Autor: Davi de Lima Pereira da Silva – Advogado; Especialista em Direito Administrativo; Pós-Graduando em Direito Constitucional e Direito Tributário. (e-mail: davisilva1904@hotmail.com)
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar os possíveis novos rumos do Supremo Tribunal Federal a respeito do aborto, a partir da análise dos precedentes da ADPF 54, que descriminalizou a interrupção da gestação do feto anencéfalo, e do HC 124.306/RJ, em que três ministros da Corte entenderam que a conduta abortiva realizada até o terceiro mês da gestação não deveria ser criminalizada, bem como da ADPF 442, ação que ainda está em trâmite perante o STF e que pleiteia, justamente, a descriminalização do aborto neste período gestacional, através da declaração de não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal. O método de pesquisa utilizado é o descritivo-explicativo, através da análise da legislação, da doutrina e da jurisprudência brasileira, objetivando delimitar qual seria o melhor caminho a ser tomado pelo STF nesse conflito entre os direitos fundamentais do nascituro e os direitos fundamentais da gestante.
Palavras-chaves: Aborto. Nascituro. Gestante. Direitos Fundamentais.
Abstract: This study aims to analyze the possible new directions of the Supreme Federal Court regarding abortion, based on the analysis of the precedents of ADPF 54, which decriminalized the termination of pregnancy of the anencephalic fetus, and of HC 124.306 / RJ, in that three court ministers understood that the abortion performed up to the third month of pregnancy should not be criminalized, as well as that of ADPF 442, an action that is still pending before the STF and that calls for the decriminalization of abortion in this gestational period, by declaring partial non-receipt of articles 124 and 126 of the Penal Code. The research method used is descriptive-explanatory, through the analysis of Brazilian legislation, doctrine and jurisprudence, aiming to delimit what would be the best path to be taken by the STF in this conflict between the fundamental rights of the unborn child and the fundamental rights of the pregnant woman.
Keywords: Abortion. Unborn. Pregnant. Fundamental rights.
Sumário: Introdução. 1. Considerações sobre o Direito Constitucional à vida. 1.1. A Constituição como fundamento de validade. 1.2. Os Direitos e Garantias Fundamentais e a inviolabilidade do direito à vida. 1.3. A relação entre o direito à vida e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 1.4. A legislação penal como mecanismo garantidor da ordem constitucional. 2. A Proteção à vida no Código Penal. 2.1. Uma breve análise dos crimes contra a vida. 2.1.1. Homicídio. 2.1.2. Induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. 2.1.3. Infanticídio. 2.1.4. Aborto. 3. Aborto: Crime contra a vida do nascituro. 3.1. O nascituro: conceito e natureza jurídica. 3.2. Aborto: algumas breves considerações. 3.2.1. Conceito. 3.2.2. Evolução histórica. 3.2.3. Sujeitos do delito e objeto jurídico 3.3. Quando o aborto não é passível de punição. 3.3.1. Aborto terapêutico. 3.3.2. Aborto de fetos anencéfalos: análise da Decisão do STF na ADPF 54. 3.3.3. Aborto humanitário. 4. Os possíveis novos rumos do Supremo Tribunal Federal. 4.1. O Habeas Corpus nº 124.306/RJ. 4.2. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442. 4.3. O Sistema Constitucional Brasileiro e o conflito de direitos fundamentais. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo analisar o alcance dos direitos fundamentais garantidos pelo artigo 5º da Constituição, em especial o direito à inviolabilidade da vida humana, que engloba tanto o ser já nascido quanto o que ainda está por nascer, bem como as recentes manifestações do Supremo Tribunal Federal acerca do instituto do aborto, tipo penal criado para a proteção do direito à vida do nascituro.
Há, na sociedade brasileira, uma crescente movimentação pela descriminalização da conduta abortiva nos três primeiros meses da gestação, sob o fundamento de que os direitos de escolha da mulher deveriam se sobrepor aos direitos do ser intrauterino. Há, dessa maneira, um claro e evidente conflito de bens jurídicos: de um lado, os direitos femininos de autodeterminação; de outro, o direito à vida do produto da concepção.
O Supremo Tribunal Federal tem se manifestado algumas vezes sobre este conflito, em processos que serão objeto deste estudo, como na ADPF 54, que culminou na descriminalização do aborto dos fetos anencéfalos; no HC 124.306/RJ, em que três Ministros se manifestaram claramente pela inconstitucionalidade da criminalização do aborto nos três primeiros meses da gravidez; e na ADPF 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade, que busca a declaração de não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal, feito que já se encontra próximo do julgamento, já tendo ocorrido audiência pública com diversos atores sociais para debater o tema.
Em razão da manifestação de três Ministros pela descriminalização do aborto nas três primeiras fases gestacionais, pode ser que o Supremo esteja caminhando neste sentido, motivo pelo qual este estudo se propõe a analisar qual seria a melhor decisão a ser tomada pela Corte. Para tanto, este trabalho será apresentado a partir de quatro capítulos, elaborados de forma estratégica.
O primeiro capítulo se destinará a estudar a força normativa da Constituição, seu caráter norteador de toda a legislação infraconstitucional e a amplitude dos direitos e garantias fundamentais nela positivados. Apresentaremos argumentos devidamente embasados pela doutrina que consagram o entendimento de que não há norma alguma que possa contrariar determinações constitucionais. Analisaremos também a força normativa dos princípios constitucionais, procurando descobrir quais bens jurídicos merecem proteção mais acentuada do aplicador do Direito.
O segundo capítulo, por sua vez, tratará da função exercida pelo Código Penal de garantir o direito constitucional à inviolabilidade do direito à vida, através da criminalização de condutas que atentem contra a vida humana. Veremos aí que a legislação penal se configura como o mecanismo infraconstitucional mais eficaz na proteção deste direito fundamental estampado no artigo 5º da Carta Republicana.
No terceiro capítulo, iremos finalmente estudar o tipo penal do aborto, abordando primeiramente a questão do nascituro como sujeito de direitos e as garantias que nosso ordenamento jurídico dispõe para assegurar esses direitos. Após, faremos algumas considerações sobre a natureza jurídica, os precedentes históricos e os elementos essenciais deste instituto para, no quarto capítulo, finalmente nos aprofundarmos no tema central deste trabalho, que é a análise da jurisprudência mais recente do STF sobre o tema.
Pretendemos, conforme já mencionado, analisar o alcance dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição, tendo como foco o conflito de bens jurídicos entre a liberdade da mulher e o direito à vida do nascituro. Esperamos que esse estudo sirva para esclarecer controvérsias que são inerentes à condição de ciência humana que o Direito possui. Se a leitura desse trabalho servir para despertar no leitor a vontade de buscar respostas às questões que o Direito e a vida de modo geral nos apresentam, o esforço dessa pesquisa terá valido a pena.
1.1. A Constituição como fundamento de validade
O objetivo central desse trabalho é analisar o conflito entre os direitos de liberdade da mulher e o direito à vida do nascituro, a partir das recentes manifestações do STF sobre o aborto. Desse modo, em um primeiro momento, é necessário que entendamos a alocação do Direito Constitucional em nosso ordenamento jurídico e seu caráter de orientador de toda a legislação infraconstitucional.
A Constituição é a Lei Maior de nosso ordenamento, e, por isso, orienta toda atividade estatal, seja ela executiva, legislativa ou jurisdicional. No âmbito do poder executivo, tanto os prefeitos quanto os governadores de estados e o presidente da República estão sempre obrigados a observar os preceitos constitucionais, sob pena de nulidade do ato administrativo editado em desconformidade com a Constituição. O mesmo se aplica ao poder legislativo, que, na elaboração de diplomas legais, deve sempre obediência às disposições previstas na Carta Magna.
O poder judiciário, por sua vez, é o responsável por exercer o controle de constitucionalidade das normas jurídicas e atos administrativos. Ou seja, qualquer ato do executivo ou do legislativo que contrariar a Carta Magna será afastado do mundo jurídico por meio da atuação jurisdicional, exercida especialmente pelo Supremo Tribunal Federal.
Dessa maneira, é ponto pacífico que norma alguma pode contrariar disposição da Constituição, uma vez que a Lei Maior estabelece regras e princípios gerais a serem observados por todo o ordenamento, se configurando como verdadeiro fundamento de validade de todas as normas.
Nesse sentido, explica o jurista Pedro Lenza: “No Direito percebe-se um verdadeiro escalonamento de normas, uma constituindo o fundamento de validade de outra, numa verticalidade hierárquica. Uma norma, de hierarquia inferior, busca seu fundamento de validade na norma superior e esta, na seguinte, até chegar a Constituição, que é o fundamento de validade de todo o sistema infraconstitucional.” (LENZA, 2009, p.27)
A expressão “fundamento de validade” nos leva a concluir que qualquer construção legislativa que venha a existir só será válida se estiver de acordo com o que determina a Constituição Federal, pois é ela que confere validade a todas as normas. Essa validação, por sua vez, alcança tanto as normas editadas após a promulgação da Lei Maior, em 1988, quanto àquelas vigentes antes desta data.
Sendo assim, mesmo as leis anteriores à promulgação da Constituição devem obediência a ela. Se algum diploma anterior à entrada em vigor da Lei Maior contiver disposição que contrarie algum preceito constitucional, esta disposição perde a validade, em razão de não ter sido recepcionada..
O instituto da recepção, de forma resumida, consiste no recebimento, pela Constituição atual, de norma editada na vigência da Constituição passada, mas que esteja de acordo com o regramento constitucional presente. Ou seja, após o início da vigência da Carta Republicana de 88, as disposições legais anteriores que estiverem de acordo com seus dispostos são consideradas como recepcionadas, e permanecem válidas. Já aquelas que trouxerem previsões contrárias ao texto constitucional são tidas como não recepcionadas e terão sua eficácia afastada por meio do controle exercido pelo poder judiciário.
Assim, partiremos nesse estudo da premissa de que a Constituição é a norma maior do nosso ordenamento jurídico e fundamento de validade de todas as outras normas, não podendo, portanto, existir espécie legislativa alguma que contrarie preceito Constitucional. Dessa forma, a Lei Maior traz, em seu corpo, princípios e regras que devem ser observados por todos os outros ramos do Direito, entre eles, claro, o Direito Penal.
Estando clara essa natureza de fundamento de validade que a Constituição Federal possui, e não restando duvidas de que norma alguma pode se opor à Carta Magna, passaremos a analisar agora alguns princípios constitucionais relevantes para nosso trabalho.
1.2. Os direitos e garantias fundamentais e a inviolabilidade do direito à vida
O Título II da Constituição dispõe sobre os Direitos e garantias fundamentais, que englobam os direitos e deveres individuais e coletivos, os direitos sociais, os direitos de nacionalidade e os direitos políticos.
No artigo 5º, encontramos a previsão dos direitos e deveres individuais e coletivos, dentre os quais podemos destacar a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, todos previstos no caput do citado artigo.
Se percorrermos a Constituição até o artigo 60, parágrafo 4,º inciso IV, iremos nos deparar com a vedação expressa da possibilidade de existir qualquer proposta de emenda constitucional que pretenda abolir os direitos e garantias individuais. Assim sendo, fica claro o caráter diferenciado das disposições previstas no artigo 5º, que não podem ser modificadas em hipótese alguma. São as chamadas cláusulas pétreas.
. Além dos direitos e garantias individuais, o parágrafo 4º do artigo 60 também proíbe a existência de emenda constitucional que vise extinguir a forma federativa de Estado (inciso I), o voto direto, secreto, universal e periódico (inciso II) e a separação dos poderes (inciso III). São, portanto, direitos constitucionais imutáveis, considerados, por isso, cláusulas pétreas, por estarem petrificadas em nosso ordenamento. Esses direitos só podem ser suprimidos se houver uma ruptura na ordem institucional que revogue completamente a nossa Constituição. Caso contrário, tais proteções sempre estarão presentes em nosso ordenamento.
A respeito da impossibilidade de abolição dos direitos e garantias individuais, nos ensinam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino: “A Constituição Federal, no Titulo II, dedicado aos direitos e garantias fundamentais, destinou o Capitulo I aos direitos e deveres individuais e coletivos, enunciando estes no art. 5º e em seus setenta e oito incisos. Ao apontar as matérias protegidas com o manto de cláusula pétrea, o legislador constituinte gravou com essa cláusula assecuratória “os direitos e garantias individuais” (PAULO e ALEXANDRINO, 2011, p.614).
Ou seja, enquanto estivermos sob o império do atual sistema constitucional, os direitos e garantias individuais sempre estarão presentes, não podendo ser abolidos por emendas constitucionais e nem contrariados por legislações infraconstitucionais.
Dessa forma, já sabemos que a Constituição Federal é o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, não podendo existir norma alguma que a contrarie. Sabemos também que, dentro do corpo constitucional, há normas que o legislador constituinte quis deixar claro que possuem um caráter especial, sendo consideradas cláusulas pétreas. Ou seja, podemos afirmar com convicção que o respeito aos direitos e garantias individuais são exigências que qualquer legislação infraconstitucional deve observar.
Dentre essas disposições constitucionais imutáveis, uma se demonstra de extrema importância para nosso trabalho: a inviolabilidade do direito à vida. Conforme se depreende do próprio texto constitucional em seu artigo 5º, a vida é inviolável, sendo certo que, por ser norma constitucional, essa inviolabilidade já deve ser obrigatoriamente respeitada por todo ordenamento jurídico, e, por ser cláusula pétrea, essa observância deve ser mais rígida ainda, não permitindo que exista previsão legal alguma que desrespeite tal direito.
Vejamos novamente lição de Pedro Lenza: “O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5º caput, abrange tanto o direito de não ser morto, privado da vida, como também o direito de ter uma vida digna” (LENZA, 2009, p.678).
Na definição do professor Lenza, podemos perceber a expressão “vida digna”. Trata-se da conjugação da inviolabilidade do direito à vida com o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no primeiro capítulo da Carta Magna e que será estudado no próximo item.
1.3. A relação entre o direito à vida e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O Titulo I da nossa Constituição dispõe sobre os Princípios Fundamentais. Ou seja, nos traz os fundamentos da República, que são a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
Dessa forma, os direitos e garantias fundamentais já estudados no capítulo anterior devem ser observados sempre à luz destes princípios fundamentais. Em nosso trabalho, daremos destaque ao princípio da dignidade humana e sua relação com o direito fundamental à inviolabilidade da vida.
A previsão do princípio da dignidade na Constituição representa o reconhecimento de que o homem possui direitos e garantias fundamentais que são inerentes à sua condição humana. Esta positivação, portanto, confere a todos a possibilidade de ter acesso às condições necessárias para uma vida digna.
Vejamos o entendimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, acerca deste princípio fundamental: “A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.” (MORAES, 2009, p. 21-22).
Assim, temos a dignidade humana como o princípio que orienta a aplicação de todas as disposições elencadas na Carta Magna, sendo a realização das condições essenciais para o exercício dos direitos básicos de toda pessoa. Conforme mencionamos anteriormente, este trabalho se destina ao estudo de institutos jurídicos sempre sob o prisma da relação inseparável entre a dignidade humana e o direito constitucional à vida.
Exatamente sobre essa relação, escreve o jurista Cleber Francisco Alves: “Um ponto crucial, que suscita vivos debates e discussões no campo da dignidade da pessoa humana, é aquele relativo ao direito à vida. Muito se fala em direitos humanos, em dignidade da pessoa humana, mas esquece-se de sua premissa elementar que é exatamente o direito à vida. Sem a vida, qualquer outro direito inexiste.” (ALVES, 2001, p. 166)
Partindo dessa definição, temos como condição essencial para a dignidade humana o respeito a inviolabilidade do direito à vida. Podemos afirmar, então, que o direito à vida seria o mais importante de nosso ordenamento jurídico, uma vez que pode ser entendido como premissa de um princípio fundamental do direito.
