Direito Constitucional

O Poder Judiciário E Seu Papel Na Nova Ordem Social

Marco Curi Prais – Mestre em Direito pela FDSM – Faculdade de Direito do Sul de Minas. Membro da ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional)Professor e pesquisador. Email: marcocprais@gmail.com

Jefferson Prado Sifuentes – Mestre em direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM); Advogado e Professor. Membro acadêmico efetivo da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC); E-mail: sifuentesjefferson@gmail.com

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo central lançar reflexões a respeito do papel desempenhado pelo Poder Judiciário em períodos históricos determinados, bem como visa analisar os desafios para o exercício da atividade jurisdicional na atual quadra da história. Tal situação ganha elevada importância na medida em que, sobretudo a partir do 2º pós-guerra, o Judiciário assume posição de destaque, de verdadeiro gigantamento, tanto na Europa quanto em países da América Latina. Atenta-se, adicionalmente, para o fato de que através do advento da constituição brasileira de 1988, o Judiciário deixa de ser um departamento técnico-especializado e se transforma em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes. O estudo se justifica ante a possível dicotomia entre esferas de atuação dos poderes legiferante e judicante frente a garantia constitucional de efetivação de direitos. Para que o objeto se construa ao longo dessa pesquisa, utiliza-se o método analítico dedutivo, pelo qual se avalia a doutrina referente ao tema.

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Palavras-chave: Poder Judiciário. Liberalismo. Estado social. Efetivação. Direitos.

 

Abstract: The present work aimed to make reflections on the role played by the judiciary in certain historical periods, and aims to analyze the challenges for the exercise of judicial activity in the current block from history. This situation gained high importance in that, especially from the 2nd post-war, the judiciary assumes a prominent position in real aggrandizement, both in Europe and in Latin America. Aware is additionally to the fact that through the advent of Brazil’s 1988 constitution, the judiciary is no longer a technical and specialized department and turns into a real political power, able to enforce the Constitution and laws, including in comparison with the other Powers. The study is justified in view of the possible dichotomy between spheres of action of the lawful and judiciary powers in view of the constitutional guarantee of the realization of rights. For the object to be constructed throughout this research, the deductive analytical method is used, by which the doctrine related to the theme is evaluated

Keywords: Judicial power. Liberalism. Social status. Effective. Rights.

 

Sumário: Introdução. 1. O rompimento promovido pelo liberalismo. 2. O estado social: superação ideológica do antigo liberalismo. 3. Efetivação de direitos no paradigma do estado democrático de direito: a Constituição brasileira de 1988. 4. A atuação do judiciário frente a inconstitucionalidade das normas. Conclusão. Referências.

 

Introdução

O papel exercido pelo poder judiciário variou, ao longo do tempo, de acordo com a configuração dos Estados ao qual este poder esteve vinculado, podendo ser verificadas nítidas alterações na maneira de atuação dos juízes, a depender, conforme dito, do momento histórico objeto da análise. Tendo em vista esta afirmação, ganha relevância a realização de um estudo das relações sociais, que em decorrência da progressiva complexidade e sobretudo do desenvolvimento científico, nos trazem uma espécie de convocação para refletir sobre o tema. Ressalte-se, desde já, que tal análise envolve aspectos políticos, culturais, econômicos, (re)dimensionamento do papel do Estado, dentre outros, de igual importância.

Para a realização da referida análise, deve-se partir de algum ponto, de algum lugar na história. Para fins de corte temporal, este trabalho propõe o início desta caminhada a partir das Revoluções Burguesas (dos séculos XVII e XVIII), verifica-se a inconteste derrocada do absolutismo monárquico e a consequente afirmação do liberalismo como uma ideologia, mais precisamente como uma dominante ideologia. O quadro desenhado para este momento histórico apresentava-se de maneira muito clara: estava-se diante da vitória dessa visão de mundo, em verdade diante de uma nova forma de ver o mundo, ancorada pelo exercício das liberdades individuais, pela não intervenção estatal, bem como pela imposição de limites à atuação do Estado.

Ocorre, contudo, que ao longo do tempo, o Estado não intervencionista e com poderes limitados manifestou-se através de diversas versões. Nesse sentido, é necessário pontuar uma questão de fundamental importância para a realização desta análise: os protagonistas na condução das principais ações dos Estados variaram, nitidamente, no decorrer do processo histórico, em termos do que poderíamos denominar de peso institucional.

