Resumo: O presente artigo visa analisar a possibilidade de o Ministério Público presidir investigações criminais. Parte-se de um estudo histórico da investigação criminal no Brasil e das tentativas de se conferir poder investigatório ao MP, para traçar uma interpretação do ordenamento jurídico vigente. Para tanto, buscou-se, no Direito Comparado, experiências da investigação criminal, especialmente na Europa e Estados Unidos, enriquecendo-se a leitura com os aspectos comuns na apuração de infrações penais, bem como apontando as falhas e sugestionando avanços identificados nos sistemas alienígenas. Em seguida, aborda-se o atual arcabouço legal vigente no Brasil, preparando-se os fundamentos para a defesa da tese de impossibilidade de o Ministério Público realizar investigação criminal na atual conjuntura constitucional brasileira. Ao final, são rebatidos, um a um, os argumentos mais utilizados pelos defensores da tese de que o Parquet possui poderes investigatórios, arrematando-se pela inexistência de autorização legal para a investigação criminal alavancada pelo Ministério Público.[1]
Palavras-chave: Ministério Público; Poder de Investigar; Inquérito Policial; Polícia Judiciária.
Abstract: This article seeks to examine the possibility of the Prosecutor Attorney to conduct criminal investigations. It starts from historical studies of the criminal investigation in Brazil and the attempts to allow the Prosecutor to conduct it, then to an outline of the interpretation of current law. For this, was sought criminal investigation experiences in foreign law, especially Europe and U.S., pointing out the flaws and suggesting improvements identified in foreign systems. Next, was discussed the current legal framework in force in Brazil, preparing the grounds for the thesis that is impossible for Prosecution to conduct the criminal investigation in the current Brazilian constitutional system. At the end, the arguments commonly used by proponents of the thesis that the Prosecution has investigative powers are confronted, building the conclusion that there is no legal authorization for criminal investigation leaded by prosecutors.
Keywords: Criminal Prosecutor; Investigation power; Police Investigation; Judicial Police.
Sumário: 1 – Delineamento do tema. 2 – Anotações históricas da investigação criminal. 3 – A investigação criminal no direito comparado. 3.1 – A investigação criminal na Europa. 3.2 – A investigação criminal no modelo americano. 4 – Arcabouço normativo vigente. 5 – Da impossibilidade de o Ministério Público presidir investigação criminal. 6 – Desmitificando sofismas. 7 – Conclusão. 8 – Referência bibliográfica.
1. DELINEAMENTO DO TEMA
O presente estudo tem por objetivo primordial realizar uma abordagem sobre o poder investigatório do Ministério Público na atual conjuntura jurídica brasileira. Ao passo em que vem sendo recorrente o cometimento de crimes de colarinho, contra o sistema financeiro e a ordem econômica e até mesmo delitos perpetrados por membros das instituições policiais, emergem os Procedimentos Investigativos Criminais sob a gerência de representantes do Ministério Público, que assim o fazem com supedâneo na Resolução Nº 13 do Conselho Nacional do Ministério Público, que trouxe regulamentação para o art. 8º da Lei Complementar 75/93 e para o art. 26 da Lei 8.625/93.
Muitos são os dissensos jurisprudenciais e doutrinários acerca da possibilidade de o MP presidir investigações criminais, de modo que calha indagar a quem interessaria que o órgão ministerial não pudesse assim proceder. Esta pergunta não se cabe responder, uma vez que sua resposta é de geral sabença.
Todavia, muito embora se compartilhe o entendimento de que é salutar para a elucidação de certos tipos de delitos, em casos excepcionais, que o Parquet conduza as investigações, acredita-se que não se lhe pode conferir tal atribuição de maneira arbitrária e desregulamentada, ao alvedrio do Ordenamento Jurídico posto, sob pena de se criar um órgão com superpoderes, carente de um ente que o fiscalize e às suas atividades, que não a sua própria corregedoria interna, muitas vezes refém do corporativismo funcional.
