O parto anônimo:uma ponderação de valores e de direitos em respeito à vida digna do nascente

Resumo: O presente trabalho trata doInstituto do Parto Anônimo, um tema considerado pelo judiciário como polêmico.A dissertação busca, pois, responder aos questionamentos oriundos da possível instituição do parto anônimo no Brasil, bem como analisar suas consequências no âmbito jurídico, em especial no tocante aos sujeitos envolvidos no exercício do direito ao mesmo; Inicialmente, apresenta-se uma evolução histórica do parto anônimo no Brasil, e principais polêmicas no Brasil sobre sua implementação. A partir das críticas enfrentadas, os três capítulos seguintes buscam esmiuçar os questionamentos elencados sob a perspectiva da dignidade humana, personalidade, convivência familiar afetiva e solidariedade, numa tentativa de possibilitar a análise do instituto à luz do constitucionalismo brasileiro. A conclusão revela o posicionamento da autora acerca dos questionamentos levantados, notadamente no que tange à constitucionalidade do parto anônimo e sua possível implementação no país.[1]

Palavras-chave:Parto Anônimo. Planejamento Familiar. Cuidado e responsabilidade.Abandono de criança.

Sumário: 1. Introdução. 2. O parto anônimo no Brasil. 2.1. O abandono de crianças e a realidade social brasileira. 2.2. Da roda dos expostos ao projeto de lei 3.220/08. 2.3. Os sujeitos do parto anônimo. 2.4. As críticas ao parto anônimo no Brasil. 3. As relações familiares e o parto anônimo. 3.1. Família brasileira: suas influências e transformações. 3.2. O melhor interesse da criança na perspectiva das relações familiares e do parto anônimo. 3.3. Relações familiares e sua repersonalização. 3.4. O direito ao livre planejamento familiar e o parto anônimo. 4. O cuidado enquanto valor jurídico e o parto anônimo. 4.1. A proteção integral da criança e o parto anônimo. 4.2. A adoção no brasil e o parto anônimo. 4.3. O princípio do cuidado e responsabilidade na constituição da república federativa do brasil e o parto anônimo. 5. Conclusão. Referências.

1 Introdução

O presente trabalho terá como finalidade analisar o instituto do parto anônimo no Brasil, prática utilizada por muitos países. Certo é que, o estado puerperal, e a clandestinidade do abandono faz com que muitos recém nascidos sejam colocados a condições subumanas. Entre os anos de 2006 e 2007 vários casos de abandono de crianças em banheiro público, ferro velho ao longo de estradas, às margens de rio, foram noticiados.

Muitas são as razões pelas quais os genitores rejeitam seus filhos desde a gestação pelo fato de não possuírem condições de proporcionar um crescimento adequado. Motivo que não justifica o abandono e a consequente condenação do nascituro a morte. Ressalta-se que não se pretende discutir a existência ou não dos direitos do nascituro, mas a garantia de direitos de uma pessoa recém-nascida.

Não obstante de que melhor seria a não existência de crianças enjeitadas. Entretanto, nem sempre os genitores têm o desejo de se tornar pais. Sabe-se que afeto não se exige, sente-se. Partindo do pressuposto de que o afeto é um elemento fundamental na família atual, observa-se que “genitores” e “pais” são palavras com significados diferentes.

O entendimento familiar pós-moderno prevê a paternidade como fruto de uma relação afetiva entre pais e filhos, devendo prevalecer a relação socioafetiva sobre a biológica. Devido à evolução social, a legislação vigente considera como pais aqueles que educam, criam e convivem com seus filhos.

Para o presente trabalho, o que vai importar é a gravidez indesejada e suas repercussões. Parte-se da idéia da ausência de instinto materno, porém não se afasta a responsabilidade parental. Uma gravidez indesejada ou a inexistência de uma relação afetiva entre genitor e filho deveria resultar no máximo em uma entrega da criança à adoção. Entretanto, o nosso sistema judicial exige procedimentos aos quais nem sempre os genitores estão dispostos a se submeter.

Muitos genitores desistem de colocar a disposição um filho biológico para a adoção por medo de um enquadramento criminoso como previsto no art. 134 do nosso Código penal. Decerto é que, a prioridade dos genitores diante de uma gravidez indesejada não é o registro civil da criança como filho, mas a entrega aos cuidados do Estado afastando assim qualquer vestígio biológico.

A educação sexual quando implementada pelo Estado através de laqueaduras, vasectomia e mecanismos anticoncepcionais figuram como políticas públicas preventivas à gravidez indesejada. Contudo, diante das falhas no sistema de planejamento familiar, é fundamental que o Estado ofereça alternativas para que a liberdade dos genitores e a vida da criança sejam igualmente preservadas.

O direito à vida do nascente não deve colidir com a liberdade individual de ordem privada. Diante disso, foram apresentados três projetos de Lei ao Congresso Nacional: Projetos de Lei 2.747/08, 2. 834/08 e 3.220/08. Ambos projetos objetivavam a implementação do parto anônimo no Brasil. Anteriormente conhecido como roda dos expostos ou roda dos enjeitados, o parto anônimo surge com uma nova roupagem antes de ser legalmente apresentado. Segundo as justificativas apresentas, o objetivo seria uma substituição do abandono pela entrega, na qual a criança seria entregue a instituições especializadas ou a hospitais que se responsabilizariam pelos cuidados com sua saúde e, consequentemente a encaminharia para a adoção.

Importante ressaltar que as propostas de implementação do parto anônimo no Brasil, preservariam exclusivamente os direitos da genitora e da criança. O presente trabalho busca tratar as consequências no âmbito jurídico e responder aos questionamentos da possível implementação do instituto em discussão. Será analisado a existência de liberdade da genitora em fase gestacional de não ser mãe; se o mencionado direito esbarraria no respeito à vida digna do nascente; a decisão de entrega do recém nascido pela genitora deve ser preponderante ou não, os sujeitos envolvidos no exercício do direito ao parto anônimo; e se o anonimato fere o direito pessoal do nascido ter conhecimento de sua ascendência genética. 

O presente trabalho, na tentativa de organizar a abordagem do tema, divide-se em três capítulos, apresentando inicialmente o direito ao parto anônimo através de uma evolução histórica, da fase imperial até a realidade atual brasileira. A tramitação do projeto de Lei como um possível direito, as críticas enfrentadas, os questionamentos na perspectiva da dignidade humana e dos princípios constitucionais da convivência familiar, personalidade, liberdade e solidariedade.

2 O parto anônimo no brasil

2.1 O ABANDONO DE CRIANÇAS E A REALIDADE SOCIAL BRASILEIRA

Não há dúvidas que o abandono de crianças na sociedade brasileira é fato que vem permeando toda a história de nosso país. Inúmeras são as causas de abandono de crianças no Brasil. Tais causas se justificam muitas vezes pelas questões financeiras ou pelo contexto histórico-social da localidade em que ocorre o abandono. Diante destas causas, há que se identificarem os casos de abandono e avaliar a proposta da implementação do parto anônimo no Brasil.

Destarte, é preciso entender que criança abandonada é aquela desamparada dos cuidados de seus pais ou responsáveis e que encontra-se em abrigos, esperando para que seja adotada por uma família substituta ou os casos de  abandono selvagem que se caracterizam pela rejeição da criança em local degradante, agravado pela falta de respeito à criança, a quem também são conferidos direitos.

Os casos de crianças abandonadas ou abandonos selvagens são uma realidade social brasileira, que nos leva a analisar o parto anônimo no Brasil originado ainda no período colonial, mas só agora levado à discussão como possível instituição legal.

O abandono de crianças no Brasil é um fato social em todas as fases da história do país. A falta de registros e do domínio da escrita fez com que a identificação da quantidade de crianças abandonadas no início da história brasileira não tenha um número exato. Ainda no período colonial, crianças pobres e sozinhas chegavam ao “Novo Mundo” nas naus de Portugal, após se arriscarem no trabalho braçal das caravelas, tendo sido enviadas muitas vezes como órfãs do Rei, para se casarem com os súditos da Coroa (RAMOS, 2009 apud OLIVEIRA, 2011, p. 22).

A criança não era valorizada, tampouco recebia alguma proteção do Estado. O Brasil ainda mantém altos índices de mortalidade infantil, mortes fetais mesmo após a publicação de leis protetivas como o Código de Menores (1927), a Declaração dos Direitos da Criança (1959), da qual o Brasil é signatário, e a vigência da proteção integral da criança e do adolescente inaugurada com a Constituição Federal de 1988, e regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 9.069/90).

Muitos são os casos de abandono em nosso país, no estado do Ceará, o número de crianças cresceu em 300% no ano de 2013. Crianças são deixadas na maternidade após o nascimento enquanto as mães recebem alta, em caixas de sapato, latas de lixo, em sacolas, etc.

Uma das principais causas de abandono de recém-nascidos são filhos de mulheres dependentes químicas, que vivem em uma extrema vulnerabilidade social e pobreza.

Não há muito tempo que a expressão “criança abandonada” não tinha o alcance que se tem hoje. Criança abandonada era sinônimo de menores infratores, enquanto as crianças desamparadas eram chamadas de enjeitadas ou excluídas (VENÂNCIO, 1999, p. 20).

A acessibilidade à sexualidade entre os jovens vem acontecendo cada vez mais precocemente, o que nos mostra que o número de gravidez indesejada aumente cada vez mais. Segundo pesquisas feitas pelo IBGE nos últimos anos no estado de Alagoas, mães com idade entre 10 e 14 anos já possuíam ao menos dois filhos vivos.

Dessa forma, é notório que o abandono é fruto de um lar desestruturado, e fica claro que a exposição de uma criança ou seu infanticídio pode ser ocasionada por uma maternidade indesejada. “Num breve levantamento realizado na internet e em jornais, houve casos de abandono de recém-nascido em várias cidades brasileiras e de modo chocante; apenas em 2007 foram cerca de 30 casos” (OLIVEIRA, 2011, p.110).

