Resumo: O presente trabalho tem por objetivo o estudo do direito civil-constitucional à luz da obra “A Hermenêutica do Sujeito” de Michel Foucault. Para isso fará análise do direito civil-constitucional, dos aspectos considerados relevantes da obra de Michel Foucault, bem como apresentará uma possível interpretação do direito civil-constitucional à luz da teoria apresentada em “A Hermenêutica do Sujeito”.
Palavras-chave: direito civil-constitucional, Foucault, Hermenêutica do Sujeito, cuidado de si.
Sumário: 1. Introdução; 2. O dirieto civil-constitucional; 3. A hermenêutica do sujeito em Michel Foucault; 4. O dirieto civil-constitucional e o cuidado de si; 5. Considerações finais.
1. INTRODUÇÃO
O direito civil constitucional é uma vertente do direito que pretende interpretar as questões de direito civil á luz dos princípios constitucionais. Quer efetivar o programa constitucional de proteção e promoção da dignidade da pessoa humana, também, nas relações privadas.
Para se implementar esse programa constitucional deve-se compatibilizar a dignidade da pessoa humana com a liberdade. Como se verá, muitas vezes a liberdade é suprimida sob o fundamento da dignidade da pessoa humana ou da função social do contrato, da propriedade, da empresa, entre outros. Acontece que a efetivação desses princípios só é possível com a garantia da liberdade.
Michel Foucault em “A Hermenêutica do Sujeito” estuda as práticas do cuidado de si no período socrático-platônico; nos dois primeiros séculos de nossa era, ao qual denomina “o período da idade do ouro da cultura de si, da cultura de si mesmo, do cuidado de si mesmo” (FOUCAULT, 2006, P. 41); e na transição dos séculos IV e V. Evidência que com essas práticas as pessoas podiam escolher o curso de suas vidas.
Esse discurso da efetivação do programa constitucional da promoção da dignidade da pessoa humana na esfera privada vem tolhendo, com já disse, a liberdade, de certa forma, nos sujeitando.
Foucault nos propõe a repensar esses discursos de modo a sermos menos sujeitados. A tomarmos o curso de nossas vidas, visualizando as redes de poder que nos permeiam, ou seja, a nos submeter de forma consciente às sujeições, já que para ele não haverá local no qual não exista poder.
2. O DIRIETO CIVIL-CONSTITUCIONAL
Com o processo de codificação do direito, o Código Civil passou a ser o centro de regulação das relações patrimoniais privadas e a Constituição o centro das relações públicas e das garantias do cidadão ante o Estado. Nesse momento histórico, liberalismo, repugnava-se o excesso de poder do estado sobre os privados. Isso porque, em momento histórico anterior, absolutismo, havia abuso no uso do poder estatal. Então, para se garantir a liberdade individual era preciso diminuir o poder estatal.
O Código Civil era pensado como um manual da vida privada que regularia toda ela, desde o nascimento até a morte, de modo completo. Era um código que poderia ser entendido por qualquer pessoa, ou seja, um verdadeiro manual. Como se viu, queria-se que a separação entre o direito privado e o direito público fosse estanque, não havendo intervenção de uma esfera na outra.
No Brasil, o Código Civil de 1916 foi expressão dessa idéia liberal. O Código deveria regular as relações patrimoniais privadas de modo completo. Havia grande espaço para a autonomia da vontade, ou seja, as pessoas teriam liberdade para estabelecer regras para si mesmas, conforme as suas vontades, que se tornariam obrigatórias, como se lei fossem.
“O Código Civil exercia o papel de corpo normativo único das relações patrimoniais privadas e atendia plenamente à preocupação – que se tornou um verdadeiro mito – com a completude, como forma de oferecer segurança à sociedade burguesa quanto às chamadas regras do jogo. O juiz tinha de julgar todos os casos que lhe eram submetidos e, em seu julgamento, devia se basear na Lei, a qual tratava de todas as possíveis situações em que o sujeito de direito se entrava em conflitos. O esquema se completava com a atribuição de grande espaço para a autonomia da vontade, de modo que as partes contratantes pudessem complementar, nos casos concretos, a tarefa do legislador, que se limitava a reprimir ilícitos. Transfere-se assim aos contratantes os riscos e o sucesso da livre iniciativa, destinada à acumulação de capital.” (TEPEDINO, 2003, p. 116)
Com a evolução da sociedade, pouco tempo depois da promulgação do Código Civil de 1916, viu-se que era necessária a edição de novas leis para regularem novas situações, não previstas pelo Código. Aos poucos, portanto, a idéia de completude foi se desfazendo.