Desse mesmo entendimento, compartilha Alexandre de Moraes: “A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos.” (MORAES, 2009, p. 35).
Ou seja, o direito à vida se configura como condição elementar de um princípio sob o qual se funda o Estado Democrático de Direito. Um princípio elencado no primeiro artigo da Carta Magna e que dita os rumos da aplicabilidade de todo o texto constitucional.
É premissa desse trabalho, portanto, que o direito à vida possui status mais relevante do que a dignidade humana, visto que, conforme lições dos juristas acima citados, para que se tenha vida digna é preciso, antes, ter vida.
Nesse ponto, compete destacar que, na visão de alguns juristas, a dignidade da pessoa humana teria força jurídica maior do que o direito à vida, por ser mencionada primeiro no texto constitucional, estando positivada no primeiro artigo da Carta, enquanto a inviolabilidade da vida se encontra no artigo 5º.
Com todo respeito a essa posição, mantenho-me firme na convicção defendida pelo professor Cleber Francisco Alves, no sentido de que a vida precede qualquer outro direito, destacando que, se prevalecesse o entendimento oposto, isso significaria afirmar que todos os direitos que se encontram positivados em artigos anteriores ao artigo 5º seriam mais importantes do que o direito à vida.
O artigo primeiro da Constituição dispõe que são fundamentos da República a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político, nessa exata ordem. Dessa forma, se aceitarmos que o princípio da dignidade tem mais força do que o direito à vida por estar previsto primeiro na Carta, devemos concordar que também os outros fundamentos seriam mais importantes do que a inviolabilidade do direito à vida.
Mais ainda, se aceitarmos como correta esta posição, teremos que concordar que a soberania e a cidadania seriam valores ainda maiores do que a dignidade humana, o que não procede, pois, como visto na lição do Ministro Alexandre de Moraes, a dignidade é um valor moral e espiritual inerente a pessoa, referente à sua autodeterminação enquanto indivíduo, o que lhe torna pré-requisito tanto para o exercício da cidadania quanto para a formatação de uma República efetivamente soberana.
Ou seja, a ordem de menção no texto constitucional não indica superioridade normativa de um instituto sobre o outro, devendo sempre ser realizada uma interpretação sistemática, analisando todo o ordenamento, para que seja delimitado qual princípio ou direito deve se sobrepor em situações de conflito.
Nos parece claro, portanto, que o direito à vida precede todos os fundamentos da República, pois sem vida não há soberania, não há cidadania, não há trabalho, não há livre iniciativa, não há pluralismo político e, também, não há dignidade.
Por fim, para que não reste dúvidas de que nosso ordenamento coloca o direito à vida em patamar superior ao princípio da dignidade humana, citaremos o caso da eutanasia, que é vedada em nosso sistema jurídico.
A respeito deste instituto, compete apresentar o seguinte conceito de José Afonso da Silva: “Hoje, contudo, de eutanasia se fala quando se quer referir à morte que alguém provoca em outra pessoa já em estado agônico ou pré-agônico, com o fim de liberá-la de gravíssimo sofrimento em consequência de doença tida como incurável, ou muito penosa, ou tormentosa. Chama-se, por esse motivo, homicídio piedoso. É, assim mesmo, uma forma não espontânea de interrupção do processo vital, pelo que implicitamente está vedada pelo direito à vida consagrado na Constituição, que não significa que o indivíduo possa dispor da vida, mesmo em situação dramática. Por isso, nem o consentimento lúcido do doente exclui o sentido delituoso da eutanásia no nosso Direito.” (SILVA, 1992, p.185, grifos nossos).
Trata-se, portanto, de hipótese em que alguém está acometido de doença incurável, que lhe traz enorme sofrimento, o impossibilitando de desfrutar de uma viga digna. A eutanásia consiste, justamente, na eliminação desta vida, sob a alegação de que manter o paciente vivo seria afrontoso a sua dignidade.
Tem-se, portanto, que o fundamento da eutanásia seria a superioridade normativa da dignidade humana sobre o direito à vida, sendo a prática permitida em alguns países, como Holanda, Belgica, Suíca, Canadá e alguns estados norte-americanos. No Brasil, no entanto, tal conduta é vedada por nosso sistema jurídico-constitucional, ainda que o doente manifeste seu consentimento, visto que a vida humana é inviolável e indisponível, o que demonstra que, de forma inequívoca, nosso ordenamento a considera um bem jurídico de maior expressão do que a dignidade humana.
Assim, se o ordenamento proíbe a antecipação da morte em situações fáticas que demonstram completa impossibilidade de vida digna, não restam dúvidas de que a vida é o principal bem jurídico protegido pelo sistema jurídico brasileiro, sendo condição elementar de todos os outros direitos.
Desse modo, cada vez se torna mais claro que o direito à inviolabilidade da vida humana, por todos os aspectos já estudados até aqui, deve ser garantido por toda legislação infraconstitucional, uma vez que a Constituição é o fundamento de toda a ordem jurídica. Dessa maneira, o Código Penal, como legislação infraconstitucional que é, tem o dever de observar todas as disposições da Carta Magna, em especial a inviolabilidade do direito à vida. É o que será estudado agora.
1.4. A legislação penal como mecanismo garantidor da ordem constitucional
Conforme já vimos, toda espécie legislativa deve obedecer aos mandamentos constitucionais, de modo que o Código Penal também está sujeito a essa observância. Assim sendo, a lei penal não pode conter dispositivo que contrarie nenhuma previsão da Carta Magna. Pelo contrário, deve conter mecanismos de proteção aos direitos e garantias fundamentais.
Assim, toda legislação em matéria penal deve ser sempre editada buscando a preservação dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, visando a proteção da vida e da dignidade humana, sob pena de, não cumprindo essa missão, ser afastada do mundo jurídico por ser inconstitucional.
Sobre o tema, ensina Fernando Capez:“Podemos então afirmar que do Estado Democrático de Direito parte o princípio da dignidade humana, orientando toda a formação do Direito Penal. Qualquer construção típica cujo conteúdo contrariar e afrontar a dignidade humana será materialmente inconstitucional visto que atentatória ao próprio fundamento da existência de nosso Estado. Cabe, portanto, ao operador do Direito, e principalmente ao juiz, exercer controle técnico de verificação da constitucionalidade de todo tipo penal e de toda adequação típica, de acordo com seu conteúdo. Se afrontoso à dignidade humana, deverá ser expurgado do ordenamento jurídico”. (CAPEZ, 2007, p. IX)
Nessa definição podemos notar novamente que o princípio da dignidade humana é fundamento da existência do Direito. Partindo da premissa de que o Direito à vida é elemento essencial da dignidade humana, uma vez que o precede, a conclusão lógica é a de que é dever do Direito Penal zelar pela proteção desse Direito fundamental, devendo ser expurgada do ordenamento jurídico qualquer norma penal que o afronte.
E é justamente o que está positivado no Titulo I da parte especial do Código Penal brasileiro, que dispõe sobre os crimes contra a pessoa. Temos, no primeiro capítulo deste título, a criminalização das condutas contra a vida, o que se configura como a forma mais eficaz da legislação penal observar os mandamentos constitucionais para a proteção daquele que é o maior bem jurídico tutelado por nosso ordenamento.
A vida, por ser direito fundamental inviolável, é considerada bem jurídico indisponível, de modo que o Direito Penal, ao definir como crime condutas que atentem contra a vida humana, busca uma forma de proteger esse bem tão valioso, cumprindo, assim, sua missão de agir conforme determinam os preceitos constitucionais.
2.1. Crimes contra a vida: uma breve análise
O Código Penal brasileiro foi instituído pela Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, e permanece vigente até a data da publicação deste estudo. A parte geral do referido diploma, que define conceitos, regras e princípios gerais para a aplicação da lei penal, foi alterada, em sua totalidade, pela Lei nº. 7.209, de 11 de julho de 1984. Já a parte especial, que define os crimes em espécie e estipula suas respectivas sanções, sofreu somente alterações pontuais, com a exclusão de alguns crimes e acréscimo de outros, sem maiores reformulações.
Conforme mencionado no capítulo anterior, o capítulo I do título I da parte especial do nosso Código Penal dispõe sobre os crimes contra a vida. Ao criminalizar as condutas ali previstas, fica claro que o bem jurídico que se quer proteger é a vida humana. Dessa forma, a lei penal efetiva a proteção ao bem jurídico mais valioso garantido pela Constituição Federal de 1988.
Nesse sentido, ensinam Costa Machado e David Teixeira de Azevedo: “O primeiro bem jurídico relacionado à pessoa humana a receber tutela do direito penal é a vida humana, reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência como o bem de maior valor no ordenamento jurídico.” (MACHADO e AZEVEDO, 2016, p.181)
Da leitura da lição acima reproduzida, fica evidente, novamente, que a vida é o bem de maior valor no nosso ordenamento, motivo pelo qual o Código Penal dedica o primeiro capítulo de sua parte especial aos crimes cometidos contra este bem jurídico, buscando, dessa forma, conferir a máxima proteção possível à missão conferida pelo artigo 5º. da Constituição da República.
O tema central de nosso trabalho, o aborto, encontra-se previsto justamente no capítulo primeiro do título I da parte especial do Código Penal, o que nos permite concluir, desde já, que o nascituro, que é aquele que ainda está por nascer, também é destinatário da proteção constitucional à vida.
Porém, antes de tratarmos efetivamente desse tipo penal, é importante fazermos uma breve exposição dos demais crimes que o diploma penal elencou como atentatórios à vida humana. Vejamos agora.
2.1.1. Homicídio
O delito de homicídio está previsto no artigo 121 do Código Penal, que o define de forma extremamente objetiva: “Matar alguém. Pena – reclusão de 6 a 20 anos.” É o chamado homicídio simples. Temos aí a proteção à vida humana de forma genérica. Qualquer pessoa que matar outra, via de regra, pratica o tipo penal previsto nesse artigo.
No parágrafo 1º do artigo 121, temos as hipóteses de diminuição de pena no delito de homicídio, quando o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima. Nesses casos, a pena poderá ser reduzida de um sexto a um terço. Ou seja, mesmo que haja algum motivo especial que tenha levado o agente a praticar homicídio, o delito continua sendo punido, ainda que de forma mais branda, pois a vida humana é bem jurídico inviolável.
O parágrafo 2º do artigo 121 dispõe sobre a forma qualificada de homicídio, que tem previsão de pena maior do que a da modalidade simples, em razão do motivo pelo qual o agente pratica a conduta (mediante recompensa ou por razão fútil ou torpe – incisos I e II), do meio empregado na ação (veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura, emboscada, dissimulação, dificultação da defesa do ofendido ou outro meio cruel ou que possa resultar perigo comum – incisos III e IV), da finalidade do crime (para assegurar a execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro delito – inciso V), ou da condição pessoal da vítima (no caso de crimes cometidos contra mulher no âmbito da relação doméstica, o chamado “feminicídio”, e na hipótese de crimes contra agentes da segurança pública e seus respectivos familiares – incisos VI e VII). Para o homicídio qualificado, o legislador estipulou pena de 12 a 30 anos.
Já no parágrafo 3º, temos o instituto do homicídio culposo, quando o agente não tem a intenção de matar. Nessa modalidade, a pena prevista é de detenção, de um a três anos. Notem que, mesmo que o homicida não tenha nenhuma intenção de cometer o delito, há previsão legal de pena. É a legislação penal demonstrando, mais uma vez, a inviolabilidade do direito à vida
2.1.2 Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio
Segundo disposto no artigo 122 do Código Penal, é crime a seguinte conduta: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça. Pena – reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.”
Nessa situação, o Estado atua no sentindo de impedir que uma pessoa elimine a própria vida, criminalizando a conduta de quem, de alguma forma, contribuir para isso. Todo aquele que induzir, instigar ou auxiliar de qualquer forma alguém a atentar contra a própria vida incorre prática delituosa prevista no artigo 122 e será criminalmente processado, pois a vida humana é bem jurídico indisponível, constitucionalmente garantido.
A legislação penal não prevê esse delito na modalidade culposa, no entanto, a doutrina entende ser possível a prática desse crime por dolo eventual, que é a modalidade de dolo em que o agente, embora não tenha a real intenção de cometer o crime, age de modo a não se importar com o resultado fático de sua conduta, como no clássico exemplo de quem dirige embriagado. Ou seja, quem pratica alguma conduta que pode levar outrem a se suicidar, incorre na prática delituosa, mesmo que não tenha agido diretamente nesse sentido. Para demonstrar isso, citaremos exemplo do jurista Cesar Roberto Bitencourt: “Nada impede que o dolo orientador da conduta do agente configure-se em sua forma eventual. A doutrina procura citar alguns exemplos que, para ilustrar, invocaremos: o pai que expulsa de casa a filha desonrada, havendo fortes razões para acreditar que ele se suicidará; o marido que sevicia a esposa, conhecendo a intenção desta de vir a suicidar-se, reitera as agressões”. (BITENCOURT, 2003, p. 124-125)
Segundo o exemplo da doutrina, podemos perceber que, ainda que o agente não auxilie, induza ou instigue alguém a se suicidar, se praticar qualquer conduta de modo a não se importar se dela resultar o suicídio da vítima, incorrerá na prática do tipo penal previsto no artigo 122, e será punido criminalmente, devido ao caráter inviolável da vida humana.
Para finalizarmos essa breve exposição sobre o artigo 122, compete mencionar o artigo 146, parágrafo 3º, inciso II do Código Penal, que determina que não configura crime de constrangimento ilegal a coação exercida para impedir suicídio. Ou seja, aquele que constranger alguém (mediante violência, grave ameaça ou após lhe reduzir a capacidade de resistência) a não se suicidar, não estará praticando qualquer crime, pois estará atuando no sentido de preservar a vida humana. No entanto, ninguém poderá se eximir da responsabilidade penal se praticar tal conduta para evitar que alguém pratique atos imorais, como a prostituição, por exemplo, já que aí não é a inviolabilidade da vida que está em jogo.
Nesse sentido, afirma Rogério Greco: “Assim, se alguém, mediante violência ou grave ameaça, mesmo que no intuito de ajudar a vítima, a impede de prostituir-se, estaria praticando a infração penal tipificada no art. 146 do estatuto repressivo, vale dizer, o delito de constrangimento ilegal. Ao contrário, se o agente, por exemplo, mediante o emprego de violência impede que a vítima extermine a própria vida não pratica qualquer delito pois que, nesse caso, própria lei penal entendeu por bem afastar a tipicidade desse comportamento”. (GRECO, 2007, p. 201).
Dessa forma, cada vez nos fica mais claro que o legislador penal atua sempre no intuito de utilizar todos os mecanismos possíveis para garantir a máxima proteção à vida humana, admitindo até mesmo a não culpabilidade de conduta tipificada como crime se ela for cometida para salvar uma vida, conforme demonstrado nessa curta exposição sobre o delito de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. Trata-se, mais uma vez, do Código Penal cumprindo a missão de preservar a inviolabilidade do principal direito garantido pela Constituição.
