“Uma coisa essencial à justiça que se deve aos outros é fazê-la prontamente e sem adiamentos; demorá-la é injustiça”. (La Bruyère)
INTRODUÇÃO
A biopirataria, além do aspecto de contrabando de diversas formas de vida da flora e da fauna, abarca a apropriação e a monopolização de conhecimentos das populações tradicionais no que diz respeito à utilização dos mais diversos recursos naturais existentes em nosso meio ambiente. Dessa forma, referidas comunidades acabam perdendo o domínio sobre os mais diversos recursos essenciais à sua sobrevivência cuja soberania sempre coube ao coletivo.
Como se tem observado da literatura jurídico-nacional, a biopirataria ainda é tema por demais novel. A problemática que exsurge deste assunto, pois, exige, excitada pela imensa proliferação e facilitação de mecanismos tais como o registro de marcas[1] e de patentes[2] no âmbito internacional, bem como da facilidade que há concernente aos acordos internacionais sobre propriedade intelectual como ocorre, v.g., com o TRIPs[3], uma imediata e célere atuação estatal em torno da imprescindível repressão relativa a quaisquer usurpações à roda desta matéria.
Assim, pois, neste modesto escrito, far-se-á um apanhado geral concernente a breves noções atinentes ao instituto aventado, bem como, ao longo do texto, referências a respeito dos principais pontos jurídicos que norteiam o assunto.
CONCEPÇÕES ATINENTES À BIOPIRATARIA
O vocábulo “biopirataria” foi trazido à baila em 1993 pela ONG RAFI [4] (hoje ETC-Group),[5] a fim de servir como alerta acerca da realidade consubstanciada no fato de que recursos biológicos bem como a ciência indígena encontravam-se em plena subtração e patenteamento pelas mais diversas empresas multinacionais e instituições cientificas imagináveis, ocasião em que aquelas comunidades originárias e naturais as quais, durante séculos, utilizavam-se de referidos recursos e geravam conhecimentos não estavam participando de qualquer lucratividade a respeito.
A biopirataria, pois, dentro de uma concepção geral, diz respeito à apropriação de conhecimento e de recursos genéticos de comunidades de agricultores e de indígenas levada a efeito por indivíduos ou instituições que aspiram ao domínio exclusivo do monopólio acerca destes conhecimentos e recursos.
Conforme a conceituação de biopirataria advinda do Instituto Brasileiro de Direito do Comércio Internacional, da Tecnologia da Informação e Desenvolvimento – CIITED – , temos:
Biopirataria consiste no ato de aceder a ou transferir recurso genético (animal ou vegetal) e/ou conhecimento tradicional associado à biodiversidade, sem a expressa autorização do Estado de onde fora extraído o recurso ou da comunidade tradicional que desenvolveu e manteve determinado conhecimento ao longo dos tempos (prática esta que infringe as disposições vinculantes da Convenção das Organizações das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica). A biopirataria envolve, ainda, a não-repartição justa e eqüitativa – entre Estados, corporações e comunidades tradicionais – dos recursos advindos da exploração comercial ou não dos recursos e conhecimentos transferidos.
Como se vê, o conhecimento específico de que se trata neste escrito é coletivo, não se permitindo que seja concebido como mera mercadoria passível de comercialização como meros objetos outros.
Importante aspecto, outrossim, relativo ao assunto, diz respeito ao fato de que a biodiversidade é um recurso atinente ao coletivo, mas isso não deve ser concebido em um sentido absolutamente lato. Com efeito, há, de um lado, o mundo industrializado e, de outro, um mundo concernente aos menos favorecidos economicamente (o designado Terceiro Mundo), ocasião em que estes últimos dependem, efetiva e diretamente, do acervo de recursos biológicos à sua disposição, para a imediata e indispensável manutenção dos seus mecanismos de vida. Já para os países desenvolvidos, por suas vezes, serve a biodiversidade, mormente e tão-só, como matéria prima, conjuntura que nos faz concluir ser a biodiversidade uma realidade existente em determinadas e específicas regiões, ocasião em que deve ser tratada e utilizada sustentavelmente por específicas e particulares comunidades.
