Resumo: Organizações religiosas podem ser financiadas diretamente pelos fieis ou, de alguma forma, contar com medidas estatais para tanto. Nesse sentido, o modelo alemão de financiamento de organizações religiosa a partir de categorias tributárias é tido como paradigmático. Contudo, o Estado alemão é não apenas religiosamente neutro, como também consagra o direito fundamental à liberdade religiosa. Isso não afasta, entretanto, a possibilidade de o Estado cooperar com a organizações religiosas. Nesse contexto, tem-se que a principal fonte de receitas das organizações religiosas é o chamado “imposto eclesiástico” (Kirchensteuer). Esse imposto, que tem base constitucional, é disciplinado pelos estados alemães (Länder) e cobrado pelas organizações religiosas constituídas como pessoas jurídicas de direito público. O sistema tributário alemão também contribui para o financiamento de organizações religiosas de forma indireta, ou seja, por meio da concessão de benefícios fiscais a essas entidades ou àqueles que com elas colaboram. A inserção da referida sistemática de financiamento de organizações religiosas no Brasil, todavia, encontraria fortes barreiras constitucionais. [1]
Palavras-chave: Direito alemão. Organizações religiosas. Liberdade religiosa. Imposto eclesiástico. Benefícios fiscais.
Abstract: Religious organizations can be funded directly by the faithful or, in some way, by state measures. In this sense, the German model of funding religious organizations based on tax categories is seen as paradigmatic. Nevertheless, the German State is not only religiously neutral but it also protects the fundamental right to religious freedom. This, however, does not prevent the possibility of the State cooperating with religious organizations. In this context, the main source of revenues of religious organizations is the so-called "church tax" (Kirchensteuer). This tax, which has a constitutional basis, is ruled by the German states (Länder) and collected by religious organizations constituted as legal persons under the public law. The German tax system also contributes to the religious organizations funding in an indirect way, that is, by granting tax benefits to these entities or to those who collaborate with them. The insertion of this religious organizations funding system in Brazil, however, would face strong constitutional barriers.
Keywords: German law. Religious organizations. Religious freedom. Church tax. Tax benefits.
Sumário: Introdução. 1. Relações entre Igreja e Estado na Alemanha. 2. O financiamento de organizações religiosas na Alemanha: o Imposto Eclesiástico (Kirchensteuer). 2.1. Fundamentação. 2.2. Competência. 2.3. Sujeição ativa. 2.4. Incidência e sujeição passiva. 2.5. Modalidades. 2.6. Administração. 3. Financiamento indireto de organizações religiosas. 3.1. Benefícios fiscais: definição e admissibilidade. 3.2. Admissibilidade de benefícios fiscais para organizações religiosas no ordenamento jurídico alemão. 3.3. Modalidades de benefícios fiscais para organizações religiosas. 3.4. Fatores determinantes para a concessão de benefícios fiscais para organizações religiosas na legislação tributária alemã. Conclusão comparativa. Referências.
Introdução
De plano, vale observar que podem ser encontrados, nos diferentes ordenamentos jurídicos, diversos modos de financiamento das organizações religiosas, os quais estão intrinsecamente relacionados à forma pela qual Estado e Igreja se relacionam, no ordenamento considerado[2].
Em linhas gerais, pode-se fazer alusão a duas formas básicas de financiamento da Igreja, quais sejam, (i) o financiamento pelo Estado e (ii) o financiamento pelos seus membros, a notar-se que essa segunda modalidade pode adquirir diversas conformações[3]. No presente trabalho, será abordado o financiamento de organizações religiosas na Alemanha, o qual se lastreia, sobretudo, no sistema do imposto eclesiástico (Kirchensteuer)[4].
Pode-se afirmar que o modelo alemão de financiamento das Igrejas é considerado um paradigma no tocante ao financiamento de organizações religiosas a partir de categorias tributárias[5]. O direito alemão fornece, portanto, um excelente exemplo de imposto eclesiástico ou religioso, de modo que resta justificada a opção pela análise do sistema alemão de financiamento de organizações religiosas por meio do sistema tributário.
Ocorre, contudo, que o direito tributário alemão também proporciona um mecanismo indireto de financiamento de Igrejas, qual seja, a concessão de benefícios fiscais direta ou indiretamente direcionados a organizações religiosas. Trata-se de mecanismo que, adianta-se, não se confunde com a chamada imunidade de templos de qualquer culto, prevista no ordenamento jurídico brasileiro.
Dessa forma, este artigo tem por finalidade o estudo de mecanismos de financiamento de organizações religiosas no âmbito do sistema tributário alemão, visando, especificamente, à análise tanto da sistemática do imposto eclesiástico, quanto daquela relativa à concessão de benefícios fiscais, de modo que, ao final, serão apresentadas as conclusões do estudo a partir de uma perspectiva comparada, tomando-se como parâmetro, para tanto, o direito brasileiro.
Para que seja possível, contudo, a análise dos mencionados mecanismos de financiamento de organizações religiosas, faz-se necessário, inicialmente, tecer algumas considerações acerca do modo pelo qual o Estado alemão e organizações religiosas se relacionam.
1. Relações entre Igreja e Estado na Alemanha
Para se abordar o direito tributário aplicável às organizações religiosas, faz-se fundamental compreender as relações entre Estado e Igreja no ordenamento jurídico considerado, uma vez que essa relação é determinante para o delineamento de respostas a perguntas como: pode o financiamento de organizações religiosas decorrer do sistema tributário? É admissível, de outra banda, que o Estado tribute organizações religiosas?
Para que se possa compreender a amplitude da temática relativa às relações entre Estado e Igreja, não se pode deixar de salientar que, além de as religiões serem um fenômeno muito mais antigo que o Estado moderno, as religiões atualmente existentes exibem caráter “pré-estatal”. Desse modo, as organizações religiosas se veem, de certa forma, independentes do Estado e do ordenamento jurídico estatal. É de se destacar, ainda, que, na Alemanha, após a queda do nacional-socialismo, houve uma tendência a se conceder maior liberdade às organizações religiosas, de modo a se reconhecer que as Igrejas não se submetem fundamentalmente ao poder estatal. Pode-se, assim, fazer a alusão à “teoria da coordenação” (Koordinationslehre), no tocante às relações entre Estado e Igreja[6].
Todavia, essa teoria vai de encontro à concepção de Estado moderno e soberano[7], sobretudo por afrontar a noção de “soberania”[8], salientando-se que esta se apresenta tanto como sinônimo de “independência”, quanto como de “poder jurídico mais alto, no sentido de que, dentro dos limites da jurisdição do Estado, este é quem tem o poder de decisão em última instância, sobre a eficácia de qualquer norma jurídica”[9]. Dessa maneira, não se pode admitir, no seio do Estado, outro poder com pretensões semelhantes às estatais[10]. Ademais, vale observar que, no âmbito do Estado Democrático de Direito, só é possível se cogitar de uma autoridade estatal que esteja legitimada pelo povo[11].
Logo, a conclusão inevitável é a de que, na Alemanha, as organizações religiosas encontram-se submetidas ao ordenamento jurídico[12] e, logicamente, à Constituição. Isso não significa, contudo, uma submissão da religião ao Estado, uma vez que o Estado somente fixa balizas no âmbito das quais a religião pode se desenvolver[13].
O direito aplicável às organizações religiosas na Alemanha, e, inclusive, às relações entre Igreja e Estado naquele país, decorre, prioritariamente, do disposto no artigo 4, “1” e “2”, e no artigo 140, da Lei Fundamental alemã[14]. O primeiro trata da liberdade de fé, de consciência e de profissão religiosa e ideológica e assegura o livre exercício de religião, ao passo que o segundo dispõe sobre a recepção de alguns dispositivos da Constituição de Weimar, de 1919, dentre os quais está o artigo 137, que dispõe acerca dos fundamentos da relação entre Estado e Igreja[15].
O mencionado artigo 4 da Lei Fundamental alemã embasa a neutralidade religiosa do Estado[16], a qual também pode ser depreendida do artigo 137 da Constituição de Weimar[17]. Com efeito, o artigo 137, “1”, da Constituição de Weimar veda a existência de Igrejas estatais e o artigo 137, “2”, protege a formação de organizações religiosas e dispõe que a associação de organizações religiosas não está sujeita a restrições. Em suma, pode-se afirmar que, na Alemanha, a relação entre Igreja e Estado baseia-se no princípio da neutralidade do Estado.
