Laryssa Saraiva Queiroz – Mestre em Ciência Política (UFPI); Pós-Graduada em Ciências Criminais (UNESA); Advogada; Mediadora em Árbitra Extrajudicial em formação pela ESAPI/DATAAmérica; Professora universitária das Graduações em Direito e Serviço Social do Centro Universitário Estácio São Luis; Autora da série: Estudos sobre o Acesso à Justiça. E-mail: Lsaraivaqueiroz@gmail.com
Resumo: No cenário brasileiro, redemocratizado e marcado por desigualdades sociais e econômicas, costuma-se enfatizar como primordiais, basicamente, políticas de acesso à saúde, à educação e à segurança. Entretanto, insta atentar igualmente, senão precipuamente, para a relevância do acesso à justiça, sobretudo aos setores mais vulneráveis da população. Isso porque este constitui um sustentáculo essencial em um regime que se diz democrático e plural, e ainda se revela, em última instância, uma condição para o exercício dos demais direitos sociais. Desse modo, dada a relevância da temática, esta pesquisa tem como objetivo analisar quais mecanismos o Estado desenvolveu ao longo do tempo para a promoção do acesso à justiça aos vulneráveis. Para tanto, lança mão de uma metodologia qualitativa, aplicando os métodos de análise documental de conteúdo e de discurso, reconstituindo historicamente a percepção deste tema como sendo um problema político no Brasil, até o momento em que houve a adoção de uma política pública específica para este fim. Foram identificados diversos mecanismos desenvolvidos para este fim, tais como: possibilidade de demandar em Juizados Especiais sem advogado; jus postulandi na Justiça do Trabalho; arbitragem, conciliação e mediação. Mas, além destes, e por meio do exame de leis, Constituições e outros documentos, percorreu-se o processo de formulação, desde a época de sua consideração na agenda governamental, até a formulação de uma política pública específica para este fim, hoje executada por uma instituição específica: a Defensoria Pública.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Vulneráveis. Política pública. Defensoria Pública.
Abstract: In the Brazilian scenario, redeemocratized and marked by social and economic inequalities, it is usually emphasized as fundamental, basically, policies of access to health, education and security. However, it also urges attention to the relevance of access to justice, especially for the most vulnerable sections of the population. This is because this is an essential support in a regime that is said to be democratic and plural, and still proves to be a condition for the exercise of other social rights. Therefore, given the relevance of the theme, this research aims to analyze what mechanisms the State has developed over time to promote access to justice for the vulnerable. To do so, it uses a qualitative methodology, applying the methods of documentary analysis of content and discourse, reconstituting historically the perception of this theme as a political problem in Brazil, until the moment when a specific public policy was adopted to this end. Several mechanisms developed for this purpose have been identified, such as: the possibility to sue in Special Courts without a lawyer; jus postulandi in the Labor Court; arbitration, conciliation and mediation. But in addition to these, and through the examination of laws, Constitutions and other documents, the process of formulating a specific public policy for this purpose was identified, which today is carried out by a specific institution: the Public Defender’s Office.
Keywords: Access to justice. Vulnerable. Public policies. Public Defender.
Sumário: Introdução. 1. Acesso à justiça no Brasil: “Por quê”, “para que” e “para quem” 2. Mecanismos variados de acesso à justiça no brasil 2.1 Juizados Especiais 2.2 O jus postulandi na Justiça do Trabalho 2.3 Arbitragem, mediação e conciliação 3. O acesso à justiça aos vulneráveis na agenda brasileira. 3.1 Modelos de políticas públicas de assistência jurídica aos vulneráveis 3.2 O acesso à justiça aos vulneráveis como um “problema político” no Brasil 3.3 Modelo de política pública brasileira de acesso gratuito à justiça aos vulneráveis adotada no Brasil. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
No cenário brasileiro, redemocratizado e marcado por desigualdades sociais e econômicas, costuma-se enfatizar como primordiais, basicamente, políticas de acesso à saúde, à educação e à segurança.
Após a alternância entre vários ciclos autoritários e democráticos, vigem princípios ligados à cidadania e à justiça social. Diante disso, faz-se necessária a criação de instrumentos que garantam sua concretização, ou que ao menos demonstrem uma preocupação nesse sentido.
Assim, insta atentar igualmente, senão precipuamente, para a relevância do acesso à justiça, sobretudo aos setores mais vulneráveis da população. Isso porque este constitui um sustentáculo essencial em um regime que se diz democrático e plural, e ainda se revela, não raras vezes, uma condição para o exercício dos demais direitos sociais.
Então, surge o questionamento sobre como o Estado tem atuado na promoção deste acesso à justiça aos vulneráveis. Aliás, por que tratar de política pública de acesso à justiça? Qual a relevância disso em um país como o Brasil? De que formas este acesso é promovido no país? Como esta temática tem sido enfrentada no país? Existe alguma política pública específica neste sentido?
Estes são os questionamentos que direcionam o desenvolvimento do presente estudo, que está organizado de modo a partir da compreensão da relevância da discussão sobre acesso à justiça no Brasil, reconstituindo historicamente o momento em que tal necessidade foi percebida como um problema político no Brasil, até a listagem de mecanismos desenvolvidos para a promoção deste acesso neste país e investigação sobre políticas públicas específicas nesta área.
Desse modo, após identificar alguns mecanismos de acesso à justiça já desenvolvidos, considerando suas limitações, passa-se a perfazer retrospecto histórico com o objetivo de identificar como o acesso à justiça, especificamente aos vulneráveis, tornou-se um problema político no Brasil. Faz-se isto por meio do exame do conteúdo das Constituições passadas, a fim de se promover uma análise que reconstitui a fase de formulação da política pública especificamente.
