O acesso à água potável em uma perspectiva de fundamentalidade: o alargamento da concepção de mínimo existencial social à luz do texto Constitucional de 1988

Resumo: Em ressonância com o preceito de necessidades humanas básicas, na perspectiva das presentes e futuras gerações, é colocada, como ponto robusto, para reflexão a exigência de um patamar mínimo de qualidade e segurança social, sem o qual o preceito de dignidade humana restaria violentado em seu núcleo essencial. A seara de proteção do direito à vida, quando confrontado com o quadro de riscos sociais contemporâneos, para atender o padrão de dignidade alçado constitucionalmente, reclama ampliação a fim de abarcar a dimensão no seu quadrante normativo, sobretudo no que toca à superação dos argumentos e obstáculos erigidos pela Administração Pública no que se relaciona à reserva do possível para sua implementação. Insta salientar, ainda, que a vida se apresenta como condição elementar para o pleno e irrestrito exercício da dignidade humana, conquanto esta não se limite àquela, porquanto a dignidade não se resume a questões existenciais de natureza essencialmente biológica ou física, todavia carece a proteção da existência humana de forma mais ampla. Desta maneira, é imprescindível que subsista a promoção dos direitos sociais para identificação dos patamares necessários de tutela da dignidade humana, a fim de promover o reconhecimento de um direito-garantia do mínimo existencial social.

Palavras-chaves: Direitos Fundamentais Sociais.  Acesso à Água Potável. Mínimo Existencial Social. Dignidade da Pessoa Humana.

Sumário: 1 Comentários Introdutórios: Ponderações ao Característico de Mutabilidade da Ciência Jurídica; 2 A construção filosófica do vocábulo “dignidade” e suas implicações no alargamento dos direitos fundamentais; 3 A Construção do Mínimo Existencial Social: O reconhecimento dos Direitos Sociais como indissociáveis da Dignidade da Pessoa Humana; 4 O Acesso à Água Potável em uma perspectiva de fundamentalidade: O alargamento da concepção de mínimo existencial social à luz do Texto Constitucional de 1988

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1 Comentários Introdutórios: Ponderações ao Característico de Mutabilidade da Ciência Jurídica

Em sede de comentários inaugurais, ao se dispensar uma análise robusta sobre o tema colocado em debate, mister se faz evidenciar que a Ciência Jurídica, enquanto conjunto plural e multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as pujantes ramificações que a integra, reclama uma interpretação alicerçada nos múltiplos peculiares característicos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste diapasão, trazendo a lume os aspectos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera a ótica de imutabilidade que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática. É verificável, desta sorte, que os valores adotados pela coletividade, tal como os proeminentes cenários apresentados com a evolução da sociedade, passam a figurar como elementos que influenciam a confecção e aplicação das normas.

Com escora em tais premissas, cuida hastear como pavilhão de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém[1]. Deste modo, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo fundamental está assentado em assegurar que inexista a difusão da prática da vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras, nas quais o homem valorizava os aspectos estruturantes da Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade.

Afora isso, volvendo a análise do tema para o cenário pátrio, é possível evidenciar que com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, primacialmente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz justamente na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais.

Ainda nesta senda de exame, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda de sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis.

2 A construção filosófica do vocábulo “dignidade” e suas implicações no alargamento dos direitos fundamentais

É perceptível que a edificação de um Estado Democrático de Direito, na contemporaneidade, guarda umbilical relação, no cenário nacional, com o ideário da dignidade da pessoa humana, sobremaneira devido à proeminência concedida ao tema na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.  Ao lado disso, não se pode perder de vista que, em decorrência da sorte de horrores perpetrados durante a Segunda Grande Guerra Mundial, os ideários kantianos foram rotundamente rememorados, passando a serem detentores de vultosos contornos, vez que, de maneira realista, foi possível observar as consequências abjetas provenientes da utilização do ser humano como instrumento de realização de interesses. A fim de repelir as ações externadas durante o desenrolar do conflito supramencionado, o baldrame da dignidade da pessoa humana foi maciçamente hasteado, passando a tremular como flâmula orientadora da atuação humana, restando positivado em volumosa parcela das Constituições promulgadas no pós-guerra, mormente as do Ocidente. “O respeito à dignidade humana de cada pessoa proíbe o Estado e dispor de qualquer indivíduo apenas como meio para outro fim, mesmo se for para salvar a vida de muitas outras pessoas”[4]. É perceptível que a moldura que enquadra a construção da dignidade da pessoa humana, na condição de produto da indignação dos humilhados e violados por períodos de intensos conflitos bélicos, expressa um conceito fundamental responsável por fortalecer a construção dos direitos humanos, tal como de instrumentos que ambicionem evitar que se repitam atos atentatórios contra a dignidade de outros indivíduos.