A conceituação, por outro lado, em torno da utilização dos recursos nos sistemas de propriedade privada e comum diferem em largos níveis. Com efeito, o sistema de propriedade social identifica a valoração intrínseca da biodiversidade, ao passo que nos sistemas de direitos de propriedade intelectual a avaliação ocorre por meio da exploração comercial. É preciso conceber, então, que a produção humana é vista como uma co-produção diante da natureza e da sua criatividade. Todavia, os regimes de propriedade intelectual negam a criatividade da natureza, o que denota um verdadeiro disparate.
Dessarte, por meio de uma interpretação nociva, a biodiversidade passa de um bem comum local para uma propriedade privada e fechada. O cercado dos bens comuns é, sem dúvida, o objetivo dos direitos de propriedade intelectual e encontra-se universalizado por meio dos tratados acerca dos Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelecutal relacionados com o Comércio, da Organização Mundial do Comércio (OMC), e de certas interpretações da Convenção sobre Biodiversidade. Além disso, também é o mecanismo subjacente dos contratos de bioprospecção.[6]
MECANISMOS DE OPOSIÇÃO À BIOPIRATARIA
Já existem, não obstante à problemática levantada nesta pequena dissertação, esforços no sentido de reverter-se o quadro relatado.
Com efeito, em 1992, durante o evento ECO-92, no Rio de Janeiro, foi assinada a Convenção da Diversidade Biológica a qual visa, dentre outros objetivos, a regulamentação do acesso aos recursos biológicos e a devida repartição dos benefícios oriundos da comercialização desses recursos para aquelas comunidades que a isso fazem jus.
Nesse diapasão, no ano de 2001, Pajés de diversas comunidades indígenas do Brasil formularam a carta de São Luis do Maranhão, importante documento para OMPI (Organização Mundial de Propriedade Intelectual da ONU), questionando frontalmente toda forma de patenteamento cuja gênese fosse o acesso a conhecimentos tradicionais. Ainda, no ano de 2002, dez anos após a ECO 92, houve, em Rio Branco – Acre, o workshop “Cultivando Diversidade”. O acontecimento foi realizado pela ONG internacional GRAIN (Ação Internacional pelos Recursos Genéticos), em parceria com o GTA-Acre.[7] Dele, participaram mais de 100 representantes de pescadores, agricultores, extrativistas, povos indígenas, artesãos e ONGs[8] de 32 países da África, Ásia e América Latina, ocasião em que foi formulado o “Compromisso de Rio Branco”, atentando acerca da ameaça da biopirataria e pleiteando, dentre outros fins, o banimento de qualquer patenteamento de seres vivos e de qualquer forma de propriedade intelectual [9] sobre a biodiversidade e sobre o conhecimento tradicional.
No âmbito nacional, saliente-se, a Constituição Federal, como expressão máxima dos princípios e valores que norteiam a conjuntura jurídica nacional, garante que o meio ambiente é bem de uso comum do povo.[10] Nessa linha, apropriadamente, a Convenção da Biodiversidade[11] ratifica, em seu art. 3º, a soberania da Nação sobre os seus recursos naturais.
Por outro lado, não obstante a Carta Magna exigir, desde 1988, que o Poder Publico fiscalizasse as entidades de pesquisa e manipulação de material genético,[12] bem como que a Convenção da Biodiversidade, em 1992, propusesse, em seu art. 1º, às partes, que controlassem o seu patrimônio natural, com o fim de uma utilização sustentável, o Governo brasileiro só veio a regular a matéria em 2001, por meio de medida provisória.[13] Assim, ratificada pelo Decreto n° 3.945/01,[14] a Medida Provisória criou, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente (Poder Executivo Federal), o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, o qual possui caráter deliberativo e normativo, composto por representantes dos órgãos e entidades da Administração Pública Federal, necessariamente presidido pelo representante do Ministério do Meio Ambiente.