A pesquisa é feita por meio de uma metodologia qualitativa, aplicando os métodos de análise documental de conteúdo e de discurso, técnicas que consistem em uma pesquisa a partir de documentos, que oportunizam observar o processo de maturação ou de evolução de, por exemplo, indivíduos, grupos, conceitos, conhecimentos, mentalidades e práticas (CELLARD, 2008).
A análise de discurso é feita, especificamente, na elaboração da Constituição Federal de 1988, quando da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, posto que estes documentos foram os grandes marcos da adoção da política em estudo. Este tipo de exame proporciona, inclusive, o contato com as alternativas levadas em consideração pelos Constituintes na eleição do modelo de política escolhido.
Necessário frisar que na análise documental deve-se atentar para a autenticidade e confiabilidade do material consultado (CELLARD, 2008), razão pela qual toda a legislação consultada é acessadas a partir do domínio oficial do Palácio do Planalto e da Câmara dos Deputados, que são as fontes oficiais de consulta da legislação brasileira (<http://www.planalto.gov.br> e < http://www.camara.leg.br/>). Tais registros, a exemplo de leis, decretos e Constituições; inclusive redação original e Assembleia Nacional Constituinte transcrita; se encontram disponíveis a qualquer computador com acesso à Internet.
1. ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL: “POR QUÊ”, “PARA QUE” E “PARA QUEM”
Muito se pode questionar acerca da essencialidade de políticas públicas que promovam o acesso aos mais diversos direitos sociais constitucionalmente assegurados, tais como: saúde, educação, trabalho digno, previdência social, etc. Não se costuma, todavia, considerar o acesso à justiça como política pública essencial.
Entretanto, análise mais atenta deste tema torna perceptível a relevância da promoção do acesso à justiça. Isto porque, não raras vezes, para assegurar a observância de direitos sociais, se faz necessário recorrer ao sistema de justiça.
Desse modo, o acesso à justiça, comumente, se constitui verdadeiro requisito para o exercício da própria cidadania. “As dificuldades de acesso ao Judiciário são constantemente lembradas como um fator inibidor da realização plena da cidadania” (SADEK, 2004, p. 86).
E isso ocorre porque não garantir o direito de recorrer à justiça esvazia a previsão formal de direitos individuais e coletivos, que podem restar inviabilizados, caso não haja condições efetivas de acesso à justiça para assegurá-los (SADEK, 2009, p. 170).
O direito de propriedade, por exemplo, não consiste no direito de possuir propriedade, mas de adquiri-la e protegê-la. De igual modo, o direito à liberdade de expressão de nada vale se não se dispuser de um meio de se fazer ouvir. Assim, às vezes existe o direito, mas o remédio jurídico em caso de desrespeito deste direito, muitas vezes, está fora do alcance do indivíduo (MARSCHALL, 1967).
Portanto, a titularidade de direitos torna-se destituída de sentido na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. Assim, o acesso à justiça se constitui pressuposto fundamental de um sistema jurídico moderno e igualitário, que pretenda garantir, e não meramente proclamar, os direitos de todos, revelando-se, em última instância, o mais básico dos direitos humanos (CAPPELLETTI, 1988).
Logo, este é o fundamento da relevância da promoção do acesso à justiça: sua intrínseca correlação com a noção de cidadania que, por sua vez, engloba o acesso aos mais diversos direitos.
Conforme a clássica definição de T. H. Marshall (1967), o conceito de cidadania é composto por três elementos, a saber: o civil, o político e o social. O elemento civil diz respeito aos direitos necessários à liberdade individual, a exemplo do direito de ir e vir, de pensamento, de expressão, da imprensa, de propriedade, e do próprio direito à justiça.
De outro lado, o elemento político relaciona-se com o direito de participação na vida política, a exemplo de votar e ser votado. Por fim, há o elemento social, que consiste no direito a um mínimo bem-estar econômico, consoante um padrão social civilizado. Exemplo é a garantia de acesso ao sistema educacional.
Estes elementos se desenvolveram, necessariamente, nesta ordem na Inglaterra, e revelam um desdobramento lógico para a cidadania naquele país. Isso porque foi com base no exercício dos direitos civis que os ingleses reivindicaram o direito de votar e esta participação política, por sua vez, viabilizou a introdução dos direitos sociais.
Todavia, no Brasil, assim como em vários outros países, tal como identificado por Carvalho (2001), a evolução da cidadania sucedeu-se cronologicamente de modo invertido em relação à sequência lógica ocorrida na Inglaterra.
Ainda conforme o autor, no Brasil, além de ter sido conferida maior ênfase aos direitos sociais em detrimento dos demais, a sequência foi exatamente inversa. Primeiro os direitos sociais; depois os direitos políticos e, por último, o que deveria ser a base, os direitos civis, que seguem inacessíveis à maior parte da população.
Assim, o cenário que se descortina no país é um sistema representativo enfraquecido pelo corporativismo, e uma persistente violação de liberdades civis e medidas sociais incapazes de modificar, substancialmente, as profundas desigualdades socioeconômicas existentes.
As camadas da população mais vulnerabilizadas por estas desigualdades ficam ainda mais distantes de uma forma digna de vida, quando não conseguem acessar o sistema de justiça e assegurar os direitos legais e/ou constitucionalmente previstos, pois que, muitas vezes, há a necessidade de representação judicial por meio de serviços advocatícios e ainda custas judiciais, não dispondo estes setores de recursos para tanto.
Ademais, cabe ainda lembrar a função da jurisdição na sociedade, qual seja a pacificação de conflitos (CINTRA, 2015). Assim, o acesso à justiça representa ainda um mecanismo para a manutenção da paz social, garantindo um processo legal para a resolução dos conflitos.