Por óbvio, a República Federativa do Brasil, ao estruturar a Constituição Cidadã de 1988 concedeu, expressamente, relevo ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo colocada sob a epígrafe “dos princípios fundamentais”, positivado no inciso III do artigo 1º. Há que se destacar, ainda, que o aludido preceito passou a gozar de status de pilar estruturante do Estado Democrático de Direito, toando como fundamento para todos os demais direitos. Nesta trilha, também, há que se enfatizar que o Estado é responsável pelo desenvolvimento da convivência humana em uma sociedade norteada por caracteres pautados na liberdade e solidariedade, cuja regulamentação fica a encargo de diplomas legais justos, no qual a população reste devidamente representada, de maneira adequada, participando e influenciando de modo ativo na estruturação social e política. Ademais, é permitida, inda, a convivência de pensamentos opostos e conflitantes, sendo possível sua expressão de modo público, sem que subsista qualquer censura ou mesmo resistência por parte do Ente Estatal.

Nesse ponto, verifica-se que a principal incumbência do Estado Democrático de Direito, em harmonia com o ventilado pelo dogma da dignidade da pessoa humana, está jungido na promoção de políticas que visem a eliminação das disparidades sociais e os desequilíbrios econômicos regionais, o que clama a perseguição de um ideário de justiça social, ínsito em um sistema pautado na democratização daqueles que detém o poder. Ademais, não se pode olvidar que “não é permitido admitir, em nenhuma situação, que qualquer direito viole ou restrinja a dignidade da pessoa humana”[5], tal ideário decorre da proeminência que torna o preceito em comento em patamar intocável e, se porventura houver conflito com outro valor constitucional, aquele há sempre que prevalecer. Frise-se que a dignidade da pessoa humana, em razão da promulgação da Carta de 1988, passou a se apresentar como fundamento da República, sendo que todos os sustentáculos descansam sobre o compromisso de potencializar a dignidade da pessoa humana, fortalecido, de maneira determinante, como ponto de confluência do ser humano. Com o intuito de garantir a existência do indivíduo, insta realçar que a inviolabilidade de sua vida, tal como de sua dignidade, faz-se proeminente, sob pena de não haver razão para a existência dos demais direitos. Neste diapasão, cuida colocar em saliência que a Constituição de 1988 consagrou a vida humana como valor supremo, dispensando-lhe aspecto de inviolabilidade.

É evidenciável que princípio da dignidade da pessoa humana não é visto como um direito, já que antecede o próprio Ordenamento Jurídico, mas sim um atributo inerente a todo ser humano, destacado de qualquer requisito ou condição, não encontrando qualquer obstáculo ou ponto limítrofe em razão da nacionalidade, gênero, etnia, credo ou posição social. Nesse viés, o aludido bastião se apresenta como o maciço núcleo em torno do gravitam todos os direitos alocados sob a epígrafe “fundamentais”, que se encontram agasalhados no artigo 5º da CF/88. Ao perfilhar-se à umbilical relação nutrida entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, podem-se tanger dois aspectos primordiais. O primeiro se apresenta como uma ação negativa, ou passiva, por parte do Ente Estatal, a fim de evitar agressões ou lesões; já a positiva, ou ativa, está atrelada ao “sentido de promover ações concretas que, além de evitar agressões, criem condições efetivas de vida digna a todos”[6].