O Século XX foi marcado por grandes crises mundiais. Aos poucos se fez necessária a intervenção do Estado nas relações patrimoniais privadas, o que gerou o denominado dirigismo contratual. Portanto, do Estado liberal, passa-se, aos poucos ao Estado social, no qual há uma maior intervenção do Estado nas relações patrimoniais privadas.
O que se tem, portanto, é que com as guerras mundiais, o mundo se vê sob um novo paradigma, o Estado Social. O Estado, nesse momento, deve garantir aos indivíduos não só a igualdade perante a lei, mas sim a igualdade substancial. Nos Contratos passa-se a permitir uma interferência maior do Estado, objetivando a justiça contratual. Isso ocorre porque no Estado Liberal, com a primazia da liberdade contratual, o contrato tinha se tornado um instrumento de exploração e opressão da parte que era economicamente mais fraca, o que, de certo modo, inviabilizaria até mesmo o regime de mercado.
“O direito civil – assim como os outros ramos do chamado direito privado, o direito comercial e o direito do trabalho – assiste a uma profunda intervenção por parte do Estado. Procurou-se com êxito evitar que a exasperação da ideologia individualista continuasse a acirrar as desigualdades, com a formação de novos bolsões de miseráveis – cenário assaz distante do que imaginaria a ideologia liberal no século anterior, ou seja, a riqueza das nações a partir da riqueza da burguesia-, tornando inviável até mesmo o regime de mercado, essencial ao capitalismo. Estamos falando, como todos sabem, da consolidação do Estado Social.” (TEPEDINO, 2003, p. 117)
Um dos objetivos da crescente intervenção estatal que ocorreu nesta época era o de garantir o efetivo exercício das políticas públicas. Assim, surgem leis de modo a efetivar esses objetivos estabelecendo limites às relações privadas. O que se quer é garantir a pessoa humana a dignidade, estabelecendo leis que protejam o consumidor, o locatário, a criança, o idoso, entre outros. Este processo acaba por funcionalizar os institutos de direito civil que eram, quase que somente, patrimoniais.
Tepedino (2003) informa que esse processo recebeu diversas nomenclaturas, tais como, socialização do direito civil, despatrimonialização do direito civil, repersonalização do direito civil, constitucionalização do direito civil.
Fiúza (2009) explicita que o processo de constitucionalização do direito civil brasileiro pode ser visto em três fases. A primeira trata-se da inserção no texto constitucional de matérias que eram de direito privado. Na Constituição de 1988, por exemplo, há a inserção de normas sobre a família, sobre a economia, sobre a propriedade, entre outros.
O outro momento, que para esse autor, nunca cessará enquanto perdurar o Estado Democrático de Direito, é a interpretação das normas de direito civil em conformidade com os princípios constitucionais.
“[…] Por constitucionalização do Direito Civil deve-se entender, hoje, que as normas de Direito Civil têm que ser lidas à luz dos princípios e valores consagrados na Constituição, a fim de se implementar o programa constitucional na esfera privada. […] Falar em constitucionalização do Direito Civil não significa retirar do Código Civil a importância que merece como centro do sistema, papel este que continua a exercer. […] No entanto, apesar disso, se a Constituição não é o centro do sistema juscivilístico, é, sem sombra de dúvida, o centro do ordenamento jurídico, como um todo. É, portanto, a partir dela, da Constituição, que se devem ler todas as normas infraconstitucionais. Isso é o óbvio mais fundamental no Estado Democrático”. (FIUZA, 2009, p.325, 326)
O último momento, que pode ser vislumbrado até o momento, é o da efetivação do programa constitucional. Fiuza (2009) explicita que a Constituição de 1988 estabelece como um de seus fundamentos o princípio da dignidade da pessoa humana, ao fazer isso estabelece que o Estado e os privados deve agir de modo a efetivá-lo.
“[…]Estado deve elaborar políticas públicas adequadas, não protecionistas, que não imbecilizem o indivíduo, nem lhe dêem esmola. Deve disponibilizar saúde e educação de boa qualidade; deve financiar a produção e o consumo; deve engendrar uma política de pleno emprego; deve elaborar uma legislação trabalhista adequada; deve garantir infra-estrutura; deve também garantir o acesso de todos à Justiça; deve criar e estimular meios alternativos de solução de controvérsias; dentre milhares de outras ações que deve praticar.