Disso se extrai a relevância de uma política pública que promova acesso à justiça, sobretudo, aos mais necessitados, em nome da própria coesão e paz social. Até mesmo em atenção ao pressuposto democrático de tratamento igualitário, isonomicamente falando.
Nesse sentido, se deve ter por base o tratamento igual entre os iguais e tratamento desigual entre os desiguais, sendo que o propósito deste pressuposto não é tão somente estabelecer equivalência entre duas coisas, mas promover a justiça entre os indivíduos. Por essa perspectiva, a desigualdade pode ser justificável e justa. (BOBBIO, 1997)
Inclusive, daí advém a noção de política pública, enquanto “um fluxo de decisões públicas, orientado a manter o equilíbrio social ou a introduzir desequilíbrios destinados a modificar essa realidade” (SARAVIA, 2006, p. 28).
E é relevante frisar que os ganhos na democracia correspondem a ganhos em cidadania, pois a conquista e a realização democrática se expressam na concretização e ampliação da cidadania, e ambas se definem pela igualdade, formal e real. (SADEK, 2013)
Historicamente, em um primeiro momento, a igualdade encontrava-se vinculada à ideia de generalidade da lei, que se aplica a todos através de uma igualdade formal. No entanto, também se passou a valorar a igualdade de cunho social, com a necessidade de atuação dos poderes públicos que, efetivamente, produzissem nas estruturas sociais desiguais uma igualdade material. (BOBBIO, 1997)
Dessa forma, de modo isonômico, ao se afirmar que “todos são iguais perante a lei”, se quer dizer que a lei não pode diferençar por critérios que não sejam legítimos. Logo, a fim de que se promova o pressuposto democrático da igualdade, é plenamente legítima a existência de políticas públicas voltadas para setores específicos da sociedade.
E, dada as profundas desigualdades socioeconômicas, que assolam o Brasil, são exatamente as parcelas mais vulnerabilizadas pelos efeitos do sistema capitalista as principais destinatárias das políticas públicas aqui desenvolvidas. Estas, por sua vez, contribuem para uma maior aproximação do indivíduo brasileiro da condição de cidadão brasileiro.
Assim, útil trazer à baila a discussão a respeito do acesso à justiça no Brasil. Sobretudo, aos setores mais carentes, posto que o exercício pleno de sua cidadania, não raras vezes, está condicionado ao acionamento das vias judiciais para que seja assegurada. Entretanto, estas vias são inacessíveis a muitos por conta da condição econômico-financeira ou por outras circunstâncias vulnerabilizantes.
Por fim, uma vez percebido o fato de o acesso à justiça representar, não raras vezes, requisito para o exercício da cidadania, e ainda um instrumento de realização do pressuposto democrático da igualdade; se é direcionado à problemática de barreiras neste acesso para muitos em razão das custas judiciais e serviços advocatícios. Logo, útil conhecer alguns dos mecanismos desenvolvidos com o objetivo de superação destas barreiras e garantir o acesso à justiça.
2. MECANISMOS VARIADOS DE ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL
A fim de garantir o acesso à justiça, diversos mecanismos foram desenvolvidos no Brasil, que inclusive podem ser alocados nas “ondas de acesso à justiça” das quais Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988) fazem referência.
Em estudo, os autores identificam pelo menos três posições básicas do interesse pelo acesso à justiça entre os países do Ocidente. A primeira onda de acesso corresponde à assistência judiciária para os pobres, ao passo que a segunda diz respeito às reformas que geraram representação jurídica para os interesses difusos. Já a terceira, e mais recente, é denominada de novo enfoque de acesso mais amplo, que cumula os aspectos das ondas anteriores, mas as transcende, sendo mais incisiva no ataque às barreiras do acesso à justiça por considerar meios diversos dos tradicionais.
A seguir, serão apresentados os mecanismos desenvolvidos nesse sentido no Brasil, mencionando-se ainda sua identidade com essas ondas de acesso à justiça.
2.1 Juizados Especiais
Os Juizados Especiais Estaduais estão regulamentados na Lei nº. 9.099 de 1995, enquanto os Juizados Especiais Federais na Lei nº 10.259 de 2001. Nessas instituições os processos são regidos pelos princípios da oralidade, da simplicidade, da informalidade, da economia processual e da celeridade. Isto é, a intenção com a criação desta via de acesso à justiça foi, basicamente, atender e julgar causas de menor complexidade, cada qual dentro de sua competência, de modo desburocratizado e gratuito, sem alijar as garantias processuais asseguradas em um sistema democrático. (BRASIL, 1995; 2001)
Há nos Juizados Especiais Estaduais a dispensabilidade de assistência de advogados nas demandas em que o valor da causa não ultrapasse 20 (vinte) salários mínimos. Nas causas acima desse valor, e limitado a 40 (quarenta) vezes o salário mínimo, as partes ainda poderão escolher a via dos Juizados Especiais, desde que assistidas por advogado. (BRASIL, 1995)
De outro modo, nos Juizados Especiais Federais é facultada a constituição de advogado nas causas, cujo valor seja de até o correspondente a 60 (sessenta) salários mínimos, o que coincide com o teto das causas ajuizáveis no órgão. (BRASIL, 2001)
Logo, resta evidente que a lei destes tipos de Juizados busca consagrar plenamente o princípio do amplo acesso ao Judiciário, viabilizando o acesso de pessoas que não dispõem de condições financeiras para buscar a prestação jurisdicional. Faz isso, não por meio de assistência profissional, mas dispensabilidade desta, mantendo-se a possibilidade de acesso ao Judiciário. Por esta razão, podem ser alocados dentro da terceira onda de acesso à justiça de Cappelletti e Garth (1988).
Muitos exaltam a contribuição destes órgãos para o aumento do acesso à justiça e para a celeridade processual, permitindo uma aproximação entre a lei e a parcela da sociedade excluída social e juridicamente. Assim, os Juizados representam “a democratização do Poder Judiciário, no sentido de abertura de suas portas para os setores mais carentes da população” (SADEK, 2004, p. 93).