Comparato alça a dignidade da pessoa humana a um valor supremo, eis que “se o direito é uma criação humana, o seu valor deriva, justamente, daquele que o criou. O que significa que esse fundamento não é outro, senão o próprio homem, considerando em sua dignidade substância da pessoa” [7], sendo que as especificações individuais e grupais são sempre secundárias. A própria estruturação do Ordenamento Jurídico e a existência do Estado, conforme as ponderações aventadas, só se justificam se erguerem como axioma maciço a dignidade da pessoa humana, dispensando esforços para concretizarem tal dogma. Mister faz-se pontuar que o ser humano sempre foi dotado de dignidade, todavia, nem sempre foi (re)conhecida por ele. O mesmo ocorre com o sucedâneo dos direitos fundamentais do homem que, preexistem à sua valoração, os descobre e passa a dispensar proteção, variando em decorrência do contexto e da evolução histórico-social e moral que condiciona o gênero humano. Não se pode perder de vista o corolário em comento é a síntese substantiva que oferta sentido axiológico à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, determinando, conseguintemente, os parâmetros hermenêuticos de compreensão. A densidade jurídica do princípio da dignidade da pessoa humana, no sistema constitucional adotado, há de ser, deste modo, máxima, afigurando-se, inclusive, como um corolário supremo no trono da hierarquia das normas.

A interpretação conferida pelo corolário em comento não é para ser procedida à margem da realidade. Ao reverso, alcançar a integralidade da ambição contida no bojo da dignidade da pessoa humana é elemento da norma, de modo que interpretações corretas são incompatíveis com teorização alimentada em idealismo que não as conforme como fundamento. Atentando-se para o princípio supramencionado como estandarte, o intérprete deverá observar para o objeto de compreensão como realidade em cujo contexto a interpretação se encontra inserta. Ao lado disso, nenhum outro dogma é mais valioso para assegurar a unidade material da Constituição senão o corolário em testilha. Assim, ao se considerar os valores e ideários por ele abarcados, não é possível perder de vista que as normas, na visão garantística consagrada no ordenamento jurídico nacional, reclamam uma interpretação em conformidade com o preceito analisado até o momento.

Diante de tal cenário, os valores de igualdade, fraternidade e solidariedade recebem especial relevância em tempos contemporâneos e clamam, assim, por posicionamentos que busquem promover a inclusão por parte dos poderes constituídos em prol da busca do bem comum. Pozzoli[8] afirma que uma nova sociedade, fundada em valores fraternos, teria o amor como princípio dinâmico social. Assim, a sociedade é composta por pessoas humanas e tem como fim precípuo o bem comum coletivo, não significando apenas o bem individual, mas sim o empenho de cada um na realização da vida social dos demais das outras pessoas. O bem comum de um ser humano está calcado na realização do bem comum do outro ser humano. Repousa em tal ideário o verdadeiro sentido do bem comum de uma humanidade.

Ainda em relação à proeminência da dignidade da pessoa humana, inclusive no que tange ao alargamento dos direitos fundamentais, consoante a dicção de Rocha, o perfil do Estado Social repousa no fato de ser um Estado intervencionista em duplo aspecto: por um lado, intervém na ordem econômica, seja direcionando e planejando o desenvolvimento econômico, seja promovendo inversões nos ramos da economia considerados estratégicos; por outro turno, intervém no âmbito social, no qual dispensa prestações de bens e serviços e realiza outras atividades visando à elevação do nível de vidas das populações consideradas mais carentes. Nesta esteira de dicção, “o desenvolvimento humano a ser perseguido pelos Estados nacionais liga-se, intimamente, na qualidade de vida do seu povo e a fome, de modo particular, mostra-se como uma forma de afastar o indivíduo da participação nos destinos da democracia de um Estado”[9].

3 A Construção do Mínimo Existencial Social: O reconhecimento dos Direitos Sociais como indissociáveis da Dignidade da Pessoa Humana

Em ressonância com o preceito de necessidades humanas básicas, na perspectiva das presentes e futuras gerações, é colocada, como ponto robusto, para reflexão a exigência de um patamar mínimo de qualidade e segurança social, sem o qual o preceito de dignidade humana restaria violentado em seu núcleo essencial. A seara de proteção do direito à vida, quando confrontado com o quadro de riscos sociais contemporâneos, para atender o padrão de dignidade alçado constitucionalmente, reclama ampliação a fim de abarcar a dimensão no seu quadrante normativo, sobretudo no que toca à superação dos argumentos e obstáculos erigidos pela Administração Pública no que se relaciona à reserva do possível para sua implementação. Insta salientar, ainda, que a vida se apresenta como condição elementar para o pleno e irrestrito exercício da dignidade humana, conquanto esta não se limite àquela, porquanto a dignidade não se resume a questões existenciais de natureza essencialmente biológica ou física, todavia carece a proteção da existência humana de forma mais ampla. Desta maneira, é imprescindível que subsista a promoção dos direitos sociais para identificação dos patamares necessários de tutela da dignidade humana, a fim de promover o reconhecimento de um direito-garantia do mínimo existencial social.

