Autoras: Mayza Kethone Santos[1] e Priscilla Cândida Magalhães[2]
Orientador: Cristian Kiefer da Silva[3]
Resumo: O presente estudo explora os elementos que traçam os contornos da nova figura do juiz das garantias, instituída pelo denominado Pacote Anticrime – Lei n° 13.964 de 24 de dezembro de 2019, e a busca pela imparcialidade do julgador dentro de um sistema processual penal com estrutura acusatória. Busca-se analisar, com base na teoria da dissonância cognitiva de Festinger, a ausência de imparcialidade do juiz singular na persecução penal e como a nova figura do Juiz das Garantias se apresenta na solução desse problema.
Palavras-chave: Juiz das Garantias. Dissonância Cognitiva. Imparcialidade do Julgador. Pacote Anticrime. Sistema acusatório.
Abstract: This study explores the elements that outline the contours of the new figure of the guarantees judge, instituted by the so-called Anti-crime Package – Law No. 13.964 of December 24, 2019, and the search for the impartiality of the judge within a criminal procedural system with an accusatory structure. Based on Festinger’s theory of cognitive dissonance, the aim is to analyze the lack of impartiality of the singular judge in criminal prosecution and how the new figure of the Judge of Guarantees presents himself in the solution of this problem.
Keywords: Guarantee Judge. Cognitive Dissonance. Impartiality Of The Judger. Anticrime Package. Acusatory system.
Sumário: Introdução. 1. Por um Processo Penal democrático: para além da dicotomia entre o modelo inquisitivo e o modelo acusatório. 2. O sistema inquisitorial. 3. O sistema acusatório. 4. O sistema misto. 5. A democraticidade como imperativo para um sistema Processual Penal. 6. O Sistema Processual Penal brasileiro. 7. As principais mudanças na legislação Processual Penal: Juiz das Garantias. 8. A teoria da Dissonância Cognitiva. 9. A dissonância cognitiva e a imparcialidade do juiz. Conclusão. Referências.
Introdução
A imparcialidade do juiz é uma das maiores garantias de realização de justiça, bem como característica essencialmente legitimadora da função estatal jurisdicional.
O sistema acusatório, adotado pelo sistema processual brasileiro, tem como principal objetivo a separação de uma atividade acusatória exercida por um órgão que será distinto do órgão que irá defender e de outro que irá prosseguir no julgamento, a fim de obter a imparcialidade, garantindo um tratamento digno e respeitoso ao acusado.
A atuação do juiz na fase pré-processual, gera críticas significativas entre a idealização de um sistema acusatório, o qual prevê a imparcialidade do juiz como um objetivo para se obter justiça, e a sua mitigação por conta de atos considerados inquisitoriais.
Neste sentido, poderia o juiz deter prerrogativas acautelatórias e instrutórias na fase de investigação, tendo em vista que esse mesmo julgador decidirá quanto ao mérito quando decorrida a ação penal?
A fim de compreender a imparcialidade do juiz, pode-se haver a contribuição da teoria da dissonância cognitiva, trazida do âmbito da Psicologia por Leon Festinger, o qual mostrou que existe uma dificuldade das pessoas em enfrentar situações onde suas opiniões ou crenças são confrontadas de maneira direta com uma informação notadamente contrária. Segundo esta teoria, esse choque entre os conhecimentos, o antigo e o novo, é a dissonância cognitiva, o que acaba por gerar um desconforto psicológico. E a partir disso, a tendência da pessoa nessa situação é evitar o contato com a informação dissonante e procurar apoio em informações que possam lhe oferecer suporte cognitivo.
No processo penal, a teoria pode ser aplicada diretamente sobre o juiz e sobre a sua atuação desde a fase de investigação até o julgamento, uma vez que se faz necessário lidar com opiniões antagônicas que lhes são apresentadas pelas teses de defesa e de acusação.
Ainda, além das teses antagônicas que lhes serão apresentadas, é possível que o juiz construa a sua própria imagem mental dos fatos a partir da apresentação dos autos do inquérito, criando assim um pré-julgamento capaz de interferir na sua imparcialidade durante a instrução, uma vez que, com base na teoria da dissonância cognitiva, pode-se inferir que ele se apegará à sua construção mental prévia dos fatos e tentará confirmá-la, desprezando quaisquer informações dissonantes, mesmo que de forma inconsciente.