Do grego, Prótos, significa “primeiro” e agonistès quer dizer “ator”. O protagonista é, desta forma, o primeiro ator, o personagem principal de uma peça, a pessoa que desempenha ou ocupa o primeiro lugar num acontecimento BUENO, 1973, p.1082). Desta maneira, tendo em vista o papel de protagonista assumido pelo Judiciário – sobretudo a partir do segundo pós-guerra – a este poder se impõe atualmente uma série de novos desafios, em sociedades cada vez mais dinâmicas e complexas.

Somado à disso, analisando o caso brasileiro, verifica-se que com o advento da constituição de 1988 e todos os reflexos e consequências institucionais de sua edição, o Judiciário deixou de ser um departamento técnico-especializado, se transformando em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes.

 

1.  O ROMPIMENTO PROMOVIDO PELO LIBERALISMO

O estudo da evolução das transformações ocorridas na sociedade pré-capitalista, por meio da análise contextual do período anterior à queda da bastilha, leva a um sistema monárquico-absolutista que cerceava, fortemente, a liberdade de uma emergente classe social, propulsora de um novo modelo de produção, alicerçado na livre iniciativa e no mercantilismo. Ao se analisar o momento vivido àquela época (pré-revolução francesa de 1789), verifica-se que os interesses do absolutismo monárquico francês eram contrários aos interesses da burguesia.

Dentro desse contexto de disputas, tudo encaminhava para a revolução – que de fato aconteceu – podendo ser definida como um verdadeiro golpe mortal no feudalismo. Nesse sentido, a revolução francesa de 1789 marcou o fim da Idade média. A sociedade feudal, estruturada através de sacerdotes, trabalhadores e guerreiros, foi sendo, ao longo do tempo, minada por uma nova classe média, a dos burgueses. Nesse diapasão, através da luta pela liberdade do mercado, teve-se como resultado um sistema social diferente, sustentado pela troca de mercadorias que possuía um principal objetivo: o lucro. Não havia, portanto, como retroceder: instaurado pela burguesia, nascia então o capitalismo (HUBERMAN, 1986, p. 177).

É a revolução francesa de 1789, então, a “pedra filosofal” sob o qual se assenta a sociedade moderna, uma vez que a ideologia política ali gestada se universalizou, tanto quanto a religião advinda do império romano. Nesse sentido, observa-se que é o Estado Liberal a primeira forma estatal advinda desta revolução.

Este Estado Liberal e burguês é fundamentado, então, em relações econômicas alheias ao braço interventor estatal (HUBERMAN. 1986, p. 177). Eis que, é sob o seu alicerce, que ocorre o rompimento do status anterior.

A partir desse momento, como forma de atender aos anseios da classe revolucionária, coube ao estado, através da realização da cartilha Liberal, a tarefa de intervir o mínimo possível no que diz respeito à esfera privada dos indivíduos. Considera-se, em poucas palavras, que a liberdade dos cidadãos pode, neste momento histórico, ser compreendida como toda atuação não contrária ao direito.  Há, então, através da consolidação do paradigma liberal, a implantação de uma forte limitação do poder estatal, reconhecendo no indivíduo as suas liberdades.

A separação dos poderes é, sem sombra de dúvidas, o instituto que caracteriza a estrutura política do Estado Liberal pós-revolução burguesa, devendo-se para tanto considerar o contexto histórico da revolução, uma vez que a sociedade francesa da época advinha de um regime repressivo, absolutista, com forte limitação aos direitos individuais. Desta maneira, evidencia-se claras justificativas para a adoção da referida separação dos poderes, como meio de técnica de limitação do exercício do poder, característica que, conforme dito, atendia prontamente aos interesses da classe emergente, a chamada burguesia (MACEDO, 2005, p. 397).

Tomando como referência a revolução francesa de 1789, a análise desse período inicial prolonga-se historicamente até a primeira guerra mundial, onde impera uma rígida aplicação do princípio da separação dos poderes, promovendo o rompimento com o poder derivado de famílias. Nesse modelo, imperam duas bases: a instituição de direitos fundamentais, individuais, limitadores da atuação do próprio estado e a separação dos poderes em executivo, judiciário e legislativo, através da conhecida fórmula dos freios e contrapesos, em que os poderes são limitados uns pelos outros.

