Sumário: 1). Introdução; 2). O Projeto de Lei 111/2010; 3). Ligeiras reflexões; 3.1) Quem poderá ser encaminhado à avaliação técnica; 3.2.). Recusa em submeter-se à avaliação técnica; 3.3.). Conclusões da avaliação técnica; 3.4.). Proposta de transação penal; 3.5.). Sentença no processo de conhecimento 3.6.). Recusa ao tratamento; 3.6.1). Inviabilidade da execução compulsória do tratamento; 3.6.2.). Impossibilidade de conversão do tratamento especializado em pena privativa de liberdade; 3.6.3). Algumas consequencias práticas na execução; 4). Conclusão.
1. Introdução
Uma das consequências da política de redução de danos adotada na Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas) é o abrandamento do rigor punitivo em relação às condutas anotadas no art. 28 (caput e § 1º), onde a realização típica sujeita o agente às penas de advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
A pena de advertência tem por finalidade avivar, revigorar e, em alguns casos, incutir, na mente daquele que incidiu em qualquer das condutas do art. 28, as consequências danosas que o uso de drogas proporciona à sua própria saúde; ao seu conceito e estima social; à estabilidade e harmonia familiar; à comunhão social, buscando despertar valores aptos a ensejar contraestímulo ao estímulo de consumir drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal e regulamentar.
A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é pena de todos conhecida, notadamente em razão da notoriedade e status alcançados após a edição da Lei n. 9.714/98. Consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado, conforme a definição do art. 46, § 1º, do CP, e, para as hipóteses típicas do art. 28 (caput e § 1º), será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
A pena de comparecimento a programa ou curso educativo atende fielmente à política de redução de danos adotada na Lei de Drogas. É induvidoso que o programa ou curso educativo a que se refere a lei diz respeito ao tema drogas. Portanto, programas ou cursos voltados à prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas.
Na realidade prática, entretanto, a ausência de eficácia destas penas tem proporcionado fundada preocupação, e muitas são as razões para o desalento decorrente.
Com efeito, se o apenado não cumprir qualquer das penas aplicadas e persistir no descumprimento, mesmo após ser submetido às medidas coercitivas de admoestação verbal e multa (§ 6º do art. 28 da L.D), incidentes para fazer cumprir as penas anteriormente aplicadas, nada de efetivo se poderá fazer contra o mesmo, e a execução restará sem efeito algum. Não se atingirá, como em regra não se tem atingido, qualquer das finalidades da pena criminal.
Perdeu-se, com isso, a efetividade da regra punitiva. Desprovida de qualquer rigor, caíram no descrédito popular e dos operadores do Direito as penas atualmente cominadas.
Some-se a isso o fato de que na esmagadora maioria dos processos relacionados com o art. 28 da Lei de Drogas a “Justiça Criminal” tem desconsiderado a regra impositiva do § 7º do mesmo artigo, onde se lê que “o juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado”.
2. O Projeto de Lei 111/2010
Atento à realidade acima narrada, o Senador Demóstenes Torres apresentou o Projeto de Lei 111/2010, com vistas a restabelecer a pena de prisão para o crime do art. 28 da Lei de Drogas.
Conforme o Projeto, as condutas tipificadas no art. 28 e seu § 1º, que ficam mantidas, passariam a ser punidas com detenção, de 6 (seis) meses a 1(um) ano, sendo certo que o juiz substituirá a pena privativa de liberdade por tratamento especializado, nos termos do art. 47 da Lei de Drogas, que também deve ter sua redação modificada conforme é a pretensão do PL 111/2010, para regular a necessidade de existência de uma Comissão Técnica a que deverá ser encaminhado o autor do fato/acusado visando apurar a necessidade, ou não, de ser submetido a tratamento contra dependência de drogas.
A comissão instituída pelo artigo 47, caput, funcionará junto ao tribunal ou juízo competente, terá seus membros designados pelo Conselho Municipal Antidrogas e será composta por três profissionais com experiência em dependência e efeitos das drogas, sendo ao menos um deles médico, conforme regulamento.
Nos precisos termos do § 2º do art. 47, com a nova redação proposta no PL 111/2010, o juiz poderá, a qualquer momento, encaminhar o acusado para tratamento especializado, após ouvida a referida Comissão Técnica.
Repetindo o que hoje encontramos no § 7º do art. 28, nos termos do § 3º do art. 47, conforme a redação proposta, o juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do condenado, gratuitamente, estabelecimento de saúde para tratamento especializado.