Desta mesma preocupação compartilha o Desembargador convocado ao STJ Celso Limongi, que, ao proferir voto no Habeas Corpus 65.292/GO, em 12/05/2009, manifestou sua preocupação em ver o Ministério Público detendo o poder de investigar. Ao sentir do eminente Desembargador, a investigação presidida pelo Ministério Público é despida de qualquer espécie de fiscalização, ocorrendo de modo absolutamente livre, dando margem à ocorrência de toda espécie de abuso.
Com o presente, após uma breve descrição cronológica das tentativas anteriores de se conferir poder investigativo criminal ao MP, pretende-se ponderar de modo sistemático todas as normas vigentes acerca do tema e se buscará sintetizar os argumentos dos defensores da tese de que o atual conjunto normativo pátrio confere ao MP poder de polícia judiciária, rebatendo-os, um a um, com o fim de demonstrar a absoluta improsperabilidade desta posição.
Tendo em vista a realização dos objetivos determinados, tomar-se-á como azimute as normas inerentes ao tema no direito brasileiro, bem como os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais.
Apresentar-se-á argumentos divergentes no que concerne aos dispositivos e matérias de entendimento polêmico, baseando o estudo, eminentemente, em critérios bibliográficos e nas experiências colhidas no direito alienígena, bem como na coleta de documentos textuais, como legislações atualizadas, doutrinas pertinentes e publicações em sítios e revistas.
2. ANOTAÇÕES HISTÓRICAS DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
Maria Helena Diniz, trazendo à baila lição de José Frederico Marques, define investigação criminal como sendo um conjunto de atos dirigidos por agentes estatais da persecução penal, com o intuito de angariar “elementos de convicção” imprescindíveis à propositura da ação penal ao instruir a denúncia ou queixa, ou oferecendo ao juiz os alicerces provisionais da decisão a ser, em tempo, prolatada. [2]
Na história brasileira, inicialmente, a investigação de crimes e de suas autorias, foi de responsabilidade dos conhecidos Juízes de paz, que nada mais eram que agentes eleitos pelo povo. No entanto, com a outorga da Constituição de 1824 e a concentração do poder nas mãos do Imperador, através do poder Moderador, este resolveu transferir tais poderes investigatórios à Polícia, lançando as bases do nosso atual sistema de investigação. [3]
Na lição de Eneida Orbage de Britto Taquary, o inquérito policial encontra suas raízes nos sistemas romano e germânico, que serviram de base para o desenvolvimento da legislação portuguesa. À época colonial, não existiam leis que tratassem a respeito da apuração e elucidação de crimes, cabendo à instrução processual revelar os motivos e autoria da atividade criminosa. Não interessava a busca pela verdade, mas sim por um culpado, por uma confissão, inclusive com o uso de métodos de tortura. [4]
Em 1832, surgiu o primeiro Código de Processo Criminal, que modificou o sistema de investigação criminal, uma vez que a primeira Carta Imperial havia silenciado sobre a questão, ficando ao talante do Imperador, como já visto, os rumos da apuração delitiva. Apesar de prever a figura dos inspetores de quarteirão, que haviam a responsabilidade de zelar pelo cumprimento da lei e de investigar a autoria dos crimes, o Código de Processo Criminal ainda não havia disciplinado a criação do inquérito policial.
A Lei 261, de 3 de dezembro de 1841, cria a figura do delegado de polícia, a quem foi atribuída a responsabilidade de investigar, coletar elementos e provas do delito, para então remetê-los ao magistrado, para que fossem tomadas as providências cabíveis. Mencionada disposição legal vigeu por quase 30 anos e encontrou guarida no Código de Processo Penal brasileiro de 1871, que nomeou de inquérito policial as “diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito”. [5]
Em 1936, o então Ministro da Justiça, Vicente Ráo, intentou a criação do que se chamou, à época, de juizados de instrução, uma espécie de órgão do Poder Judiciário responsável por presidir a fase do informatio delicti.
