilustre doutrinadora chama de “paternidade responsável”, desta forma:
(…) a convivência dos pais com os filhos não é um direito, é um dever. Não há o direito de visitá-lo, há a obrigação de conviver com eles. O distanciamento entre pais e filhos produz sequelas de ordem emocional e pode comprometer o seu sadio desenvolvimento. O sentimento de dor e de abandono pode deixar reflexos permanentes em sua vida. (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 2016, p. 138).
As sequelas causadas pela ausência de laços afetivos ocorridas pela omissão dos genitores quanto a um dos seus deveres mais consideráveis na instituição familiar é tão grave que pode gerar graves danos passíveis até mesmo de reparação indenizatória.
A Carta Magna do Brasil, em seu artigo 229, bem como o ECA em seu artigo 22 nos trazem o dever de cuidado dos genitores em favor de sua prole, onde “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.” (BRASIL, 1988)
Ademais, no artigo 227 da CRFB/88 afirma ser dever da família, da sociedade e do Estado, dentre outros direitos básicos elencados no dispositivo que amparam da criança e do adolescente, o direito a liberdade. Em seu artigo 15 o ECA também assevera que toda criança e adolescente, dentre outras garantias, tem direito à liberdade.
Entretanto, no artigo 16 do mesmo Diploma Legal encontra-se a definição positivada do que para o ECA é considerado como liberdade, apresentando a garantia constitucional inerente a toda pessoa humana na sua modalidade mitigada em razão das especificidades dos destinatários da norma. Portanto, conclui-se que os aspectos apresentados pelo Estatuto deverão ser respeitados com o intuito de proporcionar a criança e o adolescente uma vida de melhor qualidade, apresentando-se o dever de cuidado, neste ponto, como elemento garantidor das proteções que amparam a criança e o adolescente.
Em 23 de abril de 2014 surgiu então o Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965/2014, que veio estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. No artigo 29 da lei retromencionada fica determinado que, respeitando o Estatuto da Criança e do Adolescente, é dever dos pais controlar o conteúdo ao qual os filhos têm acesso, ficando ao seu critério regular o que se entende por impróprio para consumo do menor.
Patrícia Peck Pinheiro, em sua obra que trata sobre direito digital, adverte quanto à insegurança do acesso à internet pelos menores, de forma não supervisionada por seus genitores, vejamos:
Os pais têm responsabilidade civil de vigiar os filhos. Isso quer dizer que precisam saber com quem eles estão, como estão e onde estão! Não dá para se contentar com a resposta “ele está na internet”, como se fosse um ambiente próximo, protegido e seguro. A internet é a rua da Sociedade atual! (PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital Aplicado 2.0, 2016, p. 98)
Destaque-se que em concordância com os ensinamentos de Pinheiro, algumas situações podem até mesmo gerar aos pais uma falsa sensação de segurança como, por exemplo, o computador de acesso que o menor utiliza ficar localizado na sala de casa, ou a proibição do uso de senha no smartphone que a criança ou adolescente manuseia.
A doutrinadora Patrícia P. Pinheiro ainda defende que equipamentos tecnológicos só deveriam ser entregues nas mãos dos filhos após a instalação de softwares de controle pelos responsáveis, posto que considera que nos dias atuais nossos jovens são os novos “menores abandonados digitais”. E mesmo com a instalação de programas e restrições, sempre caberá aos responsáveis pela criança ou adolescente a obrigação de saber onde está o menor e quem são suas companhias. (PINHEIRO, 2016, p. 98).
Em janeiro de 2017 na Revista Consultor Jurídico foi publicado um texto escrito pelo Desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Jones Figueiredo Alves, também diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), onde conceituou o abandono digital nos seguintes termos:
O “abandono digital” é a negligência parental configurada por atos omissos dos genitores, que descuidam da segurança dos filhos no ambiente cibernético proporcionado pela internet e por redes sociais, não evitando os efeitos nocivos delas diante de inúmeras situações de risco e de vulnerabilidade. (ALVES, Jone Figueiredo. PROCESSO FAMILIAR Negligência dos pais no mundo virtual expõe criança a efeitos nocivos da rede. CONSULTOR JURÍDICO, 2017, ONLINE)
Logo, o que se percebe atualmente é o incentivo ao uso precoce dos aparelhos que propiciam o acesso à internet, fazendo que eles funcionem como verdadeiras “babás eletrônicas”, onde os pais são acometidos por uma falsa segurança de que o acesso à rede mundial de computadores funcionaria como uma “boa distração”. Os pais acabam mantendo os filhos por mais tempo em casa, na tentativa de protegê-los dos perigos a que podem ser expostos caso saiam do lar, sem ao menos perceberem que o perigo continua presente, ao alcance das mãos dos jovens, possuindo o consentimento dos genitores para atuar livremente.
2.2. PRINCÍPIOS NORTEADORES DO ABANDONO DIGITAL
2.2.1. DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Não há como iniciar uma discussão sobre o abandono da criança e do adolescente sem considerar a extrema importância do princípio fundamental constitucional que diz respeito à dignidade do ser humano, tendo na visão da doutrinadora Ana Paula de Barcellos o referido princípio se tornado um axioma da civilização ocidental. (BARCELLOS, 2018).
Nos tempos antigos a dignidade de um indivíduo estaria ligada a sua competência e capacidade, que se defrontava pelos títulos que o cidadão possuía, aptidão intelectual, dentre outros atributos ligados ao indivíduo. A evolução desse conceito se deu principalmente com o surgimento dos ideais cristãos, que representaram o ponto de mudança de pensamento do mundo antigo. Isso porque o homem era reconhecido agora como imagem e semelhança de Deus, sendo, portanto, a dignidade mérito de todo ser humano, pois ambos resguardariam uma unidade entre si.
