Maurício Cerqueira Lima [1]
Resumo: O presente texto destina-se a consignar algumas reflexões a respeito das inovações trazidas pela Lei nº 13.964/2019, especificamente o acordo de não persecução penal, sendo a nossa preocupação fazer uma modelagem da nova regra prevista no artigo 28A do C.P.P. ao processo penal militar, não obstante a resistência que se acha em alguma parte da doutrina e, mais recentemente, na jurisprudência do S.T.M., a saber, o Acórdão proferido nos autos da Apelação nº 7001106-21.2019.7.00.0000, onde foi abraçado o entendimento de que a norma não tem aplicação no âmbito da Justiça Militar em função da índole do seu correspondente processo penal.
O propósito da argumentação, no entanto, não se traduz em proselitismo em favor de determinado ponto de vista, mas o de promover o debate em favor do amadurecimento das instituições, acrescido que será, certamente, de outras opiniões que serão colocadas em redor do tema até que se pacifique a questão.
Palavras-chave: Acordo penal. Justiça Militar.
Abstract: This text is intended to consign some reflections on the innovations brought by Law No. 13.964 / 2019, specifically the non-criminal prosecution agreement, our concern being to model the new rule provided for in article 28A of the CPC. to the military criminal process, despite the resistance that is found in some part of the doctrine and, more recently, in the case law of the STM, namely, the Judgment given in the proceedings of Appeal No. 7001106-21.2019.7.00.0000, where the understanding that the rule has no application within the scope of Military Justice due to the nature of its corresponding criminal proceedings.
The purpose of the argument, however, does not translate into proselytism in favor of a certain point of view, but to promote the debate in favor of the maturation of the institutions, added that it will certainly be of other opinions that will be placed around the theme until the issue is settled.
Keywords: Penal agreement. Military Justice.
Sumário: Introdução. 1.Advertência preliminar. 2.O artigo 28 A, com a redação que lhe deu a Lei nº 13.964/2019. 3. As normas materiais e processuais de interesse – a omissão do C.P.P.M.. 3.1 A índole do processo penal militar. 3.2 A posição do S.T.M.. 4. A Lei 9.099/90. Considerações finais. Bibliografia.
Introdução
Deve ser uma preocupação de natureza prática, a priori, afirmar que a argumentação que se encaminha está despida de qualquer viés ideológico. Em verdade o que nos encoraja (e motiva) é o Direito puro, talvez pretenciosamente falando, com uma matiz kelseniana, na sua teoria pura, no sentido de que tanto as ideias quanto as conclusões a que chegaremos, não tenham uma contaminação maniqueísta, muito comum nos dias correntes, por conta da polarização de ideais e do partidarismo (até de um certo tribalismo) havido no mundo inteiro.
Bem visto, o fenômeno do acirramento das ideologias não é privilégio brasileiro, porque tomou conta da civilização ocidental, e mesmo no Levante, onde uma onda democrática (uma nova primavera árabe) já sinaliza no horizonte. De modo que é preciso inicialmente reafirmar que o norte deste estudo é a lei e a sua mais justa aplicação, segundo o pensamento contemporâneo.
De sorte que este texto busca propor uma interpretação possível ao instituto do acordo de não persecução penal no âmbito da justiça militar, a partir da interpretação dos textos legais vigentes, bem como na doutrina e decisões dos tribunais.
Em 24/01/2020 entraram a vigor as alterações produzidas pela Lei nº 13.964/2019, que introduziram, dentre outras, o acordo de não persecução penal no texto do Código de Processo penal. O dispositivo encontra-se consignado no novo artigo 28A, com a seguinte redação:
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:
I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;
III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);
IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou
V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
I – se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;
II – se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;
III – ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e
IV – nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.
De início é necessário destacar o parágrafo segundo, ou seja, das hipóteses em que não se aplica o acordo de não persecução penal, vale dizer: se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei; se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.
O dispositivo não exceptuou quaisquer outros delitos que não aqueles elencados (taxativamente) nele mesmo, de modo que estão sujeitos ao acordo de não persecução penal os crimes eleitorais e os demais que forem previstos em legislação extravagante, inclusive os crimes militares.
O Min. Dias Tófolli, no exercício da presidência do S.T.F., concedeu liminar na ADI 6298, para declarar constitucional o juiz das garantias e suspender a aplicação de alguns dos dispositivos contidos na reforma penal (esse o nome correto – no nosso entender – do pacote anti crime), o que nos pareceu uma decisão teratológica, inclusive porque a fundamentação e argumentação de sua excelência conduz à clara conclusão pela inconstitucionalidade, mas tudo é possível em se tratando de S.T.F..
Com sobriedade e acurada visão técnica, o Min. Luix Fux, na condição de relator, e na mesma ADI 6.298, suspendeu grande parte da reforma penal inquinando-a de inconstitucional, por defeito de iniciativa, ou seja, fundamentação semelhante à utilizada pelo ministro presidente, mas que havia concluído de modo diverso.