Importante esclarecer que o mito do amor materno não é um sentimento presente em todas as mulheres, a verdade é que nem todas as mulheres possuem condições psicológicas para exercerem a maternidade. Gerar um ser humano não faz com que seus genitores estejam aptos para se tornarem pai ou mãe, e afeto não se exige, sente-se.

A Constituição Federal de 1988prevê uma pluralidade de entidades familiares e não como único sinônimo para a família a instituição matrimonial, razão pela qual o afeto é elemento fundamental para a formação familiar. Partindo desse pressuposto, observa-se que “genitores” e “pais” não são palavras sinônimas.

Assim sendo, caso a mãe biológica resolva exercer a maternidade devido ao preconceito em relação ao abandono de criança e não obtenha sucesso, isso pode ocasionar grandes problemas na relação mãe e filho, o qual poderá vir a sofrer maus tratos e até abandono selvagem.

2.2 Da “roda dos expostos” ao projeto de lei 3.220/08

     A implantação da primeira “roda dos expostos” no Brasil ocorreu no ano de 1726, em Salvador por D. João VI. Esse nome devia-se ao fato de:

“Ser fixado no muro ou na janela, normalmente das Santas Casas de Misericórdia, hospitais ou conventos, um artefato de madeira no qual era colocada a criança e mediante um giro era conduzida ao interior daquelas dependências. Um toque na campainha, ou um badalar de sino era o sinal dado que na roda havia uma criança e quem a colocou não queria ser identificada”(ALBUQUERQUE, 2008, p.142-143).

Em um espaço cilíndrico com uma divisória ao meio colocado na parede das Santas Casas de Misericórdia, a criança a ser exposta era colocada diretamente da rua, sem que aquela pessoa que a estivesse colocando fosse identificada. Em seguida, o expositor acionava um sino e girava a roda, informando assim que mais uma criança havia sido enjeitada.

Portanto, entende-se, por enjeitada ou exposta, a criança recém-nascida abandonada nas portas das igrejas, das casas, nas ruas ou, mais comumente, na roda dos expostos, que foi importada da Europa, tendo se originado dos átrios ou vestíbulos de mosteiros e de conventos medievais, utilizados para outras finalidades, como, por exemplo, evitar o contato dos religiosos com o mundo exterior (VALDEZ, 2004 apud OLIVEIRA, 2011).

Durante o segundo e terceiro séculos do Brasil Colônia a roda dos excluídos encontrou apoio devido a cruel realidade das crianças, período marcado pelo abandono selvagem dos menores. Nessa época, as Casas de Misericórdia já eram responsáveis de forma informal pelo acolhimento de crianças expostas, antes mesmo da implantação das rodas.

O número de órfãos nas tribos indígenas, principalmente pelo fato de falecimento dos adultos em razão das enfermidades trazidas pelos colonizadores era enorme. Conforme Venâncio (2008, p.189) diante do crescimento desse número, os jesuítas criaram os Colégios de Meninos, “instituições destinadas a abrigar legiões de indiozinhos sem pai, de tribos dizimadas pela peste, fome e conflitos com os brancos.”

Os jesuítas recebiam não só índios, mas também filho e filhas dos colonos portugueses, bem como mestiços pobres. Conforme as cidades cresciam, a pobreza e a população aumentavam.  O número de crianças abandonadas cresceu tanto, que as casas de misericórdia não tinham como cuidar de todas elas, razão pela qual iniciava a prática de abandono de recém-nascidos em locais públicos.

Junto à criança era deixado um bilhete onde geralmente eram escritos pelas mães e constavam informações sobre o bebê, seu nome, sua data de nascimento e se era batizado ou não. Algumas vezes esses bilhetes vinham acompanhados com pedidos de perdão.

     Segundo Venâncio (2008, p. 199) 

“Não é fácil encontrar nos textos de bilhetes dos séculos XVIII e XIX exemplos de “expostos brancos” que foram abandonados em razão da pobreza dos pais:

[…] vai esta menina já batizada e chamar-se Ana e pelo amor de Deus se pede a Vossa Mercê e queira mandar criar atendendo a pobreza de seus pais.

[…] trouxa bilhete o qual seu teor é o seguinte […] vai este menino para essa Santa Casa pela indigência e necessidade de seus pais.

[…] as duas meninas portadoras desta carta foram deixadas por necessidade de sua mãe em casa de uma pobre, que vive de esmola dos fiéis, e por isso que elas vêm agora procurar asilo desta Casa da Santa da Misericórdia.

[…] morreu sua mãe e por pobreza e falta de leite se enjeita esta batizada chamada Joaquina, e por dita esmola ficamos pedindo a Deus pela saúde e vida decente.”

Com informações ou não,dados sobre as crianças eram anotados em livros de registros das Santas Casas. Alguns deles ainda existem e dão uma idéia da condição que a criança chegava. Como neste termo, extraído do livro Educandário Rumão de Mattos Duarte de Dahas Zarur, de 1843:

“Às duas horas da tarde lançaram na Roda uma menina creoula (sic), que tinha dois meses de idade, muito enferma, com as orelhas furadas; no pescoço, uma enfiadura (espécie de colar) de missangas (sic) com duas figas de pau.Às nove horas da noite lançaram na Roda uma menina que parece branca, recém-nascida, com dois dedos na mão esquerda, outros dois no pé direito”(ZARUR,1843 apud OLIVEIRA, 2011, p.27).

Às vezes eram depositadas as rodas crianças falecidas:

“Às nove horas da noite foi lançado na Roda o cadáver de um menino de cor parda, que parece ter três dias de nascido. Cujo sendo examinado pelo doutor, diz este que é falecido de desvaído (não socorrido). Veio vestido com uma camisa de cambrainha” (ZARUR,1843 apud OLIVEIRA, 2011, p. 27)

A dificuldade financeira não era o único motivo para que os pais entregassem seus filhos, mas também a falta de condições para enterrá-los. A sociedade acreditava que quando um recém-nascido falecia, transformava-se em “anjinho”, crença que ajudava a acalentar o sofrimento dos familiares. Portanto, quem não realizasse a cerimônia fúnebre de seu filho, teria que suportar o não recebimento do mesmo pelo Senhor como um “anjinho”, além de já estar sofrendo pela sua perda.

A escravidão e os preconceitos sociais foram outros fatores que contribuíram para o aumento de crianças expostas. O fato de uma mulher engravidar ainda estando solteira, ou de um homem que não fosse seu marido, foi algo que perdurou e ainda perdura no país, fazendo com que o número de crianças expostas crescesse absurdamente.

Alguns grandes nomes foram entregues à roda dos expostos, como por exemplo, o regente brasileiro Diogo Antônio Feijó, que foi batizado como “filho de pais incógnitas” (CALDEIRA, 1999 apudOLIVEIRA, 2011, p. 30). No século XVIII, na Europa, tem-se a notícia de que Jean-Jacques Rousseau teria entregado seus cinco filhos à roda dos expostos.

Durante o período imperial, colonial, a família brasileira se resumia em uma instituição matrimonial, de caráter patriarcal, era regida pelo chefe da família. A mulher era muito submissa ao seu esposo, numa relação hierárquica. Diante disso, para evitar uma rejeição social, as mães abandonavam suas crianças. Logo, “não é exagero afirmar que a história do abandono de crianças é a história da dor feminina” (VENÂNCIO, 2008, p. 189).

A roda dos expostos existiu em várias cidades brasileiras como: Salvador, Rio de Janeiro, Recife, Fortaleza, Minas Gerais, Goiás, sendo a de São Paulo a última a funcionar, terminando suas atividades por volta dos anos 50. A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo teria recebido um total de 5.696 expostos, e no Rio de Janeiro e Salvador teriam recebido cerca de 50 mil enjeitados nos séculos XVIII e XIX (VENÂNCIO, 2008).

Vários motivos fizeram com que a roda dos expostos fosse desativada, como por exemplo, a falta dos cuidados necessários para com as crianças. “Mães de aluguel” eram contratadas pelas Casas para cuidar das crianças que não iam viver em famílias substitutas, que recebiam em troca pequenos valores ou menores encargos no “mercado de amas escravas” aos seus senhorios.

“As mães de aluguel, contratadas pela câmara ou Santa Casa, podiam ser livres ou escravos, devendo o senhor assinar o termo de compromisso junto à instituição de assistência. Em 27 de agosto de 1797, João, bebê mulatinho, foi enviado à Santa Casa de Salvador; na ata, o escrivão observou: dado a criar […] ao Senhor Capitão Joaquim José de Souza Portugal, para criar uma sua escrava. Experiência semelhante foi vivida por Carlota, pardinha baiana, enviada a 2 de agosto de 1805 a Victoriano Francisco do Patrocínio Pereira, à Ladeira de Santa Thereza, casa n. 337, para criar uma sua escrava”(VENÂNCIO, 2008, p.194).

A grande preocupação com esse tipo de contratação era quando o motivo para o cuidado se dava exclusivamente por ordem financeira, fazendo com que maus tratos se tornassem algo inevitável, levando muitos bebês à morte. Muitas amas em substituição à amamentação artificial utilizavam uma mistura de mel com água, caldos quentes, leite de vaca, água morna com açúcar, que eram misturados com panos de linho, colheres de pau ou esponja forradas com linho. O contato do alimento com o uso de panos poderia provocar sufocação. Vários registros indicavam como principal causa de falecimento de crianças expostas.