Antes do advento da Segunda Guerra Mundial, registra-se que a dignidade da pessoa humana fora referenciada expressamente constitucionalmente poucas vezes, sendo, portanto, constatado na Constituição Alemã (1919), também conhecida como Constituição de Weimar, bem como a Carta Constitucional portuguesa (1933), a Carta Magna Brasileira (1934) e a Constituição da Irlanda (1937). Isso porque como reação as atrocidades ocorridas na Segunda Guerra Mundial pelos regimes totalitários, tanto a ONU através da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), quanto diversas constituições nacionais, passaram a proclamar e garantir a dignidade da pessoa humana acompanhada da Carta Magna Brasileira (1988).
Walber de Moura Agra em seu livro conceitua o referido princípio da seguinte forma:
(…) representa um complexo de direitos que são inerentes à espécie humana, sem eles o homem se transformaria em coisa, res. São direitos como vida, lazer, saúde, educação, trabalho e cultura que devem ser propiciados pelo Estado e, para isso, pagamos tamanha carga tributária. Esses direitos servem para densificar e fortalecer os direitos da pessoa humana, configurando-se como centro fundante da ordem jurídica. (AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional, 2018, p. 145)
Conclui-se então que a dignidade da pessoa humana ampara todos os direitos e princípios constitucionais de modo a garantir que cada indivíduo tenha a capacidade de desenvolver-se com distinção, tendo acesso aos itens básicos para uma formação íntegra, se tornando parte da sociedade civilizada.
Sublinha-se, portanto que o princípio abordado nesse ponto, dado ao caráter axiológico da constituição, irradia seus efeitos para todo o ordenamento jurídico, albergando, portanto, todas as crianças e adolescentes sem qualquer discriminação, tendo assegurado o direito de serem tratadas com dignidade.
2.2.2. DA PATERNIDADE/MATERNIDADE RESPONSÁVEL
A paternidade/maternidade responsável encontra seu fundamento disposto nos artigos 226, §7º e 227, caput, ambos da Constituição da República Federativa do Brasil, bem como artigos 3º e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente e, por fim, no Código Civil, em seu artigo 1.566, inciso IV.
Conceitua-se o referido princípio como sendo dever dos genitores de prover aos filhos assistência moral, material, intelectual e afetiva, em outras palavras seriam a incumbência social colocada ao homem e a mulher que decidem conceber uma nova vida. Nunca é demais notar que a parentalidade responsável2 está intimamente ligada com o princípio do planejamento familiar consagrando a liberdade que o casal possui quanto a estruturação do núcleo doméstico, tendo autonomia para tratar sobre as mais diversas questões, inclusive quanto a natalidade, sendo vedadas coerções de quaisquer espécies pelo Estado ou até mesmo por particulares.
A corroborar com esse pensamento temos os ilustres doutrinadores Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf que preconizam, in verbis:
Entendemos que a procriação não deve mais ser vista como a finalidade precípua do casamento. Razões de ordem médica, aliadas à fruição do direito à autonomia pessoal e à liberdade de escolha, direitos personalíssimos, amparadas no princípio da paternidade responsável, fazem com que o casal possa optar por ter ou não ter filhos, não invalidando por esta razão a higidez do casamento celebrado. (MALUF, C. A. D; MALUF, A. C. D. R. F. D. Curso de Direito de Família. 3. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 59.)
Logo, conclui-se que a partir do momento que o casal decide conceber um filho, assumem também a responsabilidade quanto ao amparo e cuidado necessários ao digno desenvolvimento do menor, possibilitando que todos os princípios fundamentais protetores a criança e ao adolescente sejam cumpridos em seu plano prático.
2.2.2.1. Da PEC nº 185/2015 e o dever de vigilância dos pais
Aos genitores cabe o dever de cuidar e educar seus filhos, sempre observando os limites impostos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente para que o desenvolvimento do menor de 18 anos aconteça de forma saudável. Tem previsão legal no art. 22 do ECA, que determina aos pais o dever de sustento, guarda e educação de sua prole. Ainda o Código Civil, devidamente alterado pela Lei nº 13.058 de 2014, em seu art. 1.634, inciso I, confirma a obrigação anteriormente disposta no Estatuto, no sentido de incumbir aos pais da obrigação de educar e criar seus filhos.
A doutrinadora Andrea Rodrigues Amin traz o seguinte entendimento:
A guarda como atributo do poder familiar constitui um direito e um dever. Não é só o direito de manter o filho junto de si, disciplinando-lhe as relações, mas também representa o dever de resguardar a vida do filho e exercer vigilância sobre ele. Engloba o dever de assistência e representação. (AMIN, Andrea Rodrigues. Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos, 2017. p. 143 e 144)
Logo o dever de vigilância parental transcende o fato de manter o menor junto de si, na verdade, diz respeito aos cuidados necessários ao saudável desenvolvimento da criança e do adolescente, que precisa de uma assistência especial. O dever de zelar pela vida dos filhos é uma expressão do poder familiar que busca a proteção integral daqueles que dela necessitam para sua formação psicológica e social.
O professor Boff (2005) afirma que o cuidado se divide em duas ramificações, onde a primeira estaria ligada a atenção e dedicação para com o outro e a segunda, decorrente da primeira, estaria ligada ao envolvimento afetivo entre pais e filhos, resultando na aflição e desassossego em relação ao outro. Portanto, devem os genitores certificarem-se quanto a segurança de seus filhos quanto estão fisicamente próximos, mas principalmente quando não estiverem em sua companhia.
De outro lado temos a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) n° 185/2015 com o intuito de acrescentar um novo inciso ao artigo 5º da Carta Magna Brasileira que visa garantir a todo indivíduo o livre acesso à internet como um direito fundamental de todo cidadão brasileiro, elaborada pela deputada Renata Abreu. Encontra-se atualmente no aguardo da criação de uma comissão especial para ser analisada, seguindo empós a votação em plenário.
Cumpre ressaltar a existência de um potencial conflito aparente de normas, isso porque caso a PEC seja efetivamente aprovada, somada ao princípio da intimidade e privacidade que ampara os menores de 18 anos, iria de encontro com o dever de vigilância que é imposto aos genitores e responsáveis, também previsto nos artigos 226, §6º e 277, ambos da Carta Magna do Brasil.
