Resumo: Objetivo deste Artigo é apresentar o conceito do instituto do Habeas Corpus sob o prisma de sua utilização nos Procedimentos Administrativos Disciplinares Militares, na ótica legal e de renomados doutrinadores brasileiros, assim como a própria jurisprudência dos tribunais superiores. Neste aspecto, o Artigo prosseguirá com a abordagem acerca do cabimento ou não deste remédio processual no campo jurídico militar; demonstrando como esse pressuposto constitucional é interpretado em relação aos Procedimentos Administrativos Disciplinares Militares, tendo em vista, ser ponto de divergência entre nossos legisladores e juristas.
Palavras-chave: ampla defesa, coação, constituição, contraditório, direito, habeas corpus, liberdade, militar, procedimento, processo, transgressão disciplinar.
Introdução:
Em princípio necessário se faz determinar a correta interpretação técnico jurídico para o termo “Procedimento Administrativo Disciplinar”. Então, antes de se adentrar no âmbito do sistema imediato de defesa judicial a ser utilizado nos processos e procedimentos disciplinares administrativos propriamente ditos, surge a necessidade de fazer a definição do Ato que gera todo o trâmite administrativo: qual seja a Transgressão Disciplinar.
Na conceituação do juiz militar de Minas Gerais Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, a transgressão disciplinar pode ser “definida como sendo a prática de um ato de natureza administrativa contrário aos preceitos estabelecidos no Regulamento Disciplinar Militar e no caso do estado de Minas Gerais contrário aos estabelecidos no Código de Ética e Disciplina dos Militares do Estado” [1].
A transgressão disciplinar pode ser de natureza leve, média e grave; gerando, como preceituado, o procedimento administrativo [Comunicação Disciplinar; Procedimento Sumário e Sindicância Regular], e/ou o próprio processo administrativo disciplinar. Face esse preceito, necessário também a distinção entre o Processo e a figura do Procedimento Administrativo.
Segundo Sérgio Ricardo Freire Pepeu – Procurador do Estado de Alagoas –, em seu “Processo Administrativo Disciplinar”, Processo é o método, é a junção de atos sucessivos com o intuito de conseguir um pronunciamento sobre determinada controvérsia, quer seja ela em área judicial, quer seja ela em área administrativa; já o Procedimento equivale a rito, ou seja como o processo se realiza em cada caso concreto [SÉRGIO R. F. PEPEU – “Processo Administrativo Disciplinar – [2]].
Neste sentido é de se ressaltar, que existem procedimentos sem processos – por exemplo, a Sindicância Disciplinar –, mas não existe processo sem procedimento.
O Processo Administrativo Disciplinar configura como é de se observar, uma categoria especial do gênero Processo. Sua definição, a ótica do festejado Mestre Hely Lopes Meirelles “é o meio de apuração e punição de faltas graves dos servidores públicos e demais pessoas sujeitas ao regime funcional de determinados estabelecimentos da Administração” [HELY L. MEIRELLES. “Curso de Direito Administrativo” – [3]]. Por “falta grave” podemos determinar como um ilícito administrativo que nada mais é que a quebra a um dos interesses públicos da Administração, ou seja, são as denominadas “infrações funcionais graves”.
Já o Procedimento Administrativo Disciplinar, continuando nas lições de Hely Lopes Meirelles [Direito Administrativo Brasileiro, pág. 664, 27ª edição] é a “sindicância administrativa, o meio sumário de elucidação de irregularidades no serviço para subseqüente instauração de processo de punição ao infrator”.
No entendimento de Cretella “sindicância é o meio sumário de que se utiliza a administração pública brasileira para, sigilosa ou publicamente, com indiciados ou não, proceder à apuração de ocorrências anômalas no serviço público, as quais, confirmadas, fornecerão elementos concretos para a imediata abertura de processo administrativo contra o funcionário público responsável”, além é claro de poder confirmar a própria punição administrativa [JOSÉ C. JUNIOR. Tratado de Direito Administrativo – [4]].
O conceito aludido, continuando procedente apenas para definir materialmente a função de sindicar, não guarda mais coerência com o nosso jus positum. Isso porque, como espécie de procedimento disciplinar, a sindicância, pelo menos em sentido estrito, não é mais esse meio aberto e sumário de apuração de irregularidades ocorridas nas repartições públicas.