Assim se referiu sua excelência, o relator:
“Pelo exposto, ante a urgência de análise liminar, tendo em vista a entrada em vigor da Lei no 13.964/19 no dia 23 de janeiro de 2020 (art. 20 da lei), concedo parcialmente a medida cautelar pleiteada, ad referendum do Plenário, para:
(i) suspender-se a eficácia dos arts. 3o-D, parágrafo único, e 157, § 5o, do Código de Processo Penal, incluídos pela Lei no 13.964/19;
(ii) suspender-se a eficácia dos arts. 3o-B, 3o-C, 3o-D, caput, 3o-E e 3o-F do CPP, inseridos pela Lei no 13.964/2019, até a efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais, o que deverá ocorrer no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contados a partir da publicação desta decisão;
(iii) conferir-se interpretação conforme às normas relativas ao juiz
das garantias (arts. 3o-B a 3o-F do CPP), para esclarecer que não se aplicam às seguintes situações:
(a) processos de competência originária dos tribunais, os quais são
regidos pela Lei no 8.038/1990;
(b) processos de competência do Tribunal do Júri;
(c) casos de violência doméstica e familiar; e
(d) processos criminais de competência da Justiça Eleitoral.
(iv) fixarem-se as seguintes regras de transição:
(a) no tocante às ações penais que já tiverem sido instauradas no
momento da efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais (ou quando esgotado o prazo máximo de 180 dias), a eficácia da lei não acarretará qualquer modificação do juízo competente. O fato de o juiz da causa ter atuado na fase investigativa não implicará seu automático impedimento;
(b) quanto às investigações que estiverem em curso no momento da efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais (ou quando esgotado o prazo máximo de 180 dias), o juiz da investigação tornar-se-á o juiz das garantias do caso específico. Nessa hipótese, cessada a competência do juiz das garantias, com o recebimento da denúncia ou queixa, o processo será enviado ao juiz competente para a instrução e o julgamento da causa”.
Concretamente, portanto, a parte legal que se refere ao acordo de não persecução penal encontra-se com eficácia e aplicabilidade plena, já existindo, inclusive, normativa do Conselho Nacional do Ministério Público (desde 2017) para a sua implementação (Resolução 181/2017).
Dessa forma, os Ministérios Públicos estaduais, do D.F. e o Federal, no âmbito de suas competências, devem prover os meios materiais para celebrar tais acordos.
Tem-se argumentado que a reforma penal (o pacote anti crime) alterou o Código de Processo Penal e não o Código de Processo Penal militar, o que é certo. Acrescenta-se a isto o fato de que a norma processual comum só tem cabimento nos casos omissos do C.P.P.M., o que também é verdade. Adiciona-se como tempero final, na receita, o fato de que a situação em exame não se trata de omissão do C.P.P.M., portanto não é o caso de aplicação do acordo de não persecução penal no processo penal militar, dada a especialidade da matéria, o que não é verdade.
O instituto tem natureza mista e não meramente processual. Atinge o direito material em si, ou seja, o próprio jus puniendi estatal. Uma vez celebrado o acordo, o Estado não pode mais promover a ação penal, nem lançar o nome do réu no rol dos culpados, devendo, inclusive dar baixa nos registros processuais, mantendo apenas registro de controle para efeito de o indivíduo não poder ser beneficiado mais de uma vez com o ajuste penal. As questões relativas à responsabilização civil, decorrentes do acordo de não persecução penal (onde o autor do fato se diz culpado – ou seja, ele necessariamente confessa a autoria do crime como requisito), ainda serão objeto de intenso debate e de construção jurisprudencial para mitigar essa verdadeira omissão da reforma penal[2], que no nosso entender podeira contemplar um dispositivo ressalvando direitos e interesses do ofendido ou de terceiros interessados, apesar do acordo, seja no sentido de consagrar a coisa julgada, seja no sentido de relativizá-la.[3]
Formalizado o acordo obtêm-se a coisa julgada material, somente podendo ser rescindida por intermédio da revisão do 621 e seguintes, no que lhe servem, do C.P.P..
No que se refere ao processo penal militar, convém examinar, para início de argumentação, o artigo 3º, do C.P.P.M. que diz expressamente o seguinte (com grifos nossos):
“Art. 3º Os casos omissos neste Código serão supridos:
Vamos tratar de um exemplo de omissão da legislação processual penal militar, deixando a expressão índole do processo penal militar para exame posterior.
Agora vejamos o art. 253, do mesmo diploma legal:
“Concessão de liberdade provisória
Art. 253. Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato nas condições dos arts. 35, 38, observado o disposto no art. 40, e dos arts. 39 e 42, do Código Penal Militar, poderá conceder ao indiciado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogar a concessão”.
Na letra literal da lei, a liberdade provisória ao acusado, no processo penal militar, somente se pode conceder se o agente praticou o fato nas condições dos arts. 35, 38, observado o disposto no art. 40, e dos arts. 39 e 42, do Código Penal Militar, ou seja, erro de direito (art. 35); coação irresistível e obediência hierárquica (art. 38); em situações de coação física ou material (art. 40); em situações de Estado de necessidade, com excludente de culpabilidade (art. 39) e em situações de excludentes de criminalidade (art. 42).
Ora, no Código de Ritos penais comum, no artigo 321, a liberdade provisória está assim definida (além de vinculada, como pressuposto, às excludentes de culpabilidade e criminalidade):
“Art. 321. Ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282[4] deste Código”.