2.1.3 Infanticídio
Infanticídio é o delito previsto no artigo 123 do Código Penal, que assim dispõe: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após. Pena – detenção de dois a seis anos.” Ou seja, trata-se de crime cometido contra a vida do recém nascido. O sujeito ativo, nesse caso, é a mãe sob efeito do estado puerperal. Para conceituarmos essa condição, utilizaremos da definição médica do obstetra Jorge de Rezende: “Puerpério, sobreparto ou pós-parto, é o período cronologicamente variável, de âmbito impreciso, durante o qual se desenrolam todas as manifestações involutivas e de recuperação da genitália materna havidas após o parto. Há, contemporaneamente, importantes modificações gerais, que perduram até o retorno do organismo às condições vigentes antes da prenhez. A relevância e a extensão desses processos são proporcionais ao vulto das transformações gestativas experimentadas, isto é, diretamente subordinadas à duração da gravidez”. (REZENDE, 1998, p. 373).
Estamos diante, portanto, de um período em que a parturiente está acometida por fortes abalos psicológicos que acabam a levando a matar o próprio filho. O penalista Paulo José da Costa Júnior assim escreve sobre o estado puerperal e o delito de infanticídio: “A mulher, abalada pela dor obstétrica, fatigada, sacudida pela emoção, sofre um colapso do senso moral, uma liberação de instintos perversos, vindo a matar o próprio filho.” (COSTA JÚNIOR, 1991, p. 18)
Ou seja, temos uma situação em que o sujeito ativo do delito encontra-se com a capacidade psicológica abalada, não possuindo condições suficientes para distinguir o certo do errado. Sob influência desse estado, a mãe acaba eliminando a vida do próprio filho que acabara de nascer.
Devido a essa condição psicológica da parturiente, poderíamos estar diante de uma excludente de culpabilidade. No entanto, não é o que ocorre, pois ainda que haja uma deturpação do senso moral da mãe, o direito à vida do recém-nascido é inviolável e deve ser garantido pelo ordenamento jurídico. Dessa maneira, o legislador penal adotou a criminalização dessa conduta, surgindo assim o delito de infanticídio.
Assim, o estado puerperal que debilita a capacidade psicológica da mãe serve apenas para caracterizar o cometimento de um delito diverso do homicídio, com previsão de pena menor, detenção de dois a seis anos. Ainda que a pena seja menor, devido a essa debilidade emocional do sujeito ativo, a conduta é criminosa e haverá a responsabilização criminal da agente, uma vez que a vida humana é bem jurídico inviolável, seja ela do recém-nascido, da criança, do adulto, do idoso ou do nascituro, conforme será estudado a seguir.
2.1.4 Aborto
O aborto é, indiscutivelmente, um dos crimes que mais causam polêmica na doutrina e em toda a sociedade de modo geral. Sua previsão legal encontra-se entre os artigos 124 e 128 do Código Penal brasileiro, que serão abordados nos parágrafos seguintes.
Assim dispõe o artigo 124: “Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque. Pena – detenção de 1 a 3 anos”. Temos, na primeira parte desse artigo, o chamado auto-aborto, que é aquele provocado pela própria gestante. É um crime de mão própria, onde somente a gestante pode ser sujeito ativo. A grávida, segundo disposição da segunda parte do artigo, também incorre na prática delituosa ao permitir que um terceiro pratique a conduta abortiva.
Nos artigos 125 e 126, temos as hipóteses de criminalização deste terceiro que provoca o aborto na gestante. Para aquele que provoca sem o seu consentimento (art. 125), temos previsão de pena de reclusão de 3 a 10 anos. Já o que provoca com a concordância da grávida (art. 126) está sujeito à pena de reclusão de 1 a 4 anos, exceto quando a gestante for menor de 14 anos, possuir debilidade mental, ou o consentimento for dado mediante fraude, grave ameaça ou violência, hipóteses em que a pena será a mesma do artigo 125, reclusão de 3 a 10 anos, conforme disposição do parágrafo único do artigo 126.
No artigo 127, temos a forma qualificada do aborto, quando, em consequência dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal grave (pena aumentada em um terço) ou morre (pena duplicada). Já no artigo 128, temos as hipóteses onde o aborto não é passível de punição, que serão estudadas mais adiante.
Indiscutivelmente, o bem jurídico que se quer proteger ao criminalizar o aborto é a vida humana intra-uterina, a vida do nascituro. Assim sendo, o Código Penal, ao inserir este delito no rol de crimes contra a vida, deixa claro que o nascituro já é possuidor de uma vida, que deve ser preservada em todos os seus estágios de desenvolvimento dentro do útero.
Para ilustrar este pensamento, nos valeremos da brilhante definição de Nelson Hungria: “O Código, ao incriminar o aborto, não distingue entre óvulo fecundado, embrião ou feto: interrompida a gravidez antes do seu termo normal, há crime de aborto. Qualquer que seja a fase da gravidez (desde a concepção até o início do parto, isto é, o rompimento da membrana amniótica), provocar sua interrupção é cometer o crime de aborto”. (HUNGRIA, 1955, p. 281).
Temos, portanto, o Código Penal atuando no sentido de preservar o direito à vida do nascituro. Dessa forma, fica claro e inequívoco que a inviolabilidade do direito à vida garantida pela Constituição alcança não só a vida extra-uterina, mas também àquela existente dentro do útero materno.
Assim, é possível chegarmos à conclusão de que todos os crimes estudados neste capítulo têm fundamento na inviolabilidade do direito fundamental à vida, seja ela do nascituro, do recém-nascido ou de qualquer pessoa. O delito do aborto, no entanto, é cercado de diversas controversas no mundo jurídico e, em razão disso, merece ser tratado em um capítulo a parte. É o que faremos a seguir.
3.1. O Nascituro: conceito e natureza jurídica
Como já visto, o aborto é um crime praticado contra a vida do nascituro, de modo que, antes de mais nada, se faz extremamente necessário assimilarmos alguns conceitos sobre essa figura.
Segundo o ilustre professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, a palavra nascituro se origina do latim nascituru, que significa “aquele que está por nascer” ou “aquele que há de nascer”. É, portanto, aquele que foi gerado e ainda não nasceu.
O Código Civil brasileiro, em seu artigo 2º, dispõe da seguinte forma: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Assim sendo, fica claro que a lei civil define o nascituro como sujeito possuidor de direitos, mas não delimita que direitos são esses.
Apesar do diploma civil não especificar quais são os direitos garantidos ao nascituro, é perfeitamente possível afirmar que seriam os previstos na Constituição Federal, especialmente em seu artigo 5º, visto que, conforme já estudado neste trabalho, a Carta Magna é o fundamento de validade de toda norma jurídica e possui caráter orientador de todo o ordenamento, o que obriga o aplicador do direito a sempre interpretar qualquer legislação infraconstitucional à luz das disposições da lei maior.
Não obstante, a doutrina também proclama o entendimento de que o nascituro é destinatário dos direitos garantidos pela Constituição. Como exemplo, citaremos a questão do alcance do direito constitucional à vida, segundo valiosa lição do constitucionalista e Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes: “A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência. O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão somente, dar-lhe o enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico a vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando um ovo ou zigoto. Assim a vida viável, portanto, começa com a nidação, quando se inicia a gravidez. Conforme adverte o biólogo Botella Lluzia, o embrião ou feto representa um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do pai, nem com a da mãe, sendo inexato afirmar que a vida do embrião ou do feto está englobada pela vida da mãe. A Constituição, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive uterina’. (MORAES, 2009, p. 36, grifos nossos)
Dessa forma, podemos dizer que os direitos garantidos ao nascituro pelo Código Civil seriam realmente aqueles previstos na Constituição Federal. Assim, sendo sujeito dos direitos fundamentais previstos na Carta Magna, ele tem garantidos, desde sua concepção, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, conforme manda o art. 5º do diploma orientador. Esses direitos, por sua vez, deverão ser observados sob o prisma da dignidade da pessoa humana, princípio positivado no artigo primeiro da Carta Magna.
É possível percebermos no ordenamento jurídico alguns mecanismos utilizados para efetivar esses direitos do nascituro, como, por exemplo, os alimentos gravídicos concedidos à gestante, que seriam uma forma de garantir tanto o direito patrimonial daquele que está por nascer, quanto sua dignidade. Da mesma maneira, temos o direito de toda mulher grávida se submeter a acompanhamento pré-natal gratuito, obedecendo ao direito social à proteção à maternidade, previsto no artigo 6º da Constituição e efetivando para o nascituro as garantias da segurança e da igualdade dispostas no artigo 5º.
A inviolabilidade do direito à vida, por sua vez, é efetivada através do Código Penal, que criminaliza a conduta abortiva e a inclui no rol dos crimes contra a vida, garantindo, assim, mais um comando constitucional, conforme veremos detalhadamente a partir de agora.
3.2. Aborto: algumas breves considerações
3.2.1. Conceito
O aborto é caracterizado pela interrupção da gravidez com destruição do produto da concepção. Trata-se, portanto, da eliminação da vida intra-uterina. O Código Penal não faz menção a nenhuma etapa específica da gestação, o que nos leva a concluir que, desde a concepção até o início do parto, a conduta que atentar contra a vida do nascituro se adequará ao tipo penal do aborto.
Vejamos o entendimento do penalista Fernando Capez: “A lei não faz distinção entre óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião (3 primeiros meses) ou feto (a partir de 3 meses), pois em qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer, entre a concepção e o início do parto, pois após o início do parto poderemos estar diante do delito de infanticídio ou homicídio.” (CAPEZ, 2007, p. 110).
Assim, qualquer ato que viole a vida do produto da concepção antes do início do parto será considerado aborto. Após iniciado o parto, poderá ser considerado infanticídio ou homicídio, dependendo do caso concreto. Vejamos que há uma linha temporal tênue que separa o delito do aborto do homicídio: o início do trabalho de parto. Se a parturiente já tiver começado a dar a luz, mesmo que o dolo do agente seja de provocar o aborto, nesse momento ele já estará em seara de homicídio (ou infanticídio, se for a própria mãe o agente violador), o que nos leva a concluir que a intenção do legislador foi a mesma ao tipificar os delitos de homicídio, infanticídio e aborto: proteger a vida humana.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, preleciona Rogério Greco: “O problema no delito de aborto é que não percebemos a dor sofrida pelo óvulo, pelo embrião ou mesmo pelo feto. Como não presenciamos, não enxergamos, não ouvimos o seu sofrimento, aceitamos a morte dele com tranqüilidade. A vida, independentemente do seu tempo, deve ser protegida. Qual a diferença entre causar a morte de um ser que possui apenas 10 dias de vida, mesmo que no útero materno, e matar outro que já conta com 10 anos de idade? Nenhuma, pois vida é vida, não importando a sua quantidade de tempo.” (GRECO, 2007, p. 239).
Dessa forma, não nos resta dúvidas de que o bem jurídico que se quer proteger é a vida humana intra-uterina, pois, ainda que existente apenas dentro do útero materno, é vida humana e, em razão disso, está protegida pelas disposições da Constituição da República.
3.2.2. Evolução histórica
Nos primórdios do direito romano, o produto da concepção não era considerado ser dotado de vida, e sim mera extensão do corpo da mulher, razão pela qual não havia previsão do delito de aborto, o que fazia com que as praticas abortivas fossem constantes. O primeiro registro da criminalização desta conduta em Roma data do reinado do imperador Septimius Severus (193-211 dC), quando o aborto passou a ser considerado crime contra os direitos do pai, por frustrar suas expectativas quanto a sua descendência, podendo ser punido inclusive com pena de morte, se praticado visando lucro.
O entendimento romano quanto à condição do ser que está por nascer só foi modificado a partir da expansão do Cristianismo, o que levou os imperadores Adriano, Constantino e Teodósio a implementarem reformas na legislação sobre o aborto, passando a considerá-lo crime contra a vida do produto da concepção, o que equiparou este delito ao do homicídio. Nesse momento, o nascituro passa a ser considerado possuidor de vida humana, assim como o ser já nascido.
Na idade média, surgiu a ideia defendida por alguns teólogos, entre eles Santo Agostinho, baseado em doutrina de Aristóteles, de que o aborto só seria crime se o feto já tivesse recebido uma alma, o que acreditavam ocorrer de 40 a 80 dias após a concepção. Era o chamado feto animado. Esse entendimento, no entanto, não era unânime entre os pensadores cristãos. São Basílio, por exemplo, defendia que o aborto fosse considerado sempre crime, independente do estágio do feto.
Essa controvérsia durou até 1869, quando o Papa Pio IX aboliu a distinção entre feto inanimado e animado, estabelecendo a criminalização da conduta abortiva em qualquer caso. Esse posicionamento acabou por orientar a formação de diversos ordenamentos jurídicos em nações com grande influência do catolicismo. Equipara-se, portanto, o delito de aborto ao homicídio.
Essa equiparação entre esses crimes durou até o iluminismo, quando se achou por bem aplicar uma pena menor para o delito do aborto, especialmente nas hipóteses praticadas pela gestante por motivo de honra (causa honoris). Esse entendimento ganhou vários adeptos, repercutindo de forma considerável na elaboração das legislações modernas. Notem que há apenas uma distinção de penas, não deixando, portanto, de considerar que a prática abortiva configura crime contra a vida do nascituro.
No Direito brasileiro, o Código Criminal de 1830 considerava crime o aborto praticado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante. O fornecimento de meios abortivos também era incriminado, mesmo quando o aborto não se consumava. O auto-aborto só foi tipificado no Código Penal de 1890, no entanto, com previsão de atenuante de pena quando praticado para ocultar desonra própria. Este diploma fazia ainda a distinção entre aborto com e sem expulsão do feto, atribuindo pena mais grave ao primeiro caso.
No nosso estatuto repressivo atual, temos a criminalização do auto-aborto e do aborto praticado por terceiro (com ou sem o consentimento da gestante) e independente de expulsão ou não do feto. Nosso código, aliás, segue a tendência adotada pela maioria das legislações penais contemporâneas, que consideram o nascituro como ser possuidor de vida e, em razão disso, tipificam a prática abortiva.
Tendo em vista esses aspectos históricos, podemos perceber que a criminalização do aborto no Brasil varia de acordo com a percepção da nossa sociedade sobre a condição do ser intra-uterino. Nesse sentido, é importante destacar valiosa lição do jurista Aníbal Bruno: “À proporção que as ideias filosóficas, com os seus reflexos sociais e jurídicos, iam acentuando a importância a ser concedida ao homem em atenção a eles mesmo, mudava a opinião sobre a natureza do feto, passando da concepção de simples porção do corpo da gestante à posição de um ser autônomo, com vida própria, apenas transitoriamente ligado, pelas deficiências de uma fase de sua evolução, ao organismo materno. É como a um ser humano que as legislações penais estendem hoje a sua proteção sobre o feto”. (BRUNO, 1976, p. 157).
Ou seja, a criminalização do aborto no nosso ordenamento está sempre relacionada ao modo como a sociedade brasileira enxerga o nascituro. Ao admitirmos que o ser intra-uterino é dotado de vida humana, assim como o ser já nascido, a consequência lógica é a tipificação da prática abortiva como crime.
Em sentido oposto ao nosso, alguns sistemas jurídicos de outros países descriminalizaram a prática abortiva, como, por exemplo, os Estados Unidos, que, desde 1973, a partir do precedente firmado pela Suprema Corte no julgamento do caso Roe vs Wade, passaram a autorizar a prática abortiva em todos os seus estados.
