O erro da tese firmada no REsp. 1.120.295/SP sobre prescrição de créditos tributários

Resumo: A problemática do presente estudo aborda os dispositivos legais sobre prescrição tributária aplicáveis nas execuções fiscais de créditos tributários. Adota-se como objeto principal da análise crítica o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial Representativo de Controvérsia de nº. 1.120.295/SP. A tese afirma que um dispositivo de Lei Ordinária, o art. 219, § 1º do Código de Processo Civil, aplica-se para contagem da interrupção do lapso prescricional. Entretanto, tal posicionamento contraria a orientação prevista no art. 146, III, b da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a qual reserva a Lei Complementar à regulamentação da prescrição de créditos tributários.

Palavras-chave: Prescrição; Crédito Tributário; Código de Processo Civil; Inconstitucionalidade.

Abstract: The problem addressed by this study is the legal devices that can be applied on tax credits limitation in tax enforcement. The main object reviews the understanding signed by the Superior Tribunal of Justice in the judgment of the Representative Special Appeal No. Issue. 1120295/SP. The thesis states that an Ordinary Law device, art. 219, § 1 of the Code of Civil Procedure shall be applied for counting the limitation lapse. However, such position contradicts to the prescription employed in the art. 146, III, b of the Constitution of the Federative Republic of Brazil in 1988, which reserves tax credits limitations to the Complementary Law.

Key-words: Tax limitation; Tax Credit; Code of Civil Procedure; Unconstitutionality

Sumário: Introdução. 1. Prescrição tribuária. 1.1. Prescrição. 1.2. Crédito tributário. 1.3. Prescrição tributária. 2. Inconstitucionalidade do art. 219, § 1º do CPC em execuções fiscais de créditos tributários. 2.1. Execução fiscal. 2.2. REsp 1.120.295/SP. 2.3. Conflito em face à CRFB/1988. Considerações finais. Referências das fontes citadas.

Introdução

O tema abordado no artigo é fruto das atividades profissionais do autor que, no patrocínio de causas tributárias em favor de contribuintes, viu-se de frente com a matéria que hodiernamente é aplicada nos tribunais de todo o país.

A problematização adota como ponto de partida a tese firmada no julgamento do Recurso Especial nº. 1.120.295/SP sobre prescrição tributária. O entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça é de que o marco processual interruptivo da prescrição dos créditos tributários deve retroagir à data da propositura da execução fiscal através da aplicação analógica do art. 219, § 1º do CPC.

Desse ponto de partida, formula-se a seguinte pergunta: A posição do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria é compatível com o sistema tributário brasileiro?

 A hipótese inicialmente levantada é a de que a aplicação do art. 219, § 1º do Código de Processo Civil ocorre sem uma análise completa do ordenamento jurídico no que se refere ao sistema tributário, o que acarreta num conflito jurídico entre o referido dispositivo e o art. 174 do Código Tributário Nacional. A solução do problema se daria através do critério da reserva legal previsto no art. 146, III, alínea b, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Assim, o objetivo do artigo é demonstrar, em linhas gerais e específicas, que a aplicação do art. 219, § 1º do Código de Processo Civil para solucionar questões jurídicas relativas à prescrição de créditos tributários é inconstitucional.

O corpo do artigo é dividido em duas partes: a primeira se destina a abordagem de alguns conceitos sobre a prescrição tributária e sua regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro; a segunda aborda especialmente a problemática levantada, analisando o conflito gerado pela interpretação fixada no julgamento do REsp nº. 1.120.295/SP sobre prescrição dos créditos tributários, propondo um critério de solução sob a ótica do art. 146, III, b da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

1 Prescrição tributária

O efeito do tempo está presente em todas as coisas, inclusive na vida do ser humano e faz com que tudo o que existe venha deixar de existir em momento. Não poderia ser diferente no âmbito do Direito, pois o tempo exerce seus efeitos inclusive nas relações jurídicas.[1]

Dessa forma, nos ordenamentos jurídicos são criados institutos para viabilizar os efeitos do tempo nas relações jurídicas. Isto ocorre porque ao passar de determinado lapso temporal, a certeza e a segurança jurídica devem prevalecer para preservar a ordem jurídica e social. Dentre os mencionados institutos, pode-se citar a prescrição.[2]

No ordenamento jurídico brasileiro, o instituto da prescrição recebe tratamento diferenciado a depender de cada matéria, ao passo que se faz necessário compreender alguns de seus conceitos gerais para adentrar em suas especificidades no âmbito tributário posteriormente.