No anteprojeto de reforma do CPP, esta sugestão fora acolhida pela Comissão da Segunda Secção do Congresso Nacional, formada pelo professor Gama Cerqueira e pelos Ministros Bento de Faria e Plínio Casado.
Não obstante, a criação dos juizados de instrução acabou rechaçada, optando-se pela manutenção do inquérito policial.
O inquérito policial permaneceu imutável até a promulgação do Decreto-Lei 3.368, de 3 de outubro de 1941, o novo Código de Processo Penal Brasileiro, que adotou o sistema acusatório, assegurando o contraditório na fase judicial, enquanto que o inquérito policial, fase inquisitiva, ficaria à cargo da polícia judiciária.
A Constituição Federal de 1988, além de recepcionar o Código de Processo de 1941, garantiu à persecução criminal rol de garantias elencadas como fundamentais, tais como as previstas nos incisos XXXV (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito), XXXVII (não haverá juízo ou tribunal de exceção) e LIII (ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente) do art. 5°.
Quando da Assembléia Nacional Constituinte de 1988, ao tratar da questão do controle externo da atividade policial, retornou-se a este debate, tendo sido rejeitadas nada mais que sete emendas que buscavam conferir ao Ministério Público poder de avocar para si investigações criminais.
3. A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO DIREITO COMPARADO
3.1. A investigação criminal na Europa.
Na Europa, diversos países adotam o sistema do juizado de instrução. O Code d´instruction criminelle de 1808, de Napoleão Bonaparte, estabeleceu a separação estrita das funções de acusação, instrução e julgamento.
Com fundamento nesse diploma, o sistema clássico do juizado de instrução atua do seguinte modo: cabe ao membro do Parquet apresentar a acusação, ou seja, deve dirigir-se ao Magistrado da instrução com o objetivo de alcançar a punição de um agente infrator, à medida que tipifica sua conduta. O juiz, então, dará início à “instrução” dos fatos, onde disporá do poder de ouvir pessoas, determinar busca e apreensão, interceptação telefônica e a prisão preventiva do investigado. Formado seu convencimento a respeito da existência do crime e de sua autoria, o magistrado envia o procedimento a uma composição de julgamento.
O princípio liberal da repartição dos poderes, “checks and balances”, oferece fundamento de validade aos juizados de instrução. Neste sistema, o representante do ministério público não possui qualquer poder instrutório, sendo este confiado integralmente ao juiz de instrução, que, anote-se, não possui o condão de dar início à investigação ex officio. Ao magistrado responsável pela instrução não é outorgado o poder de decidir a questão, sendo tal atribuição repassada a um outro magistrado, como forma de garantir a imparcialidade do julgamento.
Como cediço, o Brasil, adota um sistema similar ao juizado de instrução europeu, substituindo-se a figura do juiz de instrução pela Polícia Judiciária. Essa assimilação traduz-se na máxima: a Polícia investiga, o Ministério Público acusa e o Juiz julga.
3.2. A investigação criminal no Modelo Americano
A investigação criminal é a primeira etapa da persecução criminal no direito norte americano. Em geral, ela se inicia por meio de uma notícia-crime e será investigada e regida pelo órgão policial. No entanto, o Promotor (Criminal Prosecutor) dispõe de amplos poderes de negociação e discricionariedade no ajuizamento da ação penal.
Durante a fase de investigação, os Membros do Ministério Público podem atuar juntamente com as agências de investigação como FBI e DEA, por exemplo. Ao Ministério Público norte-americano é concedida a faculdade de tomar parte nas investigações, colhendo, inclusive, o testemunho de pessoas já ouvidas pela polícia. Terminadas as investigações, o Prosecutor avaliará se está diante de um strong case, isto é, um caso em que haja indícios suficientes de autoria e materialidade para o oferecimento da ação penal.