A neutralidade do Estado, por sua vez, é composta pelos mandamentos da tolerância e da paridade. O primeiro determina a tolerância de diferentes confissões e organizações religiosas, ao passo que o último determina que as confissões e as organizações religiosas sejam tratadas de forma fundamentalmente igual[18].
Ademais, da vedação a Igrejas estatais pode-se depreender uma separação organizacional entre Estado e Igreja[19], bem como uma “liberação” para ambos os lados. Pois, como anota Claus Dieter Classen[20], a Igreja fica livre do controle estatal, ao passo que o Estado fica desincumbido de lidar com questões tipicamente religiosas, sendo-lhe negada a identificação com determinada religião[21].
Não obstante, vale salientar que não se verifica, na Alemanha, uma rígida separação entre Estado e Igreja[22]. Nessa esteira, Claus Dieter Classen[23] defende a admissibilidade de uma cooperação do Estado para com a Igreja, concluindo que não se depreende do mandamento da separação entre Igreja e Estado uma necessidade de se estabelecer claramente as fronteiras entre Estado e Igreja[24], como, segundo o autor, se verifica em Estados como a França, em consequência de uma compreensão fundamentalmente laicista.
Para Ingo von Münch[25], a não rigidez na separação entre Igreja e Estado, na Alemanha, pode se verificar a partir do exemplo do imposto eclesiástico – sobre o qual se discorrerá abaixo –, uma vez que o poder de tributar é manifestação do poder soberano do Estado.
Finalmente, não se pode deixar de atentar para o fato de que as características da relação entre Estado e Igreja, na Alemanha, muito se assemelham àquelas relativas à relação entre o Estado brasileiro e a Igreja, as quais são disciplinadas, sobretudo, pelo artigo 19, I, da Constituição Federal. Desse modo, tem-se que
“o regime constitucional brasileiro é de não identificação (Estado laico) com separação, o que não significa, vale frisar, oposição, que está presente numa concepção laicista (ao estilo francês), de relativa hostilidade à religião. Nem indiferente, e ainda menos hostil, a Constituição revela-se atenta, separada, mas cooperativa, não confessional, mas solidária, tolerante em relação ao fenômeno religioso”[26].
Nessa esteira, vale observar, que do artigo 19, I, da Constituição Federal, juntamente com aqueles relativos à liberdade religiosa – consubstanciados, sobretudo, no artigo 5º, VI, VII e VIII, da Constituição Federal – podem-se depreender os seguintes princípios: separação, não confessionalidade, cooperação, solidariedade e tolerância[27].
2. O Financiamento de Organizações Religiosas na Alemanha: o Imposto Eclesiástico (Kirchensteuer)
2.1. Fundamentação
Pode-se afirmar que, na Alemanha, a principal fonte de receitas das organizações religiosas que apresentam o status de pessoa jurídica de direito público é o chamado “imposto eclesiástico”[28]. Segundo Jens Petersen[29], o imposto eclesiástico fornece a sólida base financeira necessária para que a Igreja possa desempenhar suas atividades.
Na Alemanha, o direito tributário relativo a organizações religiosas fundamenta-se no artigo 140 da Lei Fundamental alemã, combinado com o artigo 137, “6”, da Constituição de Weimar, de 1919 [30] e [31], segundo o qual as organizações religiosas que sejam pessoas jurídicas de direito público estão autorizadas a cobrar impostos, observando-se, contudo, as determinações dos Estados Federados, os Länder[32]. Neste ponto, importa observar que, de acordo com o artigo 140, da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 1949, o referido artigo 137 da Constituição do Reino Alemão, de 1919, é parte integrante da Lei Fundamental de Bonn[33].
Não há dúvidas de que o tributo em referência, aqui traduzido como “imposto eclesiástico”, constitui um verdadeiro imposto (Steuer), sob o ponto de vista do direito alemão[34]. Com efeito, vale trazer à baila a definição de imposto prevista no §3, “1” do Código Tributário alemão (Abgabenordnung):
“§3º Impostos e prestações tributárias auxiliares
(1) Impostos são prestações pecuniárias, que não representam uma contraprestação por uma atividade específica e que serão impostos por entidade pública, com a finalidade de obtenção de receitas, a todos que realizarem o fato jurídico ao qual a lei conecta uma obrigação tributária; a obtenção de receitas pode ser uma finalidade secundária”[35] (tradução livre).
A definição de imposto do direito positivo alemão é comparável à noção de “imposto” do direito tributário brasileiro, uma vez que, também aqui, o imposto é tributo – “prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”[36] – não contraprestacional, que pode ter por finalidade primordial tanto a obtenção de receitas (finalidade fiscal), quanto outras finalidades (finalidades extrafiscais). Vale lembrar, que, de acordo com o artigo 16 do Código Tributário Nacional, “imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte”[37]. Não obstante, cumpre salientar que o imposto eclesiástico alemão tem o produto de sua arrecadação afetado ao financiamento de organizações religiosas. Semelhante afetação não seria admissível no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista o princípio da não afetação dos impostos, previsto no artigo 167, IV, da Constituição Federal.
Pode-se afirmar que o artigo 137 da Constituição de Weimar deve ser interpretado a partir das liberdades religiosas. Dessa forma, tem-se que, no âmbito do artigo 137 da Constituição de Weimar, a liberdade religiosa manifesta-se como proteção ao exercício coletivo da religião[38]. Por outro giro, o imposto eclesiástico visa à garantia da liberdade religiosa, consubstanciada no artigo 4, da Lei Fundamental alemã, uma vez que se apresenta como uma forma de promoção do referido direito fundamental[39].
Vale notar, ainda, que o imposto eclesiástico é institucionalmente imune ao direito comunitário europeu[40], tendo em vista o disposto no artigo 17, “1”, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, segundo o qual a “União respeita e não interfere no estatuto de que gozam, ao abrigo do direito nacional, as igrejas e associações ou comunidades religiosas nos Estados-Membros”[41].
2.2. Competência
A competência tributária relativa ao imposto eclesiástico foi atribuída aos Länder, conforme se depreende do já mencionado artigo 137, “6”, da Constituição de Weimar[42].:
“Art. 137(…)
(6) As organizações religiosas que sejam pessoas jurídicas de direito público estão autorizadas a arrecadar impostos, por força de listas tributárias civis em conformidade com determinações dos Länder”[43] (tradução livre).
Não se pode deixar de evidenciar, contudo, que o legislador dos Länder não pode restringir a tributação por meio do imposto eclesiástico de forma incompatível com os direitos fundamentais, a lembrar-se que a previsão de tributação pelo imposto eclesiástico está intimamente relacionada aos direitos fundamentais relativos à liberdade religiosa[44]. Logicamente, também não seria admissível a supressão, pelo legislador dos Länder, do imposto eclesiástico.
Dessa forma, a disciplina do imposto eclesiástico encontra-se, prioritariamente, na Constituição e em leis dos Länder. Não obstante, vale fazer alusão, como fontes do direito relativo ao imposto eclesiástico, às convenções firmadas entre Estado e Igreja tanto em nível federal quando dos Länder, bem como a fontes puramente oriundas das organizações religiosas, tais como resoluções voltadas à fixação de alíquotas. A alíquota assim fixada passa a ser considerada alíquota vinculante de direito público após o reconhecimento ou autorização do Estado e sua publicação em meio oficial de comunicação eclesiástica[45].
De acordo com a dicção do artigo 137, “6”, a cobrança do imposto eclesiástico pressupõe “listas tributárias civis”. Ocorre que, como, já há muito tempo, essas listas não são mais providenciadas, cabe ao Estado fornecer às organizações religiosas, por outro meio, as informações necessárias à arrecadação do imposto eclesiástico[46], muito embora, conforme se observará abaixo, seja admissível que o próprio Estado administre o imposto em questão.