Todavia, não obstante a evidente facilitação do acesso ao Judiciário, a gratuidade nos Juizados Especiais também é alvo de críticas. Há quem diga, em tom sarcástico, que “hoje, tentar a sorte em uma ação infundada nos juizados especiais é melhor do que jogar na Mega-Sena, uma vez que nas loterias é preciso pagar para apostar” (SOUSA, 2012, p. 01).
Vale, ainda, observar que os Juizados foram criados com o claro objetivo de desafogar o Judiciário, traçando-se rito simplificado para ações de pouca monta e sem complexidade. Nesse ponto, cabe memorar a indicação de Cappelletti e Garth (1988) de que as pequenas causas e o tempo seriam obstáculos ao acesso à justiça. Isso porque se esse tipo de litígio tiver de ser decidido, necessariamente, por meio de processos judiciais formais, os custos podem chegar a exceder o montante da controvérsia.
Já a questão do tempo considera a espera por uma decisão que, quando não desmotiva o ajuizamento de ação, pode aumentar os custos para as partes por conta da inflação e até chegar a pressionar os economicamente mais fracos a abandonar a causa ou aceitar acordos por valores inferiores aos quais teriam direito.
Isso considerado se poderia concluir que estes não representam problemas no Brasil já que existem os Juizados Especiais com essas funções de simplificação, que servem para desafogar o Judiciário. Entretanto, o que se sucedeu foi um sistema alternativo que restou igualmente sufocado pela larga demanda. Inclusive, dando-se azo a banalização do dano moral frente à facilidade de ajuizar ações, ainda que descabidas, sem a necessidade de constituir advogados.
Interessante mencionar a pesquisa batizada de Consumidor sem Advogado, Prejuízo Dobrado, que foi realizada pela Comissão de Direito do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Goiás. Realizada em 12 Juizados Especiais Estaduais, a pesquisa concluiu que, sem advogado constituído, o consumidor que já foi lesado acaba tendo indenizações menores. (OLIVEIRA, 2015)
A pesquisa calculou as médias de indenizações em cada juizado e a diferença constatou que a indenização média de todos os juizados é de R$ 982,05 em processos sem advogado e de R$ 7.578,44 com advogado constituído. Dessa forma, a conclusão da pesquisa foi a de que, ainda que os Juizados não exijam a constituição de um advogado, o cidadão poderia sair ganhando mais se contratasse um profissional para representá-lo.
Sobre os Juizados Especiais, convém ainda comentar sobre o Projeto de Lei nº 5.123, proposto no ano de 2013, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados. O projeto intenta alterar a Lei dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais, tornando facultativa a participação de advogados nas ações dos Juizados, independentemente do valor da causa, inclusive para os recursos, que no sistema atual ainda exige advogado. (BRASIL, 2013)
Segundo o próprio projeto, o objetivo, sob o ponto de vista processual, seria a persecução de uma prestação jurisdicional mais efetiva. Em sua justificação se fala na finalidade de desafogar a justiça, dinamizar processualmente os Juizados Especiais, tornando-o democrático e propiciando um acesso mais fácil ao Judiciário.
Entretanto, não obstante as nobres finalidades, o projeto tem recebido críticas merecedoras de análise. No esteio das críticas gerais aos Juizados, que já foram destacadas acima, a opinião de alguns especialistas alerta para os riscos da ausência de advogados em processos:
O cidadão leigo não possui o conhecimento técnico necessário para o bom andamento da demanda, estando despreparado para o prosseguimento do processo caso não haja êxito na conciliação. A ausência do advogado faz com que muitas vezes o autor não formule os pedidos da maneira correta, de modo que a prestação jurisdicional por ele buscada não é alcançada de maneira satisfatória. (ROVER, 2013, p. 01)
Há também quem explique que, muito embora a criação dos Juizados Especiais tenha trazido a simplificação às causas de menor complexidade, as regras processuais ainda são complexas, impedindo o entendimento daqueles que não são operadores do direito. (ROVER, 2013)
Alguns afirmam que a falta de acompanhamento técnico pode gerar novas demandas consequentes das ações mal resolvidas. Outros consideram o projeto inadequado, considerando que o movimento de desburocratização do Poder Judiciário e redução de tempo no trâmite de processos não pode chegar ao ponto de deixar o jurisdicionado juridicamente desamparado. (ROVER, 2013)
Têm-se, assim, críticas tanto positivas quanto negativas em relação aos Juizados Especiais, que garantem o acesso à justiça, por meio da gratuidade no processamento e especialmente voltado às “pequenas causas”.
E o que se pode concluir é que, embora de uma perspectiva haja um simplificado acesso ao Judiciário, isso não necessariamente implica em um efetivo acesso à justiça. Isso porque a assistência de um profissional no âmbito judicial garante a devida observância de regras processuais e do deslinde do processo em benefício, quanto maior possível, do litigante.
Ademais, comum é a sensação de desconforto, insegurança e nervosismo em meio ao ambiente formal e hostil de, por exemplo, uma audiência jurídica. Dessa forma, todos estes fatores podem não compensar o facilitado acesso ao Judiciário, não representando, em todos os casos a realização, de fato, da justiça.