Portanto, havendo atuação direta na fase de investigação, verifica-se o risco tangível de contaminação do juiz com a causa a qual decidirá posteriormente.
O juiz das garantias, vislumbrado no denominado Pacote Anticrime – Lei n° 13.964, de 24 de dezembro de 2019, na medida em que fosse inserida a sua atuação no ordenamento jurídico brasileiro, seria o responsável por dar providências e acautelamentos a respeito do escopo da perquirição criminal e, até mesmo, da própria pessoa do investigado, no que diz respeito à determinação de medidas cautelares durante a fase pré-processual e na realização da audiência de custódia, rompendo o vínculo do juiz da instrução, que irá julgar o caso, com a investigação pré-processual, resolvendo assim, o problema da parcialidade trazida pela figura de um juiz singular atuando em todo o processo penal.
Comumente, a doutrina tradicional busca solução de temas controvertidos do processo penal a partir da dicotomia entre os modelos acusatório e inquisitório de sistema processual. Para tanto, usualmente discorrem sobre as características típicas de cada um desses sistemas, e então qualifica a matéria em apreciação ou a solução pretendida como sendo próprias de um dos modelos teóricos de processo.
Há de se reconhecer a relativa inconsistência dogmática desse raciocínio que tem como base os elementos constitutivos essenciais, em razão de que a elaboração conceitual dos modelos e a definição do que seriam seus elementos fundamentais são bastante convencionais. Além disso, a delimitação das propriedades essenciais aos dois sistemas é manifestamente influenciada por juízos de valor, a partir do nexo que se faz entre o sistema acusatório e o modelo garantista de um lado, e entre o sistema inquisitório e o modelo autoritário de outro.
No período de desenvolvimento das primeiras formas de processo inquisitório, o acusado era visto como principal fonte de prova no processo penal. Era visto como um objetivo a ser perseguido, para além da busca do esclarecimento do fato e da responsabilidade. Na tradição do modelo inquisitório, o imputado era considerado objeto de investigação, porque era ele o detentor da verdade que deveria ser obtida a qualquer custo, inclusive com utilização de pressões físicas e psíquicas. E ale foi imputado um crime, então deveria confessar o delito que lhe foi atribuído.
O processo penal não é mais um simples instrumento para fins de esclarecimento dos crimes e aplicação da sanção penal. O procedimento legal e constitucional tornou-se, um anteparo ao poder persecutório do Estado, verdadeiro instrumento de proteção do cidadão, tendo o juiz como principal garante dos direitos individuais.
A ampla afirmação dos direitos fundamentais de liberdade nas normas constitucionais e nas Convenções internacionais de direitos humanos vinculou de tal modo a estrutura judicial que atualmente não se cogita mais de elaboração do mecanismo jurisdicional com modelo inquisitório. Deixando de lado a tentativa de definir um modelo de processo a partir da antítese conceitual “acusatório/inquisitório”, o critério utilizado a partir da afirmação de princípios mínimos da jurisdição certamente restringe as opções possíveis para o legislador, fazendo com que ninguém possa se submeter legitimamente à potestade estatal a não ser pela efetiva celebração de um processo justo.
O art. 14 do Pacto Internacional da ONU sobre os direitos civis e políticos de 1966 já conduzia para tal posicionamento ao prever o direito ao julgamento equitativo, ao que se agrega a previsão constante no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais a respeito do direito ao processo justo e equitativo.
No âmbito dos Estados do continente Americano tem-se, na mesma linha, o art. 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, mais conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, promulgada no direito interno do Brasil pelo Dec. 678 de 06.11.1992: “ Artigo 8. Garantias judiciais 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. ”
Entre os motivos dos importantes avanços trazidos por essas legislações está o fato de terem de estabelecer o regramento dos limites nos quais se podem mover sistemas processuais de diferentes inspirações e matizes político-culturais, buscando como que um estatuto basilar ou de convergência em matéria de jurisdição penal a orientar ordenamentos de tradição de common law e de civil law. Para tanto, buscam superar a antítese “acusatório/inquisitório” e os esforços para definir esses dois sistemas, optando conscientemente pela inserção no direito positivo da ideia do justo processo, do processo equitativo.