2.3. Sujeição Ativa
Note-se que, segundo o referido artigo 137, “6”, da Constituição de Weimar, é necessário que as organizações religiosas sejam pessoas jurídicas de direito público para que estejam autorizadas a cobrar impostos.[47] Nesse sentido, importa anotar que, segundo o artigo 137, “5”, da Constituição alemã de 1919, as organizações religiosas que eram pessoas jurídicas de direito público permanecem como tais sob a ordem constitucional vigente. E, ainda, podem ser conferidos os mesmos direitos a outras organizações religiosas, que, em virtude de sua “constituição” (Verfassung)[48] e número de membros, tenham sua permanência assegurada. A ideia, aqui, é a de que se possa fazer um prognóstico de que a organização religiosa continuará a existir no futuro[49].
Além disso, segundo o Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht), para que uma organização religiosa adquira o status de pessoa jurídica de direito público e possa, consequentemente, cobrar impostos, é necessário que ela seja “leal ao direito” (rechtstreu)[50]. Disso não se depreende, contudo, uma necessária lealdade ao Estado[51]. A esse respeito, vale observar que essa necessária observância ao ordenamento jurídico vigente por parte das organizações religiosas pressupõe, sobretudo, observância da ordem constitucional alemã, mormente dos direitos fundamentais[52].
Nesse sentido, em princípio, o status de pessoa jurídica de direito público poderia ser concedido às organizações religiosas muçulmanas. Ocorre que, como salienta Joachim Lang[53], aos muçulmanos falta uma clara estrutura organizacional. Além disso, algumas comunidades islâmicas pleiteiam uma teocracia, de modo que não seriam “leais ao direito”, tendo em vista os pressupostos do Estado Democrático de Direito[54].
Ademais, o referido artigo 137, “5”, da Constituição alemã de 1919 também prevê que, caso organizações religiosas regidas pelo direito público se associem, também essa associação será uma pessoa jurídica de direito público.
Importa anotar, ainda, que mesmo as organizações religiosas que ostentam o status de pessoa jurídica de direito público não devem ser classificadas na estrutura administrativa do Estado[55], uma vez que há, na Alemanha, uma separação organizacional entre Estado e Igreja[56], como já evidenciado.
Nesse sentido, enfatizando a íntima relação entre a cobrança do imposto eclesiástico e a liberdade religiosa, cabe observar que, segundo Roman Seer[57], somente a “tese dos direitos fundamentais” é apta a justificar o status especial concedido às organizações religiosas que se apresentam como pessoas jurídicas de direito público. Afinal, o status de pessoa jurídica de direito público assegura e fortalece a autonomia e a independência da organização religiosa no tocante ao exercício da liberdade religiosa, a qual, reitera-se, está assegurada no artigo 4, “2”, da Lei Fundamental alemã[58]. Não se pode deixar de salientar, entretanto, que os direitos fundamentais também são assegurados às organizações religiosas de direito privado, na mesma extensão em que o são garantidos às organizações religiosas que apresentam o status de pessoa jurídica de direito público[59].
Ademais, quando da cobrança do imposto eclesiástico, as organizações religiosas atuam como titulares do poder estatal, de modo que, em sua relação com o contribuinte, devem observância ao ordenamento constitucional, mormente aos direitos fundamentais[60]. Ainda, quando da cobrança do referido imposto, as organizações religiosas estão adstritas ao disposto em lei, reiterando-se que a competência tributária relativamente ao imposto em questão foi atribuída aos Länder[61].
Aqueles que ocupam o polo ativo da relação jurídico-tributária relativa ao imposto eclesiástico podem ser as organizações religiosas propriamente ditas ou subdivisões destas[62]. Cabe às organizações religiosas determinar, dentro de sua estrutura, quem efetivamente ocupará o polo ativo da relação jurídico-tributária relativa ao imposto eclesiástico, de modo que, cabe à Igreja, por exemplo, definir se a cobrança será feita pela paróquia ou pela diocese[63]. Segundo, Joachim Lang[64], observa-se uma predominância de cobrança centralizada do imposto eclesiástico.
2.4. Incidência e Sujeição Passiva
Pode-se afirmar que o imposto eclesiástico é um “imposto de membros” (Mitgliedsteuer)[65]. Afinal, o fato gerador do imposto eclesiástico é o “ser membro” – a “pertença” – de organização religiosa que cobre o imposto em questão[66]. Assim, tem-se que os contribuintes do imposto eclesiástico são os membros de uma organização religiosa que cobra esse imposto[67]. Com efeito, pessoas jurídicas não podem ser contribuintes do imposto em tela[68].
Outro elemento importante para a formação da obrigação tributária relativa ao imposto eclesiástico é o domicílio ou residência habitual[69] – a nacionalidade não ostenta relevância neste contexto. Trata-se da aplicação da territorialidade[70].
As regras relativas à filiação devem ser determinadas pela organização religiosa, jamais pelo Estado[71], tendo em vista o direito de autodeterminação das organizações religiosas[72], entabulado no artigo 137, “3”, primeira parte, da Constituição de Weimar: “toda organização religiosa disciplina e administra suas questões de forma autônoma, dentro dos limites das leis válidas para todos”[73] (tradução livre). Nesse sentido, o Tribunal Constitucional Federal alemão já afirmou que cabe ao Estado reconhecer as regras de filiação estabelecidas por determinada organização religiosa, ainda que estas se afastem das normas estatais de associação. Não cabe, portanto, ao Estado, determinar quem é membro de uma determinada organização religiosa[74]. A título de exemplo, vale mencionar que, em regra, as Igrejas cristãs vinculam a “filiação” ao batizado[75].
O dever de o Estado reconhecer as referidas regras de filiação não é, todavia, ilimitado, como se pode depreender da própria dicção do mencionado artigo 137, “3”, primeira parte. Nessa esteira, para que a referida “filiação” seja reconhecida pelo Estado, é necessário que o indivíduo tenha, por livre escolha ou por escolha de seus responsáveis, se “filiado” a uma determinada organização religiosa[76].
O fato gerador do imposto eclesiástico ocorre, portanto, com a filiação a uma organização religiosa – que cobre o imposto em questão – e o estabelecimento do domicílio ou residência habitual em determinada “jurisdição tributária” relativa ao imposto eclesiástico. Assim, o polo ativo da relação jurídico-tributária será ocupado pela organização religiosa que tenha “jurisdição” no domicílio ou residência habitual do contribuinte[77]. Vale salientar que o retorno a uma organização da qual se havia desvinculado anteriormente também embasa a “pertença” caracterizadora do fato gerador do imposto eclesiástico[78].
O dever de pagar o imposto eclesiástico a uma determinada organização se encerra com a morte, mudança de domicílio ou residência habitual ou desfiliação[79], lembrando-se que todos têm o direito de se desvincular de uma organização religiosa, de modo tal que essa decisão é vinculante para o Estado[80].
2.5. Modalidades
A expressão “imposto eclesiástico” deve ser entendida em sentido lato, por duas razões. A uma, tem-se que, por tratar-se de um tributo de competência dos Länder, a disciplina desse tributo não é uniforme[81]; a duas, pois a expressão “imposto eclesiástico” é utilizada para fazer referência a tributos estruturados e cobrados de formas diversas, mas sempre afetados ao financiamento de organizações religiosas[82].
Assim, é possível que as organizações religiosas cobrem o imposto eclesiástico como um adicional a outros tributos[83]. Nesse sentido, vale fazer referência à cobrança do imposto eclesiástico como um adicional ao imposto de renda (Zuschlag zur Einkommensteuer), sobretudo – mas não exclusivamente – considerando-se o imposto incidente sobre salários (Lohnsteuer)[84].
Nesse caso, a base de cálculo imposto eclesiástico é o valor do imposto de renda devido, conforme determinação do §51a, “2”, da Lei do Imposto de Renda (Einkommensteuergesetz)[85]. Cabe observar que há, contudo, peculiaridades no cálculo do imposto de renda, de modo se poderia afirmar que a base de cálculo do imposto eclesiástico é, na verdade, um “imposto de renda fictício”[86].
As maiores Igrejas da Alemanha têm como principal fonte de recursos o “imposto de renda eclesiástico” (Kircheneinkommensteuer), cuja alíquota é 8%, em alguns Länder, e 9%, em outros. Essa alíquota deve ser aplicada sobre a base de cálculo acima mencionada. Entende-se que, com a escolha do imposto de renda como parâmetro para o cálculo do imposto eclesiástico, realiza-se a justiça tributária, uma vez que se está observando o princípio da capacidade contributiva. Por outro giro, pode-se afirmar que esse atrelamento do imposto eclesiástico ao imposto de renda permite que aquele seja orientado a partir da capacidade contributiva real (Ausrrichtung des Kirchensteuermaβstabs an der wirklichen Leistungsfähigkeit)[87].