2.2 O jus postulandi na Justiça do Trabalho
Outro instituto que busca promover o acesso à justiça, desta feita, no âmbito específico da Justiça do Trabalho, é o jus postulandi. Este instituto está previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que representou um grande avanço para a cidadania, no que tange aos direitos sociais. Tal previsão permite que os empregados e os empregadores reclamem, pessoalmente, perante a Justiça do Trabalho, sem a necessidade de estarem acompanhados por advogado para a defesa de seus interesses. (BRASIL, 1943)
O principal objetivo de uma garantia deste tipo é a facilitação de acesso, principalmente do empregado, ao Poder Judiciário. Cabe, desde logo, esclarecer que, muito embora o dispositivo legal da CLT considere que essa garantia se refira à “até o fim do processo”, a jurisprudência manifesta-se majoritariamente no sentido da desnecessidade de advogado não se aplicar à fase recursal. Nesse sentido, a Súmula nº 425 do Tribunal Superior do Trabalho, segundo a qual o jus postulandi das partes, estabelecido no art. 791 da CLT, limita-se às Varas do Trabalho e aos Tribunais Regionais do Trabalho, não alcançando a ação rescisória, a ação cautelar, o mandado de segurança e os recursos de competência do Tribunal Superior do Trabalho
Dito isso, é válido que sejam feitas algumas considerações a respeito do instituto. Cediço é que a Justiça do Trabalho é fundada, sobretudo, na proteção ao empregado, dada sua condição de vulnerabilidade ante ao empregador. Partindo desse entendimento, torna-se razoável a existência de princípios basilares fundados na proteção ao trabalhador.
Entretanto, retomando a ideia abordada no início deste capítulo, de nada valeria a previsão de direitos sem o desenvolvimento de formas assecuratórias de tais direitos. Portanto, haveria que ser facilitado o acesso do empregado que pretenda o reconhecimento e reparação de seus direitos que, eventualmente, tenham sido ou venham a ser violados.
Esta medida, por suas características, também pode ser alocada ao lado dos Juizados Especiais na primeira onda de acesso à justiça. Indubitavelmente, o instituto do jus postulandi representa uma forma para a facilitação do referido acesso à prestação jurisdicional, pois são poupados gastos com honorários, considerando a insuficiência econômica do trabalhador.
Todavia, não são poupadas críticas ao instituto, que pode ser visto por muitos como ofensa aos princípios constitucionais da isonomia e de paridade de armas entre as partes. Ademais, daria uma falsa impressão de facilitação do acesso à justiça, pois, em verdade, acentuaria o desequilíbrio entre as partes, relação jurídica que por natureza já é desigual. (BREVIDELLI, 2002)
Alguns levam em consideração que o empregado, por ser leigo, torna-se uma personagem sem voz no processo, pois que para provar e construir a verdade processual aos olhos do magistrado se exigem habilidades para uma boa articulação do discurso jurídico, uma retórica bem elaborada e uma competente compreensão das leis, não sendo suficiente tão somente a verdade real. (BREVIDELLI, 2002)
E neste ponto se pode remeter às considerações de Cappelletti e Garth, que afirmam que “na maior parte das modernas sociedades, o auxílio de um advogado é essencial, senão indispensável para decifrar leis cada vez mais complexas e procedimentos misteriosos, necessários para ajuizar uma causa” (CAPPELLETTI; GARTH,1988, p. 32).
De qualquer modo, constitui uma prerrogativa do empregado a opção de ajuizar suas reclamações sem a necessidade de constituir advogado, mas ficam registrados os questionamentos de ofensas a princípios e o real acesso à justiça, além do que já se concluiu na seção passada. Dito isso, segue-se para outras medidas que podem ser encaradas como tentativa de garantia do acesso à justiça.
2.3 Arbitragem, mediação e conciliação
Arbitragem, mediação e conciliação consistem em métodos alternativos de solução de conflitos. Quando surge um conflito, as pessoas envolvidas poderão resolvê-lo por meio de cinco opções. A primeira delas é a jurisdição estatal, por meio de um processo judicial que será julgado pelo Judiciário. Há ainda a opção da autotutela com uso de força, isto é, “fazer justiça com as próprias mãos”, o que, em regra, configura crime, salvo situações legalmente excepcionadas, como, por exemplo, legítima defesa. E as outras opções são: arbitragem, mediação e conciliação.
A arbitragem baseia-se na outorga, pelas partes litigantes, a tarefa de pacificar um litígio, a uma pessoa ou um grupo de pessoas de sua confiança. Os árbitros são escolhidos pelas partes para proferirem decisões, que terão o mesmo conteúdo e a mesma força das sentenças judiciais. (BRASIL, 1996, 2015a)
A mediação, por sua vez, consiste em um método pelo qual um terceiro imparcial ajuda as partes a encontrar uma solução aceitável para ambas, sendo que o mediador não julga e nem compõe o litígio, tão somente estimula as partes a chegarem a um acordo. Tal medida pode ser judicial (durante o processo), ou extrajudicial (independentemente de processo judicial).
Já a conciliação ocorre quando um terceiro, denominado de conciliador, atua como intermediário entre as partes tentando facilitar o diálogo, a fim de que os litigantes cheguem a um acordo, diferenciando-se da mediação na técnica que é empregada.
O conciliador tem uma participação mais ativa no processo de negociação, podendo sugerir soluções para o litígio. Ao passo que o mediador auxilia as partes a compreender as questões e os interesses em conflito, sendo que as próprias partes é que irão identificar, por si próprias, as soluções consensuais que gerem benefícios mútuos.
Esses tipos de resolução de conflitos estão sendo cada vez mais valorizados e estimulados com o objetivo de, ao tempo em que desafogam o Judiciário, também garantem o acesso à justiça. Tanto que os órgãos e entidades da Administração Pública poderão criar câmaras para a resolução de conflitos entre particulares, conforme a área de atuação.
Ademais, admite-se a mediação pela internet ou por outro meio de comunicação que permita a transação à distância, desde que as partes estejam de acordo.