1.1 Prescrição

Ao iniciar o convívio em sociedade, a humanidade criou um sistema regras que busca “uma composição harmônica do bem de cada um, com o bem de todos” para preservar a ordem com a previsão de direitos e obrigações para cada indivíduo, bem como o modo de realização da justiça.[3],[4]

O prazo para aquele indivíduo que pretende realizar a justiça, na maioria das vezes, não é indefinido, de modo que os ordenamentos jurídicos fixam prazos limites através de institutos que são divididos em “duas categorias fundamentais: a prescrição (perda do exercício do direito) e a decadência (perda do direito)”.[5],[6]

O instituto da prescrição – foco principal do estudo – visa concretizar a segurança nas relações jurídicas, através da estipulação dum prazo limite para que a justiça seja realizada. A segurança jurídica é analisada por Caio Mário da Silva Pereira como “um interesse de ordem pública no afastamento das incertezas em torno da existência e eficácia dos direitos, e este interesse justifica o instituto da prescrição em sentido genérico”.[7]

É possível afirmar que o instituto da prescrição encontra fundamento num dos objetivos principais do ordenamento jurídico: a “garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito”.[8],[9]

Por sua vez, a doutrina classifica a prescrição através de seus efeitos, citando-se como exemplo: a prescrição aquisitiva de direitos e a prescrição extintiva de pretensões jurídicas.[10]

O ordenamento jurídico brasileiro adotou a distinção doutrinária exemplificada acima, sendo que a prescrição extintiva foi disciplinada, no âmbito do Direito Civil, na Parte Geral do Código Civil de 2002, enquanto a prescrição aquisitiva foi regulamentada na Parte Especial da mencionada legislação.[11]

A prescrição extintiva, como o seu próprio nome sugere, extingue o direito de obter a realização da justiça, o que se traduz em termos técnicos como a extinção da possibilidade do reconhecimento dum direito subjetivo em juízo, operando-se da seguinte forma: há um momento que se inicia a contagem, e um marco interruptivo, que finaliza ou reinicia o fluxo do tempo para se operar a “perda da pretensão em virtude da inércia do seu titular no prazo fixado em lei”.[12],[13]

1.2 Crédito Tributário

Antes de adentrar na análise da prescrição tributária, faz-se necessário entender o objeto que sofre seus efeitos: o crédito tributário.

No sistema tributário brasileiro, a obrigação tributária é um vínculo existente entre o contribuinte e o ente tributante, decorrente de um fato previsto em lei, que se concluirá com a apuração do crédito tributário, que ocorre através da figura do lançamento tributário, nos termos do art. 142 do Código Tributário Nacional.[14]

O fato é que no ordenamento jurídico pátrio existem três modalidades de lançamento, cada qual com sua peculiaridade, sendo: o lançamento por declaração, previsto no art. 147; o lançamento por homologação, previsto no art. 150; e o lançamento de ofício, previsto no art. 149, todos dispositivos do Código Tributário Nacional.

O momento definitivo da constituição do crédito tributário ocorre de forma diferenciada em cada uma das modalidades de lançamento tributário supracitadas, traduzida na especificidade do marco inicial para contagem do tempo de prescrição.

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp nº. 1.120.295/SP, por exemplo, fixou que o termo inicial do lançamento tributário por homologação se dará no momento da entrega da declaração por parte do contribuinte ou pelo vencimento da obrigação, o que ocorrer primeiro.