Joachim Lang[88] salienta, entretanto, que não haverá a referida observância plena da capacidade contributiva caso o imposto de renda seja alcançado por normas de finalidade social – que, aqui, prefere-se chamar de “normas de finalidade extrafiscal”, as quais correspondem às normas dotadas de finalidades outras que não a meramente arrecadatória. Isso decorre do fato de a base de cálculo do imposto eclesiástico ser o valor devido a título de imposto de renda, e não a base de cálculo deste. Dessa forma, todas as normas de finalidade extrafiscal que impactem sobre o imposto de renda serão absorvidas pelo imposto eclesiástico[89]. Desse modo, pode-se afirmar que normas de finalidade extrafiscal relativas ao imposto de renda podem gerar efeitos indesejados relativamente ao imposto eclesiástico[90].
Quadra observar, todavia, que as organizações religiosas podem adotar técnicas de cobrança do imposto tendentes a mitigar o impacto das normas relativas ao imposto de renda. Assim, essas organizações podem, por exemplo, estipular que a cobrança do imposto eclesiástico apenas será feita a partir de um determinado nível, de modo a não absorver, por exemplo, a progressividade do imposto de renda[91]. Tendo em vista, contudo, o princípio da legalidade e da tipicidade que orientam o direito tributário alemão, a adoção das referidas técnicas pressupõem base normativa compatível[92].
Nesse diapasão, vale fazer referência a uma técnica comumente adotada, denominada “supressão da progressividade” (Kappung der Progression), por meio da qual se limita o valor a ser pago a título de imposto eclesiástico a uma porcentagem da renda tributável. É curioso observar que, nesse caso, a base de cálculo “valor pago a título de imposto de renda” se conecta com a base “renda tributável”[93]. A fim de se esclarecer essa técnica, vale trazer à baila o seguinte exemplo:
Outra modalidade do imposto eclesiástico é o chamado Kirchgeld, o qual não está atrelado a elementos de outros tributos, de modo que é cobrado a partir de valores fixos ou de determinadas gradações[94]. Nessa modalidade, é possível, por exemplo, a cobrança do imposto eclesiástico daqueles que não são contribuintes do imposto de renda e, por consequência, também não se tornariam contribuintes do “imposto de renda eclesiástico”[95]. Nesse sentido, é comum a instituição de um valor mínimo a ser pago a título de imposto eclesiástico, de modo que mesmo aquele que tenha uma renda muito baixa contribua com alguma quantia, o que pode ser feito por meio do Kirchgeld[96]. A depender da organização religiosa, o valor cobrado a título de Kirchgeld varia entre 1,5 Euro a 150 Euros por ano[97].
2.6. Administração
A pedido das organizações religiosas, é possível que o imposto eclesiástico seja administrado pelo fisco estatal[98]. Essa possibilidade depende do disposto nas legislações acerca do imposto eclesiástico e em convenções firmadas entre Igreja e Estado. Embora a administração do imposto eclesiástico pelo Estado deva ser feita mediante pagamento, essa tem sido uma alternativa consistentemente adotada, uma que vez que a estruturação de uma máquina arrecadatória por parte das próprias organizações religiosas seria ainda mais custosa[99].
Vale observar que o imposto eclesiástico cobrado como adicional ao imposto de renda sobre salários deverá ser calculado tomando-se como base o imposto de renda incidente sobre salários. Nesses casos, o imposto eclesiástico, referido como imposto “imposto eclesiástico sobre salários” (Kichenlohnsteuer), deverá ser retido e recolhido pelo empregador, juntamente com o imposto de renda sobre salários. Logicamente, essa retenção e recolhimento apenas devem ser realizados relativamente aos empregados que são contribuintes do imposto eclesiástico, ou seja, que são membros de organização religiosa[100] e [101].
O dever do empregador, nesse caso, independe de eventual vínculo deste com organização religiosa, lembrando que se trata de um dever estatal, e não religioso/eclesiástico, de maneira que o empregador atua como auxiliar da administração financeira estatal[102]. Esse dever foi considerado constitucional pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha[103]. É de se observar, ainda, que o referido dever do empregador é neutro, na medida em que o imposto eclesiástico não se direciona a uma religião específica, mas virtualmente a todas[104].
3. Financiamento Indireto de Organizações Religiosas
Acima, discorreu-se acerca da utilização do tributo para o financiamento de organizações religiosas na Alemanha. Ocorre, contudo, que o imposto eclesiástico não é a única forma propiciada pelo direito tributário alemão para o financiamento das organizações religiosas, uma vez que a legislação tributária alemã é pródiga na concessão de benefícios fiscais para organizações religiosas. Essas medidas, conforme se demonstrará abaixo, correspondem a uma forma indireta de financiamento das organizações religiosas[105].
Para que se discorra acerca dessa outra forma de financiamento das organizações religiosas proporcionada pelo direito tributário[106], importa tecer algumas considerações sobre a teoria geral dos benefícios fiscais a fim de defini-los e fixar importantes pressupostos sobre sua admissibilidade.
3.1. Benefícios Fiscais: Definição e Admissibilidade
Primeiramente, deve-se esclarecer que a delimitação de benefícios fiscais é tema extremamente controverso, de modo que são múltiplas as definições de benefícios fiscais que se podem encontrar na doutrina, aqui e alhures. Diante disso, mostra-se sobremaneira importante não apenas apresentar, mais também justificar, a definição de benefícios fiscais utilizada nesse trabalho.
Assim, entende-se que “benefícios fiscais são vantagens tributárias veiculadas por normas dotadas de finalidade extrafiscal – indutora ou redistributiva – e que representam um afastamento da igualdade a partir da capacidade contributiva”[107]. Podem-se destacar três aspectos da definição ora apresentada, quais sejam, (i) concessão de vantagem tributária, (ii) afastamento da igualdade a partir da capacidade contributiva e (iii) finalidade extrafiscal – indutora ou redistributiva.
Nesse sentido, para que se esteja diante de uma vantagem tributária é necessário que o beneficiário esteja submetido a uma tributação mais favorecida que aquela a que ele estaria, em situação comparável, na ausência da norma veiculadora do beneficio fiscal[108]. Nesse sentido, tem-se que benefícios fiscais correspondem, necessariamente, a exceções à “tributação-regra”[109]. Logo, não é qualquer “norma tributária vantajosa” que pode ser confundida com benefício fiscal, uma vez que a nota da excepcionalidade é ínsita a este[110]. Diante disso, a norma tributária veiculadora de um benefício fiscal prefere um contribuinte a outro que se encontra em situação comparável.
Ocorre que, em ordenamentos jurídicos cujo parâmetro fundamental de igualdade tributária seja a capacidade contributiva – como é o caso do alemão[111] e do brasileiro[112] –, o juízo de igualdade em matéria tributária deverá ser feito em face da capacidade contributiva. Assim, todos os contribuintes que forem “iguais”, tendo em vista o critério da capacidade contributiva, deverão ser tratados da mesma maneira. Logo, pode-se afirmar que, nesses ordenamentos, a “tributação-regra” deve, necessariamente, observar a igualdade a partir da capacidade contributiva. Diante disso, conclui-se que, para que se verifique um afastamento da “tributação-regra” – necessário para a caracterização da vantagem –, faz-se necessário um afastamento da igualdade a partir da capacidade contributiva. Ou seja, o parâmetro de igualdade a ser adotado por norma veiculadora de benefício fiscal deve ser outro que não a capacidade contributiva.
A referida discriminação será admissível caso seja proporcional – adequada, necessária e proporcional em sentido estrito – ao objetivo perseguido pela norma veiculadora do benefício fiscal[113], lembrando-se que esse objetivo deve, necessariamente, ter índole extrafiscal. Ou seja, as normas veiculadoras de benefícios fiscais devem, necessariamente, perseguir finalidades outras que não a mera arrecadação de recursos (finalidade fiscal) – sobretudo finalidades de natureza econômica ou social. Nessa esteira, pode-se afirmar que as referidas normas podem ser dotadas tanto de finalidades indutoras quanto redistributivas, lembrando que as primeiras relacionam-se à indução de comportamentos, ao passo que as últimas relacionam-se à correção de uma situação indesejada[114]. Assim, pode-se falar em benefícios fiscais indutores e benefícios fiscais redistributivos[115].