Venâncio (2008, p. 215) afirma que:

“Segundo os médicos baianos, as moléstias que mais afetavam os abandonados decorriam de complicações do aparelho digestivo, da fraqueza congênita, tétanos, sarnas, aftas, convulsões, inflamações oriundas dos problemas de dentição ou da infecção do aparelho respiratório. A etiologia de tais doenças era a mais vaga possível. Qual mal estaria por trás das convulsões registradas nos óbitos dos pequenos? Nos escritos médicos do século XIX, um sintoma aparentemente objetivo quase sempre encobria diferentes tipos de doenças. O óbito causado por aftas é um bom exemplo. A ulceração nas partes internas da boca podia ser de natureza sifilítica ou decorrer de inflamação generalizada no aparelho gastrointestinal, havendo ainda a possibilidade de as aftas resultarem de estomatite aftosa ou de fungos tropicais.”

Destarte, a roda dos expostos tinha como objetivo trazer esperança de uma vida digna aquele que acabou de nascer.

Para Venâncio (2008, p. 194):

“A Roda tinha por finalidade precípua não constranger pessoa alguma, nem quem levava a criança, nem tampouco quem a recolhia. A sociedade acobertava o abandono, principalmente quando ele não adquiria feições selvagens, colocando em risco a vida do bebê”.

A roda dos expostos foi uma das instituições brasileiras com mais tempo, resistindo aos três regimes da nossa história. Conseguiu manter-se durante a  República e só foi extinta na década de 50. O Brasil foi o último país a acabar com a “roda dos expostos”. Apesar da roda dos expostos ter sido extinta há mais de 50 anos, o abandono de crianças continua sendo um grande problema em nosso país.

Para Valdez (2003 apud OLIVEIRA, 2011 p.30)

“[…] não há mais a roda dos expostos, agora é a roda viciosa da pobreza que continua expondo crianças e adolescentes a inúmeras situações de riscos. Uma grande parte da sociedade reage contra isso, insistindo que lugar de criança é na escola, na família e na comunidade. O importante é não aceitar o abandono como algo normal e que faz parte de uma sociedade com grandes diferenças sociais”.                     

Em 2008, foi apresentado à Câmara dos Deputados, no dia 11 de fevereiro o projeto de lei nº 2.747/08 pelo deputado Eduardo Valverde com o objetivo de criar maneiras de coibir o abandono de crianças. O presente projeto possuía 12 artigos e previa que qualquer mulher independentemente de raça, religião, idade fizesse o acompanhamento pré-natal e o parto do Sistema único de Saúde de forma sigilosa.

Em seguida outros dois projetos de lei foram apensados a este sobre o parto anônimo: projetos de lei 2.834/08 e 3.220/08. O primeiro foi apresentado em 19 de fevereiro de 2008 pelo deputado Carlos Bezerra que objetivava alteração no Código Civil em seu artigo 1.638 que passaria a prever mais uma possibilidade de suspensão ou extinção do poder familiar, quando pai o mãe optassem pelo parto anônimo.(Vide Anexos)

No dia 09 de abril de 2008 foi apresentado o projeto de lei 3.220/08 pelo deputado Sérgio Barradas, o mais completo projeto que os demais. Dispunha de 16 artigos minuciosos sobre o direito da gestante que não deseja ser mãe e a forma como a criança será encaminhado à adoção. O presente projeto também dispõe que a genitora forneça informações com relação à verdade biológica da criança, resguardando seu direito de personalidade caso ocorra futura autorização judicial para que os dados sigilosos revelados.

Mesmo sofrendo críticas, os projetos de lei apresentaram uma visão moderna da roda dos enjeitados, tornando possível a entrega voluntária e sigilosa ao Estado de uma criança recém-nascida por sua genitora, após seu nascimento.

Os três projetos foram encaminhados primeiramente à Comissão de Seguridade Social e Família, que entendeu pela inconstitucionalidade, injuridicidade e rejeição dos três projetos, ratificando em 03 de setembro de 2008. Em seguida, os três projetos foram encaminhados para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania que, por unanimidade aprovou em 16 de abril de 2009 o parecer do relator desta comissão, o deputado Luiz Couto, negando seguimento aos projetos legislativos.

O referido deputado devolveu os projetos sem qualquer alteração em seu parecer que decidiu pela inconstitucionalidade e injuridicidade da matéria, o que resultou em arquivamento em 2010.

Diante da ausência de uma legislação específica sobre o assunto, alguns juízes estaduais, de forma inovadora implantaram um sistema capaz de acompanhar a mulher grávida que não deseja exercer seu papel de mãe. A 1ª Vara da Infância e Juventude do Distrito Federal desenvolveu um procedimento de acompanhamento de gestantes que desejam entregar seu filho à adoção, tornando uma medida preventiva o recebimento da criança em segurança, evitando assim exposição a situações de risco.

2.3 Os sujeitos do parto anônimo

Todos os projetos apresentados não mostram de forma clara se o parto anônimo é um direito ou uma política estatal de planejamento familiar. É importante esclarecer para que se identifiquem os sujeitos de direito ou exigir do próprio Estado a publicidade e a qualidade nas políticas públicas.

Segundo Alexy (2008), o homem é um sujeito de direitos enquanto ser liberto, coexistindo em uma coletividade, respeitando e sendo respeitado como pessoa; e sob o enfoque jurídico-dogmático, o homem é um sujeito de direito com base nas previsões de um determinado ordenamento.

O interesse do sujeito deve ser considerado enquanto membro de uma coletividade. Segundo Perlingieri (2007, p. 121):

“No ordenamento moderno, o interesse é tutelado se, e enquanto for conforme não apenas ao interesse do titular, mas também àquele da coletividade. Na maior parte das hipóteses, o interesse faz nascer uma situação subjetiva complexa, composta tanto de poderes quanto de deveres, obrigações, ônus. È nesta perspectiva que se coloca a crise do direito subjetivo. Este nasceu para exprimir um interesse individual e egoísta, enquanto que a noção de situação subjetiva complexa configura a função de solidariedade presente ao nível constitucional.”

O Estado disponibilizaria o parto anônimo como uma opção a gravidez indesejada, na qual caberia a mulher pleitear o exercício de tal direito. O Estado está preocupado com a gestante e o recém-nascido que estaria recebendo cuidados para um nascimento digno. A preocupação do mesmo é com a garantia de convivência familiar do nascente e sua inserção em uma família substituta logo após o processo de adoção.

A participação da gestante em relação ao parto anônimo é ativa e necessária, pois caberá a mesma entregar seu filho às instituições públicas de saúde, após o parto de uma gravidez indesejada, tendo um prazo certo para arrepender-se e reivindicar a maternidade.

O parto em anonimato não se trata de uma expectativa de direito do nascituro. Certo é que a ele são asseguradas expectativas de direito como os sucessórios e os alimentos gravídicos. Entretanto, o direito ao parto anônimo não tem como ser exercido pela criança que sofre apenas preocupações do Estado.

A Carta Magna é muito clara ao assegurar proteção especial à família, conforme seu art. 226 § 7º:

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. […] § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas” (BRASIL, 2012, p. 72).

É dever do Estado e da família assegurar direitos básicos à criança como: o direito à vida, à dignidade, à convivência familiar, afastando-a de toda forma de negligência e crueldade.Segundo o art. 227 da Constituição Federal:

“Artigo 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar á criança ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (BRASIL, 2012, p. 72).

Importante ressaltar que estão tipificados como crimes no Código Penal Brasileiro em seus artigos 124, 133 e 134, o aborto provocado pela gestante, o abandono de incapaz e a exposição ou abandono de recém-nascido.

“Artigo 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção de um a três anos.

Artigo 133. Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: Pena- detenção de seis meses a três anos.

Artigo 134. Expor ou abandonar recém – nascido, para ocultar desonra própria: Pena – detenção de seis meses a dois anos” (BRASIL, 2012, p. 522-523).

É dever dos genitores cuidar daquele que está para nascer, inclusive com a realização de exames pré-natais. E depois do nascimento os pais são obrigados a criar e educar os filhos menores, conforme art. 229 da nossa Carta Magna. “Artigo 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade” (BRASIL, 2012, p. 73).

Qualquer pessoa tem a liberdade de se relacionar sexualmente tendo filhos ou não. Contudo, caso os tenha, devem assumir a responsabilidade de educar e criar, caso contrário o Estado deverá supri-las. Os pais biológicos se tornam responsáveis pelo filho desde a fase gestacional, momento em que a criança depende totalmente da gestante para sobreviver. O respeito à vida do nascente e a intermediação ao convívio familiar são efeitos reflexos do exercício do parto anônimo pela gestante.

2.4 As críticas ao parto anônimo no brasil

     Várias são as críticas com relação à implementação do parto anônimo no Brasil. Para Fonseca (2008), o parto anônimo seria uma medida na contramão da história. Em se tratando de parto anônimo, o grande cerne da questão segundo Penalva (2009, p. 87) “o choque entre a liberdade da mulher e o direito à identidade do filho”, isto é, liberdade versus direito de personalidade.

O fato de já existirem previsões constitucionais e no Estatuto da Criança e do Adolescente com relação à proteção da criança, faz-se desnecessário tal projeto. Para Souza (2008, p. 65) além de ser uma colisão de direitos, o projeto legislativo para a instituição do parto anônimo no Brasil é totalmente desnecessário.

No mesmo pensamento, Levy (2009 apud OLIVEIRA, 2011, p. 53) […] em face das disposições previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, afastando, inclusive, a eventual iniciativa de aperfeiçoamento. Ao invés de acrescentar, retrocede, desconsiderando avanços e conquistas importantes na normativa já existente de nosso país.

Para Welter (2008 apud OLIVEIRA, 2011, p. 54), a normatização do parto anônimo deve transitar pela condição humana tridimensional e, principalmente, por toda a principiologia constitucional, mediante a adoção da jurisdição constitucional.