No paradigma liberal, o Estado funcionava ao inteiro serviço da burguesia, uma vez que abandonava o mercado aos economicamente poderosos. Nesse sentido, o estado não apresentava nenhuma prestação positiva ao cidadão, fato que consagrou um sistema que propiciou forte concentração de riqueza nas mãos da classe que ascendeu ao poder, com a marginalização da classe operária, em um processo de contínua deteriorização do quadro social. Por outro lado, como resultados deste modelo estatal, tem-se um processo de forte desenvolvimento econômico, um mercado concorrencial e a revolução industrial.

No que diz respeito especificamente ao papel exercido pelos juízes, em relação ao processo de aplicação das leis, os magistrados se apresentavam à época como mero aplicadores da legislação, fato que originou o conhecido termo “juiz boca-da-lei”. Nesta fase, ao judiciário não cabia outro papel senão a tarefa de dirimir os conflitos de interesses, postos à sua apreciação. Desprovido de autonomia, uma vez que autônoma era a lei.

 

2. O ESTADO SOCIAL: SUPERAÇÃO IDEOLÓGICA DO ANTIGO LIBERALISMO

O Estado Social, que se apoia no paradigma social, muda sua maneira de atuação em relação ao Estado Liberal, uma vez que passa a ser um Estado promotor, eis que a igualdade e a liberdade passam ser materiais e não meramente formais. É justamente por meio das inúmeras demandas sociais – às quais o estado liberal mostrou-se absolutamente incapaz de oferecer respostas – que é alicerçada a passagem do estado liberal para o social, tendo em vista que a simples previsão de direitos não se apresentava como suficiente para garanti-los concretamente. Neste sentido, no estado social o que se deseja é um estado que seja capaz de se posicionar como estabelecedor de formas de vida concretas, não mais pautado pela neutralidade do estado Liberal.

Podemos conceber o Estado Social, então, como fruto de um compromisso histórico entre os detentores de capital e as classes trabalhadoras. Ao analisar esse pacto de maneira mais detida, constata-se a ocorrência de renúncias recíprocas. Do lado dos capitalistas, há renúncia de parte da autonomia, enquanto proprietários dos fatores de produção, uma vez que há uma margem de negociação com os trabalhadores, bem como existe renúncia de parte dos lucros no curto prazo, uma vez que os donos dos meios de produção “aceitam”, por exemplo, a imposição de uma tributação mais forte. Já do lado dos trabalhadores, há renuncia às reivindicações mais radicais de subversão da economia capitalista. Nesta esteira, verifica-se que esta dupla renúncia é gerida exatamente pelo Estado, o que confere a este alguma autonomia em relação aos interesses contraditórios (SANTOS, 2012).

O Estado, desta maneira, tutela a negociação coletiva entre o capital e o trabalho, transformando o dinheiro advindo da tributação do capital privado e dos rendimentos salariais em “capital social”, o que equivale dizer que os transformam em um vasto conjunto de políticas públicas e sociais.

Com relação às políticas públicas, as mesmas se traduzem em um forte intervencionismo estatal, tanto na produção de bens como de serviços, que objetivam aumentar a médio prazo a produtividade do trabalho e a rentabilidade do capital, podendo ser exemplificadas em formação profissional, investigação científica, aeroportos e portos, autoestradas, política industrial e de desenvolvimento regional, parques industriais, dentre outras. Já no que diz respeito às políticas sociais, apresentam-se como decorrentes dos direitos econômicos e sociais dos trabalhadores e dos cidadãos, traduzindo-se em despesas em bens e serviços consumidos pelos cidadãos gratuitamente ou a preços subsidiados, tais como saúde, educação, serviços sociais, habitação, transportes urbanos, dentre outras. Note-se que as transferências ocorrem através do Estado, dos mais ricos para os mais pobres, dos empregados para os desempregados, da geração adulta e ativa para as gerações futuras e os reformados, dos saudáveis para os doentes (SANTOS, 2012).