No sistema normativo vigente a liberdade é a regra, embora seja recomendável (por várias razões) que a prisão, como pena, seja imposta após a decisão condenatória de segunda instância.
Mas em retorno ao raciocínio, no caso citado anteriormente, verifica-se que o C.P.P.M. não possui de seu um dispositivo correspondente, embora o que se acha mais próximo é o 257, vazado nos seguintes termos:
“Desnecessidade da prisão
Art. 257. O juiz deixará de decretar a prisão preventiva, quando, por qualquer circunstância evidente dos autos, ou pela profissão, condições de vida ou interesse do indiciado ou acusado, presumir que este não fuja, nem exerça influência em testemunha ou perito, nem impeça ou perturbe, de qualquer modo, a ação da justiça”.
Ora, é o bom senso que demanda ao juiz auditor, da auditoria militar, não decretar a prisão preventiva e, no caso de flagrante, relaxar o ato administrativo correspondente, não por ilegalidade, mas por desnecessidade da custódia prévia. De modo que o dispositivo ora mencionado atende ao sistema de excepcionalidade da prisão tendo a liberdade como regra.
Mas que o autuado em flagrante saia solto, assim sem mais aquela, não atende a qualquer critério de justiça. É imperioso que se comprometa a comparecer aos atos do processo, ou, por outra, que não frequente determinados lugares, que não se aviste com o ofendido etc, ou seja, que lhe sejam determinadas medidas, de natureza acautelatória, diferentes da prisão.
O Código de Processo Penal Militar é omisso nesses casos, de modo que nada obsta a aplicação do procedimento comum em caráter supletivo, podendo o juiz demarcar restrições que assegurem a aplicação da lei penal, garantam a instrução criminal, mantenha a salvaguarda da ordem pública[5] e econômica.
A doutrina especializada sanciona o que dissemos:
“Deve ser aplicado ao processo penal militar a previsão do art. 310 do Código de Processo Penal, referente às medidas cautelares diversas da prisão, incluído pela Lei 12.403/2011. A aplicação está em conformidade com o art. 3º do C.P.P.M., que diz que os casos omissos serão supridos pelo processo penal comum. A lei 12.403/2011 trouxe significativas alterações no C.P.P., a fim de harmonizar o processo penal com o sistema acusatório acolhido pela Constituição Federal de 1988, o que deve ser levado para a seara castrense”.[6]
“Com exceção dos incisos VII – em função de haver a aplicação provisória de medida de segurança – e VIII – pela inexistência de crimes militares afiançáveis -, todas elas podem ser trasladadas para o processo penal militar, justamente por força da alínea a do art. 3º do C.P.P.M., não ferindo a índole do processo penal militar, por exemplo, prover a monitoração eletrônica”.[7]
No que se refere à jurisprudência, é de se assinalar que, recentemente, o S.T.M., em voto do Min. Relator José Barroso Filho, prolatado no Habeas Corpus 7000375-25.2019.7.00.0000, abraçou o entendimento da aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, no chamado Caso Guadalupe, em que dois civis perderam a vida no Rio de Janeiro.
Ora, se a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, previstas na legislação processual penal comum podem (e devem) ser aplicadas no âmbito do processo penal militar, em caráter supletivo, porque é evidente a omissão da legislação especial em face da medida alternativa à prisão num regime de liberdades individuais, por que não seria também aplicável a medida do ajuste penal, vale dizer, do acordo de não persecução penal, que tem caráter disciplinador, tanto quanto a sanção penal ministrada pelo juiz? Se eu posso soltar o preso, impondo a eles certas condutas, porque não posso deixar de promover o processo penal contra ele, impondo-lhe certas condutas? Se posso suspender a aplicação da pena decorrente de sentença condenatória do processo penal militar (art. 84, do C.P.P.M.)[8], impondo ao condenado (réu, com nome lançado no rol dos culpados, etc) certas condições, por que não posso fazê-lo antes mesmo de tramitar um longo processo (caro para o contribuinte)[9], que muitas vezes termina em prescrição?
Tudo isso serve de argumento, a partir do mero exame da legislação, positivamente a favor do acordo de não persecução criminal na justiça militar. Em manifestações recentes, a doutrina vem sinalizando que sim:
“Embora vedado no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, o acordo é possível na Justiça Militar e Eleitoral”.[10]
Paulo Queiroz
No nosso sentir a situação é de caso omisso e, portanto, aplicável a legislação processual penal comum ao caso concreto, em função da diretriz constitucional e supralegal adotada no Direito brasileiro.
Examinemos adiante as normas fundamentais de interesse, no que se refere a essa questão.
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, tendo o Congresso Nacional aprovado o texto do referido diploma internacional por meio do Decreto Legislativo n° 226, de 12 de dezembro de 1991, enquanto que a Carta de Adesão ao pacto foi depositada em 24 de janeiro de 1992 pelo Brasil, passando a integrar o direito nacional, com natureza supralegal, através do Decreto Presidencial nº 592/1992, prescreve o seguinte (com grifos nossos):
“ARTIGO 14
……………………………………………………………
ARTIGO 26
Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da Lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.”