 Partindo desse pressuposto, o autor defende a implementação do parto anônimo no Brasil, desde que, seja esclarecido à população que “o anonimato evitará que o nome da gestante se torne de conhecimento público, mas os dados pessoais deverão ser fornecidos mediante ordem judicial, para que o filho tenha o direito à sua condição humana tridimensional” (WELTER, 2008 apud OLIVEIRA, 2011, p.54). 

Importante esclarecer que o projeto de Lei 3.220/08 em seu artigo 6º prevê a possibilidade de acesso às informações referentes à identidade biológica. Isto só ocorreria em casos excepcionais, o que revela a inadequação da nomenclatura “parto anônimo”, pois tal projeto trata de parto em sigilo e não em anonimato.

Para Albuquerque (2008, p.158) “o parto anônimo encontra eco no direito de família”, pois é “o único instituto que, por ora, apresenta-se com uma função prestante, ainda que não seja a melhor e a mais indicada, qual seja:garantir a vida, a integridade e a dignidade da criança que a mãe não pode ou não deseja criar.”

3 O parto anônimo e as relações familiares

3.1 Família brasileira: suas influências e transformações

Diante das grandes transformações familiares sofridas nos últimos anos, a mulher veio sofrendo grande influência seja como ser humano, cidadã, mãe, ser humano ou profissional. Dessa forma, faz-se necessário um estudo rápido sobre a evolução sociojurídica no Brasil.

Com a Constituição Federal de 1988, passou a ser reconhecida a igualdade entre homens e mulheres. O assunto adquire especial relevância quando se constata que o direito é uma ciência social aplicada, e, como tal, suas normas são elaboradas com base em fatos e valores (REALE,1998).

Alguns aspectos históricos de ordem nacional e internacional merecem destaque no que diz respeito à construção jurídica do princípio da igualdade entre homens e mulheres. É comum a remissão automática ao ideário de:“Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Entretanto, a liberdade pregada era burguesa, e por isso, somente referente aos homens, sujeitos de direitos e participantes ativos na sociedade francesa do final do século XVIII.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 trata somente dos homens porque eram reconhecidos ativos enquanto sujeito de direitos. Dessa forma, a tão almejada igualdade seria entre os homens das diversas camadas sociais, não podendo entender que a palavra homem englobasse as mulheres na busca por direitos.

Fagundes (2008 apud OLIVEIRA, 2011 p.90) afirma:

“A revolução da mulher foi a mais importante revolução do século XX, disse Norberto Bobbio, um dos maiores pensadores do nosso tempo.[…] Mas a verdadeira revolução à qual se refere o filósofo italiano teria a cabeça mais fria, digamos. No seu planejamento e estrutura seria uma revolução mais prudente e mais paciente, obscura, talvez.”

A instituição familiar encontra-se em constante mudança, fruto de aspectos culturais, profissionais, religiosos, sociais, contudo não significa dizer que estaria fadada ao fim.

3.2 O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA NA PERSPECTIVA DAS RELAÇÕES FAMILIARES E DO PARTO ANÔNIMO

Levando-se em consideração que o menor deve ser protegido em seus direitos, há que se dizer que em relação ao parto anônimo no contexto das relações familiares, é imprescindível a análise do Princípio do Melhor Interesse da Criança no intuito de resguardá-la em todos os direitos e garantias que lhe são peculiares.

O Princípio do Melhor Interesse surgiu na Inglaterra através do Instituto parens patriae, com o intuito de proteger aqueles que não podiam fazê-lo por conta própria. Inicialmente à guarda de pessoas incapazes foi delegada ao Chanceler a partir do século XIV.

Parens patrie, é conceituado como “a autoridade herdada pelo Estado para atuar como guardião de um indivíduo com uma limitação jurídica” (GRIFFITH, 2000 apud PEREIRA, 2000, p.1-2). Dessa forma, o Chanceler assumia o papel de “guardião supremo”, com o objetivo de “proteger todas as crianças, assim como os loucos e débeis, ou seja, todas as pessoas que não tivessem discernimento suficiente para administrar os próprios interesses” (GRIFFITH, 2000 apud PEREIRA, 2000, p.2).

Ressalta-se que naquela época a criança era considerada uma coisa pertencente ao seu pai. A custódia era preferencialmente dada ao pai, o que posteriormente passou a ser da mãe. Segundo as origens históricas, ao exercitar o parens patriae, a preocupação não deveria ser a diferença ou controvérsias entre as partes adversas, ou seja, pai e mãe, mas sim “o bem estar da criança deveria se sobrepor aos direitos de cada um dos pais” (GRIFFITH, 2000 apud PEREIRA, 2000, p. 2).

A proposta para a proteção especial para a criança começa a aparecer na Declaração de Genebra em 1924, onde foi dito que há necessidade de proclamar à criança uma proteção especial. Na Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, é destacado para a criançao direito a cuidados e assistência especiais.

A Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959 em seu segundo princípio afirmou que:

“a criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidade e serviços, a serem estabelecidos em lei por outros meios, de modo que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança”(PEREIRA, 2011, p. 109).

Em 20 de novembro de 1989, a Assembleia Geral das Nações Unidas por unanimidade aprova a Convenção Internacional dos Direitos da Criança. A principal questão debatida segundo (BONNET, 1988apud PEREIRA, 2000, p.5) “era definir direitos universais para as crianças, considerando a diversidade de percepções religiosas, sócio-econômicas e culturais da infância nas diversas nações.”

Por meio do Decreto nº 99.710, de 1990 que ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, os nossos Tribunais vêm aplicando na prática o princípio do melhor interesse.

A Proteção Integral na Doutrina Jurídica afirma que “crianças e adolescentes são sujeitos de direitos universalmente conhecidos, não apenas de direitos comuns aos adultos, mas além desses, de direitos especiais, provenientes de sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, que devem ser assegurados pela família, Estado e sociedade” (PEREIRA, 2011, p. 112).

Com a Constituição Federal Brasileira de 1988, a Doutrina passou a vigorar através da inclusão do artigo 227, assegurando assim os direitos fundamentais às crianças, o que tornou base de sustentação para a criação de um instrumento com o objetivo de regulamentar os direitos fundamentais de crianças e adolescentes – Lei nº 8069/90, Estatuto da criança e do Adolescente (ECA).

Através do art. 1º do ECA (Lei 8069/90),  apresenta-se a proteção integral da criança e do adolescente. Com isso, criança e adolescente passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos, e sua condição como pessoa em desenvolvimento é expressamente considerada em seu art. 6º na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Assim sendo, a proteção da infância e juventude passou então a ser orientada pela Doutrina Jurídica da Proteção Integral, onde o Direito Fundamental à Infância teve o seu reconhecimento, consolidando não só o fundamento subjetivo, ou seja, a importância da formação e desenvolvimento da personalidade como também o fundamento objetivo, o interesse público e a necessidade social.

O Princípio do Melhor Interesse não é encontrado de forma expressa. Para (PEREIRA, 2004, p.112) “a averiguação do que se entende por melhor interesse há que se considerar o caso concreto e as peculiaridades a ele inerentes.” 

O mesmo autor afirma que o fato de ser um princípio traz em seu bojo uma indeterminação:

“Isto porque os princípios, diferentemente das regras, não trazem em seu bojo conceitos predeterminados. A aplicação de um princípio não o induz à base do tudo ou nada, como ocorre com as regras; sua aplicação deve ser prima facie. Os princípios, por serem Standards de justiça e moralidade, devem ter seu conteúdo preenchido em cada circunstância da vida, com as concepções próprias dos contornos que envolvem aquele caso determinado. Tem, portanto, conteúdo aberto” (PEREIRA, 2004, p. 110).

O fato de não trazer um conceito predeterminado e ter o conteúdo aberto, não impede que ações sejam executadas pelas autoridades administrativas ou órgãos legislativos para proteger a criança como sujeito de direito que é, assim como respeitar seus interesses. Isso significa que em qualquer circunstância, em toda decisão referente a uma criança/adolescente, devemos escolher a melhor solução para ela.

“EMENTA

RECURSO ESPECIAL – DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – PEDIDO DE GUARDA FORMULADO POR AVÔ – CONSENTIMENTO MATERNO – PAI FALECIDO – DEFERIMENTO DA MEDIDA – POSSIBILIDADE, DESDE QUE OBSERVADO O MAIOR INTERESSE DO MENOR – RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

Como só acontece em processos desta natureza, vale dizer, onde se controvertem direitos da criança e do adolescente, o princípio do maior interesse é, de fato, o vetor interpretativo a orientar a decisão do magistrado. Para fins de fixação de tese jurídica, deve-se admitir, de forma excepcional (artigo 31 § 1º, primeira parte c/c § 2º, do ECA) o deferimento da guarda demenor aos seus avós que o mantêm e, nesta medida, desfrutam de melhores condições de promover-lhe a necessária assistência material e efetiva, mormente quandocomprovado forte laço de carinho, como ocorreu na espécie” (BRASIL, 2011 apud PEREIRA; OLIVEIRA, 2011, p. 114).

O princípio do melhor interesse com caráter hermenêutico, para quem julga, apresenta de forma subjetiva uma margem de possibilidade, obedecendo a um sistema de crenças e valores culturais no qual está inserido. Seguem abaixo dois exemplos de acórdãos com caráter hermenêutico e subjetivos:

“Mostra-se insubsistente o fundamento adotado pelo Tribunal de origem no sentido de que a criança, por contar com menos de um ano de idade, e, considerando a formalidade do cadastro, poderia ser afastada deste casal adotante, pois não levou em consideração o único e imprescindível critério a ser observado, qual seja, a existência de vínculo de afetividade da infante com o casal adotante, que, como visto, insinua-se presente” (Recurso Especial nº 1. 172.067- MG, Ministra Relatora MASSAMI UYEDA) (BRASIL, 2010 apud PEREIRA; OLIVEIRA, 2011, p. 115-116).