No caso em questão estaríamos diante de uma antinomia jurídica, pois conforme leciona Pereira (2017), são situações em que duas ou mais normas jurídicas mostram-se incompatíveis entre si. É relevante apontar ao fato que o infante e o adolescente são pessoas em desenvolvimento, que precisam de cuidados especiais e atenção redobrada, principalmente nos dias atuais com a evolução do mundo tecnológico, desta forma, mesmo devendo ser resguardado o seu direito a vida íntima e privada, e caso aprovada a PEC em comento, o livre acesso à internet, os pais e responsáveis tem legitimidade para adentrar o que por vezes venha a ser considerado “privado” e “intimo”, principalmente quanto a liberdade, pois a estes cabe o dever de educar e proteger aqueles que estão sob seus cuidados.
Logo, caso seja aprovada a emenda constitucional n.º 185/2015, mesmo tendo acesso livre a internet como direito fundamento a ser exercido pelo menor, ainda sim esse acesso deverá ser vigiado pelos pais, considerando que por se tratarem de pessoas em desenvolvimento, que não detêm o discernimento necessário quanto aos perigos a que são expostos na rede mundial de computadores.
2.2.3. DO DIREITO AO RESPEITO
Disciplinado no art. 17 do ECA, o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral do infante e do adolescente, abarcando a proteção da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, das ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. (ECA, 1990). Na doutrina, respeito é o tratamento gentil à própria consideração que se deve manter nas relações com as pessoas respeitáveis, seja pela idade ou por outros aspectos sociais inerentes ao indivíduo. A integridade física, psíquica e moral a que se pretende resguardar deverá ter como objeto final a proteção do infante e do adolescente de qualquer abuso que possa ser cometido pelos genitores e responsáveis, não devendo ser visto como um instituto repressor do poder familiar.
Ferreira (2008) afirma em sua obra que a afronta ao direito que toda criança e adolescente tem de ser respeitado integra-se nas mais diversas modalidades e uma delas é a negligência dos genitores ou responsáveis legais, caindo muitas vezes no pecado de lidarem com o infante e o pubescente como objetos. Esse tratamento não escolhe classe social, todas as famílias estão sujeitas a passar por situações em que os adultos se sobrepõem aos menores de uma forma abusiva e totalmente desgovernada, não medindo as consequências de seus atos.
Portanto, o direito ao respeito resguarda ainda mais a garantia que a criança e o adolescente têm de gozarem do seu estado de pessoa em desenvolvimento com o merecido amparo, para que não sejam causados prejuízos ao processo de evolução do indivíduo sob o risco de serem inseridos precocemente na vida adulta.
2.2.4. DA INTIMIDADE E PRIVACIDADE
Previsto no art. 5, inciso X, da Carta Magna Brasileira, o direito a intimidade e privacidade, também conhecido como direitos morais do cidadão, consiste no amparo da criança e do adolescente de qualquer intromissão arbitrária na vida particular destes, em suas mensagens, no núcleo familiar e seu domicílio, além de atentados a sua honra. De acordo com o pensamento de Motta (2018) o direito a intimidade visa reconhecer em favor de um indivíduo a existência de um ambiente inviolável, sendo, portanto, protegido de possíveis intervenções ocasionadas por outras pessoas, na sua vida privada.
Com o avanço da tecnologia o legislador percebeu que seria necessário criar um instituto apto a defender a vida das pessoas, impedindo que sejam devassamente violadas e divulgadas as informações íntimas de cada indivíduo expondo-o aos mais diversificados constrangimentos e causando numerosos danos. Agra (2018) conceitua a vida privada como sendo todos os relacionamentos mantidos entre o cidadão e sua família e as demais pessoas com quem partilha seu convívio diário.
Outrossim, é oportuno trazer a discussão os conceitos elaborados pelo doutrinador Tavares, que abaixo transcrevo:
Assim, a intimidade seria a camada ou esfera mais reservada, cujo acesso é de vedação total ou muito restrito, geralmente para familiares. Já a vida privada estará representada por uma camada protetiva menor, embora existente. Muitos podem ter acesso, mas isso não significa a possibilidade de divulgação irrestrita, massiva, ou a desnecessidade de autorização. (TAVARES, Andre Ramos. Curso de Direito Constitucional, 2012. p. 676.)
Desta feita, na visão do citado doutrinador, apesar de a privacidade e a intimidade serem institutos que por vezes chegam a ser tratados de maneira sinônimas, apresentam particularidades entre si, mesmo que muitas vezes sutis, onde a intimidade representaria um campo mais discreto da vida do indivíduo e a privacidade representa um acesso mais fácil a vida pessoal de determinada pessoa, mas sem qualquer possibilidade de propagação do conteúdo na rede mundial de computadores.
3. EFEITOS NA VIDA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE PELO ABANDONO DIGITAL
Nos dias atuais crianças e jovens tem se comunicado com cada vez mais facilidade através da internet, utilizando-se das redes sociais de rápido alcance pelo celular. Crescentemente os pais têm entregado nas mãos dos filhos os mais diversos e tecnológicos aparelhos, como ipad, ipod, tablet, enfim, uma gama interminável de novas inteligências artificiais.
O doutrinador Rossato (2017) posiciona-se no sentido de que apesar de o mundo ter vivenciado nos últimos tempos um levante quanto a disponibilidade e difusão das mais diversificadas informações que estão sobre o fácil acesso dos usuários, ocorreu, em contrapartida, o surgimento de muitas adversidades pela alta exposição dos indivíduos na rede mundial de computadores, que não raras vezes trocam informações com outros utentes sem qualquer cautela, ficado vulneráveis a astúcia de pessoas que se utilizam do benefício que é a internet para prejudicar os demais.