O estudo do sistema norte americano se faz necessário, uma vez que este revela um perigo latente: a parcialidade do membro do Ministério Público na condução das investigações. A parcialidade do órgão ministerial poderá influenciar negativamente nas investigações. O mandatário ministerial pode dedicar-se somente à busca de provas que sirvam à acusação, desviando-se da busca pela realidade dos fatos.
Nas palavras de Achilles Benedito de Oliveira, em um de seus discursos como Presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Distrito Federal, entregar ao Ministério Público a atribuição de comandar os atos da polícia judiciária e a apuração de crimes seria “desastroso”, entre outras razões pelo comprometimento da “imparcialidade que é crucial para a investigação”. [6]
Do modelo norte-americano de investigação, o Brasil poderia aproveitar a lição de enxugamento do procedimento administrativo, expurgando as certidões e termos que servem apenas para burocratizar o inquérito policial, que deveria ser formado apenas pelo material relevante à investigação criminal, sendo imprescindível que a presidência da investigação permaneça com o Delegado de Polícia, uma vez que se trata de autoridade imparcial na elucidação das infrações penais, em razão de não estar comprometido com futura ação penal.
4. ARCABOUÇO NORMATIVO VIGENTE
A Constituição Federal promulgada em 1988, em seu art. 129, estabelece o rol de funções do Ministério Público. Como se pode aferir de sua leitura, não figura dentre as atribuições do Órgão instaurar e conduzir Procedimento Investigatório de cunho criminal, estando expressamente positivado que tal deverá ser requisitado à autoridade policial.
Imperioso anotar-se que a própria Constituição Federal confere, exclusivamente, à Polícia Civil, a tarefa de apurar as infrações penais. A CF, em seu at. 144, §1º, IV e §4º, preceitua o escopo institucional da polícia civil, dirigida pelos delegados de polícia de carreira, como sendo o desempenho das funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, com exceção das transgressões militares. Desta feita, cabe à polícia civil atuar na fase inquisitiva da persecução penal, sob a direção do Delegado de Polícia Civil, de forma que sejam colhidos elementos necessários para a elucidação das infrações penais, podendo embasar supervenientes ações penais a serem formuladas pelo Parquet.
Nesta esteira, o Código de Processo Penal, em seu art. 4º, com redação dada pela Lei nº 9.043/95, também dispõe que o papel de polícia judiciária será exercido pelas autoridades policiais em sua respectiva circunscrição, as quais são responsáveis por apurar as infrações penais e suas respectivas autorias.
Na mesma trilha do sistema legal estabelecido, a própria Lei Orgânica do Ministério Público (Lei nº 8.625/93), nos art. 25 e 26, não inclui, dentre as prerrogativas funcionais do órgão ministerial, a hipótese de investigação criminal presidida por seus membros, além de prever expressamente que diligências e instauração de inquérito policial deverão ser requeridas ao órgão policial competente:
Do mesmo modo, a Lei Complementar nº 75/93, que regula o Ministério Público da União, em seu art. 7º, disciplina que cabe ao mandatário ministerial requisitar à autoridade policial as diligências investigatórias e instauração de inquérito policial.
5. DA IMPOSSIBILIDADE DE O MINISTÉRIO PÚBLICO PRESIDIR INVESTIGAÇÃO CRIMINAL.
As disposições legais claramente restringem, de forma taxativa, as funções e meios de atuação do Ministério Público, preservando a atribuição de investigação criminal exclusivamente às Polícias. Este, inclusive, o posicionamento do Professor Rogério Lauria Tucci.