Em suma, pode-se afirmar que, se, por um lado, benefícios fiscais implicam um afastamento da igualdade a partir da capacidade contributiva, por outro lado, tais medidas serão admissíveis, em ordenamentos jurídicos nos quais a capacidade contributiva seja parâmetro fundamental para distribuição da carga tributária, caso sejam justificadas em face do princípio da igualdade, o que requer aplicação da regra da proporcionalidade[116]. Possivelmente, também será necessário que os benefícios fiscais sejam justificados em face dos direitos de liberdade. Destaca-se, contudo, que a justificação de benefícios fiscais em face do princípio da igualdade é sempre condição necessária para a validade dessas medidas, o que pressupõe um controle de proporcionalidade[117].
Feitas essas breves considerações acerca da definição e admissibilidade dos benefícios fiscais, importa questionar acerca da admissibilidade de benefícios fiscais para organizações religiosas. De plano, pode-se afirmar que tais benefícios serão, a priori, admissíveis, caso a finalidade por eles perseguida seja apta a justificar a discriminação por eles promovida.
Antes, contudo, de se passar a essa análise, importa esclarecer que, se, por definição, benefícios fiscais consistem em “vantagens tributárias”, não há dúvidas de que benefícios fiscais podem ser considerados um “modo de financiamento”, embora indireto[118]. Nessa esteira, vale esclarecer que benefícios fiscais são modalidades de subvenções estatais, a lembrar-se que as subvenções caracterizam-se pela concessão estatal de vantagem patrimonial, com vistas ao alcance de fins públicos, independentemente de contraprestação direta[119]. Dessa forma, assim como as chamadas subvenções diretas, os benefícios fiscais também implicam a concessão de uma vantagem patrimonial, onerando, inclusive, os cofres públicos[120].
Tomando-se estas considerações como premissas, passa-se à análise de benefícios fiscais para organizações religiosas na Alemanha.
3.2. Admissibilidade de Benefícios Fiscais para Organizações Religiosas no Ordenamento Jurídico Alemão
Primeiramente, deve-se destacar que, por não haver, no ordenamento jurídico alemão, previsão comparável à imunidade de templos de qualquer culto – prevista no artigo 150, VI, “b”, da Constituição Federal brasileira – tem-se que a tributação de organizações religiosas é constitucionalmente admissível[121].
Não obstante, partindo-se do pressuposto de que quem tem competência para tributar, também a tem para conceder benefícios fiscais[122], tem-se, em princípio, que o legislador infraconstitucional pode, sim, conceder benefícios fiscais que favoreçam organizações religiosas. Ocorre que, conforme salientado acima, essas medidas devem ser justificadas a partir da finalidade por elas perseguidas.
Segundo Tobias Clasen[123], no caso de benefícios fiscais para organizações religiosas, ganha relevância a finalidade indutora, e não a finalidade redistributiva, pois se trata de benefício justificado por características e atividades inerentes às organizações religiosas.
Nesse sentido, vale observar, com Claus Dieter Classen[124], que a religião é um fenômeno social que tem influência sobre a vida e a sociedade. Jens Petersen[125], por seu turno, afirma que a Igreja desempenha um papel fundamental na infraestrutura espiritual, cultural, pedagógica e social, oferecendo pressupostos para o Estado Democrático, que não podem ser propiciados pelo próprio Estado. Afinal, além de desenvolver atividades de natureza tipicamente religiosa e espiritual, as organizações religiosas frequentemente desempenham atividades relacionadas a saúde, educação, assistência social, entre outras[126]. Vale notar, ainda, que grandes organizações voltadas à promoção do bem-estar estão vinculadas a organizações religiosas[127].
Com isso, pode-se afirmar que é, sim, possível, no âmbito do ordenamento jurídico alemão, a concessão de benefícios fiscais para organizações religiosas, haja vista as atividades por estas desenvolvidas. Ou seja, em princípio, o tratamento tributário favorecido de organizações religiosas é passível de justificação, uma vez que tais entidades cooperam para o alcance do bem comum. Afinal, benefícios fiscais devem perseguir finalidades constitucionais e estas podem ser alcançadas por meio do apoio a organizações religiosas. Ademais, não se pode deixar de mencionar que benefícios fiscais para organizações religiosas também contribuem para a concretização da liberdade religiosa[128], de modo que, também por este ângulo de análise, poder-se-ia justificar a concessão de benefícios fiscais para organizações religiosas.
É claro que a concreta aferição da legitimidade de tais medidas requer uma análise casuística, a fim de se analisar a estrutura do benefício considerado e a finalidade específica por ele perseguida. Não obstante, a priori, pode-se afirmar que a concessão de benefícios fiscais para organizações religiosas é legítima[129].
3.3. Modalidades de Benefícios Fiscais para Organizações Religiosas
Seguindo classificação frequentemente adotada pela doutrina alemã, importa diferenciar os benefícios fiscais diretamente concedidos às organizações religiosas (benefícios fiscais diretos) daqueles indiretamente concedidos a tais organizações (benefícios fiscais indiretos). No primeiro caso, a organização religiosa é diretamente alcançada pela medida exonerativa (uma isenção, por exemplo), de modo que o benefício fiscal se direciona, portanto, à própria organização religiosa. No segundo caso, medidas exonerativas são concedidas a terceiros para que estes façam algo em favor da organização religiosa ou de entidades vinculadas à organização[130]. Como se pode observar, no caso de benefícios fiscais indiretos, a organização religiosa é alcançada apenas de forma mediata.
Um importante exemplo de benefícios fiscais indiretos consiste na dedutibilidade, como despesas extraordinárias, de valores direcionados a organizações religiosas, para fins de apuração da renda tributável. Essa medida permite uma redução da base de cálculo do imposto de renda e, consequentemente, do valor do imposto de renda devido[131]. Nesse sentido, vale fazer referência à dedutibilidade do valor pago como imposto eclesiástico, para fins de apuração do imposto de renda devido[132], conforme previsto no §10, “1”, “4”, da Lei do Imposto de Renda alemão[133].
Com efeito, embora os referidos benefícios não se direcionem imediatamente às organizações religiosas, eles as favorecem – caracterizando-se como uma vantagem financeira e, consequentemente, como um mecanismo de financiamento indireto –, na medida em que aumenta a probabilidade de direcionamento de valores – doações, por exemplo – à organização religiosa[134]. Nesse sentido, Peter Axer[135] afirma que se estabelece, embora de forma indireta, nos casos em comento, uma relação financeira entre Igreja e Estado.
Vale observar que, embora, no caso de benefícios fiscais indiretos, as organizações religiosas sejam beneficiadas apenas de forma mediata, é notório que se trata de um mecanismo de financiamento proveniente, em grande parte, do Estado, lembrando-se que esses benefícios implicam, em tese, uma redução da arrecadação tributária[136]. Nessa esteira, conforme se discorreu acima, a admissibilidade dessas medidas requer justificação a partir de sua finalidade. E, conforme demonstrado, tem-se que o financiamento de organizações religiosas é um fim, em princípio, apto a justificar a concessão de benefícios fiscais[137].
3.4. Fatores Determinantes para a Concessão de Benefícios Fiscais para Organizações Religiosas na Legislação Tributária Alemã
Tendo em vista o disposto na legislação tributária alemã, pode-se afirmar que a efetiva concessão de benefícios fiscais para organizações religiosas está intimamente relacionada a dois fatores, quais sejam (i) forma jurídica adotada pelas organizações religiosas e (ii) objetivos perseguidos por elas e pelas organizações a elas vinculadas[138].
Nesse sentido, o direito tributário alemão estabelece uma diferenciação entre organizações religiosas constituídas como pessoas jurídicas de direito público e aquelas que se organizam a partir das regras do direito privado, de modo que as organizações que ostentam o status de pessoa jurídica de direito público são tratadas de forma mais benéfica[139].