Em 2017 o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística realizou uma pesquisa suplementar sobre Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), baseando-se em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), sendo o público-alvo cidadãos com idade igual ou superior a 10 anos. (IBGE, 2017)
Na retromencionada pesquisa constatou-se que 98,7% dos brasileiros possuem aparelhos celulares para acessar a internet, destes apenas 52,3% possuíam em suas residências microcomputadores, tendo diminuído em 5,5% esse número se comparado ao ano de 2016, sendo, portanto, o telefone móvel o aparelho mais utilizado pela população brasileira para acessar a internet. A pesquisa ainda aponta que 95,5% dos brasileiros tem por finalidade principal utilizar-se da internet para enviar e receber mensagens de texto, voz ou imagens pelos mais diversificados aplicativos.
Em 25 de outubro de 2011 o website UOL publicou uma notícia sobre uma pesquisa realizada pela empresa de segurança Trend Micro, intitulada “Internet Safety for Kids & Families” (Segurança de Internet Para Crianças & Famílias), onde fora constatado que as crianças brasileiras tinham seu primeiro contato com as redes sociais aos 9 anos, enquanto a média mundial é de 12 anos, tendo também indicado a pesquisa que os genitores brasileiros são menos rígidos em relação ao acesso dos filhos, entretanto os que tem mais cuidado com a privacidade da prole nas redes sociais. (SATURNINO, 2011)
Em 2017 o site CETIC.br disponibilizou pesquisas, indicadores e estatísticas feitas por TCI Kids Online Brasil. O estudo tinha por principal objetivo analisar os principais hábitos dos jovens na internet, tendo ocorrido em 2017 com infantes e adolescentes de todo o País com idades entre 9 a 17 anos, divulgando alguns dados verdadeiramente alarmantes. Por exemplo, perguntado aos entrevistados quanto a permissão que recebiam para usufruir da internet, 78% responderam que podiam trocar mensagens sozinhos, destes 75% disse ter permissão para usar as redes sociais sem a presença do seu responsável e ainda 59% eram autorizados a postar fotos e vídeos nos aplicativos que utilizam para se comunicarem. (2017, ONLINE)
Os dados apresentados acima são claros ao demonstrarem a realidade, os pais têm uma sensação de falsa segurança quando os filhos estão utilizando a internet, basta analisarmos outra pesquisa disponível no sítio supramencionado, onde 67% das crianças e adolescentes entrevistadas responderam que os pais ficam por perto quando eles estão navegando na internet, mas não supervisionam o conteúdo que os filhos estão consumindo, eis onde reside o perigo.
Pinheiro (2016) menciona que os menores que estão expostos a maiores riscos na internet tem entre 10 a 14 anos, isso porque as crianças e os jovens são incentivados a “consumir tecnologia” cada vez mais cedo, principalmente em aparelhos mais íntimos como celulares, que progressivamente deixam de ser supervisionados pelos genitores ou responsáveis. A escritora complementa seu pensamento indicando que a busca por vídeos na internet são seu principal alvo, por isso ficam mais expostos e a falta de vigilância deixa-os mais vulneráveis para que sofram assédio, por exemplo.
A Câmara dos Deputados publicou dados colhidos através de pesquisas realizadas por institutos nacionais e internacionais, onde uma delas aborda os riscos associados ao uso inseguro da internet, retirada da fonte International Centre for Missing and Exploited Children (ICMEC). Atesta-se que a pornografia infantil é um dos maiores riscos do uso da internet pela criança e adolescente sem a supervisão dos pais, com a informação de que o abuso sexual movimenta entre $3 a $20 milhões de dólares por ano, indicando como possíveis fomentadores desse fenômeno a diminuição da idade média para utilização das redes sociais e o surgimento de novos, mais inteligentes e modernos aplicativos com as principais funções de troca de mensagens e fotos. (2015, ONLINE)
Ao conceituarmos o abandono digital utilizando-se das palavras da brilhante advogada Patrícia Peck Pinheiro (2016), abordamos que a internet é a “rua” da sociedade nos dias atuais. A complementar esse pensamento, temos as palavras de Andrea Rodrigues Amin, que assevera:
Por vezes, no entanto, verifica-se o descaso e descuido dos genitores com relação ao exercício da vigilância sobre o filho, seja este bem pequeno ou púbere. A este, normalmente, lhe é permitido transitar, sem restrições, pelas ruas e frequentar sozinho alguns locais. Havendo displicência e negligência dos pais acerca da orientação e da vigilância do filho, com frequência redunda na escolha de ambientes e pessoas inadequadas por parte deste, expondo-o a danos em sua formação moral e quiçá física. (AMIN, Andrea Rodrigues. Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos, 2017. p. 144)
Desta forma fica evidenciado que diversas vezes os genitores não agem com a devida responsabilidade em relação aos seus filhos e esse abandono digital é um eminente causador dos mais diversos problemas na vida social e no desenvolvimento pessoal do infante e do adolescente sob a guarda destes pais.
Muitos menores de 18 anos sofrem ainda na internet com situações como: ciberbullying, a exposição a material pornográfico, exploração sexual, contato com pessoas desconhecidas, onde algumas dessas crianças e adolescentes chegam até mesmo a encontrar-se com os indivíduos que conheceram no mundo virtual. Isso ocorre porque elas não têm capacidade para identificar uma conversa maliciosa, nem quando estão sendo supostas ao perigo. Na maioria das vezes os abusadores utilizam “disfarces cibernéticos” para ludibriar os menores com quem mantém contato virtual até encontrarem brechas para que os infantes enviem fotos com determinadas roupas, por vezes chegando a pedir fotos sem qualquer vestimenta.
3.1. DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA
Com origem nos Estados Unidos da América, onde é chamado por revenge porn, a acadêmica Freitas (2015) conceitua o fenômeno que se trata neste capítulo como sendo o ato de tornar pública na internet fotos íntimas de pessoas com as quais se tem certa proximidade ou que são conhecidas do seu círculo de amizades, por assim dizer, mesmo que virtuais, sem o consentimento da pessoa que está sendo exposta indevidamente.