A locução “justo processo” compreende uma série de princípios legitimantes da atividade jurisdicional, decorrentes do grau de civilidade jurídica alcançado a partir do racionalismo iluminista, e estampados como garantias fundamentais nos Estados constitucionais, e cuja observância prescinde da adoção de um modelo pré-definido.
Deixando de lado a tentativa de definir um modelo de processo a partir da antítese conceitual “acusatório/inquisitório”, o critério utilizado a partir da afirmação de princípios mínimos certamente restringe as opções possíveis para o legislador, uma vez que nenhuma pessoa poderá sofrer prejuízo aos próprios interesses sem a efetiva celebração de um processo justo.
Típico dos sistemas ditatoriais e adotado pelo Direito canônico a partir do século XII, o sistema inquisitorial tem como principal característica, a concentração das funções de acusar, defender e julgar em uma única pessoa, que assume assim as vestes de um juiz acusador, também chamado de juiz inquisidor.
Essa concentração de poderes nas mãos do juiz inquisidor compromete sistematicamente a objetividade e imparcialidade no julgamento, haja vista que, na função de acusador, o juiz fica psicologicamente ligado ao resultado da demanda que ao final irá julgar. Afinal, se ele mesmo entende serem necessárias as acusações, o que o impediria de julgar conforme suas convicições?
Como preleciona Renato Brasileiro (LIMA, 2020, p.42), “No sistema inquisitivo, não existe a obrigatoriedade de que haja uma acusação realizada por órgão público ou pelo ofendido, sendo lícito ao juiz desencadear o processo criminal ex officio. Na mesma linha, o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa probatória, tendo liberdade para determinar de ofício a colheita de provas, seja no curso das investigações, seja no curso do processo penal, independentemente de sua proposição pela acusação ou pelo acusado. A gestão das provas estava concentrada, assim, nas mãos do juiz, que, a partir da prova do fato e tomando como parâmetro a lei, podia chegar à conclusão que desejasse”.
Logo, nesse sistema, não há que se falar em contraditório e ampla defesa, o que sequer seria possível em virtude da ausência de incongruência entre acusação e defesa.
Tem-se nesse sistema, a confissão do réu como a principal prova da instrução criminal, considerada a “rainha das provas”. Parte-se da premissa de que a atividade probatória tem por objetivo uma completa e ampla reconstrução dos fatos, com vistas ao descobrimento da verdade, considerando possível chegar a uma verdade real, absoluta. E na busca por essa verdade, eram admitidas práticas de torturas contra o acusado a fim de obter a confissão.
Em síntese, nas palavras de Renato Brasileiro (LIMA, 2020, p. 43), pode-se afirmar que “o sistema inquisitorial é um sistema rigoroso, secreto, que adota ilimitadamente a tortura como meio de atingir o esclarecimento dos fatos e de concretizar a finalidade do processo penal. Nele, não há falar em contraditório, pois as funções de acusar, defender e julgar estão reunidas nas mãos do juiz inquisidor, sendo o acusado considerado mero objeto do processo, e não sujeito de direitos. O magistrado, chamado de inquisidor, era a figura do acusador e do juiz ao mesmo tempo, possuindo amplos poderes de investigação e de produção de provas, seja no curso da fase investigatória, seja durante a instrução processual”.
Diante disso, fica evidente a incompatibilidade desse sistema com os direitos e garantias individuais trazidas pela Constituição Federal de 1988, bem como as disposições da própria Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Em contraposição ao que é adotado pelo sistema inquisitorial, o sistema acusatório é caracterizado pela separação das funções de acusar, defender e julgar, trazendo igualdade de posições entre defesa e acusação, e a figura de um juiz atuando de maneira equidistante e com imparcialidade.