Não é preciso esforço de raciocínio para compreender que o Brasil aderiu a um pacto internacional que considera que todas as pessoas são iguais, em direitos e obrigações, e merecem igual proteção da lei, sendo que esta deve proibir quaisquer formas de discriminações, naquelas em que os dispositivos especifica e, em qualquer outra situação.
A condição de militar não pode ser prejudicial à pessoa para fins e efeitos da aplicação da norma penal. Se para o mal do delito existe a possibilidade de o Estado/Administração propor cláusulas ao autor do fato, para que este afirme a sua autoria e aceite imposição de restrições pessoais (como é o ajuste de não persecução penal), esse direito, que deve ser considerado como subjetivo (§14, art. 28A, do C.P.P.), há de ser reconhecido ao militar, que não deixa sua condição humana em função disso.
Dentro das fardas militares existem homens e mulheres, seres humanos, sujeitos de direito que acertam e erram na mesma medida dos outros, sem diferenças substanciais de natureza, porque somos todos da mesma espécie, a humana.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, entrou em vigor internacional em 18 de julho de 1978, na forma do segundo parágrafo de seu art. 74 e o Governo brasileiro depositou a carta de adesão a essa convenção em 25 de setembro de 1992, entrando em vigor, para o Brasil, em 25 de setembro de 1992, através do DECRETO nº 678/1992, prescreve o seguinte:
“ARTIGO 24
Igualdade Perante a Lei
Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei.”
“ARTIGO 25
Proteção Judicial
A igualdade perante a lei é um marco civil de natureza universal; a esta altura da evolução da cultura ocidental (e mesmo no oriente) não se admite que haja distinções de tratamento pela condição pessoal dos indivíduos, de modo que se ao civil é lícito celebrar acordo de não persecução penal com o Estado, ao militar deve ser reconhecido esse mesmo direito. Trata-se de direito público subjetivo[11], do mesmo grau e valor da educação, saúde, liberdade etc.
Sendo um dos objetivos da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3, I, da C.F.), não se pode conceber que o criminoso comum possa celebrar acordo de não persecução penal e o militar, investido na função de força estatal, não o possa do mesmo modo e em iguais condições, desde que atendidos os requisitos previstos na norma.
O Pretório Excelso, examinado a hierarquia dos pactos internacionais em relação ao direito interno abraçou o entendimento de sua natureza supralegal, nos seguintes termos:
“(…) diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na CF/1988, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da CF/1988 sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, LXVII) não foi revogada (…), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (…). Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. (…) Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao PIDCP (art. 11) e à CADH — Pacto de São José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5º, LXVII, da CF/1988, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel.
[RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso, voto do min. Gilmar Mendes, P, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009, Tema 60.]”
Dessa forma, há (sim) omissão da lei processual penal militar no que se refere ao acordo de não persecução penal, porque é da natureza do sistema punitivo brasileiro a tendência à reabilitação do criminoso. A pena, não custa recordar, não tem um fim em si mesma:
“LEI Nº 7.210, DE 11 DE JULHO DE 1984.
(LEI DAS EXECUÇÕES PENAIS)
Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.
Art. 2º A jurisdição penal dos Juízes ou Tribunais da Justiça ordinária, em todo o Território Nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade desta Lei e do Código de Processo Penal.
Parágrafo único. Esta Lei aplicar-se-á igualmente ao preso provisório e ao condenado pela Justiça Eleitoral ou Militar, quando recolhido a estabelecimento sujeito à jurisdição ordinária.”
Se a Lei das execuções penais é apenas um sonho tolo, é preciso que sejamos, então, tolos para torná-la realidade.
Em resumo, o ajuste penal antecipa, em certa medida, o que a sentença condenatória o faria, anos depois, se o delito não for alcançado pela prescrição, com a diferença de que, na maioria das situações, a pena aplicada pela sentença condenatória estará sujeita à suspensão condicional da pena (art. 84, do C.P.P.M), como antes mencionado.
3.1 A índole do processo penal militar
É preciso compreender o significado da índole do processo penal militar.
Está previsto no art, 3º do C.P.P.M. (antes transcrito), que os casos omissos no Código serão supridos pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar.
Essa índole do processo penal militar somente pode ser compreendida se considerarmos que a lei penal (militar) possui como fim mediato a manutenção das normas, ou princípios, de hierarquia e disciplina militares, troncos de sustentação das instituições militares. Pode-se alinhar como sinônimos de índole, neste caso: alma, ânimo, espírito, disposição, inclinação, estrutura, natureza e propensão.
Mas essa conceituação da índole do processo penal militar está sujeita a uma aferição pessoal que se subordina ao interesse do examinador, porque o que alguém pensa que é de acordo com ela, pode ser diferente do que outro alguém pense. Há um conteúdo arbitrário na expressão.
Ìndole, no senso comum é natureza que compreende um sentido ideal, um movimento em direção a um objetivo imaginário (ou concreto) a ser atingido. Podemos aceitar a prescrição do dicionário Houaiss, que a descreve como:
“Substantivo feminino. Caráter; modo próprio e particular de ser; reunião de características do indivíduo que estão presentes desde o seu nascimento: boa índole ou má índole. Gênio; propensão natural, disposição, inclinação, temperamento: as respostas não foram publicadas por serem de índole pessoal”.