O conjunto das políticas públicas e sociais possuem algumas funções, dentre elas a de garantir uma expectativa de harmonia social, assentada desradicalização dos conflitos entre o capital e o trabalho, proporcionando uma espécie de redistribuição de rendimentos a favor das classes trabalhadoras, criando, desta maneira, um interesse na manutenção do sistema de relações políticas, sociais e econômicas que tornem possível a perpetuação dessa redistribuição. Em meio à esta complexa articulação encontra-se o Estado, que invoca para si o papel de gestor global deste sistema, tendo como difícil missão garantir uma articulação estável entre os três princípios de regulação do Estado moderno: relação entre Estado, mercado e comunidade.

A necessidade de se manter a estabilidade desta complexa relação exige, então, que o Estado se mantenha em sua posição sem, no entanto, asfixiar a comunidade ou o mercado. Se, por um lado, esse Estado articulador garante a consolidação do sistema capitalista, também força os donos do capital e os trabalhadores a entrarem na dança. O Estado social, desta maneira, se assenta, na ideia de compatibilizar desenvolvimento econômico e proteção social, acumulação de capital e legitimidade social (SANTOS, 2012).

Se no Estado Liberal o protagonista era o Poder Legislativo (século XIX), com o juiz atuando como mero aplicador da lei, observamos que com as crises do final do século XIX e do século XX (como a quebra da bolsa de valores por exemplo), o Executivo é que passa a ocupar papel destaque, em razão da necessidade de realização das políticas públicas.

Em sequência a este que se pode chamar de movimento pendular, é o Poder Judiciário que, sobretudo a partir do 2º pós-guerra, assume posição de destaque, de verdadeiro agigantamento, tanto na Europa quanto em países da América Latina (BARROSO, 2015, p. 439), o que naturalmente inclui o Brasil. Nesta esteira, através do somatório de vários fatores (como por exemplo a implantação de tribunais constitucionais, a expansão do texto constitucional e a própria ampliação do acesso à justiça, além do aumento do rol de direitos sociais previstos nas constituições) o Judiciário passa a ocupar um espaço que lhe tem conferido a posição de uma espécie de “avalista” de direitos fundamentais.

A Carta Constitucional possui uma qualidade de ser dirigente, que direciona, a atuação que o Estado deve ter frente a previsão de direitos. A legislação traça objetivos e trazem regulamentação de conduta em abstrato. As constituições

 

não se bastam com dispor sobre o estatuto do poder. Elas também traçam metas, programas de ação e objetivos para as atividades do Estado nos domínios social, cultural e econômico. Essa disjunção de modelos de Constituição para efeitos taxinômicos não deve levar o observador a perder de vista que todas as constituições fazem opções ideológicas sobre o papel do Estado nos planos social e econômico. Até quando não o expressam, assumem, nesse silêncio mesmo, uma opção política, vinculada a uma dada ideia sobre o que deve incumbir aos poderes públicos. De toda sorte, associa-se a constituição-garantia a uma concepção liberal da política, enquanto que a constituição programática remete-se ao ideário do Estado social de direito. A Constituição brasileira de 1988 tem clara propensão dirigente (MENDES; BRANCO, 2012, p. 96-97)

 

 

A grande questão é traduzir todo o ensinamento abstrato da legislação para, de fato, concretizar o exercício de um direito. De nada vale uma tutela imaginária no papel, se na prática o cidadão não gozar efetivamente deste direito.

E é aqui que é necessária atuação conjunta (independente e harmônica) entre os poderes do Estado para, cada um na sua área de atuação constitucional, unir forças a fim de concretizar direitos.

A legislação, por si só, por não ser autoexecutável, dependendo de regulação e atuação do Executivo, para que tal direito, outrora previsto apenas abstratamente possa ganhar ares concretos.

A interpretação da lei, suas diretrizes e nuances não é tarefa das mais fáceis. “O legislador é um monstro de muitas cabeças e é difícil descobrir as reais intenções das centenas de parlamentares que votaram uma lei (…) na interpretação de uma lei, a pior pessoa a que pode interpretá-la é a pessoa responsável pela sua redação” (CAENEGEN, 2010, p. 13).

Ainda que os legisladores usassem “a forma mais simples e precisa da linguagem legislativa, sempre deixam, de qualquer modo, lacunas que devem ser preenchidas pelo juiz e sempre permitem ambiguidades e incertezas que, em última análise, devem ser resolvidas na via judiciária” (BARWICK, apud CAPPELLETTI, 1993, p. 20-21).