O referido precedente tinha como parte requerente a norte-americana Norma McCovery, conhecida pelo pseudônimo “Jane Roe”, que processou o Estado do Texas com a finalidade de conseguir autorização para interromper sua gestação, alegando que teria sido vítima de relação sexual forçada por Henry Wade, um funcionário público do Condado de Dallas. O processo acabou chegando à Suprema Corte dos Estados Unidos, que, no ano de 1973, quando a criança fruto da relação já tinha nascido e sido entregue a adoção, proferiu acórdão histórico, relatado pelo Juiz Harry Blackmun, que firmou o precedente adotado até hoje no sistema jurídico norte-americano, no sentido de que a mulher, amparada pelo seu direito a privacidade, garantido pela décima-quarta emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, tem liberdade para decidir pela continuidade ou não de seu processo gestacional, o que, na prática, legalizou o aborto no território norte-americano. Um fato curioso é que, no ano de 1987, Jane Roe admitiu que não havia sido vítima de violência sexual, e que teria inventado a história, sob orientação de suas advogadas, para que conseguisse autorização para abortar, visto que, na época, as leis do Texas não permitiam o aborto e ela não dispunha de recursos financeiros para viajar para outro estado para realizar o procedimento.
O paradigma norte-americano, portanto, se baseia na ideia de que a proibição do aborto violaria os direitos à privacidade da gestante e, por isso, a conduta foi descriminalizada quando realizada no primeiro trimestre da gestação.
Esse entendimento, pelo menos até a presente data, não cabe em nosso sistema jurídico, pois, no ordenamento normativo dos Estados Unidos, percebe-se uma relativização do direito à vida que não encontra espaço no Brasil, tanto que, no sistema norte-americano, a pena de morte é aplicada em alguns estados, enquanto nossa Constituição veda esta prática, com exceção feita somente aos tempos de guerra.
Ou seja, no direito norte-americano a liberdade da mulher seria um valor jurídico com maior expressão do que a vida do nascituro, entendimento que, por enquanto, não é acolhido pelo ordenamento jurídico brasileiro, embora seja o que pretende a ADPF nº. 442, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, e que será detalhada em breve.
3.2.3. Sujeitos do delito e objeto jurídico
Como já vimos, o aborto pode ser provocado pela própria gestante (auto-aborto, Código Penal, artigo 124, primeira parte), por terceiro com consentimento da gestante (art. 124, segunda parte, e art. 126) ou por terceiro sem o seu consentimento (art. 125). Assim, o bem jurídico tutelado depende de cada caso, sendo certo apenas que a vida do nascituro está protegida por todos esses tipos penais. O óvulo, embrião ou feto implantado no útero materno é também o objeto material do delito, aquele sob o qual recai a conduta delitiva.
No auto-aborto, estamos diante de uma situação em que o único bem jurídico tutelado é a vida do nascituro, que é, portanto, o sujeito passivo do delito, enquanto a gestante é o único sujeito ativo possível, pois se trata de um crime de mão própria.
No aborto praticado por terceiro sem o consentimento da gestante, além da vida intra-uterina, procura-se tutelar também a integridade física e psíquica da mulher. Nesse caso, o sujeito ativo é o terceiro que executa a prática abortiva (que pode ser qualquer pessoa, o que configura crime comum), enquanto a grávida e o nascituro são os sujeitos passivos.
Já no aborto praticado por terceiro com consentimento da gestante, esta e o terceiro são os sujeitos ativos, enquanto o nascituro é o único sujeito passivo. O bem jurídico tutelado nesse caso volta a ser apenas a vida humana do ser que ainda está por nascer.
Por fim, é importante destacar que, conforme prevê o artigo 127 do Código Penal (aborto qualificado), se, no abortamento provocado por terceiro (mesmo que consentido), a gestante morrer ou sofrer lesão corporal grave, ela também se torna sujeito passivo do delito.
Vejamos ensinamento de Luiz Régis Prado: “É, pois, o nascituro portador do bem jurídico vida humana dependente. A mãe somente figurará como sujeito passivo do delito quando se atente também contra sua liberdade (aborto não consentido) ou contra a sua vida ou integridade pessoal (aborto qualificado pelo resultado), como bens jurídicos mediatos. Nos demais casos (auto-aborto/aborto consentido/aborto consensual), porém, não será a mulher, a um só tempo, sujeito ativo e passivo, pois não há crime na autolesão”. (RÉGIS PRADO, 2002, p. 95).
Assim, conforme mencionado anteriormente, a criminalização da conduta abortiva se relaciona sempre com a percepção que uma determinada sociedade possui acerca do produto da concepção. Nosso ordenamento, claramente, considera o nascituro como ser possuidor de vida humana e, justamente em razão disso, o delito de aborto está elencado no rol de crimes contra a vida do Código Penal. Não obstante esta previsão topográfica no estatuto repressivo, ampla maioria da doutrina brasileira também comunga do mesmo entendimento, como podemos perceber na lição de Luiz Régis Prado transcrita acima.
Para ilustrar, vejamos também o entendimento de Fernando Capez: “No auto-aborto só há um bem jurídico tutelado que é o direito à vida do feto. É, portanto, a preservação da vida humana intra-uterina. No abortamento provocado por terceiro, além do direito à vida do produto da concepção, também é protegido o direito à vida e a incolumidade física e psíquica da própria gestante”. (CAPEZ, 2007, p. 111, grifos nossos)
Assim, não há que se falar em outra condição para o nascituro que não a de possuidor de vida humana. Uma vida que, apesar de existente apenas no útero materno ainda, deve gozar da mesma proteção que a do ente já nascido, uma vez que o Código Penal protege ambas no mesmo capítulo, que dispõe sobre os crimes contra a vida.
Como já vimos no decorrer deste estudo, a criminalização das condutas que atentam contra a vida humana se configura como um mecanismo de garantia da inviolabilidade do direito à vida, prevista no art. 5ª da Constituição Federal. Dessa maneira, ao considerar que o nascituro goza do mesmo direito que o já nascido possui de ter sua vida preservada, a legislação penal consagra o entendimento de que a Constituição Federal garante, em seu rol de direitos individuais, o direito à vida em qualquer estágio, independente de intra ou extra-uterina.
Conforme demonstrado no início deste trabalho, a Constituição da República possui caráter norteador de todo o ordenamento jurídico e deve orientar o legislador, o intérprete e o aplicador do direito a sempre obedecerem suas disposições. É exatamente por isso que a vida humana (e agora já sabemos que não somente a do ente nascido, como também a do nascituro) se configura como direito inviolável, uma vez que sua inviolabilidade é garantida por uma cláusula pétrea da Lei Maior. É essa garantia que o Código Penal vem assegurar ao tipificar os delitos de homicídio; instigação, induzimento e auxílio a suicídio; infanticídio e aborto.
Tudo isso que defendemos nestes últimos parágrafos se confirma em brilhante manifestação de Luiz Régis Prado, que não poderíamos deixar de citar: “O direito a vida, constitucionalmente assegurado (art. 5º, caput, CF), é inviolável, e todos, sem distinção, são seus titulares. Logo, é evidente que o conceito de vida, para que possa ser compreendido em sua plenitude, compreende não somente a vida humana independente, mas também a vida humana dependente (intra-uterina)”. (RÉGIS PRADO, 2002, p. 94).
Tendo em vista tudo o que foi demonstrado, acrescido do entendimento de renomados juristas, é possível que afirmemos que o nascituro possui o mesmo direito à vida que o ente já nascido, em virtude da obediência que toda legislação infraconstitucional deve aos preceitos da Carta Magna. No entanto, o tipo penal aborto apresenta situações em que não há previsão de pena para o agente que o pratica. São as chamadas hipóteses de aborto legal, que serão abordadas a partir de agora.
3.3 Quando o aborto não é passível de punição
Assim dispõe o artigo 128 do Código Penal: “Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”
Segundo essa disposição, temos, no inciso I, o chamado aborto necessário ou terapêutico, enquanto o inciso II nos traz o aborto chamado pela doutrina de sentimental ou humanitário (ou ainda ético, para alguns autores). São as hipóteses onde o agente que pratica a conduta abortiva não está sujeito a pena. É o que se chama de aborto legal. Veremos agora algumas considerações sobre a primeira possibilidade.
3.3.1 Aborto terapêutico
Conforme entende a doutrina brasileira majoritária, o aborto terapêutico se configura como uma excludente de ilicitude por estado de necessidade, pois a conduta do médico visa afastar do perigo a vida da gestante.
Vejamos o entendimento de Julio Mirabete: “No primeiro caso está previsto o aborto necessário (ou terapêutico) que, no entender da doutrina, caracteriza estado de necessidade (…) cabe ao médico decidir sobre a necessidade do aborto a fim de ser preservado o bem jurídico que a lei considera importante (a vida da mãe) em prejuízo do bem menor (a vida do feto)”. (MIRABETE, 2004, p. 99).
Assim, temos um conflito entre o bem jurídico “vida da gestante” e o bem “vida do nascituro”. Segundo Mirabete, o ordenamento considerou a vida da mãe como tendo mais relevância. Também é este o posicionamento de Luiz Régis Prado, que argumenta que, como o delito do homicídio tem previsão de pena maior que o aborto, a vida já consolidada da grávida teria proteção jurídica maior que a do ser que ainda não nasceu.
O estado de necessidade encontra-se previsto no artigo 24 do Código Penal, que assim dispõe: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias não era razoável exigir-se”. Antes disso o artigo 23, inciso I, já previa o seguinte: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade.”
Assim, quando a gravidez trouxer riscos para a vida gestante, o médico estará acobertado por essa excludente de ilicitude para executar a prática abortiva, visto que estará agindo para garantir direito alheio que, de acordo com a circunstância, não era razoável exigir que fosse sacrificado.
O sacrifício do direito à vida, aliás, nunca é razoável exigir. Por essa razão, o aborto terapêutico realmente configura excludente de ilicitude por estado de necessidade. Nessa situação, o Estado opta por preservar a vida da mãe em detrimento da vida do nascituro pela simples razão de que a primeira já estava consolidada e independente, enquanto a segunda, embora seja uma vida diferente, quando existente apenas dentro do útero materno se torna extremamente dependente da saúde da mãe para sobreviver.
Não obstante, não seria razoável preservar a vida do nascituro e deixar a gestante morrer, já que, nesse cenário, nasceria uma criança sem mãe. Uma criança que, possivelmente, poderia ter problemas de saúde em razão da gravidez conturbada, e ainda teria que enfrentar as dificuldades do crescimento sem a companhia materna. Além disso, é possível também que essa mulher sacrificada tivesse outros filhos que dependessem dela, ou então pais, marido e amigos que sentiriam sua falta. Enfim, na hipótese em que somente uma das vidas poderia ser preservada, a escolha lógica do médico deve ser pela gestante. É por isso que, nessa situação, podemos afirmar que a vida da mãe se configura como um bem jurídico mais valioso que a do nascituro.
Essa escolha, no entanto, não quer dizer de forma alguma que a vida intra-uterina não tenha valor. Apenas trata-se de uma situação extrema, em que a gravidez irá ocasionar a morte da gestante, e não sabemos nem se o nascituro conseguirá sobreviver. Assim, o legislador optou pelo lógico: salvar aquela que tem mais chances de se manter viva. O aborto terapêutico garante, portanto, a inviolabilidade do direito à vida da gestante. Ou seja, é uma norma perfeitamente constitucional.
Este entendimento de que a escolha pela vida da gestante não quer dizer que a vida do nascituro seja desprovida de valor e proteção jurídica é confirmado pela doutrina, que se utiliza dos mesmos argumentos utilizados nos parágrafos anteriores para justificar a conduta abortiva. Ademais, os doutrinadores são categóricos em afirmar que o aborto deve ser a única forma de salvar a vida da mãe, sendo inadmissível a prática abortiva para evitar que a gestante venha a ter alguma complicação futura que não venha a acarretar sua morte, visto que a vida do nascituro é um bem jurídico mais importante que a saúde da grávida, por força do disposto no artigo 5º da Constituição Federal.
Para ilustrar o posicionamento doutrinário, vejamos a lição de Fernando Capez: “Observe-se que não se trata tão-somente de risco para saúde da gestante; ao médico caberá avaliar se a doença detectada acarretará ou não risco de vida para a mulher grávida. Ele, médico, deverá intervir após o parecer de dois outros colegas, devendo ser lavrada ata em três vias, sendo uma enviada ao Conselho Regional de Medicina e outro ao diretor clínico do nosocômio onde o aborto foi praticado”. (CAPEZ, 2007, p. 125, grifos nossos)
Assim, vemos que não basta mero risco à saúde da gestante. O risco tem que ser de morte, e é necessário ainda o parecer de outros dois médicos, o que demonstra mais uma vez que o aborto terapêutico só deve ser utilizado em caso extremo, quando não houver outro meio de salvar a vida da mulher grávida. O médico deve, até o último instante, buscar preservar as duas vidas. Quando não houver mais possibilidade, aí sim fará o procedimento para salvar a mãe, devido a todos os motivos já elencados.
Dessa maneira, podemos afirmar que a modalidade prevista no inciso I do artigo 128 do Código Penal busca garantir a inviolabilidade do direito à vida da gestante, que corre risco devido à gravidez. Atende-se, portanto, ao mandamento constitucional do artigo 5º da Carta republicana.
A outra modalidade de aborto legal é a prevista no inciso II do mesmo artigo 128, o chamado aborto humanitário, realizado em casos de gravidez que se originam a partir de um estupro. Como podemos perceber, nessa situação a vida da gestante não está em risco. Ou seja, o bem jurídico que o ordenamento busca preservar é outro, que não a vida humana. Por ser um instituto cercado de controvérsias, merece tratamento especial, que será dado mais adiante. Antes, porém, falaremos um pouco sobre uma nova espécie de aborto, recentemente considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal: o aborto de fetos anencéfalos.
3.3.2 Aborto de fetos anencéfalos: a decisão do STF na ADPF 54/2004
Segundo a literatura médica, a anencefalia é definida como a má-formação do cérebro e do córtex do feto, havendo apenas um “resíduo” do tronco encefálico. Segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), esta anomalia provoca a morte de 65% dos bebês ainda dentro do útero materno e, quando conseguem chegar ao nascimento, há sobrevida de apenas algumas horas, ou, no máximo, alguns poucos dias.
Nesse cenário, estamos diante de uma gravidez em que não há a menor expectativa de vida para o produto da concepção, situação em que levar a gestação até o fim serviria apenas para provocar um sofrimento irreparável na gestante. Em razão disso, a CNTS ajuizou, no ano de 2004, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, provocando o Supremo Tribunal Federal a manifestar-se sobre a descriminalização da prática abortiva em situações de gestação de feto anencéfalo.
A ADPF é uma ação constitucional proposta exclusivamente perante o Supremo Tribunal Federal, que tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental estabelecido pela Constituição, resultante de ato do poder publico, ou então questionar a constitucionalidade de alguma norma que, supostamente, desrespeite tal preceito.
Assim, a confederação dos trabalhadores da saúde buscou, através da ADPF 54, questionar os artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, que criminalizam a conduta abortiva e dispõe como únicas possibilidades de excludentes de ilicitude os casos de gravidez com risco de vida para a gestante e gravidez decorrente de estupro. Pleiteava a ação que o aborto do anencéfalo fosse descriminalizado, passando a ser considerado como antecipação terapêutica do parto, visto que a tipificação desta conduta como crime descumpriria os preceitos fundamentais da dignidade humana e da proteção à maternidade. No entendimento da CNTS, não há que se falar em aborto conforme o regulado na lei penal, visto que não se trata de eliminação da vida intra-uterina, uma vez que o anencéfalo não possui nenhuma expectativa de sobreviver.