A exemplo do que ocorre com o conteúdo do superprincípio da dignidade humana, o qual não encontra pontos limítrofes ao direito à vida, em uma acepção restritiva, o conceito de mínimo existencial não pode ser limitado ao direito à simples sobrevivência na sua dimensão estritamente natural ou biológica, ao reverso, exige concepção mais ampla, eis que almeja justamente a realização da vida em patamares dignos, considerando, nesse viés, a incorporação da qualidade social como novo conteúdo alcançado por seu âmbito de proteção. Arrimado em tais corolários, o conteúdo do mínimo existencial não pode ser confundido com o denominado “mínimo vital” ou mesmo com o “mínimo de sobrevivência”, na proporção em que este último tem seu sentido atrelado à garantia da vida humana, sem necessariamente compreender as condições para uma sobrevivência física em condições dignas, portanto, de uma vida dotada de certa qualidade.

Nesta senda de exposição, ainda, o conteúdo normativo ventilado pelo direito ao mínimo existencial deve receber modulação à luz das circunstâncias históricas e culturais concretas da comunidade estatal, inclusive numa perspectiva evolutiva e cumulativa. Destarte, é natural que novos elementos, decorrentes das relações sociais contemporâneas e das novas necessidades existenciais apresentadas, sejam, de maneira paulatina, incorporados ao seu conteúdo, eis que o escopo primordial está assentado em salvaguardar a dignidade da pessoa humana, sendo indispensável o equilíbrio e a segurança ambiental. Nesta esteira, com o escopo de promover a conformação do conteúdo do superprincípio da dignidade da pessoa humana, é imperioso o alargamento do rol dos direitos fundamentais, os quais guardam ressonância com a concepção histórica dos direitos humanos, porquanto a tendência é sempre a ampliação do universo dos direitos fundamentais, de maneira a garantir um nível cada vez maior de tutela e promoção da pessoa, tanto em uma órbita individual como em aspectos coletivos.

Ademais, cuida anotar que o processo histórico-constitucional de afirmação de direitos fundamentais e da proteção da pessoa viabilizou a inserção dos direitos sociais no rol dos direitos fundamentais. Nessa premissa, cuida reconhecer que o mínimo existencial social se desdobra como uma das múltiplas e indissociáveis órbitas vinculadas ao superprincípio da dignidade da pessoa humana, em especial no que atina à realização de suas potencialidades, sobremaneira no que se relaciona aos direitos. Recentemente, o rol do artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil sofreu considerável alargamento, passando a abarcar uma plêiade de direitos sociais como fundamentais ao indivíduo: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição[10]. De maneira reiterada, o Supremo Tribunal Federal reconhece que os direitos sociais materializam um agir positivo do Estado, devendo, portanto, ser adimplido em favor do cidadão.

“Ementa: Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. 2. Direito Constitucional. Educação de deficientes auditivos. Professores especializados em Libras. 3. Inadimplemento estatal de políticas públicas com previsão constitucional. Intervenção excepcional do Judiciário. Possibilidade. Precedentes. 4. Cláusula da reserva do possível. Inoponibilidade. Núcleo de intangibilidade dos direitos fundamentais. 5. Constitucionalidade e convencionalidade das políticas públicas de inserção dos portadores de necessidades especiais na sociedade. Precedentes. 6. Ausência de argumentos suficientes a infirmar a decisão recorrida. 7. Agravo regimental a que se nega provimento.” (Supremo Tribunal Federal – Segunda Turma/ ARE 860.979 AgR/ Relator: Ministro Gilmar Mendes/ Julgado em 14 abr. 2015/ Publicado no DJe em 06 mai. 2015).