Esse tratamento diferenciado tem gerado um candente debate nas esferas acadêmicas alemãs. Discute-se se essa diferenciação seria admissível e como justificá-la. Antes, contudo, de se tecer algumas considerações acerca da admissibilidade/justificação dessa diferenciação, importa compreender a sistemática dos benefícios fiscais para organizações religiosas, na legislação tributária alemã.
Nesse sentido, em muitos casos, as organizações religiosas constituídas como pessoa jurídica de direito público não são consideradas contribuintes pela legislação disciplinadora de tributos específicos[140], o que, segundo definição aqui adotada, também corresponde a uma modalidade de benefícios fiscais[141]. Deve-se destacar, contudo, que as organizações religiosas constituídas como pessoas jurídicas de direito público são consideradas contribuintes, caso desempenhem atividades de caráter comercial ou participem da atividade econômica de outra forma[142]. Não obstante, mesmo nesses casos, as referidas organizações podem, atendidos determinados requisitos, fazer jus a outros benefícios fiscais[143].
Vale fazer breve alusão, ainda, à situação das chamadas “instituições eclesiásticas” (kirchliche Einrichtungen), as quais são regidas pelo direito privado, embora sejam vinculadas a organizações religiosas constituídas como pessoas jurídicas de direito público. Trata-se de uma forma de as organizações religiosas se estruturarem para realizar seus objetivos em diferentes searas – as entidades eclesiásticas têm relevância, por exemplo, como mantenedoras de hospitais e escolas. As referidas instituições eclesiásticas são consideradas individualmente para fins de responsabilidade tributária[144]. No tocante a benefícios fiscais, tem-se que, em regra, os requisitos para que as instituições em questão façam jus a eles são mais rigorosos que aqueles aplicáveis às organizações religiosas constituídas como pessoa jurídica de direito público, uma vez que aquelas não são beneficiárias “automáticas” de benefícios fiscais[145]. Logo, em regra, as instituições eclesiásticas devem atender aos pressupostos descritos nas leis específicas como condições para o gozo de determinado benefício fiscal[146].
Da mesma forma, tem-se que as organizações religiosas de direito privado são, em regra, contribuintes, embora elas possam ser alcançadas por benefícios fiscais específicos[147], desde que atendam aos pressupostos (condições) legalmente previstos para a concessão da medida. Tais benefícios fiscais são concedidos por meio de leis específicas, de forma combinada com os §§ 51 e seguintes do Código Tributário alemão (Abgabenordnung)[148], os quais versam sobre a parte geral do chamado “direito de utilidade pública” (Gemeinnützigkeitsrecht)[149]. Em linhas gerais, pode-se afirmar que, embora utilidade pública seja um conceito indeterminado, está-se fazendo referência ao “apoio à coletividade” (Förderung der Allgemeinheit) ou à “promoção do interesse público” (Förderung des Gemeinwohls) em searas materiais, espirituais ou morais[150]. Nesse sentido, benefícios fiscais voltados à promoção do interesse público têm o condão de estimular particulares a promover o interesse público e de premiar aquele que o faça, de modo a “aliviar” o Estado[151].
Dessa forma, a rigor, as organizações religiosas de direito privado são tratadas como qualquer outra pessoa jurídica de direito privado, uma vez que, como constata Clasen[152], a legislação tributária esparsa não direciona benefícios fiscais às referidas organizações levando em conta o fato de estas serem “organizações religiosas”. Logo, para fazerem jus a benefícios fiscais específicos, as referidas organizações devem atender aos pressupostos a eles vinculados[153]. Nesse ponto, vale observar que a “promoção da religião” é reconhecida pelo § 52, “2”, do Código Tributário alemão como “apoio à coletividade”, desde que, contudo, sejam observadas as condições do § 52, “1” do mesmo Código – trata-se de critérios para que se considere que uma pessoa jurídica persiga finalidades de interesse público[154]. De forma secundária, também as organizações religiosas constituídas como pessoas jurídicas de direito público podem se valer desses benefícios específicos, o que se verifica relativamente às atividades que não são precipuamente vinculadas à religião[155].
Note-se, portanto, que, se, por um lado, as organizações religiosas que apresentam o status de pessoa jurídica de direito público são, frequentemente, “automaticamente” alcançadas por benefícios fiscais, por outro lado, as demais organizações religiosas precisam atender aos requisitos da legislação específica e do Código Tributário alemão – no tocante ao “direito de utilidade pública”. Entende-se, contudo, que em ambos os casos está-se diante de benefícios fiscais, mesmo que esta não venha a ser a nomenclatura utilizada pela legislação[156]. Dessa forma, é evidente que as organizações religiosas constituídas como pessoas jurídicas de direito público são, em matéria de benefícios fiscais, favorecidas pela legislação alemã comparativamente às organizações religiosas de direito privado. Ou seja, as organizações religiosas são tratadas de forma distinta, em função da forma jurídica adotada[157].
Com efeito, vale fazer alusão ao §54 do Código Tributário alemão, o qual versa sobre a concessão de benefícios fiscais para finalidades eclesiásticas. O §54, “1” dispõe que “uma organização persegue objetivos eclesiásticos, se suas atividades são direcionadas a apoiar, de forma altruísta, organização religiosa que seja uma pessoa jurídica de direito público”[158] (tradução livre). Note-se, portanto, que o referido §54 do Código Tributário alemão dispõe sobre benefícios fiscais que se direcionem imediatamente a terceiros e, mediatamente, a organizações religiosas que ostentem o status de pessoa jurídica de direito público[159].
Para alguns autores[160], a diferença de tratamento acima constatada não merece objeções, uma vez que se trata de diferenciação entabulada na própria Lei Fundamental alemã[161]. Seguindo essa linha de raciocínio, o status de pessoa jurídica de direito público, embora não exija a referida sistemática de benefícios fiscais, a justifica[162]. Para Clasen[163], justamente pelo fato de não se tratar de uma diferenciação fundada em motivos materiais – de caráter social, por exemplo –, não há que se cogitar de uma afronta ao princípio da neutralidade do Estado. Nesse mesmo sentido, o Tribunal Constitucional Federal alemão já afirmou que a diferenciação em tela não implica discriminação religiosa, porquanto a concessão de tal status não se relaciona a questões materiais/religiosas[164].
Nesse sentido, vale observar que, segundo Dirk Ehlers[165], dentre os sentidos que emergem da categorização de uma organização religiosa como pessoa jurídica de direito público, está a possibilidade de o Estado diferenciar e conceder determinadas prerrogativas às organizações religiosas que ostentam status de pessoa jurídica de direito público. O autor salienta, contudo, que as referidas prerrogativas devem estar atreladas à forma jurídica, ser materialmente justificáveis e ser compatíveis com o princípio da igualdade. Nesse sentido, sob certas circunstâncias, Ehlers[166] admite que a concessão de benefícios fiscais dependa do status de pessoa jurídica de direito público.
Joachim Lang[167], por sua vez, entende que disposições especiais voltadas ao estabelecimento de privilégios – mormente benefícios fiscais – para organizações religiosas que se apresentam como pessoas jurídicas de direito público só se justificam se estas organizações estabelecerem uma relação de cooperação com o Estado.
Nessa esteira, vale fazer alusão ao fato de o Tribunal Constitucional Federal alemão já ter se manifestado no sentido de que “a Lei Fundamental não requer que o Estado trate todas as organizações religiosas de forma esquematicamente igual”[168] (tradução livre) e de que, por meio da concessão do status de “pessoa jurídica de direito público”, o Estado reconhece que se trata de organizações religiosas que têm um significado especial para o ordenamento jurídico. Dessa forma, apenas não seriam admitidas distinções entre organizações religiosas que ostentam o status de pessoa jurídica de direito público e as que não o apresentam, caso a concessão do referido status a outras organizações fosse dificultado, ainda que estas atendessem aos requisitos constitucionais[169] e [170].
Com efeito, o Tribunal Constitucional Federal alemão já afirmou que a expressão “pessoa jurídica de direito público”, referida pelo artigo 137, “5”, da Constituição de Weimar não é apenas uma forma vazia, uma vez que concede à organização religiosa uma posição jurídica especial, de modo que lhe são atribuídas competências especiais, tanto no que diz respeito aos seus membros, quanto no que se refere a terceiros. Esses benefícios fazem com que a organização religiosa disponha de uma maior influência sobre a sociedade e sobre o Estado[171].