Por sua vez, no caso do lançamento tributário de ofício, o termo inicial se dá no momento do vencimento da obrigação, da mesma forma que ocorre com o lançamento tributário por declaração.

Portanto, pode-se conceituar que: o termo inicial da prescrição nas várias modalidades de lançamento tributário pode ser descoberto através do marco da constituição definitiva do crédito tributário, ou seja, o momento no qual o ente tributante pode proceder com a inscrição do crédito tributário na dívida ativa e promover a execução forçada da obrigação através de execução fiscal.

1.3. Prescrição Tributária

No Direito Tributário brasileiro, diferentemente do Direito Civil, a prescrição não só extingue a pretensão do ente tributante em satisfazer o seu crédito tributário, mas também o próprio crédito tributário, por previsão do art. 156, V, do Código Tributário Nacional.

A extinção se opera quando a Fazenda Pública não efetua a cobrança judicial no prazo fixado pela lei depois do crédito tributário devidamente apurado.[15]

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no seu art. 146, III, alínea “b”, prevê que a espécie normativa válida para tratar sobre a matéria de prescrição tributária é exclusivamente a Lei Complementar.

O dispositivo que de acordo com o texto constitucional tratou da matéria foi o art. 174 do Código Tributário Nacional, o qual estipula que o termo inicial da contagem do prazo de cinco anos para ocorrência da prescrição se dá na data da constituição definitiva do crédito tributário.

Por sua vez, o art. 174 do Código Tributário Nacional nos seus incisos do parágrafo único prevê as hipóteses de interrupção do transcurso da contagem prescricional, a saber: citação pessoal feita ao devedor[16]; pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal[17]; pelo protesto judicial; por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor; e por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo devedor.

Portanto, numa execução fiscal, lançando-se mão do termo inicial e do marco interruptivo da contagem prescricional, pode-se calcular se há ou não o transcurso do período de cinco anos previsto no caput do art. 174 do Código Tributário Nacional e a consequente extinção do crédito tributário.

Apesar de não ser relevante para a presente discussão que se fixa no REsp nº. 1.120.295/SP, a prescrição intercorrente também é uma modalidade de prescrição tributária. Essa espécie de prescrição está relacionada com a inércia do ente tributante em dar seguimento aos atos processuais nas execuções fiscais e está prevista no art. 40, §§ 3º e 4º, da Lei nº. 6.830/1980.

2. Inconstitucionalidade do art. 219, § 1º do cpc em execuções fiscais de créditos tributários

O ente tributante exige a satisfação de seus créditos através da via judicial utilizando o procedimento previsto na Lei nº. 6.830/1980, também conhecida como a Lei de Execução Fiscal – LEF.

Embora a Lei de Execução Fiscal no seu art. 1º permita a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, a reserva legal estabelecida pelo art. 146, III, b, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 deve ser observada no que se refere aos processos que buscam a satisfação de créditos tributários.

Isso significa que as regras relacionadas à execução do crédito tributário contidas no Código Tributário Nacional devem ser aplicadas em prejuízo daquelas constantes na Lei nº. 6.830/1980 e principalmente do Código de Processo Civil.

2.1 Execução Fiscal

A Lei nº. 6.830/1980 dispõe em seu art. 1º que a cobrança dos créditos inscritos em dívida ativa é regida por seus dispositivos e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil, sendo utilizada para exigir a satisfação de dívidas tributárias e não tributárias.

Dessa forma, a Lei de Execução Fiscal permite que subsidiariamente, ou seja, naquilo em que não há regulamentação específica por seus dispositivos, as disposições Código de Processo Civil sejam aplicadas.

A Lei nº. 6.830/1980 dispõe sobre a temática da prescrição no art. 8º, § 2º afirmando que o despacho do juiz, que ordenar a citação do devedor, interrompe o fluxo prescricional.