“Ementa: Recurso Extraordinário com Agravo (Lei nº 12.322/2010) – Manutenção de rede de assistência da criança e do adolescente – Deve estatal resultante da norma constitucional – Configuração, no caso, de típica hipótese de omissão estatal (RTJ 183/818-819) – Comportamento que transgride a autoridade da Lei Fundamental da República (RTJ 185/794-796) – A questão da reserva do possível. Reconhecimento de sua inaplicabilidade, sempre que a invocação dessa cláusula puder comprometer o núcleo básico que qualifica o mínimo existencial (RTJ 200/191-197) – O papel do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas instituídas pela Constituição e não efetivadas pelo Poder Público – A fórmula da reserva do possível na perspectiva da teoria dos custos dos direitos: impossibilidade de sua invocação para legitimar o injusto inadimplemento de deveres estatais de prestação constitucionalmente impostos ao Poder Público – A teoria da “restrição das restrições” (ou da “limitação das limitações”) – Caráter cogente e vinculante das normas constitucionais, inclusiva daquelas de conteúdo programático, que veiculam diretrizes de políticas públicas, especialmente na área da saúde (CF, arts. 6º, 196 e 197) – A questão das “escolhas trágicas” – A colmatação de omissões constitucionais como necessidade institucional fundada em comportamento afirmativo dos Juízes e Tribunais e de que resulta uma positiva criação jurisprudencial do Direito – Controle jurisdicional de legitimidade da omissão do Poder Público: atividade de fiscalização judicial que se justifica pela necessidade de observância de certos parâmetros constitucionais (proibição do retrocesso social, proteção ao mínimo existencial, vedação da proteção insuficiente e proibição de excesso) – Doutrina – Precedentes do Supremo Tribunal Federal em tema de implementação de políticas públicas delineadas na Constituição da República (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213 – RTJ 199/1219-1220) – Existência, no caso em exame, de relevante interesse social – Recurso de Agravo Improvido.” (Supremo Tribunal Federal – Segunda Turma/ ARE 745.745 AgR/ Relator:  Ministro Celso de Mello/ Julgado em 02 dez. 2014/ Publicado no DJe em 19 dez. 2014).

“Ementa: Agravo Regimental no Recurso Extraordinário. Administrativo e Processual Civil. Repercussão geral presumida. Sistema Público de saúde local. Poder Judiciário. Determinação de adoção de medidas para a melhoria do sistema. Possibilidade. Princípios da separação dos poderes e da reserva do possível. Violação. Inocorrência. Agravo Regimental a que se nega provimento. 1. A repercussão geral é presumida quando o recurso versar questão cuja repercussão já houver sido reconhecida pelo Tribunal, ou quando impugnar decisão contrária a súmula ou a jurisprudência dominante desta Corte (artigo 323, § 1º, do RISTF ). 2. A controvérsia objeto destes autos – possibilidade, ou não, de o Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo a adoção de providências administrativas visando a melhoria da qualidade da prestação do serviço de saúde por hospital da rede pública – foi submetida à apreciação do Pleno do Supremo Tribunal Federal na SL 47-AgR, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJ de 30.4.10. 3. Naquele julgamento, esta Corte, ponderando os princípios do “mínimo existencial” e da “reserva do possível”, decidiu que, em se tratando de direito à saúde, a intervenção judicial é possível em hipóteses como a dos autos, nas quais o Poder Judiciário não está inovando na ordem jurídica, mas apenas determinando que o Poder Executivo cumpra políticas públicas previamente estabelecidas. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.” (Supremo Tribunal Federal – Primeira Turma/ RE 642.536 AgR/ Relator: Ministro Luiz Fux/ Julgado em 05 fev. 2013/ Publicado no DJe em 27 fev. 2013).

Ora, denota-se que a implementação do mínimo existencial social pressupõe, com claros contornos, a estruturação de políticas públicas pelo Poder Público, sobretudo no que concerne ao núcleo duro que sustenta os direitos sociais, dentre o direito à educação e o direito à saúde recebem especial atenção. É preciso sublinhar que o dever estatal de atribuir efetividade aos direitos fundamentais, de índole social, qualifica-se como expressiva limitação à discricionariedade administrativa. Assim sendo, a intervenção jurisdicional, por vezes, encontra justificativa pela ocorrência de arbitrária recusa governamental em conferir significação real ao direito à educação e à saúde, precipuamente, tornar-se-á plenamente legítima, sempre que se impuser, nesse processo de ponderação de interesse e de valores em conflito, a necessidade de prevalência da decisão política fundamental que o legislador constituinte adotou em tema de respeito e proteção aos direitos sociais.

Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Ao lado do exposto, tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a proteção dos direitos sociais, de maneira geral, tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o Poder Público disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente, com base em simples alegação de mera conveniência e/ou oportunidade, a nulificação mesma dessa prerrogativa essencial.

Vê-se, desse modo, que, mais do que a simples positivação dos direitos sociais – que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica –, recai, sobre o Estado, inafastável vínculo institucional consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a permitir, às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente vinculadas à realização, por parte das entidades governamentais, da tarefa que lhes impôs a própria Constituição. Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito, em especial a plêiade que compõe o mínimo existencial social. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional.

4 O Acesso à Água Potável em uma perspectiva de fundamentalidade: O alargamento da concepção de mínimo existencial social à luz do Texto Constitucional de 1988

Diante do cenário apresentado, em especial as considerações tecidas a respeito do ideário de mínimo existencial social, salta aos olhos que o acesso à água potável, na contemporaneidade, reveste-se de aspecto fundamental para o ser humano, sendo, inclusive, dotado de proeminência para realização de aspectos inerentes à dignidade da pessoa humana. É perceptível, desta maneira, que o tema reclama proteção jurídica expressa, em prol de cada pessoa, a fim de, em primeiro e último momento, promover a dignidade em seus plurais e diversificados sentidos. Trata-se de alargar o rol dos direitos humanos e introduzir temática proeminente em seu rol, conferindo-lhe a proeminência necessária. É fato que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, apesar de reconhecidamente garantística, não contemplou o acesso à água potável como direito fundamental, apesar de documentos internacionais colocarem em destaque tal aspecto.

É patente que a escassez de água, o mau uso, a massificação da poluição e a má distribuição são aspectos que, cotidianamente, agravam, ainda mais, a problemática existente, desencadeando crises mundiais que acirram questões políticas e bélicas em regiões desprovidas de maior abastecimento, a exemplo de países africanos e do Oriente Médio. É possível verificar que a escassez de água potável é um problema crucial que se agrava diariamente, em razão do esgotamento das fontes e do mau uso do recurso natural. Como bem anotam Fachin e Silva, “tais circunstâncias da vida concreta têm a força suficiente para partejar novos direitos fundamentais, visto que estes vão nascendo gradativamente, no curso natural da História, mas como resultado de lutas travadas pelo esforço humano[11].

O direito fundamental à água potável, enquanto integrante dos direitos humanos, significa o alargamento do rol dos direitos fundamentais, edificados com a evolução da humanidade. Esse direito fundamental, necessário à existência humana e a outras formas de vida, necessita de tratamento prioritário das instituições sociais e estatais, bem como por parte de cada pessoa humana. Ao compreender o tema em debate como direito fundamental, o acesso à água potável reclama o estabelecimento de mudanças comportamentais, tanto no que se refere ao papel desempenhado pelo Estado, quanto na atuação da sociedade. O Estado legislador fica comprometido a elaborar leis que priorizem a proteção e a promoção do direito fundamental, exigindo-se que sua atuação esteja vinculada à juridicidade desse direito, dispensando tutela jurídica ao tema. No que tange ao Estado administrador, este deve estabelecer políticas públicas, levando em consideração que se está diante de um direito fundamental. Já o Estado prestador de serviços jurisdicionais, ao apreciar os conflitos sociais levados à sua apreciação, deve decidir de modo a concretizar o direito fundamental.

A sociedade, por sua vez, também passa a reconhecer a maior importância do bem jurídico a ser protegido e preservado. As pessoas, em suas condutas na vida cotidiana, passam a distinguir este direito dos que, embora importantes, não são fundamentais. É perceptível das ponderações estruturadas que a edificação do direito ao acesso à água potável personifica, na contemporaneidade, os anseios florescidos em um cenário densamente caracterizado pela escassez de recurso natural finito, conjugado com a distribuição distinta no globo e a degradação ambiental. No cenário nacional, o direito ao acesso à água potável ganha proeminência, configurando denominação própria que reclama tutela jurídica peculiar, sensível aos aspectos característicos da temática. De igual modo, é possível, diante da magnitude assumida pelo superprincípio da dignidade da pessoa humana, no cenário jurídico nacional, considerar que o direito em análise configura elemento mínimo existência do ser humano, sendo inimaginável conceber uma realidade sem que haja a presença e concretização do sobredito direito.