No ano de 2013 foi noticiado pelo site O Globo o suicídio de uma adolescente de 16 anos em Porto Alegre que supostamente exibiu partes íntimas do seu corpo durante uma conversa com um ex-namorado utilizando a webcam. O namoro acabou e cerca de 6 meses depois o rapaz divulgou as fotos na internet. Uma semana antes do mesmo ano, outra jovem de mesma idade que morava no Piauí também se suicidou após descobrir que algumas imagens dela praticando ato sexual circulavam pelo aplicativo WhatsApp sem a sua permissão. (2013, ONLINE)
Com o passar dos anos a facilidade e rapidez para compartilhar qualquer informação, verídica ou não, avançaram tanto que no ano de 2017, K. S. Oliveira, uma jovem de 15 anos, ouviu rumores de que um ex-namorado havia divulgados fotos íntimas de uma relação sexual que eles haviam tido um ano antes do ocorrido. Dadas as circunstâncias, não é difícil concluir que os jovens não cogitam as consequências de seus atos, nem aqueles que trocam fotos íntimas, muitas vezes baseados na confiança de quem as recepciona, nem aqueles que amplamente divulgam as referidas imagens. (2017, ONLINE)
Foi julgado em 11 de março de 2018 no Superior Tributal de Justiça um processo da Relatoria da Min. Nancy Andrighi, em que uma jovem teve o cartão de memória do seu aparelho celular furtado por um colega de colégio, ocasionando na vasta divulgação de um vídeo feito pela jovem de cunho sexual que estava armazenado no objeto furtado. Em seu voto a desembargadora defendeu que:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. RETIRADA DE CONTEÚDO ILEGAL. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. PROVEDOR DE PESQUISA. FILTRAGEM PRÉVIA DAS BUSCAS. IMPOSSIBILIDADE. RETIRADA DE URLS DOS RESULTADOS DE BUSCA. POSSIBILIDADE. EXPOSIÇÃO PORNOGRÁFICA NÃO CONSENTIDA. PORNOGRAFIA DE VINGANÇA. DIREITOS DE PERSONALIDADE. INTIMIDADE. PRIVACIDADE. GRAVE LESÃO. […] 7. A “exposição pornográfica não consentida”, da qual a “pornografia de vingança” é uma espécie, constituiu uma grave lesão aos direitos de personalidade da pessoa exposta indevidamente, além de configurar uma grave forma de violência de gênero que deve ser combatida de forma contundente pelos meios jurídicos disponíveis. […] 9. Na hipótese em julgamento, a adolescente foi vítima de “exposição pornográfica não consentida” e, assim, é cabível para sua proteção a ordem de exclusão de conteúdos (indicados por URL) dos resultados de pesquisas feitas pelos provedores de busca, por meio de antecipação de tutela. (REsp 1679465/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/03/2018, DJe 19/03/2018)
É indiscutível a violação dos direitos da pessoa que se expõe sem que haja o seu consentimento, da repercussão na vida social e íntima, principalmente quando se tratam de adolescentes.
Outro caso foi julgado em 6 de dezembro de 2018 no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, pela 8ª Câmara Cível, sob a relatoria do Des. Ivan Leomar Bruxel, onde foram divulgadas imagens de conotação sexual de uma adolescente, sem o seu consentimento, vejamos trechos do julgado:
No caso em exame é nítida a lesão do direito à honra e à imagem da pessoa humana, especificamente, da adolescente protegida, posto a publicação de fotos e vídeos com conteúdos pornográficos da menor J.C.H., em site com acesso mundial. A Lei nº 8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, em seus artigos 15, 17 e 18, previu que a criança e o adolescente possui o direito a intimidade, ao respeito e a dignidade da pessoa humana, cabendo ao Estado o dever de prover as condições ao seu pleno exercício: […] Ainda, a própria Constituição Federal em seu artigo 227, caput, c/c 4º estabelece que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” e, sobretudo, prevê que “§ 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”. […] De fato, os elucidados artigos não foram obedecidos no caso em tela, visto que a imagem, a honra e a saúde psíquica da adolescente foram inteiramente desrespeitadas pela divulgação do material pornográfico na rede mundial de computadores. Desta feita, deve-se prosperar que a adolescente foi vitimada da postagem de suas fotos e vídeos pornográficos na internet, podendo ser visualizado por todos, indistintamente. Destaca-se, ainda, que tais fotografias e vídeos causam grave dano irreparável à vítima. (Apelação Cível, Nº 70074403130, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em: 06-12-2018).
Logo, pacifica-se com o presente julgado a ideia de ofensa grave ao direito da criança e do adolescente, bem como aos direitos constitucionais que protegem os menores em relação a sua intimidade. Viola brutalmente o desenvolvimento psicológico do adolescente, que passa por processo tão delicado de construção e solidificação.
Faz-se necessário ainda apresentar a diferença entre a pornografia de vingança e o que se conhece por sexting3. Esse fenômeno iniciou-se quando as pessoas ainda trocavam mensagens de texto com conteúdo erótico, antes mesmo do surgimento da internet móvel. A diferença entre esses eventos é que no sexting ambas as partes consentem na troca de mensagens (fotos, áudios, vídeos ou textos) que possam ser considerados pornográficos. Já na pornografia por vingança, apesar de muitas vezes as imagens serem captadas sob a concessão da pessoa que se expõe, tem caráter mais insultuoso e agressivo, como o próprio nome diz: por vingança, na tentativa de retaliação por algum ato que desagradou aquele (a) que está de posse das imagens.
A partir das informações acima elucidadas é possível perceber a força que o “julgamento virtual” possui na vida das pessoas, principalmente na vida dos jovens que se encontram em construção constante de seu amadurecimento. Passar por uma alta exposição como essa pode e deve ser evitada a parti de uma ampla conversa entre pais e filhos, um esforço comum entre os núcleos familiares e as escolas. Mesmo sendo um problema aparentemente complexo, é preciso que se dialogue abertamente sobre o alto risco dessa exposição, os pais precisam assumir sua responsabilidade sobre seus filhos e esta frase não é dirigida apenas as necessidades financeiras, mas também as afetivas, interessando-se pela vida daqueles que estão sob sua guarda, cuidar das coisas que veem e atentar-se, principalmente, ao que eles não conseguem ver a olho nu.