Outra argumentação utilizada foi a invocação do princípio da legalidade, estampado no inciso II do artigo 5º da Constituição, que determina que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude da lei. Ora, se, conforme o alegado pela CNTS, não podemos falar em aborto quando se tratar de feto anencéfalo, visto que o aborto é um crime contra a vida e nesse cenário não há expectativa alguma de sobrevivência, não pode haver criminalização de uma conduta que não estaria prevista, uma vez que a lei penal se refere a aborto e a conduta objeto da ADPF seria antecipação terapêutica do parto, segundo entendimento dos proponentes.
Em suma, a CNTS alegava que o anencéfalo não tem condições nenhuma de sobreviver, e como o Código Penal, ao criminalizar o aborto, busca a preservação da vida humana, a interrupção da gestação de feto anencefálico não poderia de forma alguma ser considerada crime.
Embora a ADPF tenha sido proposta em 2004, o processo teve seu julgamento iniciado apenas no dia 11 de abril de 2012, sendo encerrado no dia seguinte, com a vitória da tese levantada pela CNTS, por oito votos a dois. Na ocasião, a Corte era formada pelos Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio de Mello, Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Carmem Lúcia, Rosa Maria Webber, Luiz Fux e Dias Toffoli.
A manifestação favorável de grande maioria da Corte demonstrou que o Supremo compartilha do entendimento de que o aborto de feto anencéfalo sequer pode ser considerado aborto, visto que este é um crime contra a vida e o anencefálico jamais terá vida em potencial. Assim, prevaleceu a teoria de que a interrupção da gestação em casos de anencefalia não é conduta abortiva, e sim antecipação terapêutica do parto.
O foco central do voto de todos os ministros foi o direito constitucional à vida garantido ao nascituro. Os oito que votaram a favor da tese levantada pela CNTS alegaram que a descriminalização da interrupção antecipada do parto em casos de anencefalia não viola este preceito, visto que o feto anencéfalo não tem expectativa alguma de vida e a morte ocorre em 100% dos casos, sendo a maioria dentro ainda do útero materno.
O relator do processo, ministro Marco Aurélio de Melo, considerou que “anencefalia e vida são termos antitéticos”. Segundo ele, não há conflito entre direitos fundamentais, uma vez que não há qualquer possibilidade do feto anencéfalo sobreviver fora do útero. Em seu voto, o relator sustentou que a arguição proposta pela CNTS não se refere à descriminalização do aborto, uma vez que existe uma clara distinção entre este e a antecipação de parto no caso de anencefalia. Nas palavras do ministro, “Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível”. Ele destacou ainda que não se trata realmente de um nascituro, mas sim de um natimorto.
Na mesma linha se posicionou Celso de Mello, que afirmou o seguinte: “Se não há, na hipótese, vida a ser protegida, nada justifica a restrição aos direitos da gestante”. O ministro mencionou em seu voto a Lei 9.434/97 e a Resolução 1.752/97 do Conselho Federal de Medicina, que consideram a morte do ser humano como o momento em que se encerra completamente sua atividade cerebral, ou seja, a morte encefálica. Segundo ele, seria perfeitamente possível fazer uma analogia no sentido de afirmar que o anencéfalo não é um ser humano vivo, pois não possui cérebro e jamais desenvolverá atividade cerebral. Dessa maneira, não existe crime de aborto possível, pois este é um delito contra a vida e, segundo suas palavras, “se não há vida a ser protegida, não há tipicidade”.
Seguindo a mesma tendência, a ministra Rosa Maria Weber afirmou que a anencefalia não é compatível com as características de compreensão de vida para o Direito e por isso a interrupção de gravidez de feto anencéfalo não pode ser considerada aborto, visto que não é crime contra a vida. A ministra, assim como Celso de Mello, fez alusão à questão da falta de atividade cerebral do feto, relembrando o conceito de morte para o Conselho Federal de Medicina. Carmem Lúcia, por seu turno, fez a seguinte afirmação: “Considero que na democracia a vida impõe respeito. Neste caso, o feto não tem perspectiva de vida e, de toda sorte, há outras vidas que dependem, exatamente, da decisão que possa ser tomada livremente por esta família [mãe, pai] no sentido de garantir a continuidade livre de uma vida digna”.
E essa foi a tendência da maioria dos ministros. Os únicos a votarem contra o requerido pela CNTS foram Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso. O primeiro, argumentou que o Supremo não pode criar uma nova possibilidade jurídica, uma vez que isto é atribuição do legislativo. Já o segundo, defendeu a tese que o anencéfalo também é sujeito de direitos, e, por isso, destinatário do direito constitucional à vida. Segundo suas palavras, “A vida não é um conceito artificial criado pelo ordenamento jurídico para efeitos operacionais. A vida e a morte são fenômenos pré-jurídicos das quais o direito se apropria para determinado fim”.
No mais, Luiz Fux, Ayres Britto e Joaquim Barbosa votaram favoravelmente a tese da CNTS, afirmando que não se trata de aborto, e sim de interrupção antecipada do parto, visto que o anencéfalo não tem chance alguma de ter vida viável. Gilmar Mendes também se posicionou a favor da descriminalização da conduta, no entanto entendeu que se trata de aborto sim, porém deve ser enquadrado como hipótese de excludente de ilicitude. Assim foi construído o placar de 8 a 2. O ministro Dias Toffoli não votou, pois se declarou impedido em razão de ter trabalhado no parecer da Advocacia-Geral da União em favor do pleiteado, na época em que era o advogado-geral.
Outro ponto que merece destaque neste julgamento é a sustentação do então advogado Luís Roberto Barroso, atual Ministro do Supremo e patrono da CNTS naquele feito. Na ocasião, Barroso que afirmou não se tratar de caso de aborto, uma vez que este tipo penal pressupõe vida, o que é impossível em casos de ancenfalia. Nesse cenário, só estão em jogo os direitos fundamentais da gestante. Segundo suas palavras, “A mulher não sairá da maternidade com um berço. Sairá da maternidade com um pequeno caixão. E terá de tomar remédios para cessar o leite que produziu para ninguém. É uma tortura psicológica”. Ele afirmou ainda que todas as autoridades médicas garantem que o diagnóstico de anencefalia é 100% certo e a letalidade ocorre em 100% dos casos, conforme documentos anexados aquele processo.
Ou seja, todo o julgamento se pautou pela questão do direito constitucional à vida. A tese levantada pela CNTS foi de que não há vida viável para o nascituro, e foi essa a argumentação de todos os ministros que votaram a favor da descriminalização. O Código Penal protege a vida, é um verdadeiro mecanismo de efetivação deste direito fundamental positivado no 5º artigo da Lei Maior. Assim, não estando esse bem tão valioso em jogo, não há porque haver incidência do instituto do aborto, que, conforme regula o estatuto repressivo, é crime contra a vida humana.
Para alguns ministros, este foi o julgamento mais importante da história da Corte. Um julgamento que, ao descriminalizar a interrupção antecipada do parto em casos de fetos anencéfalos, reafirmou para toda a sociedade que a Constituição Federal e todo o ordenamento que por ela é comandado protegem a vida humana, que, nesse caso, não estava em jogo. O Supremo, na verdade, não criou uma nova excludente de ilicitude para o aborto, e sim confirmou que este é um crime contra a vida, e como não há vida a ser protegida em casos de anencefalia, a antecipação do fim da gestação não pode ser definida como conduta criminosa.
Já conhecemos, portanto, duas possibilidades em que a gravidez pode ser interrompida antes do termo final sem que haja punição para o agente que praticou o procedimento: o aborto terapêutico, quando a gestação traz risco de morte para a gestante, e os casos de fetos anencéfalos, porque nessa situação não há vida a ser protegida (logo, não há aborto). Veremos a partir de agora a outra hipótese prevista em nosso ordenamento jurídico: o aborto humanitário.
3.3.3. Aborto humanitário
Previsto no inciso II do artigo 128 do Código Penal, o aborto humanitário também é chamado pela doutrina de sentimental ou ético. É a possibilidade da realização de aborto sem punição quando a gravidez se origina a partir de um estupro. É mister que o procedimento seja realizado por médico e precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal, nos casos de incapacidade.
Neste dispositivo, o legislador buscou preservar a gestante de ter que levar adiante uma gestação oriunda de uma violência por ela sofrida. Para a maioria da doutrina, trata-se de uma norma penal não incriminadora excepcional, o que impede a utilização de analogia. Ou seja, o inciso traz requisitos que são de observância obrigatória. Não pode, por exemplo, a própria mulher estuprada praticar o aborto, pois estaria incorrendo na conduta criminosa descrita no artigo 124 da lei penal. Portanto, para os doutrinadores filiados a essa corrente, é indispensável que a prática abortiva seja realizada pelo médico. Como exemplo de adeptos deste entendimento, citaremos o posicionamento de José Frederico Marques: “Aceita que foi, porém, a impunidade dessa forma de aborto, deve-se aplicar a lei, no que diz respeito às exigências nela contidas, com o mais absoluto rigor, só admitindo a licitude da ação, quando preenchidos, irrestritamente, os pressupostos exarados na norma permissiva. Em primeiro lugar, nem a gestante, e muito menos parteiras ou pessoas sem habilitação profissional, podem provocar o aborto para interromper gestação oriunda de estupro. Em segundo lugar, indeclinável é o consentimento da gestante ou de seu representante legal, como antecedente ou prius da operação abortiva. Por fim, indispensável é que o médico tenha elementos seguros sobre a existência do estupro. Faltando um desses requisitos, que seja, o aborto será criminoso”. (MARQUES, 1999, p. 219).
Em sentido contrário, temos o entendimento de Rogério Greco, que defende ser possível a realização da conduta por outra pessoa que não o médico, sem que haja responsabilidade criminal. Em sua opinião, é perfeitamente cabível a aplicação de analogia in bonam partem no sentindo de excluir a ilicitude de alguns agentes que venham a praticar o aborto em uma mulher estuprada, quando se tratar de situação extrema. Vejamos exemplo mencionado pelo ilustre autor: “Imagine-se a seguinte hipótese: uma mulher que reside em uma aldeia de difícil acesso, no interior da floresta amazônica, por exemplo, é vítima de um delito de estupro. Não tendo condições de sair de sua aldeia, tampouco existindo possibilidade de receber, em sua residência, a visita de um médico, solicita à parteira da região que realize o aborto, depois de narrar-lhe os fatos que a motivaram ao ato extremo. Pergunta-se: Não estaria também a parteira acobertada pelo inciso II do art. 128 do Código Penal, ou, em decorrência do fato de não haver médicos disponíveis na região, a gestante, por esse motivo, deveria levar sua gravidez a termo, contrariamente à sua vontade? Entendemos, aqui, perfeitamente admissível a analogia in bonam partem, isentando a parteira de qualquer responsabilidade penal”. (GRECO, 2007, p. 257)
Ou seja, para Greco é possível, apenas em casos extremos, que outra pessoa diferente do médico realize o aborto. No entanto, a corrente majoritária compartilha do mesmo entendimento que José Frederico Marques: o aborto humanitário é norma penal não-incriminadora excepcional, e por isso não podemos falar em analogia, apenas cumprir os requisitos legais.
Se há entendimentos contrários quanto à obrigatoriedade da conduta ser realizada unicamente por médico, no tocante ao segundo requisito previsto no inciso, referente ao consentimento da gestante ou de seu representante legal, não há quaisquer controvérsias. Toda a doutrina se manifesta no mesmo sentido: o consentimento é essencial para que o médico possa praticar a conduta abortiva.
Não são raras as hipóteses em que a gestante, mesmo tendo sido estuprada, opta por levar a gravidez até o final. Em muitos casos, o amor por esse filho acaba fazendo a mãe superar o trauma pela violência sofrida. Por outro lado, também não é incomum que a gestante queira realizar o aborto, por entender que não teria condições psicológicas para suportar a gestação. Por essa razão, é de suma importância que essa mulher manifeste sua opinião quanto à interrupção ou não da gravidez. Não pode, de maneira nenhuma, o médico praticar a conduta abortiva sem autorização, pois incorrerá na prática do crime previsto no artigo 125 do Código Penal e estará sujeito a pena de reclusão de 3 a 10 anos.
O consentimento é, portanto, sempre necessário. Quando a gestante for incapaz, quem deverá autorizar a prática do procedimento é seu representante legal. Acerca dessa possibilidade, a doutrina costuma indagar o que fazer quando uma menina incapaz em razão de sua idade deseja prosseguir com a gravidez, enquanto seu representante quer o aborto. Embora haja algumas opiniões contrárias, a maioria dos doutrinadores entende que deve prevalecer o raciocínio pela vida do feto, uma vez que, nesse caso, a própria gestante assume que os danos psicológicos gerados em razão do estupro não são suficientes para justificar a interrupção da gravidez. Assim, segundo Rogério Greco, o consentimento do representante legal deve ser interpretado apenas como uma forma de legitimar a vontade já manifestada pela grávida.
Ainda sobre o consentimento, há na doutrina quem defenda que, embora a autorização seja condição essencial para a realização do aborto, ela não é justificativa jurídica suficiente para, por si só, excluir a ilicitude da conduta do médico, sendo indispensável a comprovação de que houve estupro. É essa a posição sustentada por Luis Régis Prado, que não poderíamos deixar de expor: “Em que pese, porém, a exigência expressa do consentimento da gestante ou de seu representante legal para a realização do aborto sentimental ou humanitário, cabe advertir que a exclusão de ilicitude pelo consentimento do ofendido somente pode operar nos delitos em que o único titular do bem ou interesse juridicamente protegido é a pessoa que aquiesce e que pode livremente dispor. Embora o legislador tenha conferido relevância à liberdade de autodeterminação da mulher, o consentimento da gestante não conduz à exclusão da ilicitude do aborto provocado pelo médico, já que essa conduta implica a lesão de um bem jurídico de que ela não é titular e do qual, de consequência, não pode livremente dispor. Com efeito, é o nascituro o titular do bem jurídico tutelado (vida) e, ante a absoluta impossibilidade de obtenção de seu consentimento, não há que se cogitar da exclusão da ilicitude da conduta do médico com base em tal causa de justificação (consentimento de ofendido).” (RÉGIS PRADO, 2002, p. 107)
Assim, Régis Prado sustenta que o consentimento da gestante, embora seja requisito indispensável, não pode por si só justificar a exclusão da ilicitude, pois a mulher não é detentora da vida do nascituro. É o mesmo posicionamento defendido por Aníbal Bruno: “A gestante não é o titular do bem jurídico protegido pela incriminação do aborto. O seu consentimento não pode mesmo ser objeto de apreciação para a justificação dessa espécie punível, tanto que uma das suas formas é aquela em que o agente é a própria gestante”. (BRUNO, 1976, p. 165)
Ou seja, se o bem jurídico que a lei penal busca preservar ao incriminar a conduta do aborto é justamente a vida do nascituro, não é razoável que a simples autorização da gestante seja suficiente para permitir a eliminação desta vida. Dessa maneira, se faz de extrema necessidade que haja comprovação que realmente houve estupro, o que não precisa necessariamente emanar de sentença condenatória do estuprador ou então de autorização judicial, podendo ser demonstrada através de boletim de ocorrência, declaração ou outros meios.