Na opinião do doutrinador, a partir de uma singela leitura do art. 129 da Constituição Federal, pode-se aferir que ao Ministério Público é confiado o poder de requisitar à Polícia Judiciária a promoção de diligências investigatórias e instauração de inquérito policial, bem como o de supervisionar o andamento das investigações, realizando, portanto, uma de suas missões constitucionais, qual seja, o controle externo da atividade policial. À Polícia Judiciária incumbe a instauração e presidência da “informatio delicti”, procedendo à atividade investigativa no escopo de colher os elementos informativos que servirão de base à atuação ministerial. Nesta fase da persecução penal, cabe ao Ministério Público a atividade fiscalizatória da investigação, perseguindo a formação de resultado a ser aproveitado na opinio delicti. [7]
Fernando da Costa Tourinho Filho[8] defende, em razão de expressa disposição constitucional, a exclusiva atuação da polícia judiciária na investigação do “fato infringente da norma e quem tenha sido seu autor”, angariando, para tal, os elementos probatórios necessários capazes de subsidiarem a ação, esta, por seu turno, de responsabilidade do Ministério Público, a quem foi atribuída a responsabilidade pelo ajuizamento e acompanhamento da ação penal até o seu deslinde.
O Ministério Público tem fundamentado a instauração de procedimentos investigatórios na seara criminal em uma Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público (Resolução nº 13 do CNMP).
Ora, o legislador constitucional expressamente elencou no art. 129 da CF as atribuições do MP, bem como o fez a própria Lei Orgânica do Ministério Público. Em ambos os diplomas legais, encontra-se claramente prevista a atribuição para instaurar inquéritos civis, procedimentos administrativos, ações de improbidade, entre outras atribuições.
Por que razão o legislador preveria de forma tão clara estas hipóteses e deixaria implícita a competência do MP para instaurar investigações criminais, como pretende o CNMP?
A Resolução nº 13 do CNMP, ao alvedrio de todos os diplomas legais que tratam do tema, inclusive a Constituição, houve por acrescentar atribuição ao MP não prevista em qualquer Lei, quer ordinária, quer complementar. O MP, ao que parece, legislou por meio de Resolução.
A referida Resolução padece de grave vício de inconstitucionalidade. Trata-se de inconstitucionalidade oblíqua, uma vez que corresponde a ato normativo secundário, que tem por fundamento de validade a Lei Complementar nº 75/93 e a Lei 8.625/93.
Como já visto, nenhum desses diplomas legais preveem a possibilidade dos integrantes do órgão ministerial presidirem investigações criminais. Só se poderia discutir tal possibilidade, caso a Lei Complementar, por força do princípio da reserva legal, houvesse atribuído tal mister aos mandatários ministeriais, em homenagem à “previsão residual” prevista no inc. IX do art. 129 da CF, jamais podendo tal atribuição ser incluída por meio de Resolução do Conselho Nacional. Tal posição é defendida pela professora Ada Pellegrini Grinover. [9]
Ademais, o Ministério Público é verdadeira parte no processo penal. Como conceber que uma das partes presida as investigações que ensejarão o ofertório da Denúncia? Seria uma verdadeira afronta aos direitos e garantias fundamentais do homem, clara violação ao Princípio da Paridade das Armas.
As relações processuais devem se acontecer de forma harmônica e equilibrada. Conferir poderes em excesso a qualquer Instituição é por demais nocivo ao Estado de Direito.
Se cabe ao Ministério Público o controle externo da atividade policial, mormente no tocante à presidência do Inquérito, quem controlaria ou fiscalizaria a investigação presidida pelo MP? É de se convir: controlar a atividade policial não significa substituí-la.