 

Referências:
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POZZOLI, Lafayette. Cultura dos direitos humanos. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal. a. 40. n. 159, jul.-set. 2003.
RENON, Maria Cristina. O princípio da dignidade da pessoa humana e sua relação com a convivência familiar e o direito ao afeto. 232f. Dissertação (Mestre em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br>. Acesso em 10 out. 2016.
VERDAN, Tauã Lima. Princípio da Legalidade: Corolário do Direito Penal. Jurid Publicações Eletrônicas, Bauru, 22 jun. 2009. Disponível em: <http://jornal.jurid.com.br>. Acesso em 10 out. 2016.
Notas:
[1] VERDAN, Tauã Lima. Princípio da Legalidade: Corolário do Direito Penal. Jurid Publicações Eletrônicas, Bauru, 22 jun. 2009. Disponível em: <http://jornal.jurid.com.br>.  Acesso em 10 out. 2016.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF. Empresa Pública de Correios e Telégrafos. Privilégio de Entrega de Correspondências. Serviço Postal. Controvérsia referente à Lei Federal 6.538, de 22 de Junho de 1978. Ato Normativo que regula direitos e obrigações concernentes ao Serviço Postal. Previsão de Sanções nas Hipóteses de Violação do Privilégio Postal. Compatibilidade com o Sistema Constitucional Vigente. Alegação de afronta ao disposto nos artigos 1º, inciso IV; 5º, inciso XIII, 170, caput, inciso IV e parágrafo único, e 173 da Constituição do Brasil. Violação dos Princípios da Livre Concorrência e Livre Iniciativa. Não Caracterização. Arguição Julgada Improcedente. Interpretação conforme à Constituição conferida ao artigo 42 da Lei N. 6.538, que estabelece sanção, se configurada a violação do privilégio postal da União. Aplicação às atividades postais descritas no artigo 9º, da lei. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Relator: Ministro Marcos Aurélio. Julgado em 05 ago. 2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 10 out. 2016.
[3] VERDAN, 2009, s.p.
[4] HABERMAS, Jürgen. Sobre a Constituição da Europa. São Paulo: UNESP, 2012, p. 09.
[5] RENON, Maria Cristina. O princípio da dignidade da pessoa humana e sua relação com a convivência familiar e o direito ao afeto. 232f. Dissertação (Mestre em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br>. Acesso em 10 out. 2016, p. 19.
[6] BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. O princípio da dignidade da pessoa humana e o novo Direito Civil. breves reflexões. Revista da Faculdade de Direito de Campos, a. VII, n. 08, p. 229-267, jun. 2006. Disponível em: <http://fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/Revista08>. Acesso em 10 out. 2016, p. 236.
[7] COMPARATO, Fábio Konder. Fundamentos dos direitos humanos. In: DINIZ, José Janguiê Bezerra (coord.). Direito Constitucional.  Brasília: Editora Consulex, 1998, p. 76.
[8] POZZOLI, Lafayette. Cultura dos direitos humanos. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal. a. 40. n. 159, jul.-set. 2003, p. 109.
[9] MEDEIROS, Robson A. de; SILVA, Eduardo P.; ARAÚJO, Jailton M. de. A (in) segurança alimentar e nutricional no Brasil e o desenvolvimento humano. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/primafacie/article/viewFile/4351/3283>. Acesso em 15 mai. 2015, p. 32.
[10] BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 10 out. 2016.
[11] FACHIN, Zulmar; SILVA, Deise Marcelino. Direito fundamental de acesso à água potável: uma proposta de constitucionalização. Disponível em: <http://www.lfg.com.br>. Acesso em 10 out. 2016.

Informações Sobre o Autor

Tauã Lima Verdan Rangel

Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES


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Equipe Âmbito Jurídico

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