A IMPRESCINDIBILIDADE DE RESGUARDO DA CIÊNCIA COLETIVA
Os povos indígenas, tão-somente, vêm reivindicando o justo reconhecimento de seus direitos intelectuais coletivos. Referida conjuntura confronta-se com a supremacia que a sociedade oficial outorga ao conhecimento lógico e científico perante a existência real e efetiva que outras formas de aproximação do conhecimento ostentam. Obviedade a respeito da imprestabilidade de pretensa supremacia é o conjunto de saberes e conhecimentos que por séculos estes povos tem mantido e desenvolvido dentro do contexto das suas próprias comunidades.
Odiernamente, e digno de ser lamentado, é o fato de que testemunhamos um acelerado processo de apropriação tanto da biodiversidade, que é elemento material da riqueza intangível dos povos originários, bem como de seus conhecimentos primitivos. Como exemplo contrário à referida tendência, aliás, serve a Constituição do Equador a qual reconhece e protege o conhecimento ancestral coletivo, assim como o direito de povos indígenas, à propriedade intelectual coletiva dos seus legítimos conhecimentos tradicionais.
O reconhecimento dos direitos intelectuais coletivos e, de maneira particular, dos direitos da “propriedade” intelectual coletiva, na Constituição do Equador, a propósito, estabelece um desafio à legislação brasileira. O desafio ainda se torna maior, quando se estabelece que os direitos podem ser distintos e podem apresentar-se em contradição no que diz respeito aos seus fins e aos seus objetivos.
Ponto importante, além disso, diz respeito ao fato de que a produção intelectual é identificada pelos regimes de propriedade intelectual tanto no Brasil quanto no Equador como sendo um fato eminentemente individual ou individualizado, a não ser quando não se refira às pessoas jurídicas. O âmbito de proteção da propriedade intelectual é, pois, o mesmo que regula os institutos da propriedade industrial, que tradicionalmente segue rito próprio de identificação e de especificação do objeto de proteção, conjuntura que pode tornar-se um entrave à necessária abrangência da proteção aguardada para a biodiversidade, tão reivindicada que é pelas comunidades tradicionais.
Nunca se deve olvidar que o Brasil é considerado um dos países detentores da denominada megadiversidade, ocasião em que abriga formações naturais como o cerrado, o pantanal, a caatinga, os campos e mais de 3,5 milhões de km² de florestas tropicais. Relacionada à sua rica biodiversiade, encontra-se o seu extenso patrimônio sociocultural. Trata-se, pois, de uma das populações mais diversificadas do globo. A boa notícia é que, no Brasil, tanto a bio quanto a sociodiversidade são protegidas constitucionalmente.[15]
A República Federativa do Brasil, por derradeiro, também é signatária da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB),[16] que entrou em vigência no país a partir de sua ratificação pelo Congresso Nacional, no mês de maio do ano de 1994, sendo considerado o principal instituto de direito internacional sustentado por meio de incessante discussão.
CONCLUSÃO
Como se viu, a biopirataria, tema ainda novel no cenário jurídico nacional, encontra ampla gama de pesquisa e conseqüente sucesso de debates, ante não só a sua importância como matéria atinente ao Direito Ambiental, tão crucial que é, mas também em decorrência das inúmeras ramificações hipotéticas e teóricas que do seu vasto âmago advêm.
Todavia, não obstante a incipiência teórica do assunto, cabe ao Estado reprimir sem demora as práticas ilícitas que circundam a biodiversidade, e, nesse diapasão, ao lado dos principais órgãos repressores à biopirataria, tais como o IBAMA e a Polícia Federal, a Polícia Judiciária dos estados também detém importante papel no cenário de repressão criminal, mormente por meio das tipificações consubstanciadas na Lei Federal nº9.605/98.[17]
Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito (UMSA). Mestre em Integração Latino-Americana (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos (FADISMA)
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