Não obstante, a proposta de facilitação de acesso à justiça, polêmicas são levantadas acerca destes métodos. Principalmente, no sentido de que o poder de dizer o direito pertence ao Estado, logo, a via da jurisdição estatal deveria ser a única para se acessar a justiça. Assim, segundo esse raciocínio, métodos alternativos de resolução de conflitos significariam infringir o monopólio estatal da jurisdição. (CARMONA, 2004)
De outro lado, sustenta-se que, embora não oriundo do Poder Judiciário, a decisão final dos árbitros produzirá os mesmos efeitos da sentença estatal. Assim, não seria negativo à luta pelo acesso à justiça as críticas por parte de processualistas ortodoxos que não conseguem ver a atividade processual fora do âmbito da tutela estatal estrita. (CARMONA, 2004)
Insta, ainda, comentar que o novo Código de Processo Civil, que é o único código do ordenamento jurídico brasileiro integralmente produzido em regime democrático, traz dentre as normas fundamentais o princípio da promoção pelo Estado da solução por auto composição. (BRASIL, 2015c)
Por meio deste se determina que os magistrados, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público estimulem a conciliação, mediação ou métodos outros de solução consensual. O novo código dedica todo um capítulo para a regulamentação de mecanismos consensuais de solução de conflitos, inclusive, vale dizer, dispensando o pagamento de custas processuais nestes casos.
Interessante também comentar a respeito da Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, editada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre a política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário. Pode-se concluir que tal Resolução foi consagrada pelo novo Código de Processo Civil, e passa a gozar agora de respaldo legal, na medida em que estimula os métodos de solução consensual. (BRASIL, 2010)
A referida resolução propôs a organização em âmbito nacional, não somente dos serviços prestados nos processos judiciais, mas, em especial, de outros mecanismos de solução de conflitos, independentemente de as partes estarem ou não acompanhadas de advogados.
Exemplos de tais mecanismos seriam exatamente a mediação e a conciliação. Nesse sentido, a Resolução determinou, ainda, a criação dos chamados Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos. A estes núcleos cabe a instalação de Centros Judiciários e Solução de Conflitos e Cidadania que, vinculados aos Núcleos, concentram a realização das sessões de conciliação e mediação. (BRASIL, 2010)
Basicamente, atendendo às disposições da Resolução do CNJ, os Centros contam com um juiz coordenador, ao qual caberá a sua administração, bem como a supervisão dos serviços prestados. Compete ainda a este a homologação, por sentença, das transações ou acordos extrajudiciais realizados, para fins de constituição de título executivo judicial.
Certo é que a criação e implementação dos referidos métodos alternativos de resolução de conflitos contribuem sobremaneira para atenuar a situação de sobrecarga do Judiciário brasileiro, evitando anos a fio de desgastantes processos judiciais. E ainda não implicaria na já mencionada situação exemplificada por Cappelletti e Garth (1988) de que a preocupação com custas e com delongas processuais acabassem por compelir os mais carentes a aceitar valores ínfimos, em sede de acordo.
Por fim, cabe ainda identificar que estes métodos alternativos de resolução de conflitos podem ser alocados na terceira onda de acesso à justiça classificada por estes autores. Isto porque transcende os meios tradicionais, incluindo a seara extrajudicial, sendo mais incisiva no ataque às barreiras deste acesso. E, após a apresentação destes instrumentos de promoção do acesso à justiça, restam os seguintes questionamentos: além desses mecanismos, há alguma política pública específica para a promoção deste acesso aos mais carentes? De que formas o Estado pode agir quanto a essa questão? Há alguma política nesse sentido no Brasil?
São exatamente estas indagações que guiam a próxima sessão do presente capítulo.
3. O ACESSO À JUSTIÇA AOS VULNERÁVEIS NA AGENDA BRASILEIRA
Antes de perquirir este tema em nível de Brasil, insta conhecer modelos já adotados por outros Estados-nações, na época em que o problema do acesso à justiça aos vulneráveis começou a ser levado em consideração.
Para tanto, se elege como fonte a pesquisa denominada Projeto Florença, desenvolvida por Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988), que elenca os sistemas desenvolvidos desta essa época pelos diferentes lugares do mundo para lidar com essa questão. Além de comentários específicos no caso da Inglaterra, a partir da obra de T. H. Marshall (1967).
Necessário ressaltar, desde logo, que as menções a países feitas no primeiro tópico desta seção podem não corresponder ao modelo de acesso à justiça que estes adotam atualmente. No entanto, isto não implica nos resultados desta pesquisa, posto que o objetivo com a menção ao Projeto Florença é que este sirva de base para responder ao questionamento sobre as formas específicas que os Estados utilizam para lidar com o problema da falta de acesso à justiça.
Tendo isso como diretriz, passa-se a investigar, por meio de breve retrospecto histórico, a consideração do tema como um problema político no Brasil, e se foi adotada alguma política pública específica neste sentido. Isto a fim de que se possam encontrar meios de se identificar se tem sido adotado algum dos modelos citados por Cappelletti e Garth no Brasil.
3.1 Modelos de políticas públicas de assistência jurídica aos vulneráveis
A preocupação para com o acesso à justiça aos setores menos abastados viabilizou no mundo moderno o desenvolvimento de, basicamente, três modelos de políticas neste sentido: sistema judicare, advogados remunerados pelos cofres públicos e os modelos combinados (CAPPELLETTI; GARTH,1988).
O sistema judicare estabelece a assistência judiciária como um direito para todas as pessoas, que se enquadrem nos termos da lei, sendo os advogados pagos pelo Estado, embora integrem o setor privado. A finalidade deste sistema é ofertar aos litigantes de baixa renda a mesma representação que teriam se pudessem pagar pelos serviços de um advogado.