Como bem explica Renato Brasileiro (LIMA, 2020, p. 43), “Chama-se “acusatório” porque, à luz deste sistema, ninguém poderá ser chamado a juízo sem que haja uma acusação, por meio da qual o fato imputado seja narrado com todas as suas circunstâncias. Daí, aliás, o porquê da existência do próprio Ministério Público como titular da ação penal pública. Ora, se é natural que o acusado tenha uma tendência a negar sua culpa e sustentar sua inocência, se acaso não houvesse a presença de um órgão acusador, restaria ao julgador o papel de confrontar o acusado no processo, fulminando sua imparcialidade. Como corolário, tem-se que o processo penal se constitui de um actum trium personarum, integrado por sujeitos parciais e um imparcial – partes e juiz, respectivamente. Somente assim será possível preservar o juiz na condição de terceiro desinteressado em relação às partes, estando alheio aos interesses processuais”.
Nota-se que como acontece na prática, ao participar do processo de investigação, seja no momento em que determina a instauração de um processo ou decreta prisão cautelar de ofício, por exemplo, o magistrado, mesmo que de maneira implícita, exerce atividades inerentes ao acusador, mitigando completamente sua imparcialidade no processo.
Portanto, para que se tenha a real separação de funções a fim de resguardar a imparcialidade do órgão julgador e trazer democraticadade ao processo criminal, quanto à iniciativa probatória, o juiz não pode ser dotado do poder de determinar de ofício a produção de provas, já que estas devem ser fornecidas pelas partes, cabendo ao magistrado o papel de garante das disposições legais, salvaguardando direitos e liberdades fundamentais.
Em síntese, o modelo acusatório reflete a divisão de funções dentro do processo, cabendo exclusivamente às partes a produção do material probatório e sempre observando os princípios do contraditório, da ampla defesa, da publicidade e do dever de motivação das decisões judiciais.
Portanto, como afirma Renato Brasileiro (LIMA, 2020, p. 44), além da separação das funções de acusar, defender e julgar, o traço peculiar mais importante do sistema acusatório é que o juiz não é, por excelência, o gestor da prova: “quanto à iniciativa probatória, o juiz não pode ser dotado do poder de determinar de ofício a produção de provas, já que estas devem ser fornecidas pelas partes, prevalecendo o exame direto das testemunhas e do acusado. Portanto, sob o ponto de vista probatório, aspira-se uma posição de passividade do juiz quanto à reconstrução dos fatos. A gestão das provas é, portanto, função das partes, cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e liberdades fundamentais”.
Sendo assim, o que efetivamente diferencia o sistema inquisitorial do acusatório é a posição dos sujeitos processuais e a gestão da prova.
O sistema misto surgiu a partir de alterações que se deu no sistema inquisitorial. Refere-se a um novo paradigma, exercendo uma integração entre os dois modelos anteriores.
É denominado sistema misto, pois engloba duas etapas processuais distintas, sendo a primeira, a fase conhecida tipicamente como inquisitorial, a qual não possui publicidade e ampla defesa, possuindo informações escritas e secretas, sem acusação e, por essa razão, não havendo contraditório. Já a segunda fase possui natureza acusatória, sendo que o elemento acusador apresenta a acusação, a defesa é apresentada pelo réu e o juiz julga, e como regra, vigora nesta fase, a publicidade, a isonomia processual, a oralidade e o direito de pronunciar a defesa após a acusação.
O sistema previsto na época em que o Código de Processo Penal entrou em vigência, era o misto. O inquérito policial era a etapa de início da persecução penal (fase pré-processual), que se dava por meio do sistema inquisitorial, e a fase processual se dava por meio do sistema acusatório.
Em um Estado Democrático de Direito, o Processo Penal funciona como um meio de garantia dos direitos individuais do acusado. Não se configura como mero instrumento de efetivação de um direito punitivo, mas sim como instrumento de satisfação de direitos humanos fundamentais e, sobretudo, uma garantia contra o arbítrio do Estado.
Processo penal democrático, essencialmente, é um processo penal impulsionado a partir da lógica de um sistema acusatório e não inquisitório. O Sistema Acusatório é um dos responsáveis pela modelação democrática do direito processual penal moderno, que tem em seus fundamentos basilares a defesa das garantias individuais.
Um texto processual penal deve trazer a indelével certeza de que ao acusado, apesar de ter supostamente praticado um ilícito penal, deve ter garantidos seus direitos previstos especialmente na Constituição do Estado Democrático de Direito.