Em síntese, a pretensão do legislador é no sentido de ver cominada pena de detenção de 6 (seis) meses e 1 (um) ano (assim formalmente individualizada), cumprindo seja substituída por tratamento especializado sempre que indicada a substituição no caso concreto, conforme conclusão a ser apontada pela Comissão Técnica a que será submetido o autor do fato para efeito de avaliação do grau de seu envolvimento com as drogas; tratamento indicado etc.
O PL 111/2010 também visa à alteração do § 5º do art. 48 da Lei de Drogas, para dispor que nas hipóteses em que admita transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95) o Ministério Público poderá propor o encaminhamento imediato do autor do fato para tratamento especializado.
3. Ligeiras reflexões
3.1 Quem poderá ser encaminhado à avaliação técnica
Da mesma maneira que a vigente Lei 11.343/2006, o PL 111/2010 não distingue expressamente as figuras do experimentador, usuário eventual e dependente.
Quer nos parecer, entretanto, que somente o dependente é que poderá ser encaminhado à Comissão Técnica visando avaliar seu grau de comprometimento com as drogas, para fins de eventual tratamento.
Por exclusão lógica, para o experimentador e o usuário eventual a pena prevista no projeto de lei é a de detenção, o que já representa alguma distinção no enfrentamento da matéria.
3.2. Recusa em submeter-se à avaliação técnica
Caso o autor do fato/acusado recuse submeter-se à dita avaliação, em caso de condenação ficará inviabilizada a possibilidade de substituição da privativa de liberdade por tratamento.
Não é possível submetê-lo à apreciação da Comissão Técnica contra sua vontade.
Portanto, havendo condenação a pena a ser aplicada será a privativa de liberdade (detenção – de 6 meses a 1 ano).
3.3. Conclusões da avaliação técnica
A avaliação técnica que se realizar poderá concluir que o autor do fato/acusado não é dependente de droga, e que, portanto, não necessita de qualquer tratamento.
Poderá ainda apontar que é dependente e poderá receber tratamento ambulatorial.
Poderá, por fim, concluir que a dependência recomenda tratamento em regime de internação; hipótese mais comum.
3.4. Proposta de transação penal
A proposta de transação penal, pelo Ministério Público, nos termos do § 5º do art. 48 (redação do PL 111/2010), somente poderá envolver tratamento especializado se por ocasião do art. 76 da Lei n. 9.099/95 já existir nos autos laudo da avaliação a que tenha se submetido o autor do fato, realizada pela Comissão Técnica, indicando a necessidade de determinado tratamento.
Não cabe ao Ministério Público, ao juiz ou à Defesa escolher e indicar sem qualquer base técnico-científica um determinado tratamento, exatamente por faltar-lhes conhecimento específico a respeito da matéria.
A terapêutica indicada para o caso só poderá decorrer de conclusão apontada pela Comissão Técnica de que cuida o art. 47 do PL 111/2010.
3.5. Sentença no processo de conhecimento
Não sendo caso de transação penal, observado o devido processo legal e encerrada a instrução processual, que envolverá a avaliação pela Comissão Técnica, caberá ao juiz proferir sentença, que poderá ser: absolutória em sentido próprio; absolutória imprópria; condenatória com aplicação de pena de detenção (com possibilidade de substituição por penas alternativas; regime aberto ou semiaberto); condenatória com substituição da pena privativa de liberdade por tratamento especializado (§ 3º do art. 28 do PL 111/2010).
Interessa-nos, por agora, deitar reflexões sobre a última hipótese: condenação com substituição da pena privativa de liberdade por tratamento especializado.
Pela proposta legislativa, ao proferir sentença condenatória o juiz deverá aplicar pena privativa de liberdade (detenção, de 6 meses a 1 ano), e, em seguida, sendo caso, ainda na sentença determinar a substituição pelo tratamento (recomendado pela Comissão Técnica), que poderá, inclusive, ter duração superior ao máximo da privativa de liberdade cominada, conforme a complexidade do caso.
Não há possibilidade de aplicação alternativa da pena privativa de liberdade ou de tratamento especializado, e isso irá acarretar sérias discussões caso o condenado resolva não se submeter ao tratamento, na hipótese do PL 111/2010 não ser alterado para se fazer mais claro a respeito das consequências que poderão decorrer do “não tratamento” determinado em sentença.
Permanecendo como está, caso venha a ser convertido em lei irá tumultuar as instâncias judiciárias, na medida em que proporcionará milhares de recursos evitáveis visando discutir as consequências do descumprimento da sentença que determinou o tratamento especializado.
3.6 Recusa ao tratamento
3.6.1. Inviabilidade da execução compulsória do tratamento
Caso se submeta à avaliação técnica, restando provada a necessidade de tratamento e aplicada pelo juiz a substituição da privativa de liberdade, poderá o condenado submeter-se, ou não, ao tratamento, a seu exclusivo critério.