Por sua vez, o art. 219, § 1º do Código de Processo Civil dispõe que a citação válida do réu acarreta na interrupção da prescrição e retroage à data da propositura da ação. Isso significa que com a citação a data da propositura da ação se torna o marco interruptivo do transcurso prescricional.

Da leitura dos dispositivos, verifica-se que o limite interpretativo para aplicação subsidiária do art. 219, § 1º do Código de Processo nas execuções fiscais é ultrapassado, na medida em que a interrupção através da “citação válida” é diferente daquela que ocorre com “o despacho, que ordena a citação”. Consequentemente, apenas a aplicação analógica do dispositivo seria uma possibilidade.

Entretanto, a aplicação analógica se admitida deveria ocorrer apenas nas execuções fiscais que buscam a satisfação de créditos não tributários da fazenda pública, uma vez que a Constituição da República Federativa do Brasil, no seu art. 146, III, alínea b, reserva a aplicação da Lei Complementar aos créditos tributários.

Portanto, nas execuções fiscais que buscam a satisfação de créditos fazendários tributários, o texto constitucional determina que sejam aplicadas exclusivamente as regras previstas no art. 174 do Código Tributário Nacional, lei materialmente legítima sobre prescrição de tributos.

2.2 REsp 1.120.295/SP

O Recurso Especial nº. 1.120.295/SP foi um recurso submetido ao regime de representação de controvérsia previsto no art. 543-C do Código de Processo Civil no âmbito do Superior Tribunal da Justiça, que fixou as diretrizes para a aplicação dos dispositivos legais sobre prescrição tributária, e é importante destacar os seguintes trechos da ementa do acórdão ao presente estudo:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO DE O FISCO COBRAR JUDICIALMENTE O CRÉDITO TRIBUTÁRIO. TRIBUTO SUJEITO A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. CRÉDITO TRIBUTÁRIO CONSTITUÍDO POR ATO DE FORMALIZAÇÃO PRATICADO PELO CONTRIBUINTE (IN CASU, DECLARAÇÃO DE RENDIMENTOS). PAGAMENTO DO TRIBUTO DECLARADO. INOCORRÊNCIA. TERMO INICIAL. VENCIMENTO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA DECLARADA. PECULIARIDADE: DECLARAÇÃO DE RENDIMENTOS QUE NÃO PREVÊ DATA POSTERIOR DE VENCIMENTO DA OBRIGAÇÃO PRINCIPAL, UMA VEZ JÁ DECORRIDO O PRAZO PARA PAGAMENTO. CONTAGEM DO PRAZO PRESCRICIONAL A PARTIR DA DATA DA ENTREGA DA DECLARAÇÃO. […]. 2. A prescrição, causa extintiva do crédito tributário, resta assim regulada pelo artigo 174, do Código Tributário Nacional, verbis: "Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva. Parágrafo único. A prescrição se interrompe: I – pela citação pessoal feita ao devedor; I – pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal; (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005) II – pelo protesto judicial; III – por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor; IV – por qualquer ato inequívoco ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo devedor." […]. 13. Outrossim, o exercício do direito de ação pelo Fisco, por intermédio de ajuizamento da execução fiscal, conjura a alegação de inação do credor, revelando-se incoerente a interpretação segundo a qual o fluxo do prazo prescricional continua a escoar-se, desde a constituição definitiva do crédito tributário, até a data em que se der o despacho ordenador da citação do devedor (ou até a data em que se der a citação válida do devedor, consoante a anterior redação do inciso I, do parágrafo único, do artigo 174, do CTN). 14. O Codex Processual, no § 1º, do artigo 219, estabelece que a interrupção da prescrição, pela citação, retroage à data da propositura da ação, o que, na seara tributária, após as alterações promovidas pela Lei Complementar 118/2005, conduz ao entendimento de que o marco interruptivo atinente à prolação do despacho que ordena a citação do executado retroage à data do ajuizamento do feito executivo, a qual deve ser empreendida no prazo prescricional. 15. A doutrina abalizada é no sentido de que: "Para CÂMARA LEAL, como a prescrição decorre do não exercício do direito de ação, o exercício da ação impõe a interrupção do prazo de prescrição e faz que a ação perca a 'possibilidade de reviver', pois não há sentido a priori em fazer reviver algo que já foi vivido (exercício da ação) e encontra-se em seu pleno exercício (processo). Ou seja, o exercício do direito de ação faz cessar a prescrição. Aliás, esse é também o diretivo do Código de Processo Civil: 'Art. 219. A citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa; e, ainda quando ordenada por juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição. § 1º A interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação.' Se a interrupção retroage à data da propositura da ação, isso significa que é a propositura, e não a citação, que interrompe a prescrição. Nada mais coerente, posto que a propositura da ação representa a efetivação do direito de ação, cujo prazo prescricional perde sentido em razão do seu exercício, que será expressamente reconhecido pelo juiz no ato da citação. Nesse caso, o que ocorre é que o fator conduta, que é a omissão do direito de ação, é desqualificado pelo exercício  da ação, fixando-se, assim, seu termo consumativo. Quando isso ocorre, o fator tempo torna-se irrelevante, deixando de haver um termo temporal da prescrição." (Eurico Marcos Diniz de Santi, in "Decadência e Prescrição no Direito Tributário", 3ª ed., Ed. Max Limonad, São Paulo, 2004, págs. 232/233) 16. Destarte, a propositura da ação constitui o dies ad quem do prazo prescricional e, simultaneamente, o termo inicial para sua recontagem sujeita às causas interruptivas previstas no artigo 174, parágrafo único, do CTN. […].[18]