“A falta absoluta de estabilidade afetiva, social, material e espiritual, que paira sobre os genitores dessa criança, constitui forte indicativo para que seja ela, ainda que provisoriamente, colocada em família substituta na qual inicialmente inserida e lamentavelmente retirada, sem a necessidade de que, por decisão judicial, pesassem, sobre o resto de sua vida, as marcas indeléveis de ter sido impedida de usufruir, no primeiro ano de vida, do amor, afeto e proteção daqueles que a acolheram e manifestaram o firme propósito de dispensar-lhe todos os cuidados necessários para um pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade” (Conflito e competência nº 108. 442- SC, Ministra Relatora Nancy Andrighi)(BRASIL, 2010 apud PEREIRA; OLIVEIRA, 2011, p. 116).

O Princípio do melhor Interesse vem sendo visto como um desafio para os profissionais do Direito, pois revela a necessidade de mudança na formação destes, incluindo o entendimento dos aspectos emocionais, subjetivos e das dinâmicas relacionadas ao processo. Muitos profissionais ainda resistem a essa “nova visão”, detendo-se apenas aos aspectos jurídicos do caso, pois exige mudanças e reflexões que implicam aspectos profissionais e pessoais.

Para Silva (2007) cabe, de início, aos operadores de Direito deixar o mundo do dever ser que supõe a regularização e legislação do comportamento humano, em função do que considera certo ou errado, para a convivência humana na sociedade.

Para que isso aconteça, é preciso que o profissional do Direito saia do lugar de poder, ou seja, de conhecimento científico e entre na natureza das relações buscando compreendê-las com a consciência de fatores psicológicos e sociais, fazendo com que o melhor interesse não dependa somente de conhecimentos mas dos sujeitos envolvidos no processo.

3.3 As relações familiares e sua repersonalização

O ser humano estabeleceu grupos sociais que formaram a partir de laços familiares e, a existência de vínculos afetivos é algo inerente aos seres vivos em geral. Família segundo Coelho (1956, apud PEREIRA, 2000, p.15) “é um fato natural”. De acordo com (COELHO, 1956 apud PEREIRA, 2000, p.18) “a família é um fato natural, o casamento é uma convenção social. A convenção é estreita para o fato e este, então, se produz fora da convenção. O homem quer obedecer ao legislador, mas não pode desobedecer à natureza, e por toda parte ele constitui família, dentro da lei, se é possível, fora da lei, se é necessário.”

Para Bevilaqua (1956, p. 17) a família e uma criação natural, mas recebe influências sociais que irão moldá-la e aperfeiçoá-la:

“A esses fatores biológicos e psíquicos se vêem aliar outros de natureza sociológica. […] Mas a disciplina social, pouco a pouco, intervém, pela religião, pelos costumes, pelo direito, e a sociedade doméstica se vai, proporcionalmente, afeiçoando por moldes mais seguros, mais definíveis e mais resistentes. Somente depois dessa elaboração é que alguns escritores querem que exista a família, que assim seria um produto seródico da vida social. Penso, ao contrário, que não passa ela de uma criação natural, que a sociedade amolda e aperfeiçoa. Sabe-se, no entanto, que a família não é resultado apenas de um fato natural, recebendo influências culturais dos povos, sendo moldada de acordo com aspectos religiosos, culturais, sociais.”

A instituição familiar encontra-se em constante mudança, vinda de aspectos religiosos, culturais, sociais, sexuais e profissionais. Um exemplo claro foi a mudança da família poligâmica e poliândrica para a monogâmica, e do matriarcalismo para o patriarcalismo. O sistema patriarcal predominou e, até hoje influencia a família moderna.

Na época do direito romano, a figura do pater familias era a personificação do princípio do patriarcado. O poder do chefe da família era do “ascendente comum vivo mais velho” (WALD, 1995 apud PEREIRA, 2000, p. 22) tamanho que poderia ser analogicamente comparado com o poder estatal. Segundo Coelho (1956, apud PEREIRA, 2000, p. 16) “a analogia é realmente profunda pela sujeição dos membros da família, a uma só soberania e jurisdição, podendo igualar-se a manus e potestas com a autoridade do rei.”

O amor, enquanto elemento constitutivo da família, já dava seus primeiros sinais como essencial para a constituição familiar. O afeto tem sido responsável pelo conceito de família plural adotado pela doutrina e jurisprudência vigente.

A concepção familiar tem-se ampliado cada vez mais, uma vez que colocou o afeto como um elemento fundamental. Hoje, entende-se como entidade familiar não somente o modelo tradicional da família nuclear: cônjuges e filhos. Jurisprudência e Doutrina têm sido responsáveis pela regulação de outros tipos de entidades familiares que, ainda, não encontram previsão no nosso ordenamento jurídico.

Ressalta-se a importância da família como um agente de socialização do indivíduo. Para Dias (2007), a família é o primeiro fator social do ser humano. E por colocar o afeto como elemento fundamental entre os membros, a doutrina dominante posiciona-se pela menor intervenção possível do Estado nas relações familiares.

O conceito de família para Dias (2007, p.28) “de há muito deixou de ser uma célula do Estado, e é hoje encarada como uma célula da sociedade.” A família não se encontra em decadência, mas sim em constante mudanças. A proteção especial do Estado com relação à família não afasta a relação entre seus membros, não podendo o mesmo intervir, limitando a vontade e a liberdade dos componentes das entidades familiares (PEREIRA, 2005, p. 153).

Família para Bevilaqua (2001, p.30) “conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo da consaguinidade, cuja eficácia se estende ora mais larga, ora mais restritamente, segundo as várias legislações. Outras vezes, porém, designam-se, por família, somente os cônjuges e a respectiva progênie.” Conceito este adotado no período pré-Constituição Federal de 1988.

A despatrimonialização, ou seja, a família matrimonial, patriarcalista, hierarquizada, patrimonialista dá lugar a uma pluralidade familiar, diversos tipos de entidades familiares onde em quaisquer delas o indivíduo pode buscar a realização da dignidade humana. Entende-se lar familiar como Lugar de Afeto e Respeito – LAR (DIAS, 2007, p.49).

Apesar da família estar em constante mudança, não significa afirmar que estaria fadada ao fim. Como base da sociedade, a família sofre transformações conforme os valores religiosos, culturais e sociais de um determinado espaço e tempo.

3.4 O direito ao livre planejamento familiar e o parto anônimo

     O direito ao livre planejamento familiar encontra-se previsto em nossa Constituição Federal em seu art.226, § 7º:

“Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”(BRASIL, 2012, p. 72).

A Lei 9.263/96 que regula tal artigo conceitua planejamento familiar em seu art. 2º como “o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.”

Para Rizzardo (2006, p. 15-16):

“Desde que não afetados princípios de direito ou o ordenamento legal, à família reconhece-se a autonomia ou liberdade na sua organização e opções de modo de vida, de trabalho, de subsistência, de formação moral, de credor religioso, de educação dos filhos, de escolha de domicílio, de decisões quanto à conduta e costumes internos. Não se tolera a ingerência de estranhos – quer de pessoas privadas ou do Estado -, para decidir ou impor no modo de vida, nas atividades, no tipo de trabalho e de cultura que decidiu adotar a família. Repugna admitir interferências externas nas posturas, nos hábitos, no trabalho, no modo de ser ou de se portar, desde que não atingidos interesses e direitos de terceiros”. (…) Dentro do âmbito da autonomia, inclui-se o planejamento familiar, pelo qual aos pais compete decidir quanto à prole, não havendo limitação à natalidade, embora a falta de condições materiais e mesmo pessoal dos pais. Eis a regra instituída no §2º do art. 1565 do nosso Código Civil: ”O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas”.

Nesse sentido, todas as questões referentes à inseminação artificial e à engenharia genética encontram guarida e embasamento nesse preceito. Todos os indivíduos têm direito fundamental à saúde sexual e reprodutiva, devendo o Estado tratar os distúrbios de função reprodutora como problema de saúde pública, garantindo acesso a tratamento de esterilidade e reprodução assistida.”

O avanço da medicina e a emancipação feminina, os métodos contraceptivos como o anticoncepcional proporcionaram o direito ao livre planejamento familiar, que deve ser exercido de forma responsável, e também, sem olvidar da doutrina da proteção integral da criança.

Certo é que, liberdade e responsabilidade devem caminhar juntas no exercício do direito ao planejamento familiar. Para Gama (2003 apud OLIVEIRA, 2011, p. 111)

“Diante do exposto na norma constitucional relativamente ao planejamento familiar, é perfeitamente invocável o direito de liberdade constante do artigo 5º, caput e inciso II, da Magna Carta, com a observância de que o exercício da liberdade pressupõe responsabilidade e a existência de limites imanentes, considerando o postulado basilar da convivência em grupo, ou seja, o respeito à dignidade e aos demais valores e bens jurídicos das outras pessoas no exercício de seus direitos fundamentais”.

Ressalta-se que cabe ao Estado oferecer mecanismos remediativos e preventivos de planejamento familiar, através de políticas publicas sem intervir na decisão dos pais. Assim sendo, o indivíduo pode exercer livremente o direito fundamental ao livre planejamento familiar.

Sobre a implementação de políticas públicas, Barcellos (2006, p. 40-41) afirma que:

“[…] compete à Administração Pública efetivar os comandos gerais contidos na ordem jurídica e, para isso, cabe-lhe implementar ações e programas dos mais diferentes tipos, garantir a prestação de determinados serviços etc. Esse conjunto de atividades pode ser identificado como políticas públicas. È fácil perceber que apenas por meio das políticas públicas o Estado poderá, de forma sistemática e abrangente, realizar os fins previstos na Constituição (e muitas vezes detalhados pelo legislador), sobretudo no que diz respeito ao direitos fundamentais que dependam de ações para sua promoção”.