O saudoso Norberto Bobbio (BOBBIO, 1992, p. 01) afirmava que “os direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais”.
Por outro lado, continua o filósofo italiano (BOBBIO, 1992, p. 01): “(…) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.
Dessa maneira, a norma processual, ao lado de sua função de aplicação do Direito Penal, tem a missão de tutelar aqueles direitos previstos nas constituições e nos tratados internacionais. Exatamente por isso, o Processo Penal de um País o identifica como uma democracia ou como um Estado totalitário.
Helio Tornaghi (TORNAGHI,1967, p. 15) com muita propriedade já afirmava que “a lei de processo é o prolongamento e a efetivação do capítulo constitucional sobre os direitos e as garantias individuais, protegendo os que são acusados da prática de infrações penais, impondo normas que devem ser seguidas nos processos contra eles instaurados e impedindo que eles sejam entregues ao arbítrio das autoridades processantes”.
Até o advento da reforma trazida pela Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019, havia uma discussão doutrinária bastante recorrente a respeito deste tema. Grande parte da doutrina classificava o sistema processual penal brasileiro como “misto”, visto que predominava o sistema inquisitorial na fase pré-processual, e o sistema acusatório na fase processual. Contudo, alguns doutrinadores, como Aury Lopes Jr. por exemplo, não concordam com tal posicionamento, afirmando que o processo penal brasileiro era inquisitório (ou neoinquisitório), uma vez que a fase processual não é acusatória, mas inquisitória, na medida em que o princípio informador era inquisitivo, pois a gestão da prova estava nas mãos do juiz.
Pondo fim às discussões, o artigo 3º-A do Código de Processo Penal passou a prever expressamente que o ordenamento jurídico brasileiro possui estrutura acusatória: “Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)”.
A Constituição de 1988 já delineava um processo acusatório, fundando no contraditório, na ampla defesa, na imparcialidade do juiz e nas demais regras do devido processo penal, porém o Código de Processo Penal continha disposições em sentido diverso, incompatíveis com o princípio acusatório (como os artigos. 156, 385 etc., que agora foram tacitamente revogados pelo art. 3°-A do CPP, com a redação da Lei n. 13.964).
O dispositivo veda a atuação de ofício do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. Logo, a gestão das provas no processo incumbiria inteiramente às partes, principalmente à acusação.
Assim, não se pode negar que a inserção do art. 3-A, no CPP, apesar de suspensa, sine die, a sua eficácia (em razão da concessão de Liminar na Medida Cautelar nas ADIn’s n. 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 pelo Min. FUX), é um avanço em termos de democracia processual penal, mormente a se considerar que, a partir da vigência da lei nova, não há mais espaço para que o juiz-ator-inquisidor atue de oficio violando o ne procedat iudex ex officio, ou que produza prova de ofício.
Em síntese, portanto, agora pode-se afirmar que o Processo Penal Brasileiro adota legalmente e constitucionalmente a estrutura do sistema acusatório, mas para efetivação dessa mudança é imprescindível afastar a vigência de artigos dissonantes do Código de Processo Penal e mudar radicalmente as práticas judiciárias.
A Lei nº 13.964/19, fruto do chamado “Pacote Anticrime”, projeto de lei apresentado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro, ao Congresso Nacional, em 19 de fevereiro de 2019, tinha como propósito a atualização da legislação criminal e o processo penal, sistematizando as mudanças em uma perspectiva mais rigorosa no enfrentamento à criminalidade, teoricamente em consonância com o anseio popular expressado nas eleições presidenciais de 2018. No mês de março de 2019, a Câmara dos Deputados criou uma Comissão para apreciar o referido “Pacote Anticrime”, que passou a trabalhar, em paralelo, com uma proposta alternativa, elaborada, no ano de 2018, por um grupo de juristas encabeçado pelo Ministro Alexandre de Moraes.
Inicialmente, contudo, a vedação explícita à atuação do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação e a figura do juiz das garantias não constavam em nenhum desses dois projetos. Foram ali inseridos através de emenda, reproduzindo, em grande parte, o conteúdo referente à matéria que integrava o Projeto de Lei nº 8.045/2010 (Projeto de Lei do Senado nº 156/09), destinado à criação de um novo Código de Processo Penal.