Neste momento, imprescindível é o registro do escólio de Guilherme de Souza Nucci, ao lecionar que a Constituição Federal, quando especificou as funções da polícia judiciária (civil e federal) de investigar e funcionar como auxiliar do Poder Judiciário na apuração de crimes e contravenções penais, o fez de modo notório. Já ao Ministério Público foi delegada a responsabilidade de figurar como titular da ação penal, salvo nos excepcionais e legalmente previstos casos em que cabe à vítima a titularidade da ação criminal. O art. 129, III, da Constituição Federal possibilita que o representante ministerial elabore inquérito civil, mas, nunca, inquérito policial. O poder dado ao Ministério Público de exercer o controle externo sobre a atividade policial, requisitar diligências investigatórias e requisitar a instauração de procedimentos policiais lhe foi outorgado com o objetivo de melhor “aparelhar o órgão acusatório do Estado”.[10] Essa é a senda pela qual vem trilhando esmagadora maioria dos criminalistas brasileiros, como se pode observar em diversas publicações sobre o tema. [11]
Assim, chegando ao conhecimento do Promotor de Justiça ou Procurador da República a notícia de um crime, este tem o dever funcional de requisitar à autoridade policial a instauração do inquérito policial e as diligências necessárias a fim de formar sua opinio dellicti, mas jamais de tomar a frente das investigações, presidindo a tarefa de colher os elementos informativos do inquérito policial.
A Polícia Judiciária sempre será necessária em nossa sociedade, uma vez que é ela o instrumento que o Estado oferece do Poder Judiciário para contribuir na apuração de infrações penais anteriormente à instauração da ação penal, bem como na promoção de diligências específicas requisitadas, uma vez que ela é detentora do treinamento adequado para proceder à elucidação de crimes, predicado que falta aos membros do Parquet.
6. DESMITIFICANDO SOFISMAS
A par da clareza das análises lógica, sistêmica e literal do conjunto de normas que regem o tema, faz-se necessário elencar os principais argumentos utilizados por os que defendem a tese do Poder de Polícia Judiciária do MP, para que se possa desfazer a presunção de logicismo que se têm tido acerca dos mesmos.
Ab initio, destaque-se a ausência de norma a autorizar o exercício de atividade investigatória de cunho criminal por parte do Ministério Público, uma vez que há uma clara divisão de funções posta pela legislação em vigor, qual seja: a apuração das infrações penais cabe à Polícia Judiciária; ao MP, cabe requisitar diligências àquela, bem como controlar externamente sua atividade.
Argumentam os defensores da tese contrária que o art. 144 da Constituição Federal não confere caráter de exclusividade à função de Polícia Judiciária atribuída às Polícias Federal e Civil, mas apenas delimita-lhes a esfera de atuação. Diz-se tal sob a alegativa de que o termo “exclusivamente” é utilizado somente quando se refere à Polícia Federal, aduzindo ainda que, diante de tal cenário, estaria autorizada uma investigação concorrente por parte do Ministério Público quando se tratasse da apuração de crimes na esfera estadual.
Tal raciocínio carece de maior logicidade. A uma, porque a interpretação deve ser sistêmica, em consonância com o restante do corpo normativo que se tem, não sendo, pois, o MP uma autoridade administrativa, inexistindo norma conferindo-lhe tal predicado; a duas, porque o Parquet é uno, ostentando a titularidade da persecutio criminis tanto quando se trata de crimes de alçada federal quanto estadual, daí não se podendo admitir que pudesse instaurar e presidir investigações apenas quando se tratasse de crimes de competência da justiça estadual, o que acarretaria uma quebra da simetria entre as esferas de jurisdição; a três, porque o uso da expressão “exclusivamente”, no art. 144, § 1º, IV, da CF, guarda relação com a expressão “ressalvada a competência da União” do § 4º do mesmo artigo, ou seja, a competência para apurar infrações da alçada federal é exclusiva da Polícia Judiciária da União, assim como, de todas as outras infrações, à exceção das militares, é da Polícia Civil de cada Estado.
Outra argumentação trazida é no sentido de afirmar que “aquele que pode mais, pode menos”, em alusão ao fato de que o MP é titular da Ação Penal. Seria uma espécie de aplicação da Teoria dos Poderes Implícitos. Diga-se, de logo, que não existe qualquer relação de continência ou hierarquia entre a Ação Penal e o Inquérito Policial, que possibilite tachar este de “menos” e aquele de “mais”. Sequer existe relação de finalidade entre ambos, pois o Inquérito Policial visa apurar a ocorrência ou não de crime e sua autoria, o que vai além de simplesmente embasar a peça inaugural da persecução penal.