Assim, urge convocar outros poderes no auxílio à interpretação para, de fato, concretizar direitos. A defesa de direitos através dos tribunais representa uma “decisão fundamental organizatória” (Lorenz apud CANOTILHO, 2003, p. 276), pois o controlo judicial constitui uma espécie de “contrapeso” clássico em relação ao exercício dos poderes executivo e legislativo (CANOTILHO, 2003, p. 276).

Assim, ante ao caráter dirigente da Constituição, os outros poderes, dentre eles, claro o Judiciário, são convidados harmônica e democraticamente, a interpretar, de forma conjunta o ordenamento para concretização de direitos e vangloriar o texto do legislativo.

 

3. EFETIVAÇÃO DE DIREITOS NO PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

No paradigma do Estado Democrático de Direito há uma nova compreensão, que é a de um direito participativo. Nesse modelo, vemos a sociedade civil desempenhar e elevar-se a um importante papel, no sentido de exigir garantias mínimas de que a atuação do Estado, sobretudo na aplicação da lei, não atingirá os indivíduos em seus direitos fundamentais.

Há, nesse momento histórico, uma preocupação em fomentar a participação do público nos negócios privados, com uma crescente necessidade de participação da população no processo decisório. Através da busca pelo ideal democrático, há a implementação do princípio da soberania popular, princípio este que oportuniza, pelo menos em tese, uma igual participação na formação da vontade do estado.

Ao analisarmos o caso brasileiro, mais precisamente sua Constituição datada de 1988, verifica-se que a carta magna reafirma o dever do estado de prover condições mínimas de uma vida digna.

Há, no referido documento, a obrigação estatal de garantia a toda pessoa de um mínimo existencial, cujo cerne se liga à preservação e manutenção do direito à vida digna. Neste sentido, o mínimo existencial referido não está associado somente a direitos sociais, eis que o indivíduo necessita de mais do que ter um direito a vida; é preciso garantir aos indivíduos uma vida digna. Esse mínimo parte de três valores que precisam ser efetivados e preservados: valor da cidadania, valor da democracia como valor de realização (democracia não é forma de governo, mas forma de realizar o Estado Democrático de Direito) e valor da dignidade, todos eles visando o indivíduo.

Neste sentido, cabe ao Estado possibilitar a todo indivíduo o desenvolvimento de sua personalidade, em uma postura estatal ora negativa (abstenções, como no direito tributário por exemplo) e em outras vezes em prestações positivas do estado. O referido mínimo existencial seria, desta forma, parte do valor da dignidade da pessoa humana, que passa pela ideia de cidadania, e o estado, enquanto governo, precisa efetivar tudo isso.

             No que diz respeito ao papel desempenhado pelo Poder Judiciário, verifica-se que no Estado Democrático Direito, a forma de atuação altera-se significativamente, ganhando corpo. Os tribunais assumem – a partir sobretudo do segundo pós-guerra – a função de verdadeiros guardiães da constituição, ocupando espaços até então preenchidos por outros atores sociais.

Dentro dessa nova ordem, ao poder judiciário cabe atuar de forma proativa, aproximando-se da realidade social, tornando-se um efetivo partícipe da construção dos destinos da nação. Isso porque, a complexidade da sociedade atual exige deste importante poder uma atuação mais próxima dos problemas que ocorrem na sociedade, o que equivale dizer que atualmente não cabe mais ao juiz somente dizer o direito, mas o dever de reconstruí-lo no caso concreto.

O órgão legislativo assume difícil missão de regular a vida de toda uma sociedade e Estado, criando normas de orientação geral de conduta e com serão cumpridas as regras da coletividade. No entanto, “nenhum dador de leis pode criar um sistema de normas que é tão perfeito que cada caso somente em virtude de uma simples subsunção da descrição do fato sob o tipo de uma regra pode ser solucionado” ALEXY, 2015, p. 36).

Assim, seja diante de uma necessidade de interpretação de norma, seja por ausência de regulamentação, seja por mudança e evolução da sociedade, que exige do direito novas interpretações, se faz necessário a atuação do judiciário para auxílio na elucidação do texto legiferante e aplicabilidade prática.