Os indivíduos, pessoas naturais e jurídicas, também têm sua parcela, não menos importante, na construção de uma sociedade justa. São atitudes condizentes com o programa constitucional pagar bem aos empregados (repartir o pão); agir com correção e não lesar a ninguém, como já dizia Ulpiano, há 1.800 anos; exercer o domínio e o crédito, tendo em vista a função social; dentre outras.” (FIUZA, 2009, p. 329 e 330 )
Portanto, o cidadão deve gozar de seus direitos conforme a sua função social, agir de modo leal, ou seja, conforme a boa-fé objetiva. O Estado deve manter políticas públicas para o bem estar dos cidadãos, contudo, essas políticas deve se dar de forma a respeitar as liberdades individuais, ou seja, compatibilizando o interesse coletivo com as liberdades individuais conquistadas.
3. A HERMENÊUTICA DO SUJEITO EM MICHEL FOUCAULT
A obra “A Hermenêutica do Sujeito“ de Michel Foucault (2006) retrata o curso ministrado no Collège de France nos anos de 1981 e 1982. Nesta obra o autor, que já estudava as relações entre o sujeito e a verdade, propõe um novo enfoque. Ele pretende estudar essa relação a partir da noção grega de Epiméleia Heautoû – cuidado de si.
Até a mencionada obra, de modo geral, Foucault havia estudado as relações entre sujeito e verdade através das relações de poder. Este seria um discurso que enuncia uma verdade, que é aceita, sujeitando os demais discursos, não aceitos, marginalizados. Há a análise de instituições de poder que enunciam a verdade, tais como a escola, a prisão, a família, o direito. O sujeito nessas relações aparece como sujeitado, como objeto dessas instituições de poder. Na hermenêutica do sujeito, ao resgatar a idéia de cuidado de si, Foucault demonstra que na busca da verdade o sujeito não é objeto e sim o agente que forma essa verdade. (Informação verbal)[1]
Foucault, nessa obra, afirma que, em algum momento histórico, a idéia de Epiméleia Heautoû foi, de certa forma, rechaçada, dando espaço ao princípio délfico do Gnôthi Seautón – conhece-te a ti mesmo. O autor demonstra que na cultura grega o princípio do conhece-te a ti mesmo estava subordinado ao do cuidado de si. O Gnôthi Seautón é uma conseqüência quando se ocupa contigo mesmo, quando se cuida de si mesmo
O cuidado de si não surge como um preceito filosófico; bem antes de Sócrates e Platão já era proclamado, estava enraizada na cultura grega. Foucault (2006) diz que o seu aparecimento em textos se deu por Plutarco ao citar um fala de Alexândrides, um espartano, que dizia que as suas terras eram cultivadas por hilotas para ele poder cuidar de si mesmo. Não era um preceito filosófico, indicava um privilégio político, econômico e social. Sócrates o retoma a partir desta tradição.
Para Foucault (2006) a Epiméleia Heautoû é uma ação para consigo, para com os outros, para com o mundo, é o ato de voltar o olhar, do exterior, dos outros, do mundo, para si mesmo, requerer um conjunto de atitudes para com sigo mesmo, para nos assumir, modificar, purificar, transformar.
“- Primeiramente, o tema de uma atitude geral, um certo modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro. A epiméleia heautoû é uma atitude – para consigo, para com os outros, para com o mundo.
– Em segundo lugar, a epiméleia heautoû é também uma certa forma de atenção, de olhar. Cuidar de si mesmo implica que se converta o olhar, que se conduza do exterior para… eu ia dizer “o interior”; deixemos de lado esta palavra (que, com sabemos, coloca muitos problemas) e digamos simplesmente que é preciso converter o olhar, do exterior, dos outros, do mundo, etc. para “si mesmo”. O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atendo ao que se pensa e ao que se passa no pensamento. Há um parentesco da palavra epiméleia com meléte, que quer dizer, ao mesmo tempo, exercício e meditação, assunto que também trataremos de elucidar.