Assim se pode dizer que a Constituição Republicana de 1988 é de índole liberal, ou cidadã, no dizer do ex-Dep. Fed. Ulisses Guimarães, ou que o Ministro Fulano, de determinado tribunal superior, é de má índole, etc.
Pois, avaliando essas disposições, facilmente se compreende que não há conceito mais diáfano do que o de índole. É como se tentar conceituar a verdade – a verdade como interpretação do fato.
Cada pessoa tem o seu conceito pessoal do que seja justiça, liberdade, verdade, igualdade, ou seja, desses elementos simbólicos do imaginário humano que, por mais que nos esforcemos, não conseguimos estabelecer critérios satisfatórios que sejam aceitos por todos. O que é justiça para mim, pode não ser para o leitor; o que é liberdade para mim, pode não ser para o Min. Fulano, do S.T.F. etc.
Servindo-nos da conceituação proposta pela Filosofia, compreendemos quão alagadiço é o terreno, senão vejamos:
“É possível distinguir cinco conceitos fundamentais de verdade. 1º a verdade como correspondência; 2º a verdade como revelação; 3º a verdade como conformidade com a regra; 4º a verdade como coerência; 5º a verdade como utilidade. Essas concepções têm importâncias diferentes na história da filosofia: as duas primeiras, em especial a primeira, sem dúvida, são as mais difundidas. Não são nem mesmo alternativas entre si: é possível encontrar mais de uma no mesmo filósofo, embora usadas com propósito diferente. No entanto, por serem díspares e mutuamente irredutíveis, devem ser consideradas distintas”.[12]
A razão de ser dessa dificuldade com temas dessa ordem está na medida das diferenças que existem entre as pessoas, que se relacionam intimamente com a história de vida de cada um. De modo que a compreensão desses conceitos abstratos obedece a um critério comum de consenso mínimo, para que se possa fazer funcionar a vida[13]. Assim os conceitos de liberdade, igualdade, justiça etc., possuem uma definição de conteúdo de ordem econômica (no sentido da sua utilidade prática).
Em razão do que dissemos antes, logicamente, se se perguntar à pessoa mais simples na rua se ela sabe o que é liberdade, ela responderá afirmativamente e, possivelmente, oferecerá uma definição limitada à mobilidade (o ir e vir); mas sabemos que liberdade não se encerra em sua natureza mecanicista, ela vai além do que se possa conceber como tal. Pode-se acrescentar à definição desse transeunte imaginário a liberdade de pensar, a de expressar esse pensamento, a de questionar o valor desse pensamento, a de confrontar esse pensamento etc. Então façamos como Cecília Meireles, que disse: “liberdade é uma palavra que o sonho humano acalenta, que não há quem explique e ninguém que não entenda”[14], já nos basta isso.
Mas a compreensão de liberdade do nosso amigo que passa pela rua, e foi por nós incomodado com essa pergunta tola, lhe serve plenamente para a existência: satisfaz as suas necessidades mundanas, assim como a sua compreensão de justiça, de lealdade, de igualdade etc., que serão postas à prova no momento certo da vida. A compreensão da natureza desse problema foi seguramente dissecada com maestria por Sigmund Freud, na sua obra O mal estar na civilização, que recomendamos a leitura atenta.
Mas a ciência do Direito (ciência sim) não se acomoda com o senso comum dos termos, pois ela (naturalmente) demanda um pensamento mais elaborado, que possa apreender, na medida do que o nosso tempo admite, o justo sentido e o pleno alcance das palavras.
Nesse particular convém fazer uma pequena digressão, para que não escape uma particularidade do assunto: precisamos distinguir verdade da realidade (ou verdade objetiva, como querem alguns), pois ela está relacionada aos fenômenos naturais, inexoráveis pela sua própria essência: o fogo queima, a água molha, o vento venta etc.; ou ainda, da realidade socialmente construída, que possibilita a vida em comum, estando relacionada a questões mais prosaicas, como o valor intrínseco de determinado objeto (a cadeira serve para sentar, a cama para deitar, o garfo para comer, embora se possa usar as mãos ou uma colher), o valor simbólico do dinheiro, que nos é imposto (embora historicamente acordado) etc.
Então, verdade e realidade se distinguem entre o que é possível determinar e o que é de natureza pessoal, subjetiva, que atende à ontogênese.
Essa introdução breve no raciocínio que pretendemos dar seguimento, serve para firmar um ponto de referência importante para o intérprete do Direito. A norma não é um retrato na parede, com uma moldura feita em 21 de outubro de 1969[15] e não pode ser ponto de chegada, será sempre ponto de partida.
A ideia na qual se concebeu a expressão índole do processo penal militar não é (e não pode ser) a mesma tantos anos depois. Se a índole do processo for obter punição sempre, então nós nos deparamos com dois problemas: o primeiro, o processo não é garantia de justiça e isso se pode afirmar sem outras considerações; o segundo, a pena, consectária eventual do delito, no nosso tempo, perdeu sua função intimidadora, ou como quer Jakobs (2003, p. 3), a sua função de afirmação da vigência da norma penal para a pessoa do criminoso, pois basta que se observe a realidade vivenciada no sistema penitenciário nacional, e os índices de criminalidade (dentro e fora da caserna), para se compreender que os tempos que vivemos precisam de um Direito Penal que se renove, que seja crítico de si mesmo e que compreenda a realidade, antes de tudo.