Finalmente, é de se notar que, tendo em vista o já mencionado artigo 17, “1”, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia[172], a sistemática alemã de benefícios fiscais a organizações religiosas está protegida. Da mesma forma, a essas medidas não se aplica a legislação europeia sobre auxílios estatais[173].
Conclusão Comparativa
Ante todo o exposto, resta evidente que o direito tributário alemão proporciona um meio direto e outro indireto para o financiamento de organizações religiosas, quais sejam, o imposto eclesiástico e os benefícios fiscais, respectivamente. Não se pode deixar de apontar, todavia, que esse sistema não está imune a críticas.
O debate sobre o financiamento de organizações religiosas por meio do imposto eclesiástico é, frequentemente, objeto de intensos debates, tanto sob o ponto de vista jurídico, quanto teológico[174].
Nessa esteira, para Jens Petersen[175], o imposto eclesiástico constitui a base sólida de que as organizações religiosas necessitam para desempenhar suas atividades, enfatizando que a receita decorrente desse tributo garante que as Igrejas tenham mais autonomia que teriam se dependessem apenas do seu próprio patrimônio e de doações. Para o autor, a sistemática do imposto eclesiástico assegura uma justa distribuição do ônus relativo ao financiamento da Igreja, de modo a evitar diferenciações entre comunidades “ricas” e “pobres”. Pode-se argumentar, ainda, com Alberto Panizo e Romo de Arce[176], que o sistema do imposto eclesiástico é benéfico para o Estado, pois, conforme apontado, muitas das atividades desempenhadas pela Igreja – de caráter social, educacional, assistencial etc. – não poderiam ser realizadas na ausência do referido imposto, de modo que caberia ao Estado realizar as referidas tarefas.
Não obstante, o imposto eclesiástico é também alvo de veementes críticas. Nessa esteira, vale fazer referências às “doze teses sobre o imposto eclesiástico”, apresentadas por Jochen Teuffel[177], as quais são manifestamente contrárias ao sistema de financiamento das organizações religiosas lastreado no imposto eclesiástico. Por meio dessas teses, o autor chega a afirmar que “a Igreja não é um público de contribuintes, mas a comunidade de todos os crentes, que sob e para o evangelho vivem”[178] e [179].
Também há críticas em relação aos benefícios fiscais, mormente no que concerne aos diferentes tratamentos direcionados às organizações religiosas em função da forma jurídica adotada[180] e no tocante insegurança jurídica a eles inerente.
Sobre a referida diferenciação em função da forma jurídica, já se discorreu acima. Não obstante, vale mencionar o debate relativo à defesa de uma terceira categoria jurídica, da qual pudessem se valer organizações religiosas que não podem constituir-se como pessoa jurídica de direito público e, assim, fazer jus às vantagens a estas concedidas. Tratar-se-ia de um status para cujo alcance não houvesse tantas exigências como para a obtenção do status de pessoa jurídica de direito público, e ao qual se atrelassem vantagens tributárias[181].
A respeito da mencionada insegurança jurídica, pode-se observar, na esteira de Peter Axer[182], que, tendo em vista que os benefícios fiscais são apenas legalmente assegurados[183], uma relevante fonte de recursos das organizações religiosas queda dependente da vontade política. Nesse sentido, anota Axer:
“Essa insegurança a respeito das relações financeiras não existiria, se não fosse possível ao legislador tributário infraconstitucional restringir os benefícios fiscais para as Igrejas. Tal limitação da competência legislativa apenas pode resultar da Constituição”[184] (tradução livre).
Ora, uma situação de não tributação constitucionalmente garantida consistiria em uma imunidade tributária[185]. Note-se, portanto, que, segundo o autor, tendo por objetivo a segurança jurídica, seria mais interessante que imunidades estivessem asseguradas a organizações religiosas, de modo que o regime tributário vantajoso voltado a tais instituições não dependesse da legislação infraconstitucional e, consequentemente, da vontade política. Logo, tendo em vista a crítica acima, melhor solução teria encontrado ordenamento jurídico brasileiro, ao assegurar a imunidade aos “templos de qualquer culto”.
Todavia, observando o rigor científico requerido pela Ciência do Direito, não há que se confundir o instituto dos benefícios fiscais concedidos a organizações religiosas, na Alemanha, com a figura da imunidade de templos de qualquer culto, previsto na legislação brasileira. Não obstante, não se pode deixar de mencionar que tanto os benefícios fiscais quanto as imunidades redundam na não tributação[186] (ou em redução da carga tributária), de modo que, sob o ponto de vista dos beneficiários das medidas – in casu, as organizações religiosas – a mencionada diferença técnica perde relevância.
Apesar das críticas mencionadas, não se pode deixar de reconhecer méritos no sistema alemão de financiamento das organizações religiosas, por meio de instrumentos tributários. Nesse sentido, vale transcrever as seguintes considerações de Alberto Panizo e Romo de Arce:
“Finalmente, reseñar que el sistema de financiación de la Iglesia católica en Alemania nos parece digno de elogio; se trata de dos instituciones diferentes, Iglesia y Estado, que mantienen unas relaciones de las que se benefician recíprocamente: el Estado presta su aparato recaudatorio para recabar el impuesto religioso, dota y subvenciona la Iglesia y la declara exenta del pago de determinados tributos. La Iglesia, por su parte, lleva a cabo una intensa labor social, asistencial, caritativa y benéfica, sin olvidar la importante labor pastoral y cultural, que, y en definitiva, redunda en beneficio de toda sociedad”[187].
Não obstante esses méritos, uma eventual tentativa de adoção desse sistema no ordenamento jurídico brasileiro encontraria fortes barreiras constitucionais.
Primeiramente, poder-se-ia, de plano, argumentar que, para a criação de um imposto eclesiástico, nos moldes do imposto alemão, somente se poderia cogitar da competência residual da União, prevista no artigo 154, I, da Constituição Federal. Ocorre que não seria possível, como na Alemanha, tratar esse imposto como um adicional ao imposto de renda, pois, assim, ter-se-ia, ainda que de forma indireta, a mesma base de cálculo utilizada para o imposto sobre a renda, afrontando o dispositivo constitucional mencionado. Ademais, não seria admissível um imposto, no ordenamento jurídico brasileiro, cujo produto da arrecadação fosse direcionado às organizações religiosas, haja vista o princípio da não afetação dos impostos, positivado por meio do artigo 167, IV, da Constituição Federal, o qual apenas comporta as exceções constitucionalmente destacadas[188].
Ainda que se cogitasse da utilização de outra espécie tributária para a criação de um “tributo eclesiástico”, haveria dificuldades para tanto. Nesse ponto, vale esclarecer que, para que se esteja diante de um tributo, não basta que a exação se amolde à definição de tributo, nos termos do artigo 3º, do Código Tributário Nacional, sendo necessário que a exação apresente-se como uma das espécies tributárias constitucionalmente previstas, adequando-se a uma das faixas de competência tributária[189].
Nesse diapasão, seguindo os moldes alemães, não haveria que se cogitar da criação de uma “taxa eclesiástica”, uma vez que o tributo eclesiástico deve ser não contraprestacional. Afinal, não há que se falar, no caso em tela, de prestação de serviço público ou exercício do poder de polícia. Similarmente, não haveria nenhum sentido em uma “contribuição de melhoria eclesiástica”, uma vez que a contribuição de melhoria pressupõe uma obra pública, não guardando, portanto, nenhuma relação com o fato gerador “ser membro de uma organização religiosa”. Tampouco faria sentido imaginar que a criação de um “empréstimo compulsório eclesiástico”, uma vez que só é admissível a instituição dessa espécie tributária se constatado o atendimento dos pressupostos fáticos previstos no artigo 148, da Constituição Federal, lembrando-se, ainda, que os recursos arrecadados devem ser, necessariamente, destinados às despesas que fundamentaram sua instituição, conforme previsto no parágrafo único do mencionado artigo.