Ao analisar os trechos selecionados da ementa, verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que até mesmo em sede de execuções fiscais que buscam a satisfação de créditos tributários, admite-se a aplicação analógica do art. 219, § 1º do Código de Processo Civil, um dispositivo de Lei Ordinária.

A justificativa seria que após as alterações promovidas pela Lei Complementar nº. 118/2005 seria forçoso entender que o marco interruptivo da prescrição – o despacho que ordena a citação do executado – deveria retroagir à data do ajuizamento do feito executivo fiscal, e que a doutrina mais abalizada compartilharia de tal entendimento, mas não houve as citações de fontes no corpo do acórdão.

A tese firmada talvez fosse adequada para dívidas não tributárias, tendo vista que sua regulamentação poderia ocorrer através de Lei Ordinária. Infelizmente, o mesmo não se pode dizer sobre as execuções fiscais de créditos fazendários de natureza tributária, os quais têm regramento específico e reservado pelo próprio texto constitucional.

2.3 Conflito em face à CRFB/1988

O ordenamento jurídico brasileiro é estruturado por diferentes normas e dotado de complexidade. Entretanto, tal complexidade obedece a uma estrutura hierárquica que produz uma unicidade harmônica analisada por Norberto Bobbio da seguinte forma:

[…]. Que seja unitário um ordenamento complexo, de ser explicado. Aceitamos aqui a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen. Essa teoria serve para dar uma explicação da unidade do ordenamento jurídico complexo. Seu núcleo é que as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano. Há normas superiores e inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento jurídico.[19]

A teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico afirma haver uma estrutura que forma uma pirâmide normativa, onde uma norma estaria no topo emanando a validade de todas as outras formando um todo organizado complexo e harmônico de normas.

No ordenamento jurídico brasileiro, pode-se dizer que no seu topo legislativo está a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, da qual fundamenta a validade das demais normas jurídicas legislativamente.

Sobre a temática da prescrição tributária, o art. 146, III, alínea b, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é taxativo ao reservar o regramento da matéria a Lei Complementar.

Por sua vez, nas normas de prescrição tributária que estão abaixo do texto constitucional se encontra o Código Tributário Nacional – Lei nº. 5.172/1966 – que embora seja formalmente Lei Ordinária, foi recebido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 com o status de Lei Complementar.