Nós entendemos que o acordo de não persecução penal não ofende à índole do processo penal militar, porque militar é gente, e gente tem que ser tratada como gente. Não obstante, há quem entenda que a índole do processo penal militar é necessariamente punitiva, necessariamente persecutória, necessariamente oficial e a interpretação de suas normas deve ser literal (no dizer do C.P.P.M.), mas nem os militares de 1969 são os mesmos que estão hoje na ativa, nem o conceito que se tem da índole do processo penal militar pode ser o mesmo.
Ora, o acordo de não persecução penal não implica em absolvição gratuita, implica em confissão da autoria do fato e aceitação de medidas restritivas de direito, que não a liberdade.
Nos Estados Unidos uma parcela significativa dos casos de natureza criminal é submetida a acordo entre Ministério Público e suposto autor do delito e nem por isso se pode dizer que há impunidade na maior democracia do mundo. Para interação dos dados é conveniente uma dedicação a leitura específica.[16]
Não custa repetir, o judiciário brasileiro não é o mesmo de 1969, a realidade das Varas de Auditoria militar nos Estados da Federação é a de prescrições sucessivas, absolvições por falta de provas em razão de deficiência nos cadernos investigativos, insuficiência de pessoal, servidores militares exercendo funções de civis e tantas outras mazelas.
O Estado da Bahia tem uma tropa de trinta e dois mil policiais militares e um juiz auditor, da Vara da Auditoria Militar. Não há câmara especializada no Tribunal (embora a C.F. autorize a sua criação). A realidade concreta é que o processo não termina, ou termina defeituosamente, de um modo tal que dificilmente se alcança a punição do militar transgressor, o que nos faz ver que essa índole (rígida) do processo penal militar escorre pelas valetas tortuosas da indiferença estatal para com o setor.
A justiça militar estadual só é lembrada quando são deflagradas as greves (inconstitucionais) da P.M. São nesses momentos em que governadores se arvoram em promessas (vãs) de investimento, disso e daquilo. Quanto ao promotor de justiça, este se deprime diante da impossibilidade de reverter esse quadro. Numa palavra: frustração.
Pensar que a índole do processo penal militar é essencialmente repressora e punitiva é pensar de modo anacrônico, dissociado da realidade. O acordo de não persecução penal, pelo menos, assegura que o transgressor contribua com valores para entidades assistenciais, além de lhe impor restrições quanto a determinadas condutas, que, uma vez descumpridas, implica em deflagração da ação penal, de modo que a questão pode tomar seu rumo ortodoxo naturalmente.
Infelizmente o brasileiro ainda pensa que justiça é igual a processo, mas não é. Se fosse correta a afirmativa, o país seria um mar de tranquilidade.
3.2 A posição do S.T.M.
É necessário lembrar que, aos promotores de justiça estaduais, com exercício perante as auditorias militares estaduais, interessam as decisões proferidas pelo S.T.J. e não pelo S.T.M.[17], pois o sistema recursal brasileiro direciona toda a matéria penal militar estadual, em segundo grau ao tribunal de apelação (TJ estadual) e em terceiro grau, ao Superior Tribunal de Justiça (recurso especial). De modo que as decisões do Superior Tribunal Militar podem servir como estudo de caso, mas o que nos orienta de verdade a atuação é a jurisprudência do S.T.J. e do S.T.F..
O S.T.M. tem uma posição conservadora da aplicação da norma, exemplo disso foi o Acórdão proferido na APELAÇÃO nº 7001106-21.2019.7.00.0000, tendo como relator o Ministro Ten. Brig. Ar. CARLOS VUYK DE AQUINO, revisor o Ministro Dr. PÉRICLES AURÉLIO LIMA DE QUEIROZ. O apelante foi o militar JEFFERSON DANIEL DA SILVA, apelado MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR. Defensor: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO.
O argumento já é conhecido, não varia, parece não haver outro. Convém transcrever o extrato da decisão, na parte que nos interessa:
“O alcance normativo do Acordo de Não Persecução Penal está circunscrito ao âmbito do processo penal comum, não sendo possível invocá-lo subsidiariamente ao Código de Processo Penal Militar, sob pena de violação ao Princípio da Especialidade, uma vez que não existe omissão no Diploma Adjetivo Castrense. Somente a falta de um regramento específico possibilita a aplicação subsidiária da legislação comum, sendo impossível mesclar-se o regime processual penal comum e o regime processual penal especificamente militar, mediante a seleção das partes mais benéficas de cada um deles. Preliminar rejeitada. Decisão unânime.”
Já argumentamos antes que existe sim a omissão, da mesma natureza que se refere à aplicação das medidas alternativas à prisão e poderíamos, ainda, citar um sem número de outras omissões.
O argumento é pobre, ou melhor, é intelectualmente desonesto. Parece que o C.P.P.M. foi colocado dentro de uma redoma de cristal, nos idos de 1969, e alguém, parafraseando Michelangelo disse: fala!