– Em terceiro lugar, a noção de epiméleia não designa simplesmente esta atitude geral ou esta forma de atenção voltada para si. Também designa sempre algumas ações, ações que são exercitadas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos. Daí, uma série de práticas que são, na sua maioria, exercícios, cujo destino (na história da cultura, da filosofia, da moral, da espiritualidade ocidentais) será bem longo. São, por exemplo, as técnicas de meditação; as de memorização do passado; as de exame de consciência; as de verificação das representações na media em que elas se apresentam ao espírito, etc.” (FOUCAULT, 2006, p. 14 e 15)
No estudo do cuidado de si, Foucault (2006), pretende abordar o período socrático-platônico; os dois primeiros séculos de nossa era, ao qual denomina “o período da idade do ouro da cultura de si, da cultura de si mesmo, do cuidado de si mesmo” (FOUCAULT, 2006, P. 41); e a transição dos séculos IV e V “passagem, genericamente da ascese filosófica pagã para o ascetismo cristão” (FOUCAULT, 2006, P. 41).
No período Socrático-Platônico a sua abordagem centra no diálogo de Sócrates com Alcebíades.
Alcebíades tinha perdido pai e mãe, mas tinha muita fortuna e bons relacionamentos. Havia vários tutores lhe querendo, mas como era muito belo e arrogante dispensou todos. Já estava mais velho, então só havia Sócrates o cercando. Sócrates decide falar com ele porque vê que Alcebíades quer governar o povo, quer transformar seu status privilegiado em ação política.
Sócrates diz a Alcebíades que na política enfrentará os inimigos internos e os externos. Nesses últimos, principalmente os espartanos (muito mais ricos) e os persas (com muita mais educação). Portanto, Alcebíades deve refletir sobre si mesmo, deve conhecer a si mesmo. Nesse momento o Gnôthi Seautón aparece como um conselho de prudência (pensar sobre si e comparar-se com os seus rivais).
Sócrates faz uma série de perguntas a Alcebíades e ele não consegue responder. Se sente ignorante. Sócrates diz que é melhor perceber isso agora, pois, há tempo de cuidar de si, pois o momento de cuidar de si é na juventude. A epiméleia heautoû, aqui, não está ligada a um poder estatutário, mas sim a uma condição para um a ação política.
A noção de cuidado de si está ligada também a insuficiente educação de Alcebíades. Ele foi muito belo e muitos homens o enamoraram mais nenhum se preocupou propriamente com ele, deixando-o fazer o que quisesse.
No Período Helenístico, Epicuro vai dizer que se deve cuidar de si por toda a vida. Para Epicuro o cuidado de si e o ato de filosofar são congruentes, portanto, deve-se filosofar por toda a vida. Em Alcebíades, o cuidado de si era uma forma de prepará-lo para cuidar da cidade, deveria, portanto, cuidar de si para que no futuro possa cuidar dos outros. No período Helenístico o cuidado de si não terá esse objetivo. Cuida-se de si para si próprio, ou seja, precisa-se ser objeto de si mesmo por toda a vida.
Em Platão para ter cuidado com si é preciso conhecer-se. Esse eu que é preciso conhecer é a alma. Para explicar como se deve conhecer a alma Platão utiliza-se da metáfora do olho. O olho pode se ver quando é refletido por um espelho ou quando um olho de alguém olhar no olho de outro, já que ambos são semelhantes. Desta forma a alma só poderá se ver se dirigir-se a algo da sua mesma natureza, o que para Platão é o Divino. Se, caso vermos a nossa alma na alma do nosso semelhante, essa não será a visão mais limpa. A melhor visão se dá quando vemos nossa alma no divino, que é mais puro. Portanto, para Platão para conhecer-se é preciso conhecer o divino. No Período da idade do ouro da cultura de si esse retorno a si mesmo não passa pelo divino, é preciso retornar somente sobre si, de modo que possa ter controle sobre si mesmo, para que tenha prazer de estar consigo mesmo.
Em Alcebíades, com já dito antes, é preciso cuidar de si para uma formação, para poder governar a cidade, já que houve uma falha na educação desse jovem. No período do ouro da cultura de si, o cuidado de si deve se dar por toda a vida, e não somente quando se é jovem, não há mais um papel pedagógico. Nesse momento histórico o cuidado de si assume a função de fazer com que se questionem os seus hábitos, os ensinamentos recebidos, que seja crítico; uma função de constante alerta, já que a alma deve estar sempre preparada para se defender, o exercício de fortalecimento desta deve ser constante; o cuidado de si passa, também, a ter uma função terapêutica, de recuperação da alma, de cuidado, no sentido médico, da alma.
O cuidado de si, tanto no período platônico-socrático quanto no período do ouro da cultura de si, não era algo que se alcançava sozinho, dependia de um mestre. Entretanto, no período platônico-socrático essa relação era amorosa, o que não era, ao menos não necessariamente, no período do ouro da cultura de si.