A análise da possibilidade da criação de um tributo eclesiástico como contribuição requer, entretanto, mais cautela. Afinal, em princípio, poder-se-ia imaginar que, por meio de uma contribuição parafiscal, seria possível que as organizações religiosas cobrassem e dispusessem do produto da arrecadação do tributo[190] e [191].
Ocorre que as contribuições são tributos finalísticos, devendo, portanto perseguir finalidades específicas, quais sejam, sociais, corporativas, interventivas, ou, ainda, devem se prestar ao custeio do serviço de iluminação pública, conforme disposto no artigo 149, caput e §1º e no artigo 149-A. Tendo em vista que não há que se cogitar de “contribuições eclesiásticas” com fins corporativos ou interventivos e, tampouco, voltadas ao custeio do serviço de iluminação pública, importa verificar se seria admissível, no ordenamento jurídico brasileiro, um tributo eclesiástico como contribuição social.
Desse modo, deve-se destacar que não se estaria diante de uma contribuição voltada ao custeio da seguridade social, de modo que não seria admissível recorrer à competência residual da União relativamente a contribuições voltadas à seguridade social, prevista no artigo 195, §4º, da Constituição Federal. Afinal, as contribuições mencionadas caracterizam-se por entrarem diretamente no orçamento da seguridade social[192]. Neste ponto, há que se notar que, segundo o artigo 165, §5º, III, da Constituição Federal, o orçamento da seguridade social abrange “todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público”[193] e [194].
Logo, importa aferir se seria possível que o tributo eclesiástico em questão se apresentasse como uma contribuição social geral[195], ou seja, contribuições voltadas ao alcance de outras finalidades sociais, que não relativas à seguridade social[196]. Para tanto, seria necessário superar algumas barreiras teóricas. Assim, primeiramente, dever-se-ia analisar a admissibilidade, no ordenamento jurídico brasileiro, de outras contribuições sociais gerais, além daquelas expressamente previstas no texto constitucional, a exemplo do salário-educação, previsto no artigo 212, §5º, da Constituição Federal, lembrando-se que a referida admissibilidade é tema altamente controverso. Em segundo lugar, dever-se-ia analisar se a destinação de recursos à Igreja caracterizaria atuação da União no setor social – de modo a se estar diante de contribuição criada a partir do exercício da competência conferida à União por meio do artigo 149, da Constituição Federal –, bem como se os demais requisitos para a instituição de novas contribuições sociais gerais estariam preenchidos, no caso concreto[197].
Não se pode deixar de observar, ainda, que um tributo eclesiástico deveria se acomodar aos princípios tributários – como o princípio da vedação à utilização de tributos com efeito de confisco – e não tributários, como os princípios de liberdade religiosa e separação entre Igreja e Estado[198]. Todavia, neste ponto, não se pode deixar de enfatizar as semelhanças – já apontadas acima – no modo pelo qual se dá o relacionamento entre Estado e Igreja no ordenamento jurídico alemão e no brasileiro.
Segundo Konrad Hesse[199], tanto o sistema do imposto eclesiástico quanto a proteção representada pelo artigo 138 da Constituição de Weimar – em cujo item “1” está prevista a garantia de que determinados benefícios fiscais serão suprimidos mediante indenização[200] e, em cujo item “2” há disposição voltada à proteção dos bens das organizações religiosas – apresentam-se como mecanismos para a realização da autodeterminação das organizações religiosas no tocante às suas questões, nos termos do artigo 137, “3”, da referida Constituição. Vale observar, nessa esteira, que também o ordenamento jurídico brasileiro assegura a livre organização das organizações religiosas e, ainda, que o Estado brasileiro tem o dever de “criar condições para que as confissões religiosas desempenhem suas missões (dever de aperfeiçoamento)”[201]. Logo, seria admissível (e desejável) que o Estado criasse um sistema de tributo eclesiástico para, como na Alemanha, assegurar a autodeterminação das organizações religiosas?
Independentemente da resposta a esta questão, com fulcro nos princípios que governam a relação entre Estado e Igreja no Brasil, tem-se que a Constituição brasileira, diferentemente da Lei Fundamental alemã, não previu referido tributo, de modo que não conferiu, expressamente, a competência tributária respectiva, o que leva novamente ao debate, acerca da competência para a criação de um “tributo eclesiástico”, no Brasil.
Por outro lado, o ordenamento jurídico brasileiro não impõe maiores barreiras à concessão de benefícios fiscais. O texto constitucional brasileiro chega a admitir, expressamente, por meio do artigo 19, I, parte final, a possibilidade o Estado colaborar com organizações religiosas para o atendimento de fins de interesse público.
Ocorre, todavia, que, diferentemente da Lei Fundamental alemã, a Constituição brasileira assegura a imunidade de templos de qualquer culto a impostos, relativamente ao “patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas”, conforme disposto no artigo 150, VI, “b” e § 4º, da Constituição Federal. Embora a referida imunidade se direcione apenas a impostos – e não aos demais tributos – e esta esteja envolta em controvérsias acerca de seu alcance[202], trata-se de mecanismo de extrema importância no âmbito das relações entre Estado e Igreja, tendo por finalidade a proteção da liberdade religiosa[203].
Como já mencionado, benefícios fiscais e imunidades não se confundem. Se, por um lado, benefícios fiscais correspondem a uma vantagem tributária, pressupondo, para sua concessão, a competência tributária; por outro lado, as imunidades tributárias são normas delimitadoras da competência tributária, ou, por outro giro, sinalizadoras de incompetência tributária[204]. Dessa forma, a previsão de imunidade não representa um financiamento, pelo Estado, de organizações religiosas. Ademais, se, onde não há competência tributária, não é possível a tributação, também não é possível a concessão de benefícios fiscais. Portanto, em grande medida, a imunidade de tempos de qualquer culto faz com que sequer seja possível – e tampouco faça qualquer sentido – a concessão de benefícios fiscais para organizações religiosas, por ausência de competência tributária.
Isso não quer significar, entretanto, que a concessão de benefícios fiscais para organizações religiosas seja totalmente impossível no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro. Assim, deve-se reiterar que a regra imunizante do artigo 150, VI, b, da Constituição Federal relaciona-se apenas a impostos, além de ter seu alcance limitado pelo disposto no artigo 150, §4º, do texto constitucional. Portanto, nos campos não alcançados pela imunidade, em que haja competência tributária, há espaço para a concessão de benefícios fiscais.
Ademais, se a referida imunidade direciona-se a “templos de qualquer culto”, não há que se cogitar do alcance de terceiros que desempenham atividades – doações, por exemplo – em benefício de organizações religiosas. Ou seja, a imunidade de templos de qualquer culto não implica qualquer incompetência tributária relativa a terceiros. Logo, a imunidade de templos de qualquer culto não afeta a possibilidade de concessão de benefícios fiscais indiretos para organizações religiosas.
Com isso, assim como no ordenamento jurídico alemão, benefícios fiscais para organizações religiosas serão admissíveis, no ordenamento jurídico brasileiro, se justificados a partir de sua finalidade. Tendo em vista que organizações religiosas, como demonstrado, realizam diversas atividades voltadas ao bem comum, é razoável imaginar que benefícios fiscais direcionados a organizações religiosas perseguirão finalidades aptas a justificá-los. Ter-se-ia, assim, uma concretização do princípio da cooperação, norteador das relações entre Estado e Igreja no Brasil[205]. Ademais, vale salientar, a própria proteção da liberdade religiosa pode apresentar-se como finalidade apta – porquanto constitucionalmente fundada – a justificar os benefícios fiscais em questão. Não se pode deixar de chamar a atenção, contudo, para o fato de que a admissibilidade de cada benefício específico depende de um exame casuístico, a fim de justificá-lo em face do princípio da igualdade, e, eventualmente, em face de direitos de liberdade.
Logo, no tocante a benefícios fiscais – a serem concedidos no espaço não alcançado pela imunidade de templos de qualquer culto –, verifica-se a possibilidade de o Estado brasileiro, de forma comparável àquela desenvolvida pelo Estado alemão, financiar as organizações religiosas, de forma indireta, em total consonância com o artigo 19, I, da Constituição Federal.
Professora na Faculdade de Direito de Vitória FDV. Doutora em Direito pela Westflische Wilhelms-Universitt Mnster Alemanha e Doutora em Direito Econômico e Financeiro pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP. Advogada
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