Maria do Rosário Esteves explica que quando o Código Tributário Nacional foi elaborado “não existia, na vigência da Constituição Federal de 1946, época em que foi aprovado, lei formalmente complementar à Constituição” e posteriormente, com a promulgação da Constituição Federal de 1967, o Código Tributário Nacional foi recebido como “lei formalmente ordinária e materialmente de caráter nacional”, ou seja, materialmente complementar.[20],[21]

A mesma situação ocorreu com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, quando o Código Tributário Nacional também foi recebido com o status de lei materialmente complementar. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal reconheceu esta tese na ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº. 556664/RS, de relatoria do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, entendimento verificado no trecho da ementa do acórdão:

[…]. As normas relativas à prescrição e à decadência tributárias têm natureza de normas gerais de direito tributário, cuja disciplina é reservada a lei complementar, tanto sob a Constituição pretérita (art. 18, § 1º, da CF de 1967/69) quanto sob a Constituição atual (art. 146, b, III, da CF de 1988). Interpretação que preserva a força normativa da Constituição, que prevê disciplina homogênea, em âmbito nacional, da prescrição, decadência, obrigação e crédito tributários. Permitir regulação distinta sobre esses temas, pelos diversos entes da federação, implicaria prejuízo à vedação de tratamento desigual entre contribuintes em situação equivalente e à segurança jurídica. […].[22]

No julgado do Supremo Tribunal Federal se confirmou a tese de que as matérias previstas no art. 146, III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – inclusive a prescrição de créditos tributários – devem ser regulamentadas somente através de Lei Complementar.

Luciano Amaro afirma que a reserva legal contida no texto constitucional se trata de uma regra que visa garantir a segurança jurídica, dizendo que:

A legalidade tributária não se contenta com a simples existência de comando abstrato, geral e impessoal (lei material), com base em que sejam valorizados os fatos concretos. A segurança jurídica requer lei formal, ou seja, exige-se que aquele comando, além de abstrato, geral e impessoal (reserva de lei material), seja formulado por órgão titular de função legislativa (reserva de lei formal).[23]

Ao analisar a regra da reserva legal contida no texto constitucional brasileiro, não é difícil intuir que é de manifesta inconstitucionalidade o caso de uma Lei Ordinária regular a matéria ou ser aplicada em detrimento da Lei Complementar.

No sistema tributário brasileiro, no que concerne a prescrição tributária, a norma que regulou a matéria foi o Código Tributário Nacional, especificamente em seu art. 174, cabendo sua aplicação exclusiva em execuções fiscais de créditos tributários.

Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça fixou que o art. 219, § 1º, do Código de Processo Civil – dispositivo de Lei Ordinária – deve ser aplicado mediante analogia no que se refere à matéria de prescrição em execuções fiscais tributárias.

Ocorre que a tese firmada no julgamento do REsp nº. 1.120.295/SP gerou uma situação de contradição no sistema jurídico-tributário brasileiro: de um lado, o texto constitucional reserva a Lei Complementar o trato da prescrição tributária; do outro, o Superior Tribunal de Justiça determina que um dispositivo de Lei Ordinária deva ser aplicado na citada matéria.

A solução da contradição se dá através do próprio texto constitucional, de modo que não só a Lei Complementar é a espécie normativa própria para regular a prescrição de créditos tributários, mas como também a que deve ser exclusivamente aplicada em execuções fiscais tributárias.

Consequentemente, se a regulamentação da prescrição tributária através de Lei Ordinária é inconstitucional em face do art. 146, III, alínea b, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a aplicação de dispositivos da mesma espécie normativa em sede de execuções fiscais tributárias também é respectivamente inconstitucional.[24]

Portanto, as diretrizes firmadas no julgamento do REsp 1.120.295/SP para aplicação dos dispositivos legais sobre prescrição tributária parece ser incompatível com o sistema jurídico-tributário brasileiro, de modo que o art. 174 e seus incisos do parágrafo único do Código Tributário Nacional deveriam ser aplicados de forma isoladas nas execuções fiscais onde é exigida a satisfação de créditos tributários, sob pena de inconstitucionalidade.