É indispensável disponibilizar o acesso aos métodos contraceptivos como: anticoncepcionais, pílulas do dia seguinte, preservativos, vasectomia, como também disseminar informações sobre o exercício dos direitos reprodutivos.

Diante disso, a implementação do parto ao anonimato no Brasil pode trazer como política pública de planejamento familiar, a liberdade de autodeterminação dos pais biológicos e do nascente, o direito ao não exercício da maternidade e o respeito à vida do nascente.

4 O cuidado enquanto valor jurídico e o parto anônimo

O cuidado vem sendo analisado doutrinariamente no âmbito da infância, da juventude e do idoso a partir de estudos feitos por Pereira e Oliveira (2008), mediante grupos de estudos entre Brasil e Portugal.

Cabe ressaltar que ao ser inserida em nosso ordenamento jurídico, a boa-fé passou por uma evolução até ser reconhecida como norma-regra e princípio das relações contratuais, estando prevista em nosso novo Código Civil de 2003.

O conceito de cuidado, segundo Boff (2003, p.34) é:

“Uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento com o outro; entra na natureza e na constituição do ser humano. O modo de ser cuidado revela de maneira concreta como é o ser humano. Sem cuidado ele deixa de ser humano. Se não receber cuidado desde o nascimento até a morte, o ser humano desestrutura-se, definha, perde sentido e morre. Se, ao largo da vida, não fizer com cuidado tudo o que empreender, acabará por prejudicar a si mesmo por destruir o que estiver à sua volta. Por isso o cuidado deve ser entendido na linha da essência humana.”

Insta salientar que este dever, apesar de estar nas relações interpessoais não recebe a atenção devida e individualizada. A manifestação do cuidado é evidente ao deparar-se com uma análise a partir de seus sujeitos: quem deve ser cuidado versus quem deve cuidar.

O cuidado deve ser analisado primeiramente como valor jurídico nas relações familiares e posteriormente como possível principio constitucional, o que será discutido aqui, objetivando uma análise mais completa do instituto do parto anônimo no Brasil. Tupinambá (2008) vê o cuidado como princípio jurídico implícito na dignidade humana.

A Lei nº 12.010/09, conhecida como a Lei Nacional de Adoção, ao modificar o Estatuto da Criança e do Adolescente, adotou como paradigma o “acolhimento”, o que permite um novo olhar para o direito fundamental à convivência familiar, estabelecida no art. 227 da nossa Carta Magna.

Para aquele que acolhe é, antes de qualquer coisa, dar atenção integral, amparar e aceitar o outro de maneira absoluta; é ouvir, sem julgamento, mesmo que discorde. Acolher é assumir compromisso e responsabilidade, dar carinho e aconchego, é ajudar a criança a ser capaz de satisfazer as próprias necessidades, tornando-se responsável por sua própria vida. O cuidado é a essência do acolhimento. Cuidar de uma criança em sentido maior é ajudá-la a crescer e se realizar. Para Mayroff (s/d. apud PEREIRA; OLIVEIRA, 2011, p. 369):

“Não é um sentimento isolado ou relacionamento temporário, nem mesmo um cuidar de alguém, eventualmente. O cuidado envolve desenvolvimento e crescimento em confiança mútua, provocando uma profunda e qualificativa transformação no relacionamento. È ajudar o outro crescer e se realizar. O outro ser é respeitado como ser independente, assim como são respeitadas as suas necessidades, as quais serão satisfeitas com devoção.”

Alguns Tribunais brasileiros já assumiram o cuidado dentre os fundamentos das decisões, um exemplo é o da Quinta Câmara de Seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, sob a relatoria do Desembargador Antônio Carlos Mathias Coltro, ao reconhecer que “ao declarar a Interdição, parcial ou total em relação a determinada pessoa, nada mais faz o judiciário que exercer aquilo que lhe cabe no tocante ao cuidado necessário em relação ao destinatário da providência, em seu benefício e da sociedade” (BRASIL, 2006 apud PEREIRA; OLIVEIRA, 2011, p. 371).

Segund Oliveira (2006) o cuidado é parte integral da vida humana: nenhum tipo de vida subsiste sem cuidado. Envolvendo um processo eminentemente interativo, dinâmico e criativo reflete interesse e solidariedade. Aquele que é, será cuidado.

É preciso ressaltar que o cuidado está diretamente ligado à solidariedade e princípio constitucional, direito requisitado na Revolução Francesa, ainda que formalmente. Segundo Hapner et al.(2008, p. 124-125 apud PEREIRA; OLIVEIRA, 2011, p. 248):

“Embora a solidariedade tenha sido posta na base da criação do Estado, que estava no ideário da Revolução Francesa, juntamente com a liberdade e a igualdade, foi ela, a solidariedade, o princípio menos ressaltado, porque inconveniente às pretensões do liberalismo, imperante no século XIX […] Todavia, é de se ter em conta que a Constituição insere-se em um contexto completamente diverso daquele que inspirou as codificações oitocentistas. A solidariedade, na Constituição Brasileira de 1988, tem fundamento diverso e, de conseqüência, suas implicações e desdobramentos são outros que não aqueles que resultaram das revoluções burguesas liberais.”

A solidariedade deve ter como destinatário a pessoa humana como um todo e não como o indivíduo. Devido às grandes transformações familiares sofridas, fruto das mudanças de paradigmas, o Direito de Família foi obrigado a se reformular para se adequar a tais mudanças.

Essa transformação trouxe o surgimento da família eudemonista, onde o afeto é o elemento principal para se caracterizar uma entidade familiar. Segundo Boff (2005 apud OLIVEIRA, 2011, p.114):

“[…] o dado originário não é logos (a razão, as estruturas de significação). Mas o pathos (o sentimento, a capacidade de simpatia, de empatia, dedicação, cuidado e de união com o diferente). Tudo começa com o sentimento. È o sentimento que nos faz sensíveis a tudo o que está a nossa volta. Que nos faz gostar ou desgostar. È o sentimento que nos une ás coisas e nos envolve com as pessoas.”

Cuidado e afeto estão interligados. Dessa forma, a análise jurídica do cuidado tem relação direta com a doutrina da proteção integral da criança, com o instituto da adoção e com a possibilidade do exercício ao parto anônimo no Brasil.

4.1 A proteção integral da criança e o parto anônimo

Com a Constituição Federal de 1988, a criança passou a ser reconhecida constitucional e infraconstitucional como sujeito de direitos na sociedade brasileira. A doutrina da proteção integral fundamenta-se na necessidade de amparo à criança enquanto pessoa hipossuficiente e dependente de seus tutores legais, bem como, pela dignidade humana, buscando assegurar o melhor interesse da criança.

Pereira (2006,p.127) escreve:

“Em face da valorização da pessoa humana em seus mais diversos ambientes, inclusive no núcleo familiar, o objetivo era promover sua realização enquanto tal. Por isso, deve-se preservar, ao máximo, aqueles que se encontram em situação de fragilidade. A criança e o adolescente encontram-se nesta posição por estarem em processo de amadurecimento e formação da personalidade. Assim, têm posição privilegiada na família, de modo que o Direito viu-se compelido a criar formas viabilizadoras deste intento”.

Consoante as transformações familiares sofridas, a pessoa humana passa a receber destaque, e o sujeito torna-se valorizado como figura central da ordem jurídica (PEREIRA, 2006, p. 126-127). Segundo o mesmo autor é um princípio “veiculador da Doutrina da Proteção Integral, que contém em seu bojo o Princípio da Paternidade Responsável” (PEREIRA, 2006, p. 128).

A Proteção Integral à criança acolhe também o direito à convivência familiar, e o princípio da paternidade responsável. Para Pinheiro (2008, p. 291):

“[…] norteia a composição da família, conferindo à paternidade novo significado: não se trata apenas de prover e cuidar da prole, mas de promover o desenvolvimento do filho como pessoa. Desvinculada do aspecto tão-somente biológico, a paternidade revela-se como uma opção, e não como imposição, capaz de conduzir os filhos à autonomia e ao encontro de sua identidade.”

Ainda com relação à Proteção Integral da criança, Pereira (2008, p. 308) afirma:

“[…] Se o Direito brasileiro pode se vangloriar da presença permanente da Declaração de Direitos e Garantias Individuais do Cidadão, Constituição de 88, além de enumerá-los exaustivamente no art. 5º, introduz na Doutrina Constitucional a declaração especial dos Direitos Fundamentais da Infanto-Adolescência (art. 227-CF), proclamando a Doutrina Jurídica da Proteção Integral e consagrando os direitos específicos que devem ser universalmente reconhecidos”.

A proteção integral, de acordo com Pereira (2008, p. 338) “é um dever social e como norma constitucional não é sugestão ou conselho, é determinação”. Diante de tal fato, os defensores do parto em anonimato afirmam que tal instituto efetivaria a doutrina da proteção integral, uma vez que asseguraria o respeito à vida, evitando abortos e permitindo a oportunidade do seu direito ao convívio familiar.

O parto anônimo para Albuquerque (2008, p. 158-159) é:

“[…] é o único instituto que, por ora, se apresenta com uma função prestante, ainda que não seja: a melhor e a mais indicada, qual seja: garantir a vida, a integridade e a dignidade da criança que a mãe não pode ou não desejou criar.

[…]Os desafios estão postos e precisam ser enfrentados e o parto anônimo é um deles, mas urge sua positivação como alternativa jurídica para reduzir o número de abortos e abandono de crianças”.