A sindicância realmente tem prazo menor do que o processo ordinário, mas povoa o universo da processualística disciplinar, estando, por isso, sujeita às imposições oriundas do devido processo legal.
O procedimento disciplinar da sindicância, conquanto deva-se desenvolver, no prazo de trinta dias, prorrogável por igual lapso, se desdobra nas mesmas fases do processo ordinário, e destina-se a apurar faltas que ensejem penas de advertência e suspensão não superior a trinta dias.
Contudo, poderá a sindicância tomar três rumos:
a) arquivamento do procedimento;
b) aplicação das aludidas penalidades; e
c) instauração de processo disciplinar.
Daí se deduz que a sindicância, como procedimento disciplinar, se divide em duas espécies: autônoma e preparatória. Esta funciona como fase informativa do processo ordinário; enquanto que aquela se basta em si mesma como base processual para se infligir aquelas punições mais leves.
O Procedimento Administrativo Disciplinar – Sindicância Regular, Procedimento Sumário, Queixa Disciplinar e Comunicação Disciplinar –, deve ser equiparado, e tratado como Processo Administrativo Disciplinar, com a utilização do devido processo legal [CF/88 Artigo 5º, Inciso LIV (principalmente no que diz respeito à Imparcialidade)], assim está na jurisprudência:
“[TJMG – Processo Nº 1.0000.00.332395-3/000(1) – Relator: Des. Pedro Henriques: 18/09/2003]: “A apuração de irregularidade praticada por policial militar pode ser feita por sindicância (procedimento administrativo, equivalente à comunicação disciplinar) ou processo administrativo, assegurado ao acusado o devido processo legal. O processo administrativo não pressupõe necessariamente a existência de uma sindicância (procedimento), mas, se esta for instaurada, é preciso distinguir: se dela resultar procedimento preparatório do processo administrativo disciplinar, é neste que será imprescindível assegurar o devido processo legal; se, porém, da sindicância (procedimento) decorrer a possibilidade de aplicação de penalidade, essa aplicação só poderá ser feita se for garantido, nesse procedimento, o devido processo legal”.
Assim… Aberto o Procedimento Administrativo Disciplinar, permanecendo a acusação e havendo restrição aos direitos individuais de liberdade – que não deve ser interpretada apenas no seu sentido literal, devendo ser analisada no sentido subjetivo – caberá a impetração judicial de Habeas Corpus, requerendo o trancamento do processo.
Ainda, não obstante a vedação do art. 647 do CPP e a norma do art. 142, § 2º, da Constituição Federal, pensa-se que a ordem deva ser conhecida em obediência ao princípio constitucional da universalidade da jurisdição [Artigo 5º, inciso XXXV, da CF], conforme modernamente se tem entendido, restrito o exame aos pressupostos de validade e legalidade do próprio mérito da decisão disciplinar, este, sim, de análise proibida por Habeas Corpus.
Neste passo é o Habeas Corpus uma via adequada para trancamento de processo /procedimento administrativo, uma vez que pode estar em jogo a liberdade de ir e vir [Constituição Federal, art. 5º, LXVIII].
Conceito de Habeas Corpus:
Na lição de Heráclito Antônio Mossin apud Ricardo Bellido: o Habeas Corpus pode ser definido como: “o remedim iuris de natureza constitucional voltado à tutela da liberdade de locomoção do indivíduo, quando coarctada ou ameaçada de sê-lo por violência ou coação decorrente de ilegalidade ou abuso de poder” [RICARDO BELLIDO. O Habeas Corpus nas Transgressões Disciplinares Militares – [5]].
José Cretella Junior leciona, o definindo como: […] uma ação constitucional de caráter penal e de procedimento especial, isenta de custas e que visa evitar ou cessar violência ou ameaça na liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Não se trata, portanto, de uma espécie de recurso, apesar de regulamentado no capítulo a eles destinado no Código de processo Penal.
Vicente Greco Filho citado no magistério de Beatriz Trentin leciona: “Originário da Magna Carta, mas definitivamente consagrado nas declarações universais de direitos, constitui-se o habeas corpus no mais eficiente remédio para a correção do abuso de poder que compromete a liberdade de locomoção” [BEATRIZ TRENTIN. Direito Processual Penal – [6]]
Interpretação sobre Liberdade:
O Artigo 5°, Inciso LXVIII, da Constituição Federal de 1988, descreve que: “Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Nesta ótica, cabe então, detalhar a interpretação intrínseca do termo “liberdade”, suas concepções e dilatações, para se chegar ao ponto de mérito buscado.