3.2. DA ADULTIZAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Ao abordarmos nesse artigo científico quanto o direito ao respeito, concluiu-se sua importância, dentre outros aspectos, de modo a proporcionar que a criança e o adolescente vivam as fases da vida gozando de total integridade, evitando, portanto, que estas sejam inseridas na vida adulta abruptamente, sem qualquer preparo, exigindo destes uma maturidade que psicologicamente eles não têm, eis uma das consequências do desrespeito a esse princípio.
Acertadamente preceitua Amin que “a sociedade influenciada pela mídia parece exigir um comportamento cada vez mais adulto e sexualizado daqueles que ainda não estão amadurecidos” (AMIN, 2017, p. 83). Na concepção da doutrinadora retrocitada existem dois grupos de crianças que tornam visível essa situação, sendo elas: (a) aquelas que são cheias de compromissos escolares e extracurriculares, muitas vezes tendo rotinas mais frenéticas que a de seus próprios pais, chegando a se esquecerem de atividades saudáveis esperadas de uma criança, como brincar, e (b) aquelas que pelas circunstâncias sociais que estão inseridas precisam amadurecer mais cedo com a responsabilidade de ajudar seus pais no sustento da casa, seja diretamente; quando as próprias crianças sofrem exploração de mão de obra irregular; ou indireta; quando tomam para si a atividade de cuidar dos irmãos mais novos para que seus pais consigam sair e trabalhar.
As situações anteriormente narradas são as principais fomentadoras do amadurecimento precoce dos menores de 18 anos, também conhecido como pseudoamadurecimento ou pseudomaturidade, que consiste no fato de o infante ou adolescente pular certas fases da vida que precisam ser vividas por almejarem um estilo de vida que só teriam no futuro ou serem encorajados a isso (AMIN, 2017).
3.2.1. O trabalho infantil artístico
Se a primeira vista fora abordado um efeito do total descuido dos pais quanto ao acesso desregulado a internet por seus filhos, em outro percebemos que o incentivo dos genitores ao uso das tecnologias pelos menores de 18 anos pode ser tão nocivo quanto a falta de supervisão. É importante nesse ponto observar, como parte desse reflexo da pseudomaturidade, o trabalho artístico da criança e do adolescente.
Atualmente, mais uma vez citando o avanço da tecnologia e dos meios de comunicação, a informação movimenta-se de um lugar para o outro em frações de segundos. Muitas crianças já não sonham mais com carreiras tradicionais como ser médico, advogado, professor ou engenheiro, hoje em dia elas querem ser youtubers4, digitalinfluencers5, cantores, atores, atletas, etc. Em outros casos os próprios pais ou responsáveis incentivam os filhos que busquem por essas carreiras desde muito cedo.
Em ambos os casos as crianças ficam expostas a um reflexo negativo trazido pelo processo de responsabilidades em que elas são inseridas ao serem submetidas às atividades exercidas nessas novas profissões, pelo que passaremos agora a análise prática de alguns casos que repercutiram de forma negativa pela polêmica que causaram a época.
O caso mais conhecido e polêmico envolve a menina Gabriella Abreu Severino de 12 (doze) anos, também conhecida por MC Melody. Data de abril de 2015 a primeira vez em que o caso da cantora mirim gerou discussões calorosas no mundo cibernético, isso porque seu genitor Thiago Abreu, também conhecido por Belinho, foi acusado de incentivar a erotização da própria filha nas redes sociais, que a época possuía apenas 8 (oito) anos. O Ministério Público no Estado de São Paulo iniciou uma investigação para apurar quanto a presença de conteúdo erótico e apelos sexuais presentes nos conteúdos em que a menor protagonizava, pois, a preocupação se estendia não somente a jovem exposta, mas também ao público que amplamente consumia seu conteúdo. O caso foi abertamente divulgado pela BBC News Brasil. (2015, ONLINE)
Em 2018 o site Catraca Livre publicou uma matéria sobre a jovem, que havia retornado aos holofotes novamente de forma negativa quando apresentou ao público nas redes sociais, um visual reformado e adulto. A menina foi demasiadamente criticada pelos internautas que não concordaram com a maquiagem pesada ou as roupas vulgares que ela vestia, sendo tal conduta inadequada a sua idade. (2018, ONLINE)
O caso mais recente aconteceu em janeiro de 2019, quando o youtuber Felipe Neto, que posta vídeos no YouTube reagindo a clipes gravados pelos artistas com a finalidade de avaliá-los, publicou em seu twitter a decisão por “banir” a cantora mirim Mc Melody da sua lista de artistas avaliados, pois a menina tinha apenas 11 (onze) anos e ele teria precisado censurar uma foto para conseguir exibi-la ao seu público. A situação ficou tão grave que a menor chegou a desativar sua conta no instagram, onde possui o maior número de seguidores, por alguns dias, devido às muitas críticas que recebeu na referida rede social. (2019, ONLINE)
Passados alguns dias e após realizar uma varredura em seu instagram, excluindo todas as fotos que poderiam ser taxadas como vulgares pelos internautas, a menina retorna anunciando que sua carreira tomaria um novo rumo, após o firmamento de um TAC – Termo de Ajustamento de Conduta assinado pelos pais da menor com o Ministério Público de São Paulo. (2019, ONLINE)
Demonstrados os fatos acima comprova-se o incentivo parental quanto a exposição da menor e a confusão gerada na vida daquela que ainda hoje é considerada, pelos termos legais, como criança. Desde muito cedo incentivada a “ser uma estrela”, atrair para si a fama e os holofotes fora induzida a carregar seu conteúdo digital de uma sexualidade inapropriada à menor.