O Supremo Tribunal Federal, embora preserve em alguma medida essa reserva de mercado a que se acostumou o S.T.M., entende diferente (com grifos nossos):
“O art. 400 do CPP, com a redação dada pela Lei 11.719/2008, fixou o interrogatório do réu como ato derradeiro da instrução penal, prestigiando a máxima efetividade das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (CRFB, art. 5º, LV), dimensões elementares do devido processo legal (CRFB, art. 5º, LIV) e cânones essenciais do Estado Democrático de Direito (CRFB, art. 1º, caput), por isso que a nova regra do CPP comum também deve ser observada no processo penal militar, em detrimento da norma específica prevista no art. 302 do DL 1.002/1969, conforme precedente firmado pelo Pleno do STF nos autos da AP 528 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 24-3-2011, DJE 109 de 7-6-2011, impondo a observância do novo preceito modificador em relação aos processos regidos pela Lei especial 8.038/1990, providência que se impõe seja estendida à Justiça Penal Militar, posto que ubi eadem ratio ibi idem jus.
[RHC 119.188, rel. min. Luiz Fux, j. 1º-10-2013, 1ª T, DJE de 23-10-2013.]
Vide AP 528 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 24-3-2011, P, DJE de 8-6-2011.”
“HC 127.900. Rel. min. Dias Toffoli
Plenário DJE de 3-8-2016
Informativo STF 816
Direito Processual Penal Militar. Atos probatórios. Qualificação e interrogatório do acusado. Tempo e lugar do interrogatório.
A exigência de realização de interrogatório do acusado ao final da instrução criminal, prevista no art. 400 do Código de Processo Penal (CPP), na redação dada pela Lei 11.719/20081, aplica-se ao processo penal militar, ao processo penal eleitoral e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial.”
Seria desleal se não indicássemos, no presente texto, de que pensam contrariamente os ministros Marco Aurélio e Carmem Lúcia.
Pois bem, norma procedimental, do procedimento comum, aplicada ao processo penal militar por força de decisão do S.T.F.. Então, de que vale o argumento da especialização?
Esse mesmo argumento não sobrevive ao mais singelo confronto constitucional (grifos nossos):
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
…………..……………………………………………………….
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”
Se o interrogatório é meio de prova e o sistema acusatório pressupõe que a versão do acusado seja dada ao final da instrução criminal, porque lhe será mais benéfico edificar a sua defesa em função da prova produzida, é óbvio que esse princípio atende à ampla defesa. Ora, a Carta Política de 1988 não fez qualquer exceção a processo ou procedimento, refere-se claramente: aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
É preciso que se dê ao militar o direito de confessar a autoria do crime, cometido sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, oportunidade em que o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
Essa medida educa, previne o crime, apresenta ao militar uma outra perspectiva, uma perspectiva de conciliação, de que há alternativa para o mal do crime, porque (como diz o adágio popular) se a fera só recebe chicote, somente entenderá a linguagem do chicote, e usará essa linguagem com os demais que estiverem à sua volta (acrescento eu).
Então, ao militar que extraviou a arma[18], que ele pague à instituição militar o preço do equipamento, que ele ministre em estabelecimentos de ensino palestras sobre o risco das armas de fogo utilizadas por pessoas sem preparo, etc.
Há um sem número de tarefas que o militar pode se obrigar a cumprir no acordo de não persecução penal (e que o juiz não pode aplicar com a caneta na sua sentença condenatória, ele somente pode aplicar restrição de liberdade) e que seriam muito mais proveitosas à sociedade do que simplesmente, ser condenado, recorrer à instância superior e ver o delito prescrever inexoravelmente. O pior cego é aquele que não quer enxergar.
Tem sido muito comum argumentar que o acordo de não persecução penal não se aplica ao âmbito penal militar porque, da mesma maneira, não se aplica a Lei 9.099/90, mas, com todo respeito, uma coisa não tem nada a ver com a outra.
A norma dos juizados especiais criminais não se aplica à justiça militar por expressa disposição legal, quero dizer, assim prescreve o artigo 90 A, da referida norma:
“Art. 90-A. As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar. (Artigo incluído pela Lei nº 9.839, de 27.9.1999)”
No particular não há o que discutir. Não existe conteúdo passível de análise (ou de síntese) na questão proposta. O que nos parece é que a falta de argumentos válidos contra o acordo de não persecução penal provoca uma espécie de histeria em algumas pessoas, o que termina lhes obliterando a razão.
Não se aplica, da mesma forma, o princípio da insignificância penal no âmbito da justiça militar, porque seria ridículo (inclusive) se fosse aplicado. Há uma exigência de conduta para com aqueles que abraçam a carreira militar (uma espécie de ideal do ego coletivo, vamos dizer assim, juntando Jung e Freud na mesma salada), de modo que a retidão de comportamento deve ser o padrão. Militar não pode se comportar como civil. O ideal do militar é ser um modelo, um ideal de comportamento a ser atingido, de modo que nenhuma conduta penal é insignificante. Nessa parte há de se levar em consideração que o fato típico deve ter o tratamento de fato típico, o que não impede de que ele (militar), autor da conduta, se arrependa e queira transigir com o Estado para antecipar as consequências dos seus atos.
O acordo de não persecução penal nada mais é do que isso: uma antecipação das consequências dos atos típicos, sem o gasto do processo.