No período do ouro da cultura de si, o cuidado de si deveria ser constante, surgem diversas técnicas para fortalecer a alma, para se preparar para os momentos difíceis. Surge a idéia de retiro (anacoresis), prática que enuncia um desligamento dos sentidos, uma privação dentro de você mesmo para achar a alma que se encontra reduzida.
No cristianismo, com a inserção da idéia de pecado, as práticas do cuidado de si serão as que têm o intuito de privar o sujeito dos seus maus internos. Ou seja, no período do ouro da cultura do cuidado de si essas práticas serviam para fortalecer o sujeito ajudando-o a enfrentar os problemas interiores e exteriores, mas sem privá-lo dessa vivência; já no cristianismo há a privação das vivências prejudiciais exteriores e interiores.
Ao demonstrar essa evolução do conceito do cuidado de si, Foucault contrapõe dois sujeitos, ambos trabalhados por ele, o sujeito-sujeitado e aquele que faz parte da formação da verdade. O sujeito do cuidado de si é aquele que domina as técnicas para ser menos sujeitado ou para perceber as verdades que o circundam.
“Essa oposição entre as duas técnicas deixa lugar a uma primeira conclusão: o cuidado de si mesmo se opõe a qualquer tipo de sujeição, sendo esse cuidado “[…] uma análise daquilo que aceitamos, rejeitamos, daquilo que queremos mudar em nós mesmos e em nossa atualidade”. Trata-se de um sujeito de ação reta ligada a uma verdade que não é necessariamente conhecimento verdadeiro. O sujeito de “cuidado de si mesmo” deve tornar-se sujeito de verdade. É a partir dessa noção de sujeito, como alguém que exerce uma técnica de cuidado de si, que se opõe a qualquer tipo de sujeição […]”. (BUB, 2006, p. 154)
Portanto, o sujeito do cuidado de si é aquele que reflete sobre, que é agente da construção da verdade, que vê as sujeições a que está submetido, questionado-ás, ou seja, sendo menos sujeitado.
4. O DIRIETO CIVIL-CONSTITUCIONAL E O CUIDADO DE SI
O Direito civil-constitucional como se viu foi uma evolução positiva na interpretação do direito civil. Visa dar mais efetividade aos valores constitucionais nas relações privadas. Acontece que, por outro lado, pode ser uma hermenêutica perigosa que priva o sujeito de sua liberdade, arduamente conquistada e necessária para a concretização do Estado Democrático de Direito.
O discurso político que justifica ações positivas, que interferem diretamente na liberdade do cidadão em sua esfera privada na efetivação dos mandamentos constitucionais, entre ele, o mais aclamado, a dignidade da pessoa humana, deve ser visto com ressalva. Isso porque, na maioria das vezes em que o Estado intervém na esfera privada com ações afirmativas, na verdade é porque não efetivou determinada garantia constitucional. Veja, por exemplo, os contratos no código de defesa do consumidor, são contratos dirigidos, já que o consumidor, teoricamente, é a parte mais fraca, não tendo condições de interpretá-lo e saber se poderá lhe causar algum prejuízo. Ou seja, o Estado não efetivou o direito da educação de forma satisfatória, devendo, portanto, interferir com ação positiva. Não se quer defender o caráter negativo das ações positivas, mas elas devem vir acompanhadas de outras ações que garantam a emancipação do sujeito, o que nem sempre ocorre.
Inúmeros casos podem ser citados em que o Estado, utilizando-se de uma hermenêutica civil-constitucional, interfere de forma temerosa na autonomia privada do sujeito. Foucault demonstra que esses discursos, ditos verdadeiros, que sujeitam o sujeito, tolhendo a sua liberdade, podem ser superados com as práticas do cuidado de si. O sujeito pode se reinventar a partir dessas práticas se tornando mais livre[2]. Não se deve tomar como verdadeiros esses discursos limitadores da autonomia privada.
César Fiúza (2009), em uma atitude, de certa forma parresiásta[3], publicou recentemente um artigo[4] que enuncia uma séria de práticas estatais que vem tolhendo a liberdade do cidadão em nome dos princípios da dignidade da pessoa humana e da função social, ou seja, da hermenêutica-civil constitucional.