 

  1. A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO FRENTE A INCONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS

No movimento pendular que trouxe destaque ao Poder Judiciário, este órgão julgador é convidado a atuar para concretização de direitos e também para proteger a própria Constituição, exercendo o controle de constitucionalidade. A ordem social exige tal mister do Judiciário.

A Constituição Federal é a Lei Maior do Estado, nela estão insculpidas todas regras de organização política e jurídica da nação além de assegurar uma série de direitos individuais e sociais fundamentais à pessoa humana.

A Constituição da República de 1988 é um marco representativo da democracia. Assim, garantir a Constituição é garantir a Democracia. Exercer o controle, de modo respeitar a Constituição é honrar os princípios democráticos.

Deste modo, a partir da Magna Carta de 1988, coube ao Supremos Tribunal Federal a honraria de ser “guardião da Constituição”. Destarte, em assuntos estritamente constitucionais é a Suprema Corte que deve se posicionar sempre em defesa da Carta Magna, sendo muitas vezes em nome da democracia.

Para manter a Magna Carta no seu patamar de soberania legislativa, mister a observância das vias de controle de constitucionalidade, visando eliminar do ordenamento jurídico pátrio leis e atos normativos constitucionalmente viciados, uma vez que uma lei inconstitucional representa uma afronta à Carta garantidora da democracia.

A Constituição da República de 1988, Carta garantidora de uma série de direitos representa marco fundamental para a democracia pátria. Deste modo, mister assegurar a supremacia da base constitucional no ordenamento jurídico pátrio. Afinal, assegurar a Constituição, é concretizar o Estado Democrático.

Importante, pois, ressaltar que o:

 

O princípio da supremacia requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição. Essa conformidade com os ditames constitucionais, agora, não se satisfaz, apenas com atuação positiva de acordo com a constituição. Exige mais, pois omitir a aplicação das normas constitucionais, quando a Constituição assim determina, também constitui conduta inconstitucional (SILVA, 2015,p. 48).

 

A fim de assegurar a supremacia da Constituição, há no ordenamento pátrio o controle de constitucionalidade. Controlar a Constituição da República e manter sua supremacia, objetiva-se eliminar do ordenamento jurídico lei e atos normativos viciados, retirando-lhe, pois, força normativa e poder vinculante

Com a promulgação da Constituição de 1988, ao Supremo Tribunal coube então a tarefa de julgar originariamente as ações do controle concentrado de constitucionalidade, nas quais legitimados específicos previstos no artigo 103 da Carta Maior visam proteger a Constituição por meio de ações restritas, tais como a ação direta de inconstitucionalidade ou a Arguição de descumprimento de preceitos fundamentais.

No controle concentrado, assim chamado, pois, “a competência para julgar definitivamente acerca da constitucionalidade das leis é reservada a um único órgão, com exclusão de quaisquer outros” (CANOTILHO, 2003, p. 898), as decisões proferidas pela Suprema Corte possuem efeitos que transcendam os interesses das partes diretamente envolvidas na lide.

Há, ainda, no ordenamento jurídico pátrio, a possibilidade de controle via incidental ou difusa de constitucionalidade, através do qual, qualquer órgão do judiciário pode exercer o controle sem uma restrição de ações, analisando o caso concreto.

Pela forma de controle de constitucionalidade pela via difusa,

 

a inconstitucionalidade do acto normativo só pode ser invocada no decurso de uma ação submetida à apreciação dos tribunais. A questão da inconstitucionalidade é levantada, por via de incidente, por ocasião e no decurso de um processo comum (civil, penal, administrativo ou outro), e é discutida na medida em que seja relevante para a solução do caso concreto. Este controlo chama-se controlo por via de excepção, porque “a inconstitucionalidade não se deduz como alvo da acção, mas apenas como subsídio da justificação do direito, cuja reivindicação se discute” (Canotilho (2003, p. 899):.

 

Percebe-se que o próprio ordenamento jurídico, com previsão na Constituição da República, convoca o Poder Judiciário para atuar diante de uma inconstitucionalidade. Assim, “

a Jurisdição Constitucional compõem-se certamente, de mais do que afirmações sobre constitucionalidade. O tribunal constitucional não só diz algo, ele também faz algo. Ele tem regularmente a competência para deixar sem validez atos anticonstitucionais do parlamento” (ALEXY, 2015, p. 162).