Considerações finais

O tema submetido à análise foi capaz de verificar a inconstitucionalidade do entendimento jurisprudencial firmado no Recurso Especial nº. 1.120.295/SP pelo Superior Tribunal de Justiça no que tange a prescrição em execuções fiscais de créditos tributários.

A primeira parte do artigo chama a atenção à importância das normas jurídicas de prescrição extintiva de direitos num ordenamento, e especialmente a sua espécie prescrição tributária e como é regulamentada no sistema jurídico-tributário brasileiro.

Por sua vez, na segunda parte se expõe algumas noções básicas sobre a cobrança de créditos tributários para depois adentrar na problematização inicialmente levantada sobre a aplicação do art. 219, § 1° do Código de Processo Civil em execuções fiscais tributárias, onde se constata sua inconstitucionalidade por violação a reserva legal de Lei Complementar prevista no art. 146, III, alínea b, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

A solução da inconstitucionalidade gerada pela interpretação firmada no julgamento do REsp nº. 1.120.295/SP se dá através da aplicação isolada do art. 174 do Código Tributário Nacional no que concerne a prescrição de tributos.

Portanto, em resposta à questão formulada a partir da problematização da tese do REsp nº. 1.120.295/SP sobre a aplicação do art. 219, § 1º do Código de Processo Civil na prescrição de créditos tributários, tem-se confirmada a hipótese levantada de que é inconstitucional a sua aplicação, o que seria aceito apenas naquelas execuções fiscais de créditos não-tributários.

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Notas:
[1] OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Piaget, 1999. p. 87.
[2] AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 422.
[3] MARTINS NETO, João dos Passos. Não-estado e estado no Leviatã de Hobbes. Florianópolis: OAB/SC Editora, 1999. p. 47.
[4] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 2.
[5] Certas pretensões não estão sujeitas aos efeitos do tempo, tais como nos casos elencados no art. 5º, XLIII da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
[6] LÔBO, Paulo. Direito Civil Parte Geral. 1ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 399
[7] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 584.
[8] AMARAL, Francisco. Direito Civil Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 565.
[9] CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000. p. 256.
[10] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 659.
[11] A prescrição aquisitiva pode ser conceituada como toda a aquisição de direito subjetivo com o decurso de tempo. Na parte especial do Código Civil Brasileiro de 2002, tem-se a aquisição do direito de propriedade: o instituto da usucapião.
[12] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil para geral. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 544.
[13] AMARAL, Francisco. Direito Civil Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 565.
[14] HABLE, José. A Extinção do Crédito Tributário por Decurso de Prazo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 8.
[15] CREPALDI, Silvio Aparecido. Direito tributário: teoria e prática. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 306.
[16] Redação anterior a Lei Complementar nº. 118/2005.
[17] Redação dada pela Lei Complementar nº. 118/2005.
[18] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1120295/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/05/2010, DJe 21/05/2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acessado em: 22 de mar. de 2014.
[19] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10ª. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999. p. 48-49.
[20] ESTEVES, Maria do Rosário. Normas Gerais de Direito Tributário. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 106.
[21] ESTEVES. Maria do Rosário. Normas Gerais de Direito Tributário. São Paulo: Max Limonad. 1997. p. 107.
[22] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 556664, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 12/06/2008, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-216 DIVULG 13-11-2008 PUBLIC 14-11-2008 EMENT VOL-02341-10 PP-01886. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acessado em: 23 de mar. de 2014.
[23] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 541.
[24] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da Doutrina e da Jurisprudência. 9ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 1126.

Informações Sobre o Autor

Bruno Constante Goedert

Advogado. Pós-graduando em Filosofia e Teoria do Direito na PUC/MG. Pós-graduando em Direito Constitucional na UNIVALI. Bacharel em Direito pela UNIVALI


Equipe Âmbito Jurídico

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