Não sabíamos como ultimar este artigo, de modo que somente pudemos lembrar de Drummond (1987, 34), quando ele diz:
“Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”
O aplicador do direito tem a difícil missão de tornar a vida em sociedade possível, quando se manifesta algum desequilíbrio no ajuste social primordial, que nos uniu em grupos num dado momento da história da humanidade. Não acertamos sempre, porque esse saber é intrinsecamente humano: não possui qualquer instância de certeza matemática ou física, estando relacionado com as nossas dúvidas, nossas várias interpretações dos fatos da existência e das complexas relações que desenvolvemos nesse caminho. Mas a vida tem sua dinâmica própria, que o direito insiste em perseguir, estar perto dela, para regulá-la, para dar-lhe contornos socialmente aceitos. No entanto, ela é rebelde, vai além: se projeta a distâncias que não podemos prever. Numa semana pensamos ter encontrado a solução de determinado problema e na outra rimos dela. Ou a própria vida se ri dessa nossa pretensão. É preciso que o profissional do direito esteja atento a esse fato, dessa busca de um ideal de justiça, que não temos certeza do que isso significa, da realidade social que se afasta da lei e muitas vezes exige que os juízes e tribunais lhe proporcionem ajustes, porque lidamos com problemas humanos e eles jamais terão soluções que se possam julgar definitivas. Muito tolo, ou ingênuo, aquele que pensa que se pode resolver os problemas da vida com tinta e papel, pois é o uso que fazemos dessa miríade (a que chamamos lei), que pode nos fazer em paz com a nossa consciência (ou não).
Bibliografia
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ANDRADE, Carlos Drummond de, Sentimento do mundo. São Paulo: Companhia das Letras. 1987.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001.
JAKOBS, Günther. SOCIEDADE, NORMA E PESSOA – VOL 6: São Paulo. MANOLE, 2003.
MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de direito processual penal militar – 3ed.: São Paulo: Saraiva, 2018.
PRESTES, Fabiano Caetano. Direito Processual Penal Militar. 6ª ed.. Salvador: Juspodium. 2019.
Fontes digitais
QUEIROZ, Paulo. Acordo de não persecução penal – Lei n° 13.964/2019. Publicado em 15 de janeiro de 2020. Disponível em https://www.pauloqueiroz.net/acordo-de-nao-persecucao-penal-primeira-parte/#comment-183357 Acesso em 06/03/2020.
[1] Promotor de Justiça do Estado da Bahia, exercendo as funções perante a Vara da Auditoria Militar. Bacharel em Direito pela Ucsal. Especialista em Ciências Criminais pela Unijorge. Especialista em Filosofia pela Estácio de Sá. Graduando em Psicologia. Romancista. http://lattes.cnpq.br/4942649167721851
[2] Se a reparação do dano for incluída no acordo, a parte ofendida pode não se sentir satisfeita com o montante acordado e pretender, na esfera cível, uma ampliação dessa reparação, acrescida de uma indenização por dano moral etc.
[3] Não se pode esquecer os efeitos da sentença penal no cível (vide artigos 63 e seguintes do C.P.P.), que não foram modificados na reforma penal.
[4] O 282 do C.P.P. descreve as medidas cautelares diversas da prisão.
[5] A ordem pública é desses conceitos de difícil determinação, mas o bom senso manda incluir aí o prestígio e a credibilidade da justiça e, de certo modo, a segurança de que o sistema punitivo encontra-se em funcionamento.
[6] PRESTES, Fabiano Caetano. Direito Processual Penal Militar. 6ª ed.. Salvador: Juspodium. 2019. p. 123
[7] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de direito processual penal militar – 3ed.: São Paulo: Saraiva, 2018.
[8] Art. 84 – A execução da pena privativa da liberdade, não superior a 2 (dois) anos, pode ser suspensa, por 2 (dois) anos a 6 (seis) anos, desde que:
[9] Convido o leitor a contabilizar o custo de uma hora de serviço de um juiz, de um promotor público e de um defensor, sem incluir aí, custos de manutenção de equipamentos, de pessoal etc.
[10] QUEIROZ, Paulo. Acordo de não persecução penal – Lei n° 13.964/2019. Publicado em 15 de janeiro de 2020. Disponível em https://www.pauloqueiroz.net/acordo-de-nao-persecucao-penal-primeira-parte/#comment-183357 Acesso em 06/03/2020
[11] Não avançaremos nessa definição, por razões óbvias, não escrevemos para leigos.
[12] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 994.
[13] Possuem, portanto, uma finalidade funcionalista, no sentido literal do termo.
[14] Meireles, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 81.
[15] Data de publicação do Código de Processo Penal Militar.
[16] https://www.editoradplacido.com.br/plea-bargain-resolucao-penal-pactuada-nos-estados-unidos
[17] Vide LEI Nº 8.457, DE 4 DE SETEMBRO DE 1992. Que organiza a Justiça Militar da União e regula o funcionamento de seus Serviços Auxiliares, estabelecendo, inclusive, a competência do S.T.M..
[18] Desaparecimento, consunção ou extravio
Art. 265. Fazer desaparecer, consumir ou extraviar combustível, armamento, munição, peças de equipamento de navio ou de aeronave ou de engenho de guerra motomecanizado:
Pena – reclusão, até três anos, se o fato não constitui crime mais grave.
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