Outro sofisma de que se utilizam é a de que, se o Órgão Ministerial pode dispensar o Inquérito Policial para oferecimento da Denúncia, ofertando-a baseado em outros elementos de informação, pode muito bem, obter estes últimos por sua conta. Percebe-se aqui uma clara distorção da lógica, mormente quando só é dado ao MP dispensar o Inquérito quando já dispuser dos indícios necessários para a propositura de Ação Penal. É o caso, por exemplo, de Ação Penal embasada em Ação Fiscal anterior, ou de crimes cuja prova é unicamente documental e tais documentos são levados ao conhecimento da autoridade ministerial. Tal não implica, por óbvio, que o Agente do Parquet pode, por sua conta, colher os elementos de informação necessários ao embasamento de Peça Delatória. Caso não disponha de tais elementos, deve persegui-los da forma adequada, qual seja, requisitando a instauração de Inquérito pela Polícia Judiciária. Outra interpretação que não esta, não passa de contorcionismo hermenêutico.
Por último, tem-se o mais falacioso dos argumentos, dando conta de que o MP não pretende avocar ordinariamente para si a presidência do Inquérito Policial, mas apenas conduzir a investigação de alguns casos. Ora, o que se pretende, de forma vergonhosa e furtiva, é o monopólio da investigação das causas rumorosas, midiáticas, mormente por não haver qualquer regulamentação acerca desta avocação de investigação. É verdadeiro achincalhe com a Instituição Policial, não merecedora de tamanho desprestígio. Parte-se de uma presunção altamente preconceituosa e maniqueísta de que a Polícia Judiciária está infestada pelo mal da corrupção, ao passo que o MP estaria isento dela. Ademais, que dizer do cidadão investigado, que vê a condução da investigação de caso que lhe envolve ser conduzida pelo Órgão que futuramente o acusará, enquanto que milhares de outros casos idênticos são apurados pelo Aparelho Policial?
7. CONCLUSÃO
O cenário ora trazido revela uma verdade inescondível: o Ministério Público, no atual Ordenamento Jurídico vigente, não possui poderes investigativos em matéria criminal. Em toda a legislação pátria, só há uma única norma que poderia atribuir-lhe tal poder, qual seja o art. 129 da Constituição Federal.
Todavia, tal dispositivo do texto constitucional deve ser interpretado à luz da própria constituição, bem como das leis infraconstitucionais. O Ministério Público não pode acumular as funções de Acusador, Fiscal da Lei e Investigador, sob pena de se tornar uma Instituição promovedora do antidireito, alheia ao fato de vivermos num Estado que se costuma chamar Democrático de Direito.
A forma sigilosa como se conduzem estas investigações anulam qualquer forma de acompanhamento por parte do advogado, além de abrir margem para que o procedimento seja conduzido sob a linha do acusador, visando alimentar a sanha pela obtenção de elementos que possam embasar Denúncia a ser ofertada pelo próprio investigador.
Não fosse o bastante, a história normativo-constitucional brasileira traduz de forma clara a vontade do legislador, que, propositadamente, não incluiu tal prerrogativa dentre as funções institucionais do MP, tendo, inclusive, todas as tentativas de fazê-lo sido rechaçadas.
Não havendo, pois, lei complementar neste sentido, tem-se por inexistente qualquer previsão legal idônea que possa permitir que o Ministério Público presida Procedimentos Investigativos Criminais.
Advogado criminalista no Ceará. Graduado em Direito pela UFC. Especialista em Direito Processual Penal pela ESMEC. Mestre em Direito Constitucional pela UNIFOR. Doutorando em Direito pela UFC
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