Nos termos do art. 3º-B, caput, do Código de Processo Penal, incluído pela Lei n° 13.964/19, o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário.
Consiste, portanto, no exercício exclusivo de um juiz na função de garantidor dos direitos fundamentais na fase investigatória da persecução penal, o qual ficará, na sequência, impedido de funcionar no processo judicial desse mesmo caso penal.
O juiz das garantias atuará entre a instauração da investigação criminal e o recebimento da denúncia (ou queixa), sendo impedido de funcionar no mesmo processo, sendo de competência do juiz da instrução e julgamento, a atuação após o recebimento da peça acusatória e, pelo menos em tese, até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória ou absolutória.
Objetiva-se com isso, exaurir as chances de contaminação subjetiva do juiz da causa, potencializando, pois, a sua imparcialidade, seguindo na contramão da sistemática até então vigente, quando a prática de qualquer ato decisório pelo juiz na fase investigatória o torna prevento para prosseguir no feito até o julgamento final.
Como preleciona Renato Brasileiro (LIMA, 2020, p. 115), “A inovação introduzida pela Lei n. 13.964/2019 guarda relação, portanto, com o reconhecimento explícito, por parte da legislação processual penal, do entendimento de que não há condições mínimas de imparcialidade num processo penal que autoriza que o mesmo julgador que interveio na fase investigatória tenha competência, mais adiante, para apreciar o mérito da imputação, condenando ou absolvendo o acusado. Ou seja, diante de possíveis prejuízos causados à imparcialidade do magistrado decorrentes do contato que teve com os elementos informativos produzidos na investigação preliminar, e as tomadas de decisões que teve que fazer, decretando, por exemplo, medidas cautelares pessoais, o que se está a buscar com a nova figura do juiz das garantias é o seu afastamento definitivo da fase processual, preservando-se, assim, sua imparcialidade para o julgamento do feito sem quaisquer pré-julgamentos, para que possa, enfim, adentrar o julgamento do feito sem amarras que possam comprometer sua imparcialidade, deixando de ser, assim, um terceiro involuntariamente manipulado no processo. Trata-se, pois, de uma verdadeira espécie de blindagem da garantia da imparcialidade”.
A Psicologia Social é o ramo da psicologia que estuda como a maneira de pensar influencia o relacionamento entre as pessoas. É a área da psicologia que investiga como os indivíduos pensam, veem e influenciam uns aos outros (MYERS, 2014, p. 28.).
A teoria da dissonância cognitiva, trazida do âmbito da Psicologia por Leon Festinger, professor de psicologia social da Universidade de Stanford, é um dos assuntos mais estudados neste ramo.
O ser humano possui ideias ou cognições que são consonantes (coerentes e compatíveis), mas pode ter também, opiniões ou convicções dissonantes (incoerentes ou incompatíveis) entre conjuntos de elementos diversos. E naturalmente, a busca pela consonância, em manter um estado de coerência consigo mesmo, é a regra, tendo-se por exceção a aceitação de incoerências (dissonâncias).
Diante disso, Festinger centrou seus estudos exatamente na tensão ou angústia psicológica que uma pessoa sente ao ter ciência de que possui pensamentos ou crenças contraditórias (dissonantes) sobre algum elemento relevante, quando percebe que tem cognições discrepantes acerca de algum assunto de maior importância. Esse desconforto foi denominado de dissonância cognitiva.
Como preleciona Festinger (FESTINGER, 1975, p. 11-15), “a coerência consigo mesmo e também com os outros é um sentimento que as pessoas valorizam muito, e por esse motivo, quando suas ideias, sentimentos ou comportamentos entram em conflito ou mostram-se incompatíveis, elas se sentem desconfortáveis e vivem uma situação de tensão decorrente da falta de harmonia entre dois pensamentos ou crenças relevantes”.
Segundo a teoria, a dissonância cognitiva pode decorrer da inconsistência lógica entre ideias, de hábitos culturais diversos, da defesa de opiniões ou posições antagônicas ou ser reflexo de uma experiência passada. E surge no momento em que a pessoa toma consciência de suas duas cognições relevantes e destoantes.