Este sistema apresenta características diversas a depender do país que o adota. Na Inglaterra, por exemplo, os litigantes é quem escolhem o advogado, em meio a uma lista extensa, pois a remuneração é considerável e, assim, atrai muitos profissionais. Dessa forma, representa uma “possibilidade de combinar em um sistema os dois princípios da justiça social e do preço de mercado” (MARSHALL, 1967, p. 87), embora “tenha sido muito criticado porque suas exigências são muito restritivas” sobre quem pode ser beneficiário (CAPPELLETTI; GARTH,1988, p. 36).
Já o sistema judicare francês fora idealizado não só para alcançar os pobres, mas também algumas pessoas acima do nível de pobreza. Ademais, havia a possibilidade de o pedido de assistência judiciária ser deferido, independentemente, dos rendimentos do litigante.
O segundo modelo, de advogados remunerados pelos cofres públicos, distingue-se do judicare por seu caráter mais ativista em relação aos interesses dos pobres, enquanto classe. Isto porque os advogados remunerados pelo Estado deste sistema se organizavam em “escritórios de vizinhança” e, além de patrocinar as causas judiciárias dos pobres, ainda conscientizavam estes sobre seus direitos, como também lutavam pela ampliação destes.
Desse modo, este sistema revela-se mais amplo e efetivo no enfrentamento das barreiras do acesso à justiça aos vulneráveis em relação ao sistema judicare, porque sua atuação não se restringia aos tribunais, mas também atuando fora deles.
Ademais, por essas características, este segundo modelo pode apoiar os interesses difusos ou de classe das pessoas pobres, transcendendo, assim, a cobertura individual do judicare.
Todavia, um dos principais problemas deste modelo é a dependência de apoio governamental, sendo que, muitas vezes, a atuação dos advogados que integram este modelo é contra o próprio governo.
Por este motivo, os advogados remunerados pelos cofres públicos dos Estados Unidos estavam sobre constantes ataques políticos. Tal realidade só foi minimamente apaziguada após alteração legislativa, que aumentou a margem de autonomia da atuação profissional destes advogados.
Um entrave deste modelo, que não acomete o judicare, é o fato de que o Estado não tem condições de “manter advogados em número suficiente para dar atendimento individual de primeira categoria a todos os pobres com problemas jurídicos”, tampouco “estender a assistência judiciária à classe média” tal como o sistema judicare. (CAPPELLETTI; GARTH,1988, p. 46).
Assim, considerando as vantagens e limitações destes dois sistemas, surge o terceiro modelo, que resulta da mescla entre os dois primeiros, de forma que os visualiza como complementares.
Os modelos combinados deixam a critério das pessoas ou grupo de pessoas, usuários do serviço, a escolha entre o atendimento por advogados servidores públicos ou particulares. E em alguns países como, por exemplo, Austrália, Holanda e Grã-Bretanha, que já adotavam o sistema judicare, foram promovidas reformas para o modelo misto, aderindo também ao segundo modelo como forma suplementar.
Logo, foram basicamente estas as formas desenvolvidas pelos Estados no trato da questão do acesso à justiça aos vulneráveis. Dito isso, convém a partir de agora perquirir como o Estado brasileiro tem lidado com este problema.
3.2 O acesso à justiça aos vulneráveis como um “problema político” no Brasil
Uma demanda entra na agenda governamental quando desperta o interesse dos atores políticos, que se encontram no poder, sendo, então, reconhecido como um problema político (KINGDON, 2006a).
Neste esteio, Secchi (2013) explica que uma questão deixa de ser um problema privado e passa a ser um problema público, quando consegue sensibilizar muitas pessoas e ganhar a atenção dos atores políticos, meios de comunicação e a sociedade, pois que passa a afetar uma quantidade ou qualidade notável de pessoas.
Linhas passadas trataram da relevância da promoção do acesso à justiça, sobretudo no Brasil, que possui formação cidadã deficitária e é marcado por profundas desigualdades socioeconômicas. E estas constatações direcionaram para a conclusão de que os mais carentes economicamente (e estes existem em grande número no país) são os que mais necessitam de mecanismos que viabilizem este acesso, isso em nome dos pressupostos democráticos ora vigentes e da própria coesão e paz social.
Assim, necessário retrospecto histórico para identificar a presença e tratamento dispensado a essa questão no Brasil, uma vez que é relevante resgatar quando essa questão entrou na agenda brasileira e de que forma foi tratada por parte das instituições políticas brasileiras.
Esta abordagem institucional histórica se justifica porque questões sociais, tais como a discutida neste estudo estão, diretamente, relacionadas com o problema de ação coletiva, pois a superação ou tentativa de se otimizar problemas públicos, por vezes, esbarra na persistente sobreposição de seus próprios interesses em detrimento do interesse social.
Como explicam Ferejohn e Pasquino (2001), o interesse dos agentes sociais está na maximização de riqueza, de votos ou de outras dimensões mensuráveis em termos de quantidade e sujeitas a constrangimentos de recursos materiais. Assim, os indivíduos são concebidos como calculadores de custos e benefícios, agindo sempre de modo a visar maximização destes últimos.
Todavia, neste contexto, felizmente, o Estado é identificado como mecanismo que pode impedir os resultados não avaliados como ótimos resultantes da competição individual, tendo suas instituições o papel de conciliar a racionalidade individual e social. Assim, se perseguiria uma otimização do problema da ação coletiva, com os agentes envolvidos visando maximização de utilidades, mas sem causar prejuízos aos demais. (CARVALHO, 2008)
Nesse aspecto, a necessidade de fundamentação deste tópico em uma literatura de cunho institucional, pois o papel das instituições é prescrever como os atores devem agir frente aos problemas públicos, estabelecendo ainda sanções sociais para os casos de descumprimento destas diretrizes. (SARAVIA, 2006)
Logo, interessante resgatar a consideração da questão do acesso à justiça na agenda política neste país. Isso irá conduzir ao objetivo de descobrir como o Estado brasileiro lida com esse problema e se aqui há uma política pública específica neste sentido.