Infelizmente não são raros casos como este no Brasil, outros foram noticiados como os casos do menino Vinicius Ricardo de Santos Moura (Mc Brinquedo) que, ainda menor de idade, participava de videoclipes onde canta músicas inapropriadas, bem como da jovem Paloma Roberta Silva Santos, que em julho do ano passado foi proibida de fazer shows, pois não estava sequer matriculada regularmente na escola, motivo pelo qual cancelou todos os compromissos de sua agenda.
Araújo, Niebuhr e outros (2019) defendem que:
A erotização muitas vezes leva a pornografia infantil, trazendo grave dano à vítima que por ser exposta com sua imagem, viola-se a sua intimidade, causando danos e abalos psíquicos para a criança, além de muitas vezes colocar a criança em situação de risco, as tornando alvos para pedofilia e o sequestro infantil. (ARAUJO; NIEBUHR; AGUIAR, 2019)
Conclui-se, portanto, que a alta exposição da criança e do adolescente nas mídias sociais, muitas vezes com apelo sexual, pode causar graves danos ao menor de 18 anos, a sua imagem que deve ser plenamente respeitada, a sua vida social, colocando ainda em risco sua integridade física, fazendo com que sejam eles alvos fáceis de assédio nas mídias cibernéticas, bem como pedofilia e tantos outros males que brutalmente invadiram a sociedade com a modernidade.
Ademais, cumpre salientar que o art. 227 da Constituição Federal do Brasil é bastante claro quando fala que é dever do Estado, da família e da sociedade cuidar do infante e do adolescente, com toda prioridade que eles merecem, devendo, portanto, o desenvolvimento educacional, bem como a formação psicossocial serem tratadas com primazia. Incumbe aos pais e responsáveis a percepção e o discernimento de compreender quando alguma atividade apresenta efeitos ofensivos a integridade do menor sob sua guarda, principalmente as crianças e os adolescentes que iniciam cedo a exposição ao mundo das figuras públicas. Dificulta-se a estes ainda mais a diferenciação de sua vida profissional e privada, na maioria das vezes os limites entre um e outro são desconhecidos, sendo extremamente nocivo para esses menores que lidam costumeiramente com críticas agressivas a imagem deles próprios.
4. APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PAIS PELO ABANDONO DIGITAL E A POSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO EM DANOS MORAIS
Disposta nos artigos 186, 186, 927 e seguintes todos do Código Civil, a responsabilidade civil nada mais é, nos dizeres de Gagliano e Pamplona (2018), que uma obrigação derivada que faz com que o indivíduo assuma as consequências, de acordo com as normas legais, por um fato, podendo variar de acordo com os interesses que foram prejudicados.
Já nas palavras de Pereira (2018) a responsabilidade civil consistiria na efetivação da obrigação abstrata de reparar um dano causado, sujeito passivo do vínculo jurídico que se forma, sendo, pois, considerada como um binômio que consiste na subordinação do sujeito passivo a obrigação de reparar/ressarcir, não importando a discussão quanto a existência de culpa.
É importante sublinhar que a responsabilidade civil tem diversas ramificações, podendo ser contratual e extracontratual, objetiva e subjetiva, mas irei me ater e aprofundar tão somente a responsabilidade civil aplicada aos pais em relação aos filhos por ser este o objeto da presente pesquisa.
No artigo 927 do Código Civil encontramos a disposição do que se conhece por responsabilidade civil objetiva, que é a obrigação de reparar dano causado a outrem independente da comprovação de dolo ou culpa, por não ser um elemento necessário a esse tipo de responsabilidade, pois em determinados casos a lei impõe a obrigação de indenizar desde que haja a comprovação do nexo de causalidade e a conduta danosa do agente.
Em relação aos genitores, o Código Civil estabelece a responsabilidade dos pais em seu artigo 932, inciso I, pois considera a existência da culpa por falta de vigilância, conforme assevera o doutrinador Álvaro Villaça Azevedo, que transcrevo abaixo:
Tanto os pais têm o dever de cuidar de seus filhos menores, que com os mesmos se encontrem, como os tutores e curadores de seus tutelados e curatelados, sendo certo que a quebra desse dever de por eles zelar faz surgir, automaticamente, sua culpa por falta de vigilância (culpa in vigilando). Como se vê, a culpa dessas pessoas foi presumida, na lei, presunção essa iuris et de iure (absoluta), pois não pode ser ilidida por comprovação em contrário (…) (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de Direito Civil II: teoria geral das obrigações e responsabilidade civil, 2018. p. 179)
Em suma o que o ilustre doutrinador citado quer transmitir é o fato de que existe a determinação da teoria da proteção integral que determina que os genitores têm responsabilidade concorrente com a sociedade e o Estado de proporcionar a criança e o adolescente um ambiente digno e saudável, com condições mínimas ao seu desenvolvimento psicossocial. Une-se a este a obrigação que tem os genitores e responsáveis pelos menores em relação ao dever de vigilância, também conhecido como dever de cuidado, justificando deste modo a objetividade obrigacional imposta os pais.
Amin (2017) menciona que a sociedade exige comportamentos descritos como adequados, como as boas maneiras, cultura, sucesso financeiro, dentre outros, mas não coloca a disposição do povo os meios indispensáveis para alcançar o modelo ideal de cidadão estabelecido pela massa. Utilizo-me da presente citação para justamente defender que muitas vezes as crianças e os adolescentes não se desenvolvem de uma forma satisfatória, psicologicamente e socialmente falando, pela falta de cuidado e atenção daqueles que deviam fazê-lo por determinação da lei. Assumir a obrigação de ser pai, mãe ou até mesmo responsável legal por uma criança ou adolescente é também acolher o encargo de formar um ser humano em crescente evolução, que precisa aprender a melhor discernir entre o bem e o mal, compreender o mundo objetivamente e ser educado dignamente para compor a sociedade como cidadão que se atenta a moral e a boa-fé.