Essa comprovação, no entanto, deve ser oriunda de elementos sérios e inequívocos, não podendo haver qualquer dúvida quanto à existência do crime sexual. Quando os médicos não se sentirem seguros sobre a ocorrência do delito de estupro, aí se fará necessário que a gestante busque em juízo autorização para a realização do aborto. Vejamos, como exemplo, jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Ementa: PEDIDO DE ABORTO. ESTUPRO. VIOLÊNCIA INDEMONSTRADA. DIREITO DO FETO À VIDA. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL. DIREITO NATURAL. Diante da ausência de elementos seguros de convicção acerca da ocorrência de violência sexual, não se mostra recomendável nem indicada a interrupção da gravidez pretendida, visto que maiores seriam os malefícios. Destaco que merece maior proteção o interesse do nascituro em viver, conforme o art. 227 da CF. O fato de existir e de permanecer vivo, enquanto as funções biológicas permitirem constitui direito natural inalienável de todo o ser humano e, em si mesmo, o ponto de partida para todos os demais direitos que o ordenamento jurídico possa conceber”. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70001010446, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 03/05/2000)
Ou seja, os elementos apresentados sobre a ocorrência do estupro não podem permitir qualquer dúvida sobre sua veracidade, sob pena de impossibilidade de realização do procedimento abortivo, conforme se depreende da decisão acima transcrita. Apenas se estiver comprovado, de forma inequívoca, que realmente houve a violência sexual, o Estado permitirá que a gravidez seja interrompida mediante intervenção médica. Busca-se aí preservar a integridade psíquica e emocional da gestante, com a permissão para que seja eliminada a vida do feto.
Assim, no aborto humanitário, estamos diante de hipótese em que o ordenamento jurídico permite a violação da vida do nascituro para garantir a dignidade de sua mãe. No aborto terapêutico, vimos que se confrontam bens jurídicos iguais (vida da gestante e vida do nascituro) e o ordenamento opta por garantir a vida que, pelas circunstâncias, seria mais razoável preservar. Já na outra hipótese de interrupção antecipada de gravidez sem punição (casos de anencefalia), o STF entendeu que não há vida a ser protegida. Ou seja, somente no aborto humanitário o direito pátrio permite que uma vida seja violada para preservação de um bem jurídico menor.
A respeito da natureza jurídica do instituto, a doutrina diverge se seria hipótese de estado de necessidade ou de inexigibilidade de conduta diversa, ao contrário do que ocorre com o aborto terapêutico, previsto no inciso I do art. 128 do Código Penal, em que há unanimidade no sentido de se tratar de excludente de ilicitude por estado de necessidade. No tocante ao aborto humanitário, parte da doutrina entende que essa excludente também se aplica a este instituto, porém, a corrente majoritária se manifesta de forma contrária a este entendimento, afirmando se tratar de inexigibilidade de outra conduta.
Conforme já estudado, o artigo 24 do Código Penal dispõe que o estado de necessidade se configura quando o agente pratica o fato típico para salvar direito próprio ou alheio cujo sacrifício, nas circunstâncias, não é razoável exigir. A disposição exige ainda que o perigo seja atual, não provocado pela vontade do agente e impossível de por ele ser evitado.
Assim, vemos que o estado de necessidade é marcado pelo confronto de bens jurídicos protegidos pelo ordenamento. Cabe ao aplicador do direito ponderar qual deles deve prevalecer em relação ao outro. Podemos afirmar que essa ponderação deve ser feita a partir da indisponibilidade de cada direito, tendo como parâmetro sempre os preceitos contidos na Constituição Federal, que é a Lei orientadora de toda a ordem jurídica. Ou seja, se houver conflito entre o direito à liberdade e algum direito patrimonial, por exemplo, podemos perfeitamente afirmar que não seria razoável sacrificar à liberdade, que é direito fundamental e inviolável segundo disposição do artigo 5º da Carta Republicana. Segundo Rogério Greco, o operador do direito deverá colocar os bens jurídicos em uma espécie de balança imaginária para realizar a ponderação. Vejamos sua lição sobre essa excludente: “Quando os bens estão acondicionados nos pratos desta “balança”, inicia-se a verificação da prevalência de um sobre o outro. Surge como norteador do estado de necessidade o princípio da ponderação dos bens. Vários bens em confronto são colocados nessa balança, a exemplo da vida e do patrimônio. A partir daí, começaremos a avaliá-los, a fim de determinar sua preponderância, ou mesmo a sua igualdade de tratamento, quando tiverem o mesmo valor jurídico”. (GRECO, 2010, p. 307.)
Assim, percebemos que é necessário ponderar sobre qual bem deve prevalecer no caso concreto, para que se possa invocar a excludente do estado de necessidade. Acerca dessa ponderação, existem duas teorias que são indispensáveis que conheçamos: a teoria unitária e a teoria diferenciadora.
Segundo a teoria unitária, para estar caracterizado o estado de necessidade é preciso que o bem que se queira proteger tenha valor jurídico superior ou igual àquele que será sacrificado. É o que se chama de estado de necessidade justificante. Já a teoria diferenciadora traça uma distinção entre esse estado de necessidade justificante e uma outra modalidade: o estado de necessidade exculpante, que poderia ser alegado quando o bem sacrificado tivesse valor menor que o bem protegido. Nessa hipótese, não se afasta a ilicitude da conduta (como na modalidade justificante), mas sim a culpabilidade.
A doutrina majoritária entende que o Código Penal brasileiro, devido à redação do dispositivo contido no artigo 24, adotou a teoria unitária. Vejamos entendimento de Heleno Cláudio Fragoso: “A legislação vigente, adotando a fórmula unitária para o estado de necessidade e aludindo apenas ao sacrifício de um bem que, ‘nas circunstâncias, não era razoável exigir-se’, compreende impropriamente também o caso de bens de igual valor (é o caso do naufrago que, para reter a única tábua de salvamento, sacrifica o outro). Em tais casos subsiste a ilicitude da culpa (inexigibilidade de outra conduta), que a seu tempo examinaremos.” (FRAGOSO, 1993, p. 189)
Assim, percebemos que Fragoso descarta se tratar de estado de necessidade a situação em que o bem que se quer proteger for menor que aquele que será violado. Para o jurista, assim como para a maioria da doutrina, a única possibilidade de não haver punição nesses casos é a exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta.
Dessa maneira, podemos afirmar que a lei penal adotou a teoria unitária no que diz respeito ao estado de necessidade. Assim, essa excludente de ilicitude só estaria configurada quando o bem protegido fosse igual ou mais valioso que o bem violado. Retornando ao aborto humanitário, já vimos que se trata de uma hipótese onde a legislação admite que a vida do nascituro seja violada para preservar a honra e a integridade psíquica da mãe. Fica claro, portanto, que não se tratam de bens iguais. Tampouco aquele bem que se quer proteger é mais valioso do que o que será sacrificado. Em razão disso, a grande maioria da doutrina proclama ser impossível falar em estado de necessidade quando se tratar de aborto em casos de gravidez decorrente de estupro.
Assim sendo, o aborto humanitário não cumpre o requisito objetivo da razoabilidade estampado no artigo 24 do Código Penal, portanto, não há possibilidade de se falar em estado de necessidade, pois, como já vimos neste trabalho, a vida é o principal direito garantido pela Constituição e premissa elementar de todos os outros direitos. Por essa razão, não podemos nunca admitir que uma vida seja sacrificada para preservar outro direito que não seja também direito à vida. É este também o posicionamento defendido por Cezar Roberto Bitencourt, que assim nos ensina: “O princípio da razoabilidade nos permite afirmar, com segurança, que quando o bem sacrificado for de valor superior ao preservado, será inadmissível o reconhecimento do estado de necessidade. No entanto, como já referimos, se as circunstâncias o indicarem, a inexigibilidade de outra conduta poderá excluir a culpabilidade”. (BITENCOURT, 1997 p. 279-280)
Assim como Fragoso, Bitencourt afirma que o sacrifício de bem maior para preservar bem menor impede a invocação do estado de necessidade, mas pode, dependendo das circunstâncias, configurar excludente de culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta, hipótese que abordaremos em breve.
Partindo, portanto, do princípio da razoabilidade como condição essencial para a aplicação do estado de necessidade, é possível concluir que não há essa excludente de ilicitude quando se tratar de aborto humanitário, pois em hipótese alguma seria razoável sacrificar uma vida para preservar a integridade emocional.
Podemos afirmar com convicção que o direito do nascituro à vida seria mais importante que a integridade psíquica/dignidade de sua mãe em razão de tudo que já estudamos no decorrer deste trabalho. Já vimos que a vida é o principal direito garantido pelo ordenamento jurídico e premissa fundamental de todos os outros direitos. Vimos também que esse direito alcança tanto o individuo já nascido quanto a vida intra-uterina, e vimos que o legislador penal buscou, na criminalização do aborto, uma forma de efetivar esse direito inviolável. Dessa maneira, não é razoável sacrificar a vida humana para preservar outro direito menor, o que impede a invocação do estado de necessidade para excluir a ilicitude do aborto humanitário. É este o entendimento proclamado pela grande maioria da doutrina, conforme demonstra a seguinte lição de Rogério Greco: “Pela redação do art. 24 do Código Penal, somente se pode alegar o estado de necessidade quando o sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. (…) Não entendemos razoável no confronto entre a vida do ser humano e a honra da gestante estuprada optar por este último bem”. (GRECO, 2007, p. 254-255)
Assim, não nos resta dúvidas de que não há estado de necessidade nas situações de aborto em casos de estupro. Conforme entendimento de todos os penalistas já citados, a situação em que se viola um bem mais valioso para preservar um bem menor só pode escapar da punibilidade se restar comprovada a inexigibilidade de outra conduta, que seria a natureza jurídica do aborto humanitário.
A inexigibilidade de conduta diversa (ou inexigibilidade de outra conduta) é um instituto caracterizado pela exclusão da culpabilidade pela prática de um fato típico, em virtude de, pelas circunstâncias, não haver possibilidade de atuar de outra maneira.
Essa excludente de culpabilidade é muito complicada de ser aferida, em razão de depender de aspectos intrínsecos de cada pessoa. Uma conduta que, para um, seria perfeitamente exigível, para outro pode ser inexigível devido a alguma condição pessoal especial.
Compete acrescentar, outrossim, que a inexigibilidade de conduta diversa é uma excludente de culpabilidade supralegal, visto que sua definição não está prevista de forma expressa no Código Penal, ao contrário das excludentes de ilicitude, como a legitima defesa e o estado de necessidade, que são conceituadas nos artigos 24 e 25 do estatuto repressivo. Assim, embora não haja definição expressa acerca desse instituto, o certo é que o ordenamento jurídico dita parâmetros a serem observados, e, a partir desses parâmetros, devem ser feitos juízos de valoração de cada caso concreto para se chegar a uma conclusão sobre a culpabilidade ou não de determinada conduta.
Este é um instituto, portanto, que atua no campo da culpabilidade, enquanto o estado de necessidade, já estudado, atua no campo da ilicitude. Quem alega inexigibilidade de conduta diversa tem plena consciência de que praticou fato tipificado como crime, no entanto, busca a exclusão de sua culpabilidade em razão dos fatores que o influenciaram a agir de tal forma.
Vejamos a definição do jurista Leonardo Isaac Yarochewsky: “Sendo a exigibilidade de comportamento conforme o Direito um dos elementos da culpabilidade, a sua ausência manifestada pela inexigibilidade exclui, portanto, a culpabilidade, do mesmo modo que a inimputabilidade e a falta da consciência da ilicitude também a excluem. Assim, o agente pode praticar uma ação típica, ilícita, sem conduto ser culpável por estar amparado por uma das causas que excluem a culpabilidade, dentre elas a inexigibilidade de outra conduta”. (YAROCHEWSKY, 2000, p. 46)
Assim, uma conduta criminosa pode ser justificada mediante a invocação da inexigibilidade de conduta diversa. Nesse cenário, estando comprovado que não havia mesmo a possibilidade de agir de outra forma, fica afastada a culpabilidade e não há que se falar em responsabilidade criminal.
A maioria da doutrina proclama que o aborto em casos de estupro se configura como uma situação de inexigibilidade de outra conduta, visto que seria inaceitável que o Estado obrigasse a mulher a carregar em seu ventre um feto oriundo de uma relação sexual forçada. Assim, a única conduta esperada por essa mulher seria autorizar que o médico realizasse o procedimento abortivo, não podendo haver culpabilidade diante de situação tão delicada.
É este o entendimento da grande maioria dos doutrinadores penalistas. Fernando Capez, por exemplo, afirma que o Estado não poderia obrigar a mulher a gerar um filho que é fruto de um a violência sexual, uma vez que isso lhe pode causar graves danos psicológicos. Julio Mirabete vai além e conclui que, além dos danos que a gestação por si só acarretaria, frequentemente o autor do estupro é uma pessoa degenerada e anormal, o que pode provocar problemas ligados à hereditariedade.
Por mais assustador que possa parecer o argumento de Mirabete, ele tem o intuito de deixar claro que não se pode exigir da mulher violentada outra conduta que não o aborto, assim como Capez faz ao invocar os danos psicológicos que essa gestação traria a grávida. Nelson Hungria, por sua vez, afirma que nada pode justificar que se obrigue uma mulher violentada a aceitar uma maternidade que, segundo suas palavras, seria odiosa e daria vida a um ser que lhe fará sempre lembrar do estupro.
Por fim, concluímos com Rogério Greco: “Entendemos, com a devida vênia das posições em contrário, que, no inciso II do art. 128 do Código Penal, o legislador cuidou de uma hipótese de inexigibilidade de conduta diversa, não podendo exigir da gestante que sofreu a violência sexual a manutenção de sua gravidez, razão pela qual, optando-se pelo aborto, o fato será típico e ilícito, mas deixará de ser culpável” (GRECO, 2010, p.399)
Assim, a mulher que engravida ao ser vítima de estupro, ao optar por interromper a gravidez, estaria, na opinião da doutrina majoritária, acobertada pela excludente de culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta. Seria essa, portanto, a natureza jurídica do aborto humanitário.
No entanto, respeitosamente discordamos desse posicionamento, entendendo que o aborto humanitário não teria sido recepcionado pela Constituição de 1988, que institui um sistema normativo que não admite a violação da vida humana para preservação de um bem jurídico menor.
Compete relembrar que o Código Penal é uma legislação datada de 1940, tendo sido, portanto, editada sob uma ordem constitucional completa diversa da que vigora agora, de modo que, com a devida vênia à doutrina majoritária, entendemos que o inciso II do artigo 128 não teria sido recepcionado pela Carta Federal de 1988.
Conforme já introduzido neste estudo, o fenômeno da recepção ocorre quando uma norma infraconstitucional, editada sob a vigência de uma Constituição que já não está mais em vigor, apresenta compatibilidade material com a Constituição atual. Nessa situação, a norma em questão permanece válida, por ter sido recepcionada. Por consequência, se a referida disposição legal for incompatível com a Carta Federal vigente, não terá ocorrido a recepção e a norma deve ser afastada do mundo jurídico.
Essa norma não recepcionada pode ser afastada simplesmente por deixar de ser aplicada, sem a necessidade da intervenção do poder judiciário, ou então através do controle judicial de constitucionalidade, que pode ocorrer pela via difusa, com a declaração de inconstitucionalidade sendo proferida por qualquer magistrado que se deparar com uma situação fática a ele submetida que enseje a aplicação da referida norma, ou pela via concentrada, quando a inconstitucionalidade é declarada pelo Supremo Tribunal Federal, no bojo de ações próprias para esse fim, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Ação Declaratória de Constitucionalidade, ambas previstas no artigo 102, inciso I, alínea “a”, da Carta Federal de 1988.