Uma das atitudes estatais que proclama efetivar o programa constitucional na esfera privada que, da forma que está sendo feita, tolhe a liberdade individual é a denomina lei seca. Esta lei visa ter tolerância zero para a ingestão de álcool por motoristas, ou seja, qualquer quantidade da substância detectada no motorista é motivo para apreensão do carro e prisão. O que parece é que aquele que ingere uma pequena quantidade de álcool é tratado com criminoso, sendo tolhido de sua liberdade. Acontece que uma lei mais dura, que limita a liberdade privada de forma mais drástica que a anterior, não terá o condão de reduzir os acidentes de trânsito graves causados por ingestão de álcool. E isso já vem sendo demonstrado em pesquisas. O que se deve fazer são campanhas educativas de forma efetiva, demonstrando os riscos da mistura de ingestão de álcool e direção, tal qual se fez com a campanha antitabagista, que demonstrou resultados positivos.
Outro caso que pode ser citado são as ações do juizado da infância e da juventude que estabeleceram toque de recolher noturno para adolescente em diversas cidades brasileiras. Em nome da proteção desses indivíduos eles são tolhidos de suas liberdades, não podendo mais transitar á noite, a partir de determinada hora, a não ser na presença do responsável. A sociedade e muitos pais apóiam essa atitude estatal, que mais uma vez, tolhe a liberdade em nome da do programa constitucional para a efetivação da dignidade da pessoa humana.
O que se quer demonstrar é que o indivíduo não deve se sujeitar á essas práticas sem questionar, sem analisar se realmente quer pagar o preço de aceitar essas práticas. Na Sociedade grego-romana, como Foucault, demonstrou, as práticas do cuidado de si demonstravam uma maneira do sujeito conduzir a sua vida por si mesmo e como escolher essa maneira de conduzir por si mesmo. É isso que Foucault quer nos propor, que possamos enxergar as formas de sujeição e criar meios de sermos menos sujeitados, já que em sua teoria o poder sempre existe e sempre existirá. A liberdade não que dizer liberação, nunca haverá aquele espaço livre de poder, no qual não haja dominação. A liberdade será aquele movimento de escolher e ver a qual sujeição estaremos submetidos, ou seja, a poder escolher o destino de vida.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito civil-constitucional no direito brasileiro passou por três fases conforme Fiúza (2009). A primeira se refere ao momento de detectar quais eram as matérias de direito civil inseridas no texto constitucional. A segunda, e que ainda perdura, a de interpretar os institutos de direito privado á luz dos princípios constitucionais, dentre os mais aclamados, a dignidade da pessoa humana e da função social. A terceira se refere à efetivação do programa civil-constitucional de promoção da dignidade da pessoa humana, que conta com a participação do Estado, com programas de políticas públicas, e com os cidadãos, com a efetivação da boa-fé objetiva e o respeito da dignidade da pessoa humana ao se realizarem os seus negócios.
A hermenêutica civil-constitucional pode dar margem a interpretações que tolhem a liberdade privada, tão necessária para efetivar o princípio, como se viu. Só pode haver dignidade onde há liberdade.
Michel Foucault em suas obras tratou das relações entre o sujeito e a verdade. Nessa relação demonstra como o poder funciona e sujeita as pessoas. Na obra Hermenêutica do sujeito estuda a evolução das técnicas do cuidado de si no período socrático-platônico; nos dois primeiros séculos de nossa era, ao qual denomina “o período da idade do ouro da cultura de si, da cultura de si mesmo, do cuidado de si mesmo” (FOUCAULT, 2006, P. 41); e na transição dos séculos IV e V. Essas técnicas demonstram formas do sujeito conduzir a sua vida por si mesmo.
As políticas afirmativas como tem sido feitas, sem uma campanha de emancipação do sujeito, vem tolhendo a liberdade de forma arbitrária, podem ser consideradas uma forma de sujeição. Foucault demonstra que com as práticas de si podemos ser mais livres escolhendo a maneira de conduzir as nossas vidas.
Essa hermenêutica civil-constitucional, como tem sido feita, não deve ser aceita de forma passiva. Deve-se visualizar a sujeição que ela nos impõe, nos tornando, dessa maneira, quem sabe, menos sujeitados.
Doutoranda em Direito Privado pela PUC Minas. Professora de Direito Civil e Empresarial da FACHI-FUNCESI. Coordenadora de TCC da FACHI-FUNCESI. Membro do Colegiado da FACHI-FUNCESI. Membro do NDE da FACHI-FUNCESI. Professora de Direito Civil da Nova Faculdade.
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