Destarte, na ordem social marcada por um Estado Democrático de Direito, mais uma vez o Poder Judiciário é convidado a atuar, em consonância com o Legislativo e Executivo, valorizando a harmonia dos poderes insculpida no artigo segundo da Constituição.

Assim, ante a complexidade do Estado, se faz necessária a organização do mesmo em Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), cada um na sua órbita de competência. A Atuação do judiciário, respeitados os limites constitucionais, nada mais é que a própria engrenagem democrática. A Atuação do judiciário representa “o necessário contrapeso democrático, segundo entendo, num sistema democrático de checks and balances” (CAPPELLETTI, 1993, p. 19)

Assim, o judiciário atua exercendo seu contrapeso democrático na interpretação do direito diante de inconstitucionalidade, visando, certamente, manter o brilho da Constituição.

 

CONCLUSÃO

Sobretudo a partir do 2º pós-guerra, o mundo assiste (e segue vivenciando) um movimento de expansão do sentido e alcance das normas fundamentais, ou seja, de vinculação às constituições dos Estados nacionais. Desta feita, a carta magna apresenta-se como fruto das decisões políticas, sendo considerada a modelagem jurídica do fenômeno político. Há, neste sentido, inegável relação entre o Direito e a Política, sobretudo quando se pensa no plano da criação das normas jurídicas. Já há algum tempo, buscamos a efetivação dos estados constitucionais e democráticos de direito.

Direito e política, embora se apresentem como fenômenos distintos, assumem em alguns momentos posições de entrelaçamento. É certo que, se na política vigoram a soberania popular e o governo da maioria, revelando-se como o universo da vontade – o que significa em uma democracia a vontade da maioria – por outro lado no Direito vigoram a supremacia da Lei (the rule of law), o domínio da razão e o respeito aos direitos fundamentais.

Nesse cenário de crescente complexidade das relações sociais, ao Judiciário tem cabido muitas vezes a difícil tarefa de decidir questões de larga repercussão política ou social. Isto equivale dizer que as referidas demandas têm sido decididas por membros do Poder Judiciário e não pelas instâncias políticas tradicionais, compostas por membros eleitos, integrantes dos Poderes Legislativo e Executivo. A isso, é possível chamar de judicialização da política, que possui múltiplas causas, dentre elas a redemocratização do país, a ocorrência de uma constitucionalização abrangente, aliado ao controle de constitucionalidade brasileiro – um dos mais abrangentes do mundo.

Com o advento da Constituição da república de 1988, o Judiciário deixou de ser um departamento técnico-especializado, se transformando em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes. Fato é, que na maior parte dos países ocidentais, observa-se – a partir sobretudo do segundo pós-guerra – uma espécie de avanço da justiça constitucional sobre o espaço da política majoritária.

Tais desafios fazem crer que ao Judiciário, no cenário atual, cabe a difícil tarefa de fazer valer os direitos, sem no entanto exceder aos limites constitucionalmente estabelecidos para o exercício do poder. Ademais, ao órgão judicante cabe, anda, a interpretação do direito diante de normas que ferem a Constituição, visando eliminar do ordenamento jurídico normas inconstitucionais.  Tais questões, importantíssimas em um estado democrático de direito, diz respeito ao momento que demanda, cada vez mais, um Direito construído como produto do coletivo. Há, dessa forma, uma crescente necessidade de que as instituições se pautem pela Constituição vigente, e (re)orientem a sua atuação através dos marcos oferecidos pela carta magna.

 

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Trad. Luís Afonso Heck. 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2015

 

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Editora Saraiva, 2015.

 

BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Fename – Fundação Nacional de Material Escolar, 1973.

 

CAENEGEM, R. C. Van. Juízes, legisladores e professores. Trad.Luís Carlos Borges. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

 

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

 

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993.

 

HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21. ed., trad. por Waltensir Dutra, Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S.A., 1986.

 

MACEDO, Dimas. Do Estado Liberal ao Estado Social – um clássico da ciência política. In Revista Latino-americana de estudos constitucionais, nº 6. Editora Del Rey, 2005.

 

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012

 

SANTOS, Boaventura de Sousa (2012). O Estado social, Estado providência e de bem-estar. Disponível: https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/convidados/o-estado-social-estado-providencia-e-de-bem-estar-2968300.html. Acesso: set. 2020.

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