Desse modo, compete tecer algumas considerações sobre a Constituição de 1937, vigente na ocasião da entrada em vigor do nosso Código Penal, que foi uma carta outorgada, com claras inspirações totalitárias e sem maiores preocupações com os direitos fundamentais, conforme nos ensinam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino: “Como se vê, foi uma carta outorgada, fruto de um golpe de Estado. Era Carta de inspiração fascista, de caráter marcadamente autoritário e com forte concentração de poderes nas mãos do Presidente da República. A Constituição de 1937, frequentemente chamada de “Constituição Polaca” (alusão à Constituição polonesa de 1935, que a teria inspirado), embora contivesse um rol de pretensos direitos fundamentais, não contemplava o princípio da legalidade, nem o da irretroatividade das leis. Não previa o mandado de segurança. Possibilitava a pena de morte para crimes políticos e previa a censura prévia da imprensa e demais formas de comunicação e entretenimento, dentre outras disposições restritivas inteiramente incompatíveis com um verdadeiro Estado Democrático de Direito”. (PAULO e ALEXANDRINO, 2011, p.28-29, grifos nossos).
Além da lição acima, compete destacar que, no tópico referente aos direitos e garantias individuais da Carta de 1937, não se encontrava a previsão de proteção do direito à vida, mas tão somente à liberdade, à segurança individual e à propriedade, como se percebe pela redação de seu artigo 122: “A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes (…)”
Ou seja, enquanto o caput do artigo 5º da atual Constituição elenca como fundamentais os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade e à segurança, o dispositivo correspondente da Constituição de 1937 não inseriu vida e igualdade neste rol, deixando claro que se tratava de um sistema normativo que não colocava a vida como principal bem jurídico a ser protegido, tanto que admitia a pena de morte para crimes políticos, algo inconcebível nos tempos atuais.
Desse modo, considerando tratar-se de ordenamento completamente distinto do atual, que não atribua tanto valor a vida humana como agora, é natural que não tenha havido maiores preocupações com as proteções ao nascituro na ocasião de tipificar o delito do aborto, motivo pelo qual o artigo 128, inciso II, do Código Penal demonstra ser compatível com o sistema jurídico vigente em 1940, data em que o referido dispositivo entrou em vigor.
No entanto, com o advento da Constituição de 1988, toda a ordem legal preexistente precisou ser compatível com o novo ordenamento para permanecer válida. Assim, considerando que o sistema normativo instaurado em 1988 consagra a vida como principal bem jurídico tutelado pelo Direito, como demonstrado a exaustão nesse trabalho, compartilhamos do seguinte entendimento de Cleber Francisco Alves e Fernando Ferreira dos Santos, pela não recepção do referido instituto: “Tendo em vista o dispositivo constitucional (art. 5 caput) que assegura a inviolabilidade do direito à vida, o artigo 128, do Código Penal, que admite o aborto dito “sentimental” – quando a mulher tenha sido vítima de estupro – não teria sido recepcionado pela Constituição de 1988” (ALVES, 2001 apud SANTOS, 2001, p. 167-168, grifos nossos).
No entanto, em que pese essa manifestação pessoal deste subscritor, é preciso destacar que trata-se de entendimento extremamente minoritário, pois a maioria esmagadora da doutrina aceita a constitucionalidade do referido tipo penal, que, até o momento, ainda não foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal.
Na realidade, o questionamento que tem sido feito no Supremo é em sentido totalmente oposto, buscando uma declaração de inconstitucionalidade da criminalização de qualquer espécie de aborto até o terceiro mês de gestação, conforme será abortado a partir de agora.
4.1. O Habeas Corpus nº 124.306/RJ
O Jurista Luis Roberto Barroso, que foi advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde na ADPF 54, responsável pela descriminalização da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, se tornou Ministro do Supremo Tribunal Federal em 26 de junho de 2013, por indicação da então presidenta Dilma Roussef. Seu ingresso na Corte representou uma conquista para os defensores da legalização do aborto, visto que suas posições a respeito do tema são consideradas “progressistas”, indicando que, em seu entendimento, a vida humana não se inicia no momento da concepção, o que abre espaço para a descriminalização da conduta abortiva antes que o feto alcançasse esse estágio em que a vida começa.
O Ministro deixou claro esse entendimento ao proferir, no Habeas Corpus nº. 124.306/RJ, um voto-vista que pode representar o primeiro passo do direito brasileiro no rumo da legalização do aborto nas primeiras semanas da gestação.
O Habeas Corpus em questão foi impetrado para requerer liberdade provisória a dois pacientes presos preventivamente em decorrência da prática abortiva. O feito foi relatado originalmente pelo Ministro Marco Aurélio de Melo, que votou para conceder a ordem, em razão da ausência de fundamentos para a prisão preventiva. O Ministro Barroso, no entanto, proferiu voto-vista no sentido de não conhecer do remédio, por se tratar de substitutivo de recurso ordinário constitucional, mas de conceder a ordem de ofício, para determinar a soltura dos pacientes, em razão da relevância da matéria. Esse voto, que será detalhado no parágrafo seguinte, foi seguido pelos outros membros da turma, Ministros Edson Fachin e Rosa Weber, sendo vencido somente o Ministro Marco Aurélio, motivo pelo qual o Ministro Barroso foi alçado ao posto de relator do acórdão, na forma do artigo 38, inciso II, do Regimento da Corte, que determina a substituição do relator quando este for vencido em seu voto.
Em sua manifestação, o Ministro Barroso deixou claro seu posicionamento no sentido de que, no primeiro trimestre da gestação, a prática abortiva não poderia ser considerada crime, visto que isso violaria direitos fundamentais da mulher, a exemplo do que foi consignado no precedente norte-americano de “Roe vs. Wade”, já citado neste trabalho. Nas palavras do Ministro, “é dominante no mundo democrático e desenvolvido a percepção de que a criminalização da interrupção voluntária da gestação atinge gravemente diversos direitos fundamentais das mulheres, com reflexos inevitáveis sobre a dignidade humana. O pressuposto do argumento aqui apresentado é que a mulher que se encontre diante desta decisão trágica – ninguém em sã consciência suporá que se faça um aborto por prazer ou diletantismo – não precisa que o Estado torne a sua vida ainda pior, processando-a criminalmente. Coerentemente, se a conduta da mulher é legítima, não há sentido em se incriminar o profissional de saúde que a viabiliza.”
Na sequência, o Ministro passou a abordar a condição jurídico-científica do nascituro no primeiro trimestre da gestação, mostrando ser um adepto da corrente que sustenta que só há que se falar em vida quando se forma o sistema nervoso central, o que ocorre após o terceiro mês da gestação. Em suas palavras, não poderia haver a criminalização do aborto nos três primeiros meses gestacionais, pois “não há qualquer possibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno nesta fase de sua formação. Ou seja: ele dependerá integralmente do corpo da mulher”.
Partido dessa premissa, o Ministro avançou em seu voto, sustentando que a interrupção do parto não poderia ser considerada crime nos três primeiros meses da gestação, tendo mencionado diversos argumentos geralmente invocados por movimentos defensores da legalização do aborto, tais como: (I) a criminalização da conduta viola os direitos sexuais, reprodutivos e de planejamento familiar da mulher; (II) viola o princípio da igualdade, pois homem não engravida; (III) atinge mais as mulheres pobres, que, por não terem condições financeiras para custear um aborto seguro, acabam procurando clínicas clandestinas e põe sua vida em risco, enquanto as que possuem padrão financeiro mais elevado realizam a prática com segurança; e (IV) não contribui efetivamente para coibir o aborto, pois estudos de países que legalizaram a interrupção gestacional demonstram que a prática não aumentou com a legalização.
Em razão destes fundamentos, o Ministro votou para conceder, de ofício, a ordem de habeas corpus, fundada não só na desnecessidade da prisão preventiva no caso concreto, mas também na tese de que os artigos 124 e 126 do Código Penal, em sua opinião, não teriam sido recepcionados em sua integralidade pela Constituição de 1988, uma vez que não deveriam incidir sob a interrupção do parto praticada até o terceiro mês da gestação.
O posicionamento do Ministro Barroso foi acompanhado pelos Ministros Edson Fachin e Rosa Weber em todos os seus termos, o que demonstra que, pelo menos, três membros de nossa Corte Suprema entendem pela descriminalização da interrupção antecipada no parto até a terceira semana da gestação, hipótese em que o feto ainda não possui função cerebral e, portanto, não possuiria vida plena.
Esse entendimento, no entanto, não se reveste de efeito vinculante, visto que a decisão foi proferida em sede de controle concreto, gerando efeito somente para as partes do processo. Ou seja, o aborto permanece sendo crime em qualquer fase da gestação. No entanto, já tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação de controle abstrato de constitucionalidade, buscando uma decisão com efeito erga omnes acerta da questão. Trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que será analisada no tópico seguinte.
4.2. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442
A referida ação, subscrita pelas advogadas Luciana Boiteux, Luciana Genro, Gabriela Rondon e Sinara Gumeri, tem como relatora justamente a Ministra Rosa Weber, e se fundamenta quase que exclusivamente nos direitos de liberdade das mulheres, reproduzindo muitos dos argumentos do Ministro Barroso no HC 124.306/RJ para pleitear a declaração de não recepção dos artigos 124 e 126 do Código Penal. A peça inicial utiliza muitas fontes do direito comparado, citando vários países que regulamentaram o aborto, sem, no entanto, entrar no mérito sobre quando começa a vida humana. Ou seja, pretende-se que seja reconhecido que os direitos reprodutivos femininos teriam maior expressão jurídica do que o direito a vida do nascituro, tal qual ocorre no sistema jurídico norte-americano, o que, conforme demonstrado a exaustão nesse trabalho, vai contra toda a ordem constitucional estabelecida em nosso país.
Dentre os argumentos levantados pelas advogadas subscritoras da arguição, estão o de que “a criminalização do aborto e a consequente imposição da gravidez compulsória compromete a dignidade da pessoa humana e a cidadania das mulheres, pois não lhes reconhece a capacidade ética e política de tomar decisões reprodutivas relevantes para a realização de seu projeto de vida”, bem como “provoca violações ao direito à saúde (CF, art. 6º), à integridade física e psicológica das mulheres e à proibição de submissão a tortura ou a tratamento desumano ou degradante (CF, art. 5º, III), uma vez que a negação do direito ao aborto pode levar a dores e sofrimentos agudos para uma mulher, ainda mais graves e previsíveis conforme condições específicas de vulnerabilidade que variam com a idade, classe, cor e condição de deficiência de mulheres, adolescentes e meninas”. Ou seja, o objetivo da ADPF é que o Supremo Tribunal Federal reconheça que os direitos de escolha da mulher devem se sobrepor aos direitos do nascituro.
Em razão da grande relevância da matéria, a Ministra Rosa Weber convocou audiência pública para tratar do tema, o que ocorreu nos dias 03 e 06 de agosto de 2018, com a presença de especialistas da área da saúde, de movimentos feministas, de partidos políticos, de entidades religiosas, entre outros grupos representativos.
Atualmente, o último movimento do processo é uma manifestação da Procuradoria Geral da República, do dia 12 de maio de 2020, da lavra do Procurador-Geral, Augusto Aras, pugnando pela improcedência da ADPF. Neste parecer, o Procurador afirma que o Supremo Tribunal Federal não pode atuar como legislador positivo, e que a matéria cabe ao Congresso Nacional. Acrescenta, ainda, que, diante de diferentes correntes científicas acerca do marco inicial da vida humana, cabe ao poder legislativo, que é o órgão legitimamente constituído para representar a vontade da população, decidir qual seria este marco, seguindo, é claro, pareceres técnicos de especialistas no assunto.
Compete destacar que o poder legislativo também foi instado a se manifestar no feito, tendo a Câmara dos Deputados apresentado parecer no sentido de que a constitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal já foi reafirmada pelas comissões temáticas daquela Casa Legislativa na ocasião da apreciação de alguns projetos de lei que versavam sobre o referido tipo penal. A manifestação reafirma, ainda, que o tipo penal do aborto protege o mais fundamental dos direitos garantidos pela Constituição, que, ao não delimitar etapa específica da gestação, garantiu a proteção em qualquer fase que o nascituro se encontre, assim como foi defendido neste trabalho. Nas palavras do Deputado Rodrigo Maia, que assinou o ofício encaminhado ao STF, “faz-se mister salientar que crime de aborto previsto nos artigos 124 e 126 do Decreto-Lei n. 2.848/1940 está inserido, no Código Penal, no título dos crimes contra as pessoas, no capítulo dos crimes contra a vida. Percebe-se, pois, que os delitos em questão possuem como bem jurídico a ser tutelado a vida humana intrauterina. Assim, a prática do crime de aborto significa atentar contra a vida, direito fundamental inviolável, resguardado pelo artigo 5º, caput, da Constituição Federal – CF, dispositivo este que não faz distinção entre a vida extra e intrauterina. (…) Nessa medida, o marco legal da criminalização do aborto está adequado. Protege-se a vida, a dignidade da pessoa humana, fundamento maior da República Federativa do Brasil, independente da fase em que a gestação se encontra, nos termos do artigo 5º, caput, da CF.”
A outra Casa Legislativa, o Senado Federal, também se manifestou no processo, igualmente rechaçando a tese proposta na ADPF, tendo registrado que o Código Civil (Lei 10.406/2002) foi editado sob a égide da Constituição de 1988, e consagra, em seu artigo 2º, a proteção aos direitos do nascituro, o que evidencia que a constitucionalidade da tutela jurídica do ser intrauterino já foi referendada pelo poder legislativo.
Percebe-se, portanto, que as duas casas do Congresso Nacional tecem argumentos idênticos aos que foram apresentados neste trabalho no sentido de que o direito fundamental à vida do nascituro merece maior proteção do que os direitos reprodutivos da mulher, bem como no de que, na ausência de marco legal expresso acerca do início da vida humana, deve prevalecer a proteção constitucional desde a concepção.
A Presidência da República e a Advocacia Geral da União também se manifestaram na ação, tendo, igualmente, pugnado pela improcedência da ADPF. Na manifestação da Presidência, subscrita pela Advogada da União, Dra. Raquel Barbosa de Albuquerque, também se defende que a matéria seja discutida pelo legislativo, não podendo o Supremo Tribunal Federal atuar como legislador e criar mais uma hipótese de excludente de criminalização, já que o aborto é crime contra a vida. Já a manifestação da AGU, subscrita pela então Advogada-Geral, Dra. Grace Mendonça, foi ainda mais contundente, aduzindo que, além do STF não poder atuar como legislador positivo, o nosso sistema constitucional coloca o direito à vida do nascituro em patamar superior aos direitos de liberdade da mulher, tendo acrescentado, ainda, que, como nosso ordenamento não definiu qual seria o marco inicial da vida humana, se impõe sua proteção desde a concepção, devendo ser rechaçada a “solução de prazo” mencionada na ADPF, em uma referência ao pedido de descriminalização da conduta abortiva no primeiro trimestre da gestação. Nas palavras da advogada-geral, “a decisão legislativa de fazer prevalecer, como regra, o direito à vida do feto em detrimento do direito de escolha da mulher é compatível com a Constituição da República” e “Com efeito, embora a Lei Maior não contenha disposição específica a respeito do aborto, cumpre notar que o artigo 5º, caput, do Texto Constitucional assegura a inviolabilidade do direito à vida. Nesse aspecto, o Código Penal, no que diz respeito à tipificação dos crimes contra a vida, foi recepcionado pela Constituição da República com status de lei ordinária”.
Fica evidente, portanto, que a manifestação do Congresso Nacional, da Advogacia Geral da União e da Procuradoria-Geral da República se dão no mesmo sentido em que este trabalho foi construído, reconhecendo que o direito à vida do nascituro possui proteção constitucional mais acentuada do que os direitos femininos de escolha, e que, na ausência de previsão legal acerca do momento em que a vida se inicia, deve-se prevalecer o entendimento pela proteção constitucional em qualquer fase gestacional, até que este marco inicial seja estabelecido em nosso ordenamento.