Liberdade, filosoficamente, designa de uma maneira negativa, a ausência de submissão, de servidão e de determinação, isto é, ela qualifica a independência do ser humano. De maneira positiva, liberdade é a autonomia e a espontaneidade de um sujeito racional. Isto é, ela qualifica e constitui a condição dos comportamentos humanos voluntários.
Não é apenas uma apreciação abstrata; já que, como exposto, a liberdade vai além da concepção normalmente vista com objetividade. Não se trata de uma separação entre liberdade e o homem, mas sim de uma sinergia entre os mesmos a auto-afirmação do Ego e sua existência –; qual seja a liberdade com concepção de subjetividade.
Assim, ser livre, na concepção mais exata é ter vontade própria; é ter o instrumento essencial ao corpo e ao espírito.
Liberdade de locomoção, então, deve ser vista como a vontade de ir e vir sem medo, sem constrangimento, sem nódoa ou ferimento que possa macular a figura física ou moral do homem.
Destarte, então, toda e qualquer imposição que traga mácula; ferindo a liberdade de locomoção física e/ou moral do homem é passível de Habeas Corpus. Nesta interpretação, lógico, se encontra o Procedimento Administrativo Disciplinar que promova, injustamente, a restrição ao ímpeto de liberdade que reside em cada ser humano.
Do Cabimento do Habeas Corpus em Procedimento Administrativo Militar:
Nos termos dos artigos 647 e 648, e incisos, do Código de Processo Penal Brasileiro, caberá habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, exceto, nos casos de punição disciplinar militar. É de notar que o Procedimento Administrativo Disciplinar ainda não impõe uma punição disciplinar, vindo, então – de forma direta –, impor, sem discussão, originalmente a coação ilegal, por parte de autoridade legítima, à possibilidade da restrição ao direito objetivo de ir e vir; gerando a concepção de subtração da liberdade subjetiva do indivíduo.
Ora Habeas Corpus é espécie de “alívio constitucional” que deve ser utilizado quando, ferindo o princípio da legalidade, a autoridade coatora ameace o direito de ir e vir do paciente, inclusive preventivamente – no trancamento dos Procedimentos Administrativos Disciplinares Militares ilegais –, pois a hierarquia e a disciplina não podem ser utilizadas como “égide protetora” para birra, vinganças pessoais ou qualquer outro ato de ilegalidade.
No Habeas Corpus Preventivo – utilizado no trancamento de ações penais e/ou administrativas – deve ser observado os pressupostos do “periculum in mora” [perigo na demora] e do “fumus boni júris” [da fumaça do bom direito], ou seja: que haja uma a possibilidade jurídica do pedido em face do grande risco de sua ineficácia.
Neste passo, se houver lentidão na presteza jurisdicional, pode-se e deve-se, conceder o habeas corpus liminarmente sem a audiência prévia do agente ou órgão constrangedor da liberdade subjetiva de locomoção.
Estando os dispositivos de ordem Constitucional e legal, sob o prisma, eminentemente jurídico, militando em favor do paciente, nada obsta o Habeas Corpus, a ser preventivamente impetrado para o Trancamento de Procedimento Administrativo, “… neste caso, ao invés da ordem ser liberatória, será a ordem deferida no sentido de se evitar (…) um constrangimento ilegal…” [JOÃO ROBERTO PARIZATTO. Do Habeas Corpus – [7]].
A Jurisprudência majoritária já assentou que: “É possível a concessão do Habeas Corpus preventivo, quando o paciente demonstra de forma convincente que está na iminência de sofrer violência ou coação ilegal…” [JOÃO ROBERTO PARIZATTO – [8]].
O instituto do habeas corpus é o remédio iuris adequado contra abuso de poder ou de autoridade para assegurar o ius libertatis, para fazer cessar constrangimento ilegal e trancar investigação ou ação (…) instaurada sem justa causa [CÂNDIDO FURTADO M. NETO – [9]].