Na hipótese, não é possível o tratamento contra a vontade do condenado, ainda que determinado por sentença condenatória, porquanto inviável, em termos de execução do julgado a internação compulsória para tratamento. Menos possível, ainda, será o tratamento ambulatorial compulsório ou sua “regressão” para internação.
Pensar de forma diversa é entrar em rota de colisão com a própria terapêutica indicada para os casos de drogadição, salvo se a ideia for impor uma consequência punitiva com o tratamento forçado, neste caso, de duvidosa eficácia em termos de redução de danos, e que terminaria por contrariar a política expressamente adotada na Lei de Drogas.
Da justificativa do projeto de lei retiramos o texto que segue: “A outra parte, que trata da popularmente denominada ‘internação compulsória’, resgata a possibilidade de prisão para o usuário de drogas, pois a despenalização foi uma experiência ruim, servindo unicamente para potencializar o sofrimento dos próprios viciados e seus familiares. Evidentemente, o propósito não é levar ao cárcere alguém ‘só’ por estar fumando crack ou maconha, cheirando cocaína, usando ecstasy. Tome-se cuidado com os termos técnicos”.
Internação compulsória ou prisão como resposta ao não tratamento?
Com todo respeito, a posição adotada na proposta de alteração legislativa não ficou clara na justificativa, e menos ainda no texto que se quer aprovar.
A ressalva “tome-se cuidado com os termos técnicos”, utilizada com referência à “internação compulsória” é no mínimo estranha (e não desconhecemos o contexto em que inserida), visto não ser lógico interpretar de maneira vulgar os termos técnicos. Não se pode compreender seja um termo técnico utilizado na lei interpretado de forma diversa do que realmente significa. Exatamente um termo técnico?
3.6.2. Impossibilidade de conversão do tratamento especializado em pena privativa de liberdade
Converter o tratamento especializado em pena de detenção, observada a originariamente aplicada e substituída é medida não contemplada no PL 111/2010 e não se pode invocar, por aqui, a possibilidade de conversão com fundamento no § 4º do art. 44 do Código Penal, porquanto prejudicial ao condenado.
Nem se queira argumentar que a medida de tratamento especializado (seja ela qual for) teria a mesma natureza que as denominadas “penas alternativas”. Não tem mesmo.
3.6.3. Algumas consequencias práticas na execução
Aplicada pena privativa de liberdade, poderá ocorrer a substituição por restritiva de direito, na forma do art. 44 do Código Penal, cuja execução não integra o rol das preocupações que este trabalho pretende expor.
Quanto ao regime de cumprimento da privativa de liberdade, poderá ser o aberto ou o semiaberto, a depender da conjugação das regras aplicáveis, observadas as particularidades do condenado.
Como se sabe, mas não é demais lembrar, não é possível a fixação de regime fechado para o cumprimento de pena de detenção.
Pois bem. Determinada na sentença a substituição da pena privativa de liberdade por tratamento especializado, ainda que o condenado queira se submeter ao tratamento, outra dificuldade exsurge: a ausência de local adequado para tratamento ambulatorial na grande maioria dos municípios e, especialmente, a ausência de clínica especializada para internação, por força de decisão judicial.
Diz a respeito o projeto de lei: o juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do condenado, gratuitamente, estabelecimento de saúde para tratamento especializado (§ 3º do art. 47).
Embora com outro enfoque, tal regra é a mesma que hoje se encontra no § 7º do art. 28 da Lei 11.343/2006, e que não tem sido aplicada exatamente por não existirem em número suficiente clínicas públicas especializadas para tratamento.
Muito embora o acesso universal à saúde seja garantia constitucional expressa no art. 196 da Constituição Federal e a dependência de droga seja reconhecida como doença pela Organização Mundial de Saúde, também aqui o Estado brasileiro tem deixado ao desamparo a parcela da sociedade que de tal atendimento especializado necessita.
Como, então, executar a sentença penal condenatória que aplicar medida de tratamento especializado?
4. Conclusão
É preciso ajustar o PL 111/2010 em busca de uma melhor eficiência do sistema punitivo que se pretende repristinar, sob pena de continuar tudo exatamente como hoje se encontra na realidade prática.
Não basta; não é suficiente, entretanto, para o responsável e eficiente enfrentamento do grave problema de que ora se cuida, a só correção dos rumos legislativos.
É preciso, dentre outras providências urgentes, uma rede de estrutura pública adequada, à disposição da sociedade.
Não basta “estar na lei”.
Por fim, é preciso destacar que não há política criminal que possa “dar certo” sem uma adequada postura de todos os envolvidos no enfrentamento da pandemia em que se tornou a dependência de drogas no Brasil.
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).
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