A teoria revela que a dissonância interfere diretamente no comportamento do indivíduo, haja vista que, ao se ver em uma situação dissonante, o ser humano, naturalmente, tem uma mudança de atitude, justamente para fazer cessar o sofrimento psicológico e tentar manter a consistência, buscando atingir a coerência entre as suas cognições conflitantes. Portanto, evidencia que o indivíduo modifica ou ajusta seu pensamento ou sua atitude com a finalidade de manter a coerência entre suas cognições ou crenças contraditórias, afastamento a tensão psíquica que lhe gera incômodo ou angústia. É um anseio básico e natural do ser humano.
Contudo, em sua pesquisa, Festinger descobriu que o indivíduo busca eliminar ou diminuir a dissonância, mais através de mudança de atitudes pessoais do que pelo abandono da crença ou da opinião anterior. O indivíduo passa a buscar, de modo seletivo, informações correspondentes ou consonantes à sua crença, à sua primeira ação ou decisão.
De acordo com a teoria, essa mudança de atitude ou de comportamento pode ser expressada de diversas formas. O indivíduo pode, diante de uma situação de dissonância cognitiva, alterar seus argumentos, na tentativa de manter a consistência entre as opiniões contraditórias, bem como pode ignorar elementos cognitivos dissonantes. Pode adicionar mais informações, tentando aumentar o número de elementos cognitivos consonantes que justifiquem sua ação e reduzam a dissonância, ou até mesmo praticar um ato ou expressar uma ideia que não condiz com sua crença ou ideia tão somente para afastar a tensão entre suas duas cognições incompatíveis. Em outras palavras, a pessoa pode alinhar ou ajustar suas atitudes em conformidade com seus comportamentos anteriores, de modo a buscar coerência e a poder justificar seus atos ou escolhas.
Dessa forma, a teoria desenvolvida por Festinger desvela que quanto mais comprometido se está com uma ideia ou crença, mais difícil é abandoná-la, mesmo que surjam evidências fortes em sentido contrário.
A imparcialidade do juiz é pressuposto de validade do processo, devendo o juiz colocar-se entre as partes de maneira equidistante, oferecendo a elas as mesmas condições processuais.
Em um Estado Democrático de Direito, como objetiva a Constituição Federal de 1988, o processo está associado a princípios, direitos e garantias individuais inerentes a todo indivíduo que esteja sob o crivo da persecução penal. Dentre esses direitos, tem-se o de ser julgado de forma equânime e imparcial, em decorrência da estrutura acusatória do processo penal brasileiro.
A imparcialidade do juiz consiste na ausência de vínculos subjetivos com o processo, mantendo-se o magistrado distante o necessário para conduzi-lo com equidade.
O princípio da imparcialidade do juiz decorre da vedação do juízo ou tribunal de exceção, consagrado no artigo 5º, XXXVII, da Constituição Federal de 1988, garantindo que o processo e a sentença sejam conduzidos pela autoridade competente que sempre será determinada por regras estabelecidas anteriormente ao fato sob julgamento, conforme estabelece o artigo 5º, LIII também da Constituição Federal.
Conforme consta no Código de Ética da Magistratura, “Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”.
Como preleciona Aury Lopes Jr. (JUNIOR, 2018, p. 58), “a garantia da jurisdição significa muito mais do que apenas ‘ter um juiz’, exige ter um juiz imparcial, natural e comprometido com a máxima eficácia da própria Constituição”. Dessa forma, a atuação do juiz no processo penal deve primar pela garantia dos direitos fundamentais assegurados ao réu.
Contudo, a realidade da atuação do juiz no processo penal não é completamente harmônica com as diretrizes constitucionais.
A teoria da dissonância cognitiva, utilizada no campo do processo penal, é aplicada diretamente sobre a atuação do juiz desde a fase de investigação até a formação de sua decisão, na medida em que precisa lidar com posições antagônicas, incompatíveis (teses de acusação e defesa), bem como com a ‘sua opinião’ sobre o caso em questão.
A partir do inquérito policial e da denúncia, o juiz começa, inevitavelmente, a construir uma imagem mental dos fatos, sendo inevitável também, portanto, o pré-julgamento, principalmente em relação às decisões que eventualmente tomará ao longo da fase de investigação, como decisões sobre prisão preventiva, medidas cautelares, etc.