O cenário, portanto, é de incógnita, pois, embora as demais instituições tenham se manifestado de forma contrário ao que foi pleiteado na ADPF, já é tido como certo que três ministros votaram pela procedência da arguição, em razão de seus posicionamentos no HC 124.306/RJ.
Independente do que a Corte decidir, é necessário que sejam respeitados os parâmetros constitucionais, o que pode ocorrer em ambos os resultados, conforme será demonstrado abaixo.
4.3. O Sistema Constitucional Brasileiro e o conflito de direitos fundamentais
Vamos, nesse momento, relembrar alguns conceitos vistos no início deste trabalho que se fazem de extrema importância para que realizemos uma análise crítica dos rumos que o Supremo Tribunal Federal indica que pode adotar.
O título II da Constituição Federal de 1988 dispõe sobre os direitos e garantias fundamentais, que já vimos se tratar de cláusulas pétreas, visto que impossíveis de serem abolidos do ordenamento (não pode existir projeto de emenda constitucional que suprima essas disposições). Dessa maneira, não devemos ter receio algum em afirmar que os direitos fundamentais possuem um caráter diferenciado na nossa ordem jurídica.
O artigo 5º da Carta Federal elenca como fundamentais os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade e à segurança. São direitos invioláveis, conforme demonstra a redação do dispositivo. Ademais, já sabemos que a Constituição Federal é fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, devendo ser encarada como diploma orientador de todo o direito. Assim, não pode haver norma alguma que contrarie preceito constitucional, quanto mais ainda preceitos que a Lei Maior elencou como fundamentais.
O código penal, em seu artigo 124, tipifica como crime a realização de conduta abortiva. Esse dispositivo, por sua vez, está elencado no título referente a crimes contra a vida do estatuto repressivo. Como vimos que toda a legislação infraconstitucional busca efetivar os direitos garantidos pela constituição, é lógica a conclusão de que os direitos fundamentais previstos na Carta Magna alcançam tanto o sujeito já nascido quanto o nascituro, visto que o direito o considera como possuidor de vida, que é um direito fundamental estampado no 5º artigo da Lei Maior.
Noutro giro, o próprio Código Civil consagra a tutela jurídica do nascituro, conforme se depreende de seu artigo 2º, que põe seus direitos a salvo desde o momento de sua concepção. Como é a Constituição que orienta toda a interpretação e aplicação dos demais ramos do direito, fica claro que as disposições constitucionais fundamentais alcançam a vida intra-uterina.
É evidente, portanto, que são destinatários dos direitos fundamentais tanto o já nascido quanto o nascituro.
Sendo a vida o principal bem jurídico a ser preservado por nosso ordenamento, tem-se que o Código Penal se configura como o principal meio de garantir este direito, ao criminalizar condutas atentatórias à vida humana, conforme positivado no capítulo I do título I da parte especial do referido diploma. Entretanto, esse mesmo estatuto repressivo admite, em alguns casos, que esse direito seja violado sem haver punição para o violador. São hipóteses onde há exclusão da ilicitude da conduta ou exclusão da culpabilidade do agente.
O artigo 23 da lei penal assim dispõe: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.” São as situações de excludente de ilicitude, em que o agente pratica fato definido como crime, mas, devido às circunstâncias, a lei considera lícita a conduta e exime o sujeito de responsabilidade criminal.
Sobre o estado de necessidade, já discorremos algumas considerações. Sabemos, por exemplo, que é possível invocar essa excludente quando o bem jurídico protegido for de valor jurídico maior, ou no mínimo igual, ao bem violado. Assim, uma vida humana só poderia ser violada sob a guarita dessa excludente se fosse pra proteger outra vida humana. Respeita-se, dentro das circunstâncias, o disposto no 5º artigo da Constituição, que protege o direito à vida, visto que, no caso concreto, se salva apenas uma porque não há possibilidade de salvar as duas. Já vimos também que essa excludente é a natureza jurídica do aborto terapêutico, conduta prevista no inciso I do art. 128 do Código Penal.
A hipótese prevista no inciso III do supracitado artigo 23, que se refere a estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito, exclui a ilicitude apenas de conduta que não atentem contra a vida humana. Ninguém poderá matar alguém e invocar esta excludente, pois não existe profissional algum em nosso Estado Democrático de Direito que tenha o dever legal de matar. Vejamos, para ilustrar, trecho de decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Espírito Santo: “Não age ao abrigo da excludente do estrito cumprimento do dever legal o policial que, a título de fazer averiguação, atira na vítima pelas costas quando esta, temerosa de uma possível detenção, se afastava a correr” (Rel. Desembargador José Eduardo Grandi Ribeiro: RT 644/311)
Justamente por ser o direito à vida inviolável, por força da disposição imutável do artigo 5º da Constituição, é que nosso ordenamento veda a pena de morte, com exceção feita aos tempos de guerra. Dessa forma, na nossa ordem jurídica não existe o dever legal de matar. Por essa razão, a excludente prevista no inciso III do art. 23 só incidirá sobre outros delitos, que não atentem contra a vida humana.
A outra excludente prevista no artigo 23 é a legitima defesa, assim definida pelo Código Penal em seu artigo 25: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente os meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”
Dessa forma, o agente que praticar fato definido como crime poderá se eximir da responsabilidade criminal se comprovar que agiu nas condições previstas no artigo 25. Conforme se depreende da disposição legal, a agressão que se vai repelir deve ser atual ou iminente, e os meios utilizados devem ser moderados.
Percebemos a existência do requisito objetivo “moderação”, o que quer dizer que o agente não pode se utilizar de meios desproporcionais para se defender, sob pena de responder pelo excesso, conforme disposição do parágrafo único do artigo 23, que assim determina: “O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.”
Dessa definição, concluímos ser impossível alegar legitima defesa aquele que repele a agressão de maneira desproporcional. Vejamos lição do jurista Assis Toledo: “O requisito da moderação exige que aquele que se defende não permita que sua reação cresça em intensidade além do razoavelmente exigido pelas circunstâncias para fazer cessar a agressão. Se, no primeiro golpe, o agredido prostra o agressor tornando-o inofensivo, não pode prosseguir na reação até matá-lo”. (ASSIS TOLEDO, 1994, p.204)
Assim, percebemos que a legítima defesa é mais uma das possibilidades em que o ordenamento jurídico permite a violação da vida humana. No entanto, a redação legal é clara ao dispor que a reação à agressão não pode ser desproporcional. Assim sendo, e conforme manifestação doutrinária de Assis Toledo, podemos afirmar que o agente só poderá matar em legítima defesa se acreditar fielmente que a agressão que lhe é imposta coloca a sua vida em perigo.
Esse entendimento da doutrina também se manifesta na lição de Rogério Greco: “Raciocinemos com a legítima defesa: se alguém está sendo agredido por outrem, a lei penal faculta que atue em sua própria defesa. Para tanto, isto é, para que o agente possa afastar a ilicitude da sua conduta e ter ao seu lado a causa excludente, é preciso que atenda, rigorosamente, aos requisitos de ordem objetiva e subjetiva previstos no art. 25 do Código Penal.” (GRECO, 2010, p.343)
Assim, tal qual no estado de necessidade, a legitima defesa é um instituto onde o ordenamento, em caráter excepcional, permite que a vida de uma pessoa (o agressor) seja violada sem haver punição para o agente violador (agredido inicialmente). No entanto, conforme posicionamento doutrinário demonstrado e segundo a regra inserida no parágrafo único do artigo 23 do estatuto penal, podemos afirmar que o agredido só pode matar o agressor se julgar que sua vida corre risco em razão da agressão, e se essa for a única forma de se defender, sob pena de ser responsabilizado por atuar de forma desproporcional.
Assim, percebemos novamente que há confronto entre bens jurídicos iguais, a vida do agredido e a vida do agressor, situação em que o ordenamento opta por preservar aquele que não deu causa à situação inicial de violência. Portanto, da mesma forma que no estado de necessidade, a ordem legal permite a violação da vida para preservar justamente o direito à vida, inviolável segundo preceito constitucional do 5º artigo da Carta Federal.
Em seara de exclusão de ilicitude, são essas as possibilidades em que a lei permite a não punição da conduta atentatória à vida. Há, ainda, as situações de exclusão de culpabilidade, em que a doutrina insere o aborto humanitário. São os casos onde se entende que, devido às circunstâncias do caso concreto, não é possível culpar o agente que praticou o ato ilícito.
A culpabilidade é definida pela doutrina como o juízo de reprovação pessoal realizado sobre uma conduta típica e ilícita praticada pelo agente, ou seja, uma conduta definida como crime pelo Código Penal. Segundo ensina Rogério Greco, esse juízo de censura deve ser realizado de forma individual, visto que cada pessoa tem seus aspectos individuais que devem ser levados em conta para aferir sua culpabilidade.
Considera-se como elementos da culpabilidade os seguintes: imputabilidade, potencial consciência sobre a ilicitude do fato, e exigibilidade de conduta diversa. Os dois primeiros requisitos se referem às condições pessoais do agente, o que quer dizer que o sujeito definido pela lei como inimputável (como os menores de 18 anos) e aquele sem condições psíquicas de entender que está praticando crime (doentes mentais, por exemplo) serão beneficiados pela exclusão da culpabilidade de suas condutas criminosas.
Já a exigibilidade de conduta diversa depende de uma avaliação que deverá conjugar aspectos pessoais do agente com as particularidades do caso concreto em questão. Segundo entende a maioria da doutrina, o aborto humanitário seria um exemplo em que resta caracterizada a inexigibilidade de outra conduta, pois não poderia ser imposta a uma mulher violentada o fardo de levar adiante uma gestação.
São essas, portanto, as hipóteses em que o ordenamento jurídico permite a violação da vida humana. Em nenhuma delas, por óbvio, é possível encaixar as situações elencadas na ADPF 442, pois o bem jurídico vida é maior do que todos os direitos ali citados, e não há que se falar em inexigibilidade de outra conduta se, em detrimento ao direito à vida, estão bens jurídicos de menor relevância, como o livre planejamento familiar e a igualdade de gênero, que, embora de extrema importância, não se comparam ao status que a vida possui em nosso sistema constitucional.
Desse modo, a conclusão aqui alcançada é no sentido de que, caso o Supremo Tribunal Federal decida pela descriminalização do aborto nos três primeiros meses da gestação, deverá fazê-lo sob o fundamento de que a vida se inicia somente após terceiro mês gestacional, pois, se admitir que os direitos invocados na ADPF 442 se sobrepõe ao direito à vida do nascituro, tratar-se-á de uma decisão que irá contra toda a nossa ordem constitucional.
Conclusão
Todo este trabalho foi construído sob a premissa de que a proteção constitucional à vida humana se inicia no momento da concepção, conclusão decorrente dos seguintes fatos: (I) a Constituição garante a todos o direito à vida, sem mencionar o momento em que ele se inicia; (II) o Código Civil põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, o que indica que é neste momento que a proteção constitucional começa; e (III) o Código Penal inclui o aborto no rol de crimes contra a vida, também sem delimitar nenhum estágio específico da gestação, nos fazendo crer que, desde a concepção, incide o referido tipo penal.
Assim, a premissa acima foi alcançada baseada em aspectos única e exclusivamente jurídicos, decorrente do nosso sistema constitucional. Em nenhum momento deste trabalho foi levantado nenhum argumento religioso ou filosófico sobre o feto para sustentar a posição aqui defendida. O estudo foi pautado, tão somente, na ordem jurídica estabelecida, sendo certo que, ao não indicar o momento específico do início da vida, nosso ordenamento deixa claro que ela se inicia na concepção.
No entanto, se for juridicamente estabelecido, segundo critérios médicos e biológicos, que o início da vida se dá em etapa gestacional posterior a concepção, como defendem alguns profissionais da saúde, este subscritor não faria qualquer objeção à descriminalização irrestrita da antecipação do parto durante essa fase “sem vida” do produto intra-uterino.
Em suma, tudo depende do momento em que a vida começa. Nosso ordenamento, conforme demonstrado a exaustão neste trabalho, indica que seu início é na concepção, o que motivou todos os argumentos acima despendidos. No entanto, o Supremo Tribunal Federal vem dando indícios de que pode, pela via jurisprudencial, estabelecer um momento distinto do da concepção para fins de proteção a vida, o que já foi defendido por três ministros nos autos do HC 124.306/RJ, e agora será objeto de deliberação do plenário da Corte por ocasião do julgamento da ADPF 442.
Na mencionada ADPF, pleiteia-se a declaração de não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal, para descriminalizar a interrupção da gestação nos três primeiros meses da gravidez. Para tanto, a arguente invoca diversas inspirações do direito comparado, bem como sustenta que os direitos da mulher devem se sobrepor aos direitos do nascituro.
Com a devida vênia às advogadas subscritoras da referida ADPF, o Supremo Tribunal Federal é guardião da Constituição brasileira, sendo indiferente a experiência de outros países para fins de aplicação do direito brasileiro. O direito comparado deve e pode ser invocado para embasar o legislador, na ocasião da elaboração de diplomas legais, bem como para orientar o aplicador do direito nas hipóteses de lacunas da lei, mas não para mudar a essência do nosso sistema constitucional. Também baseado no nosso sistema constitucional, por tudo que já foi demonstrado neste trabalho, não podemos aceitar que os direitos de liberdade da mulher, embora de extrema importância, possuam maior expressão jurídica do que o direito à vida do nascituro, pois, diante de um conflito de direitos fundamentais, nossa Constituição nos orienta no sentido de que deve prevalecer o direito à vida, que é o principal bem jurídico protegido por nosso ordenamento.
Conforme abordado anteriormente, o poder legislativo e executivo se mostraram contra o pleito da arguente, o que foi consignado no processo por meio de manifestações da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, da Presidência da República e da Advocacia Geral da União. A Procuradoria Geral da República, na qualidade de fiscal da lei, também opinou pela improcedência do requerido.
No entanto, a tendência é que a relatora Rosa Weber vote pela procedência da ADPF 442, considerando seu posicionamento no HC 124.306/RJ. Pelo mesmo motivo, acredita-se que será acompanhada pelos Ministros Fachin e Barroso. Faltariam mais três ministros para formar a maioria absoluta exigida pelo artigo 97 da Constituição para a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Caso a arguição seja julgada procedente, autorizando a descriminalização do aborto no primeiro trimestre da gestação, a decisão poderá ser proferida sob dois fundamentos: (I) reconhecendo, através do acolhimento de pareceres científicos, que a vida humana se inicia em período gestacional posterior à concepção, mais precisamente após o terceiro mês, quando se forma o sistema nervoso central, de modo que a antecipação do parto nessa fase não seria crime contra a vida; ou (II) admitindo, conforme os moldes do direito norte-americano, que os direitos de liberdade da mulher seriam mais expressivos que o direito à vida do nascituro.
Assim, vindo a se concretizar a descriminalização pelo primeiro fundamento, penso que não haveriam críticas a serem feitas, pois estaria se respeitando o mandamento constitucional de proteção a vida desde o momento em que ela se inicia, o que seria estabelecido segundo critérios científicos, hipótese em que a decisão estaria em perfeita consonância com tudo o que foi defendido neste trabalho. No entanto, caso eventual descriminalização se paute no segundo fundamento, estaríamos diante de um cenário em que a Corte se voltaria contra nosso próprio sistema constitucional, em uma espécie de triste norte-americanização do nosso direito, o que, creio e torço, não acontecerá.
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