Portanto, a responsabilidade civil objetiva no que diz respeito a pessoa dos pais ou responsáveis, nada mais é que uma expressão do princípio da paternidade/maternidade responsável que busca resguardar o melhor interesse do menor de 18 anos que está sob a guarda daqueles. Devem compreender os pais que a falta de vigilância em relação aos atos dos filhos na internet causa prejuízos que, por vezes, podem ser considerados irreversíveis a formação do menor.
Sopesados os argumentos quanto a objetividade da responsabilidade civil em relação aos pais, empresto-me das palavras de Maria Berenice Dias (2016) quando diz que a criança e o adolescente são sujeitos de direito que foram contemplados pela doutrina da proteção integral para que fossem resguardados de qualquer negligência.
Complementa ainda seu pensamento dizendo:
Ao regulamentar a norma constitucional, o ECA identifica como direito fundamental de crianças e adolescentes o seu desenvolvimento sadio e harmonioso (ECA 7.º). Igualmente lhes garante o direito a serem criados e educados no seio de sua família (ECA 19) (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 2016, p. 138).
Tudo para consolidar a ideia de que tendo a criança e o adolescente as garantias protecionistas em seu favor, é imposto aos pais o encargo de fornecer aos filhos a formação necessária ao regular desenvolvimento de sua personalidade.
De modo a complementar o pensamento acima exposado, menciona Dias (2016) que quando os genitores se omitem a cumprir os compromissos defluentes do poder familiar, causando aos menores prejuízos de ordem psicológica, estes merecem reparação.
A doutrina tem o entendimento consolidado que a falta de amparo material ou imaterial deve sempre ser desencorajado através das sanções cabíveis. Amin apud Dias (2017) menciona que nos casos que desamparo imaterial a lei determina e responsabiliza os pais quanto aos cuidados necessários com seus filhos menores de 18 anos, pois a ausência de cautela e atenção aos valores constitucionalmente protegidos tem o condão de violar a integridade psicofísica dos filhos, gerando a obrigação ao pagamento de dano moral.
As consequências do abandono digital, fartamente demonstradas em capítulos anteriores, acompanhado de dados estatísticos atualizados pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, dentre outros institutos que realizaram as pesquisas que embasam este estudo, são per si capazes de demonstrar os danos causados pela falta de vigilância dos pais quanto ao que os filhos acessam na internet e suas atividades no mundo cibernético, bem como a forma que se comportam virtualmente quando interagem com outras pessoas.
CONCLUSÃO
A presente pesquisa desempenhou-se em explorar o abandono digital da criança e do adolescente e a responsabilidade civil dos genitores. Na primeira seção foi realizada uma evolução histórica dos direitos à infância e a juventude, onde foram pontuados os eventos que mais influenciaram na doutrina protecionista utilizada nos dias atuais.
Após, o trabalho se dirigiu a conceituar o “abandono digital” propriamente dito, explanando os princípios que amparam o presente instituto, quais sejam a dignidade da pessoa humana, a parentalidade responsável, o direito ao respeito e, por fim, a intimidade e a responsabilidade. Fora ainda abordando um possível conflito aparente de normas entre a PEC n.º 185/2015 e o dever de vigilância imposto aos genitores, disposto nos arts. 226, §6º e 227, ambos da Constituição Federal.
Dando continuidade a pesquisa analisaram-se os efeitos do abandono digital na vida da criança e do adolescente, comparando pesquisas e estatísticas realizadas por instituições nacionais e internacionais. Alguns efeitos foram abordados de forma aprofundada, como a pornografia de vingança e a adultização da criança e do adolescente, esta última se voltando ainda mais para o trabalho artístico infantil, buscando sempre o amparo jurisprudencial dos tribunais brasileiros quanto às situações exposadas.
Por conseguinte o trabalho buscou abordar a possibilidade da aplicação do instituto da responsabilidade civil em desfavor dos genitores, bem como a condenação destes em dano moral. Nesta seção fora amplamente demonstrado o posicionamento da doutrina quanto aos organismos jurídicos apresentados acima, onde se verificou que mesmo em se tratando de relações entre pais e filhos existe a possibilidade da caracterização da responsabilidade civil pela negligência da vigilância com potencial para causar danos muitas vezes irreversíveis na vida da criança e do adolescente gerando, portanto, a necessidade de compensação pecuniária.
Desta feita conclui-se então que, demonstrados os fatos e dados estatísticos, existe uma necessidade de compensação àqueles que tiveram prejuízos causados pela falta de cuidado daqueles que deviam cuidar, educar, ensinar e formar por dever constitucional e até mesmo afetivo e assim não o fizeram.
Diante do que foi explanado a ideia que se defende, qual seja pela aplicação da responsabilidade civil e condenação em danos morais pelos prejuízos causados na vida do menor de 18 anos, é a mais acertada. Hoje em dia já se reconhece a possibilidade da compensação moral pelo abandono afetivo e compreendo que o abandono digital é um desdobramento, causado pela evolução da tecnologia e da sociedade, que gera danos tão gravosos quanto aquele que já fora amplamente abordado pela doutrina.
REFERÊNCIAS
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1 Graduada em Direito pelo Centro Universitário Estácio do Ceará. Contato: barbaraalencard@gmail.com. Advogada regularmente inscrita na OAB/CE nº 43.876, com atuação focada em direito civil e criminal.
2 Apesar da disposição constitucional colocar o princípio disposto como “paternidade responsável” é prudente que se interprete amplamente, por isso alguns doutrinadores compreendem que seria mais conveniente chamá-lo de princípio da “parentalidade responsável”.
3 Sexting – com origem inglesa, sex (sexo) + texting (torpedo). Atualmente no Brasil virou uma verdadeira “febre”, muitas pessoas conservam essa prática através dos mais variados aplicativos que viabilizem a troca de mensagens.
4Termo utilizado para classificar pessoas que trabalham fazendo vídeos para a rede social Youtube, um site de compartilhamento de vídeos por seus usuários.
5Pessoas que detêm certa popularidade com público e utilizam-se das suas redes sociais para promover produtos ou serviços, falam sobre os mais variados assuntos e compartilhando sua rotina diária.
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