Segundo Ribeiro (2008 apud OLIVEIRA, 2011, p. 258):

“Essa desvinculação mãe-bebê não precisa ocorrer de forma clandestina, à margem dos direitos fundamentais. Nesse primeiro momento, o parto anônimo alia o direito à vida, saúde e dignidade do recém nascido ao direito de liberdade da mãe. A criança é entregue a Hospitais ou Instituições especializadas que irão cuidar de sua saúde e em seguida irão encaminhá-lo à adoção, assegurando a potencial chance de convivência em família substituta. Por sua vez, a mãe terá assegurada a liberdade de dispor do filho sem ser condenada”.

Cabe ressaltar que a mãe biológica tendo essa liberdade, entregaria seu filho com segurança, garantindo assim o melhor interesse da criança.

Em contrapartida, muitas são as críticas com relação ao projeto de lei 3.222/08. Para Fachin (2009 apud OLIVEIRA, 2011, p. 118):

“De alguma forma, a possibilidade do parto anônimo não poderia incentivar a irresponsabilidade e reificação do humano? Uma gravidez indesejada se resolveria com a entrega de seu produto a uma unidade de saúde. Quanto menos responsáveis, menos humanos nos tornamos. Limite e responsabilidade num país e numa sociedade frágeis, sem a função paterna presente e exercida, abre as portas para mais uma hemorragia legislativa, supondo que as leis podem mudar as condições materiais de um povo, isto é, mais uma transformação a partir da elite dominante.”

Na mesma ideia, Souza (2008, p. 73) afirma que tal projeto é desnecessário, uma vez que “o não aprofundamento psicossocial com que o Projeto trata as causas da violência e ataques a recém-nascidos, salientados pela mídia."

Assim sendo, a justificativa do projeto de Lei 3.220/08 busca tão somente pela efetivação da doutrina da proteção integral da criança. Entretanto, com o fim trágico da roda dos expostos e a falta de pesquisa com relação a quantidade de crianças abandonadas no país e a polêmica em torno de uma suposta legalização do abandono, resultam em descrédito à instituição do parto anônimo no Brasil.

4.2 A adoção no brasil e o parto anônimo

A adoção não é algo novo em nossa sociedade. Os antigos a utilizavam como meio de evitar a extinção da família (COULANGES, 2004, p. 50). Teve sua maior difusão no período pós guerra. O conceito de adoção, segundo Filho (2009, p. 48) “é ato jurídico que estabelece entre duas pessoas uma relação análoga àquela que resulta da paternidade e da filiação. É ato solene, bilateral e complexo que, por ficção, estabelece o parentesco.”

A adoção foi regulada no Brasil pelasOrdenações do Reino. À época, restringia-se aos adotantes maioresde 50 anos. As Ordenações Filipinas traziam breve referência àadoção, sob o título “confirmações de perfilhamento”.

Segundo Lôbo (2008) havia uma força poderosa a impedir a ampla utilizaçãodo instituto durante os primeiros quatro séculos da história brasileira:o direito canônico, determinante nas relações familiares.

O direito civil brasileiro foi posteriormente sistematizado na Lei Ordinária nº 3.071 de janeiro de 1916, oprimeiro Código Civil brasileiro, a adoção então passou a ser regulada apartir do artigo 368. Nesta época, só se permitia a adoção aos maiores de 50 anos, semdescendentes “legítimos ou legitimados”, exigindo-se, adiferença de 18 anos entre adotando e adotado.

Tais exigências mostram que apesar da influência dos ideais republicanos e da laicização do direito, a finalidade do instituto era suprir afalta de descendentes, como nas suas origens.

Diante das limitações do Código Civil de 1916, fez-se necessária a alteração dos requisitos para a ampliação das possibilidades de adoção. Então, em 1957, foi promulgada a Lei n°3.133, que alterou o Código Civil vigente à época, modificando dispositivos legais com relação a adoção.

Esta Lei trouxe importantesinovações, reduzindo a idade dos adotantes de 50 para 30 anos,a diferença de idade entre adotantes e adotados, de 18 para16 anos, eeliminou a exigência de inexistência de prole.

Com a vigência da Lei 3.133 de 1957, a possibilidade de adoção foi ampliada aos adotantes com filhos biológicos. Tal alteração, fez com que pela primeira vez a adoção no Brasil deixasse de ser vistacomo um recurso para suprir a falta de filhos.

Porém, pela lei, adissolução da adoção era permitida, e o direito sucessório dosfilhos adotivos dependida da inexistência de filhos “legítimos”,“legitimados” ou reconhecidos. Essa lei introduziu também outro requisito, o consentimentodo adotando maior, ou dos representantes legais, em caso de menores.

Somente após oadvento da Constituição Federal de 1988, grandes alterações foram feitas com relação a adoção, o que consagrou a proteçãoà criança e o adolescente com a Doutrina da Proteção Integralfundada no Princípio da Prioridade Absoluta e garantiu a igualdadeentre filhos de qualquer origem, com a proibição de qualquer formade discriminação com base no art. 227 da Constituição Federal.

Mudança enfatizada por Souza (2008, p.279):

“O art. 227 da Constituição Federal de 1988 elucida o compromissodo Brasil com a Doutrina de Proteção Integral, assegurando àscrianças e aos adolescentes a condição de sujeitos de direitos, depessoas em desenvolvimento e de prioridade absoluta. Inverteu-se,desde então, o foco da prioridade. No sistema jurídico anterior,privilegiava-se o interesse do adulto. Com a Nova Carta, o interesseprioritário passa a ser o da criança”.

Todavia, a adoção não impede ao nascente a ter conhecimento com relação a sua origem genética. É um direito de personalidade, portanto indisponível, imprescritível, e personalíssimo. Segundo Del Olmo (2006, p. 36) a adoção “é um instituto no qual o jurídico, o humano e o divino se integram e interagem gerando harmonia e bem-estar no meio social.”

A relação entre o parto anônimo e a adoção começa no momento em que a mãe biológica entrega seu filho a uma família substituta. Essa entrega somente poderá ser viabilizada através de uma assistência à gravidez indesejada, motivo pela qual se faz necessário uma pesquisa afim de identificar o número e o perfil de mulheres grávidas que não desejam assumir o papel de mães.

Cabe ressaltar a diferença entre maternidade e maternagem. O primeiro tem sua gênese desde os primórdios da gravidez, já a maternagem ocorre somente após o nascimento, sendo imprescindível a dedicação, o afeto e o cuidado.

O projeto de Lei 3.220/08 é algo desnecessário juridicamente para muitos, tendo em vista o fato de que o sistema de adoção brasileiro em vigência supriria seus objetivos. Entretanto, tal projeto busca a preservação do respeito à vida do nascente, facilitando o processo de entrega pela mãe biológica do filho indesejado, não importando os motivos que a levaram a tomar tal decisão e, sem que as instituições estatais a julguem por sua escolha.

Segundo Motta (2007, p. 246):

“A atitude social preconceituosa em relação a essas mulheres é um dos fatores que em muito contribui para que essas crianças não cheguem ao Judiciário. Antes de entregar a criança em adoção, a mãe biológica é frequentemente cortejada e lembrada: lança-se mão do amor materno, que é apontado à mulher, que chega, às vezes, a ser aconselhada a entregar o filho por amor a ele. Uma vez nascida a criança e entregue em adoção, ocorre uma abrupta modificação. As regras e até a linguagem para designá-la relegam, então, a mãe biológica a estado de não ser ou à categoria de pessoa má, desumana e sem princípios morais e éticos. Configura-se assim a postura paradoxal que caracteriza a atitude em relação a estas mulheres no decorrer de todo o processo: de um lado, a expectativa para que a entrega se concretize; de outro, a censura feroz em relação à mesma.”

É preciso que o Estado ofereça condições necessárias à mãe biológica que deseja entregar seu filho, pois “cuidar da mãe significa cuidar da criança” (MOTTA, 2007, p. 247).

4.3 O princípio do cuidado e responsabilidade na constituição da república federativa do brasil e o parto anônimo

Antes de tratar acerca do cuidado como valor fundamental com relação à proteção integral da criança, é preciso analisar alguns pontos específicos à problemática do parto anônimo.

Com a efetivação do parto anônimo, o dever de cuidar ficará cada vez mais distante para os genitores, naturalmente estabelecido entre pais e filhos desde a gestação. Ocorrerá um desligamento legal entre pais e filhos biológicos, o que se opõe aos princípios constitucionais norteadores do direito de família, a saber: princípio do melhor interesse e proteção integral da criança e da paternidade responsável. O grande “X” da questão é: Tal fato configura abandono?

A perda inicial que o recém nascido tem com sua mãe biológica, o calor, o leite materno são irremediáveis, entretanto, caberá ao Estado, enquanto ente social-democrático de direito, oferecer mecanismos alternativos que garanta ao nascente a expectativa do direito fundamental à convivência familiar afetiva.

Assim sendo, tal situação não configuraria abandono, mas de entrega, mantendo-se o respeito à proteção integral da criança. Segundo Harpner et al. (2008, p. 124 apud OLIVEIRA, 2011, p. 123):

“Opondo-se ao abandono, essa garantia do desenvolvimento integral deve mirar o interesse prioritário das crianças, dos jovens, dos idosos e daqueles que estão para nascer. Daí a necessidade de aprender esse horizonte que arrasta a justiça e o direito, simultaneamente, e reclama o que de mais profundo acompanha a vida, cuidadosamente”.

O Estado deve priorizar a convivência familiar entre pais e filhos ligados pelos vínculos biológicos. Entretanto, várias são as razões que fazem com que os pais venham a não exercer a maternidade e a paternidade. Para isso, é preciso que existam mecanismos públicos ao alcance da população, para que recebam de forma desburocratizada e despreconceituosa filhos indesejados. Caso contrário, a vida de um nascente pode estar correndo risco.

Para Tupinambá (2008) entende, o cuidado como princípio jurídico está implícito na dignidade humana. Ressalta-se que “a cláusula geral da tutela da pessoa determina que a liberdade deva ser guiada pelo dever de solidariedade” (PINHEIRO, 2008, p. 291).