Pressupõe-se que tendencialmente o juiz se apegará à imagem já construída a partir dos autos do inquérito e da denúncia, bem como das decisões já proferidas por ele durante a investigação, de modo que ele tentará confirmá-la durante a instrução criminal, ou seja, a partir da dissonância, a tendência é que o juiz superestime as informações consoantes e menospreze as informações dissonantes.
Dessa forma, quanto maior for o envolvimento do juiz com a investigação preliminar, e até mesmo pelo fato de ter que decidir pelo recebimento da denúncia, maior a chance de “contaminação” do processo, pois, como já explicado pela teoria da dissonância cognitiva, todo indivíduo busca o equilíbrio do seu sistema cognitivo, uma relação não contraditória.
Portanto, ao receber a denúncia ou decretar uma medida cautelar, por exemplo, o juiz já está exteriorizando a sua convicção inicial de que o acusado é culpado dos fatos narrados pela acusação. Dessa forma, ao se deparar com a tese da defesa, cria-se uma relação antagônica à convicção inicial do magistrado, gerando assim a dissonância cognitiva e a busca pela confirmação de sua ideia. O juiz passa a ocupar então, a posição de parte contrária diante do acusado que nega os fatos, impedindo que haja um julgamento justo, pautado na imparcialidade. O quadro agrava-se ainda mais pelo fato de ser possível a atuação de ofício do juiz na gestão de provas.
Dessa forma, tem-se uma ameaça real e grave para a imparcialidade do juiz que atua tanto na fase pré-processual, quanto na fase processual.
Conclusão
Atualmente, há a atuação de um só juiz durante toda a persecução criminal. O mesmo juiz que participa da fase de inquérito, profere a sentença ao final.
A figura do Juiz das Garantias é um instituto que veio com o intuito de modificar o sistema processual penal brasileiro. Trata-se de uma verdadeira revolução no que tange o processo penal rumo a um modelo com maior comprometimento democrático.
Ao Juiz das Garantias, caberá a atuação na fase da investigação e ao juiz do processo, julgar o mérito do caso, tendo ampla liberdade no que diz respeito à análise acerca da legalidade em relação ao material colhido na fase de investigação sem que esteja previamente contaminado pelo que foi produzido na fase anterior. Cuida-se de alteração indispensável à materialização da ideia de sistema processual penal acusatório, em que as figuras do acusador e do julgador estão organicamente distintas.
O juiz das garantias vem com o objetivo de impedir que órgão julgador seja contaminado com circunstâncias fáticas provenientes das informações do inquérito policial, ou seja, para resolver o problema descrito no tópico acima, a fim de garantir maior imparcialidade ao processo penal.
Importante ressaltar que o inquérito possui característica de sistema inquisitorial, uma vez que não há ampla defesa, nem contraditório, deixando o investigado a mercê daquilo que a autoridade policial acredita ser verdadeiro. Como bem explica Rangel (RANGEL, 2015, p. 95), neste momento, o indivíduo é penas um objeto de pesquisa feita pela autoridade policial, não sendo possível, portanto, lhe oferecer o direito de defesa, pois ele ainda não está sendo acusado de nada.
Em que pese as discussões acerca da alteração legislativa trazida pelo “Pacote Anticrime”, a instituição desse novo juiz atuando na fase investigativa, limitando a atuação do juiz julgador à fase processual, aumenta a possibilidade de se ter um julgamento imparcial, evitando possíveis abusos por parte da autoridade judiciária, mantendo se fiel ao Estado Democrático de Direitos.
Por esse motivo, a figura do juiz das garantias se tornou um passo decisivo em direção a um processo penal democrático, dando mais vazão ao princípio da imparcialidade.
Referências
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[1] Acadêmica de Direito no Centro Universitário Una de Betim.
[2] Acadêmica de Direito no Centro Universitário Una de Betim.
[3] Pós-Doutor em Direito pela PUC Minas. Doutor em Direito pela PUC Minas. Mestre em Direito pela PUC Minas. Graduação em Direito pela Universidade José do Rosário Vellano. Professor Adjunto da Escola de Direito do Centro Universitário UNA.
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