No trancamento de Procedimento Administrativo, o Habeas Corpus é a garantia de resguardo do direito do paciente, no sentido de evitar possível restrição à sua liberdade objetiva ou subjetiva, gerando constrangimento ilegal. Este, também é o sentido que vem adotando o Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
“Habeas Corpus: 1.0000.04.416069-5/000 – Rel. Herculano Rodrigues: Ementa: “Habeas Corpus”. Trancamento de procedimento administrativo levado a efeito no âmbito da Promotoria Especializada de Defesa do Meio Ambiente. (…) Inexistência de justa causa para o procedimento. Constrangimento ilegal configurado. Ordem concedida. “… CONSUBSTANCIAM FLAGRANTE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. COM ESTAS CONSIDERAÇÕES, CONCEDO A ORDEM IMPETRADA, DETERMINANDO O TRANCAMENTO DO PROCEDIMENTO”.
Outro não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça quanto a contrariedade do princípio constitucional, que assim se expressa “in verbis”:
“HABEAS CORPUS Nº 44.085 – RJ (2005/0079248-5) – Rel. Min. Nilson Naves: Ementa: … 6 – Habeas corpus deferido a fim de se determinar o trancamento da sindicância. “HAVENDO, POIS, COAÇÃO ILEGAL – ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER –, VOTO PELA CONCESSÃO DA ORDEM A FIM DE TRANCAR A SINDICÂNCIA INSTAURADA PELA PORTARIA Nº 03/2004 – DEP”.
Este também é o entendimento da Justiça Federal, o que pode ser observado em processo com “causa” diretamente em discussão militar.
“HC – 2008.32.01.000228-1 – Relatora: Juíza Federal Ana Paula Serizwa Silva Rodedworny. “[…] Quanto à possibilidade de impetração de Habeas Corpus em face de punições disciplinares militares, é sedimentado o entendimento de que: “A legalidade da imposição de punição constritiva da liberdade, em procedimento administrativo castrense, pode ser discutida por meio de habeas corpus”.
Tal entendimento não poderia ser diferente e está em plena harmonia com o desenvolvimento de um Estado Democrático de Direito que busca resguardar, de forma mais ampla possível, os direitos individuais dos seus cidadãos.”
Não se objetiva, evidente, tolher as ações da autoridade, querendo apenas evitar as arbitrariedades. Na lição de Plácido e Silva é “… estar presente o que se teme ou que se espera…” [PLÁCIDO e SILVA. Vocabulário – [10]]. Não podendo o paciente esperar a arbitrariedade, temendo estar a mesma confirmada.
Conclusão:
A proposta do presente artigo é abrir o debate para discussão de um tema palpitante que muito interessa a uma classe especial os militares, e que, muitas das vezes são impedidos de pleitearem judicialmente direitos e garantias fundamentais como todo cidadão deve ter.
Nesse sentido, se buscou de forma abreviada, apresentar posicionamentos das mais abalizadas doutrinas, presentes no direito brasileiro, assim como da jurisprudência acerca do cabimento deste instituto jurídico e constitucional, quanto aos componentes das Forças Armadas e das Policias Militares brasileiras, nos Procedimentos Administrativos Disciplinares Militares.
Por outro lado, ampara dizer que, embora aja a vedação do aproveitamento do instituto nas punições disciplinares [isso em seu mérito], transcrito na Constituição da República de 1988, observam-se vários em que tal matéria, não vislumbra uma total pacificação.
Neste diapasão, deve ser enfatizado que, se houver flagrante violação de direitos e garantias fundamentais essenciais ao paciente-militar [violência ou ameaça de constrangimento ilegal], haverá vistas ao cabimento desta ação judicial.
Nesta máxima, sempre que o direito de alguém estiver em risco ou na iminência de ser violado [civil ou militar], pode, e deve ser enfrentado com a ação do habeas corpus. Nos processos penais, se inexistir outro meio processual para fazê-lo, pode-se lançar mão deste instituto. Nos processos administrativos, se houver risco de violação da liberdade ambulatorial, objetiva ou subjetiva, do individuo, também pode ser usado esta ação judicial.
Destarte, não poderia ser diferente nos Processos Administrativos Disciplinares Militares, pois, se fosse assim [vedada à aplicação do instituto ao militar], estar-se-ia provocando o aniquilamento do princípio fundamental do próprio Estado Democrático de Direito; qual seja: o próprio Estado de Direito.
Policial Militar da Polícia Militar de Minas Gerais. Bacharel em direito e filosofia – com especialização em processo civil e direito militar. Mestrando em Antropologia. Autor de livros jurídicos e artigos em revistas e sites especializados. Membro titular da Academia de Letras de Teófilo Otoni/MG
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