Assim sendo, a substituição do abandono pela entrega fundamenta-se na preocupação do Estado para com a criança, que se revela no cuidado enquanto valor a ser assegurado. O cuidado então não seria uma continuidade da solidariedade?

A nossa Carta Magna em seu artigo 3º inciso III prevê expressamente a dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro. Segundo Sarlet (2009, p. 73-74):

“[…] além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.”

Partindo da ideia que a dignidade humana é uma qualidade inerente ao ser humano, Sarlet (2009, p. 29) afirma:

“[…] justamente pelo fato de que a dignidade vem sendo considerada (pelo menos para muitos e mesmo que não exclusivamente) qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano e certos de que a destruição de um implicaria a destruição de outro, é que o respeito e a proteção da dignidade da pessoa (de cada uma e de todas as pessoas) constituem-se (ou, ao menos, assim o deveriam) em meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito.”

A dignidade humana é uma norma-princípio segundo a doutrina majoritária e Sarlet (2009, p. 78):

“A qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o artigo 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui normas jurídico-positivada dotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal, inequivocamente carregado de eficácia, alcançando, portanto […] a condição de valor jurídico fundamental da comunidade.”

Cabe ressaltar que existe uma diferença entre princípio e regra. Sobre essa diferenciação Dworkin (2002, p. 39-42) afirma:

“A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou regra é válida, e neste caso em nada contribuiu para a decisão. […] Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm –a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se entrecruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade do contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um”.

Partindo do pressuposto que a dignidade humana é norma-princípio de caráter supra, logo, fundamenta todas as normas constitucionais e, consequentemente as infraconstitucionais. Sabendo-se que a família e o Estado existem por causa do homem, o cuidado com o mesmo se torna essencial e inerente à proteção da dignidade humana.

A análise do cuidado enquanto valor jurídico urge, tendo em vista sua íntima relação com o afeto e com a dignidade humana. A mulher precisa ter ciência sobre as suas opções diante de uma gravidez indesejada. Dessa forma o cuidado com o nascente deve ocorrer antes do seu nascimento, através de seus genitores, em especial à gestante.

Partindo da ideia de que legalmente o aborto não é uma opção, a mãe juntamente com o pai deverão decidir sobre a entrega do nascente ao Estado ou não. Entretanto, muitas vezes a realidade da mulher grávida, não permite que a mesma tome tal decisão juntamente com o pai, razão pela qual se justifica a implementação do parto anônimo no Brasil através de política pública, objetivando o cuidado da mesma e de seu filho.

5 Conclusão

O presente trabalhoprestou-se a um breve estudo sobre o Instituto do Parto Anônimo, demonstrando seus objetivos e críticas. Ficou claro que em pleno século XXI, o Brasil ainda apresenta suas mazelas sociais desde o período colonial com relação ao abando de crianças. A roda dos expostos, implementado no Brasil no século XVIII mostrou-se como política pública no combate ao abandono de crianças, uma vez que o Estado responsabilizava-se pelo repasse de valores às Santas Casas de Misericórdia, e incentivava a população à adoção, amamentação e cuidados com os enjeitados.

Entretanto, a roda dos expostos foi extinta devido ao grande numero de crianças falecidas em razão da falta de higiene e alimentação adequadas. A criação da roda nas Santas Casas de Misericórdia foi adequada a época social enfrentada pela população, com escravidão, tabus sexuais e alto nível de miserabilidade.

Certo é que, o Brasil continua enfrentando dificuldades sociais com relação ao número de crianças abandonadas. Segundo estatísticas o número de gestantes adolescentes (15-17 anos), óbitos fetais, famílias em extrema pobreza com renda inferior a um salário mínimo tem aumentado cada vez mais, conforme fontes do IBGE. A ausência de políticas públicas preventivas de planejamento familiar juntamente com tal realidade são motivações para que o abandono de crianças aumente cada vez mais.

Em 2008 no Congresso Nacional foram apresentados três projetos de Lei visando a instituição do parto anônimo no Brasil, mediante o qual seria regulamentado o direito à gestante de optar pela entrega de seu filho biológico ao Estado, para que o mesmo pudesse ter a oportunidade de ser adotado por quem deseja realmente desenvolver a maternagem.

Tais propostas encontravam-se com limitações de ordem técnica e material, como por exemplo a omissão da participação da figura paterna no procedimento do parto em anonimato. Outros aspectos surgem com contraposição à instituição do parto anônimo no Brasil. Diante disso, o presente trabalho analisou as críticas enfrentadas e, ainda, observou a existência do cuidado como valor jurídico.

O parto anônimo é um direito que na realidade melhor se adequaria a nomenclatura “direito ao parto em sigilo”, pois com seu exercício não se estaria impedindo o registro dos dados biológicos do nascente, mas resguardando a intimidade de seus genitores, enquanto direito de personalidade.

O nascido de parto anônimo que viesse a ter interesse em saber sobre seus dados parentais,poderia mediante uma autorização judicial em processo de investigação de ascendência genética, valer-se do direito de personalidade e com as informações prestadas pela unidade de saúde onde nasceu, ou pelo Juizado da Infância e da Juventude, segundo o art. 6º do projeto de Lei 3.220/08.

 O sigilo requerido pela gestante que não deseja exercer o seu papel de mãe lhe daria uma tranqüilidade desde o pré natal até o décimo dia posterior ao nascimento do filho, período este em que a genitora poderia arrepender-se e dar início à maternagem. Importante também é a identificação da vida como pressuposto para se ter direitos. No entanto, em respeito à vida digna, o que resulta da combinação entre vida e dignidade humana, esta, objetivo fundamental do Estado Democrático de direito e aquela pressuposto para existência de direitos.

Importante observar que nenhum dos projetos de lei faz menção expressa ao genitor paterno do menor recém-nascido, o que pode revelar-se como ato discriminatório, por outro lado, pode passar uma idéia de influência liberalista, feminista, ao garantir à mulher gestante, sem qualquer autorização pelo genitor do nascente, a entrega de seu filho biológico ao Estado.

A gravidez provoca maiores impactos desde o seu início na vida da mulher do que do homem. Entretanto, a reprodução é fruto de ambos os sexos, razão pela qual não deve o genitor ser excluído do direito quando do desejo da gestante de não querer cumprir seus deveres de mãe. O genitor poderá optar por tornar-se pai presente e dessa forma, ter preferência sobre uma família substituta.

O parto em sigilo reflete uma ponderação de valores e de direitos fundamentais, quando assegura liberdade aos genitores de não cumprirem com as obrigações de pais, bem como, o respeito à vida  digna do nascente. Essa liberdade é compreendida numa perspectiva de planejamento familiar, de forma que os pais biológicos numa atitude decidem livremente e com responsabilidade não dar seguimento à maternidade e ao poder familiar iniciados desde o momento da concepção.

O projeto de Lei 3.220/08 prevê exceção ao sigilo das informações dos genitores da criança. Contudo, se tal excepcionalidade significar um desestímulo aos pais biológicos de substituírem o abandono pela entrega, deverá prevalecer o sigilo dos dados relativos à verdade biológica do nascido oriundo do parto em sigilo, tendo em vista a credibilidade do instituto e o respeito à vida do nascente.

A regulamentação do direito ao parto em sigilo mediante publicação legislativa é desnecessária, bastando que a sua implementação seja realizada mediante políticas públicas de planejamento familiar. Visto que, a nossa Constituição prevê como fundamentais os direitos à personalidade, liberdade, imbuídos nestes, a liberdade da gestante de não ser mãe e do genitor, e o direito de intimidade dos mesmos, tornando possível o sigilo quanto à verdade biológica, além de assegurar especial proteção à criança, pode o Estado desenvolver políticas públicas que visem a segurança da mulher, respeito à vida do nascente e diminuição do abandono indigno. Tais políticas públicas não estimulariam o abandono de crianças nem sufocaria o Estado com o descaso advindo de relações sexuais irresponsáveis, mas possibilitaria a escolha pela gestante da melhor opção para si e seu filho biológico.

Não constitui, portanto, um retrocesso, pois o Estado encontra-se apto a desenvolver políticas públicas de tal tipo desde que haja empenho, dedicação e interesse pelo Poder Executivo. Tal intervenção é imprescindível para o exercício do parto em sigilo, pois os sujeitos envolvidos, especialmente a mulher interessada na entrega do nascente, podem ter suas condutas tipificadas penalmente no crime de abandono de incapaz, art. 133 do CP. Não há o que se falar em crime quando a mulher decide pela entrega de seu filho recém-nascido ao Estado, seja após o registro civil do mesmo ou não, situação que já ocorre, conforme se comprova nos abrigos de criança.

A diferença que se busca com a implementação do parto em sigilo reside apenas na garantia oferecida à gestante desde o início da gravidez acerca de seus dados, ou seja, da origem genética da criança. Partindo do pressuposto que o direito ao parto em sigilo deve ser assegurado legalmente e mediante políticas públicas de planejamento familiar, estará o Estado respeitando a vida dos pais biológicos que não desejam tornarem-se pais afetivos, bem como, a vida digna do nascente que tem o direito à convivência familiar afetiva, cuidando assim de todas as pessoas envolvidas no exercício do direito ao parto anônimo, até mesmo dos futuros pais socioafetivos que, após o processo lega de adoção, poderão exercer seu direito à convivência familiar afetiva.

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Nota:
[1]Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade Santo Antônio de Pádua como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Carlos Alberto de Souza Silva

Informações Sobre o Autor

Jussara de Oliveira Miranda

Bacharel em Direito pela Faculdade de Santo Antnio de Pádua; Bacharel em Ciências Sociais pela Fundação São José em Itaperuna.


Equipe Âmbito Jurídico

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