A formação da chamada agenda-setting é o primeiro estágio de uma política pública, e consiste na inclusão de determinada demanda na lista de prioridades do poder público, que induz e justifica uma intervenção pública. (SECCHI, 2006)
Os atores políticos buscam elevar seus problemas e soluções nas agendas e podem promover a sensibilização social sobre um problema (problem advocacy) ou promover uma alternativa ao problema com uma política pública (policy advocacy). (SECCHI, 2006)
Compulsando-se a evolução constitucional do Estado brasileiro e contextualizando-a, histórica e socialmente, é possível detectar que há muito se considera a necessidade de se promover o acesso à justiça de forma gratuita.
A Constituição de 1934 já previa a necessidade de criação de um órgão especial com função de prestar assistência judiciária (BRASIL, 1934). Portanto, constitucionalmente, começa neste período a consideração do acesso à justiça como um problem advocacy, levado à discussão em nível nacional.
E cabe lembrar que, após a crise de 1929, com o fim da Primeira República, enfraquecimento dos acordos oligárquicos e fortalecimento militar, o Brasil experimentou, entre os anos 1930 e 1945, a grande era dos direitos sociais. “Mas foi uma legislação introduzida em ambiente de baixa ou nula participação política e precária vigência dos direitos civis” (CARVALHO, 2007, p. 110)
A Constituição de 1937, por sua vez, foi omissa a respeito da assistência jurídica. O que não representou, necessariamente, um impedimento de trato da questão, apenas não sendo considerada como um direito social na alçada constitucional, não proibindo União e Estado de editarem leis a esse respeito. (BRASIL, 1937).
Vale rememorar o cenário brasileiro da época, entre 1937 e 1945, que enfrentava um regime ditatorial civil, em que as manifestações políticas eram proibidas, o governo legislava por decreto e a censura controlava a imprensa. (CARVALHO, 2007)
Já o período entre os anos de 1945 e 1964 foi marcado pela era dos direitos políticos e, neste ínterim, em 1950, foi editada a Lei nº 1.060, que estabelece normas para a gratuidade de custas e de taxas aos vulneráveis. Frise-se que esta legislação ainda hoje subsiste, como norma geral sobre a justiça gratuita, tendo sido recepcionada pela então vigente Constituição, mas sofrido significativas mudanças pelo novo regramento processual civil de 2015. (BRASIL, 1950; 2015)
Assim, legalmente, percebe-se que o tema da justiça gratuita já estava na agenda brasileira, antes mesmo de alcançar o nível constitucional. Após a experiência de breve democracia, a ditadura retorna entre 1964 e 1974. Mas vivencia-se novamente os direitos sociais, em pleno governo militar, ao tempo em que os direitos políticos e civis eram cerceados. (CARVALHO, 2007)
Carvalho (2007), avaliando os governos militares sob o ponto de vista da cidadania, releva a manutenção do direito do voto, mas lamenta o esvaziamento de seu sentido e expansão dos direitos sociais em um momento de restrição de outros direitos civis e políticos.
A Constituição de 1967 foi um tanto quanto tímida, limitando-se a, em poucas palavras, a prever a garantia de assistência judiciária, deixando sua regulamentação a cargo do legislador ordinário. Quanto ao Código de Processo Civil de 1973, este ainda chegou a tratar da gratuidade da justiça, mas não disciplinou o serviço de assistência judiciária, deixando isso a cargo da já existente e anteriormente mencionada Lei nº 1.060/50. (BRASIL, 1967; 1950; 1973)
Finalmente, a partir de 1985, o Brasil vivenciou uma retomada da supremacia civil e, em 1988, após uma Constituinte que trabalhou por mais de um ano, finalizou-se a redação da Constituição mais liberal e democrática que o Brasil registrou e que ficou conhecida como Constituição Cidadã. (CARVALHO, 2007)
No atual cenário brasileiro redemocratizado, após alternância entre vários ciclos autoritários e democráticos, vigem princípios ligados à promoção da cidadania. Diante disso, como se frisou no início deste capítulo, faz-se necessária a criação de instrumentos que garantam sua concretização, sobretudo em relação aos setores mais vulneráveis, ou que ao menos demonstrem uma preocupação nesse sentido. A respeito do tema:
Enquanto nas primeiras Constituições os principais objetivos eram a limitação do poder dos monarcas, a afirmação do império da Lei e a proteção das liberdades individuais, as mais recentes guiam-se por valores democráticos, enfatizando os direitos sociais. A meta não é apenas limitar o poder absoluto e assegurar direitos, mas ser um instrumento para a realização da justiça social e para a promoção de direitos, incorporando valores da igualdade social, econômica e cultural.(SADEK, 2004, p. 79)
Vale rememorar, ainda, as circunstâncias em que o ambiente judicial estava inserido em meados dos anos 1980.
Como reflexo do princípio do intervencionismo econômico e promoção do bem-estar social vivia-se a era de direitos sociais e econômicos, como: educação, saúde, trabalho, segurança social e outros, com serviços públicos cada vez mais abrangentes. E o Judiciário passa a ser acionado para dar efetividade na prática a esta novel legislação. (ARANTES, 2002)
Atenta a isso e à premência de uma política pública específica ao problema e ao não acesso à justiça pelos setores mais vulneráveis, os Constituintes de 1988 não só determinaram o desenvolvimento de uma política para a promoção do acesso a justiça aos vulneráveis, como institucionalizaram uma burocracia específica para sua execução: a Defensoria Pública (DP). Esta instituição pode atuar tanto no âmbito judicial, quanto extrajudicial, e ainda na seara de interesses coletivos.
Esta instituição pode, assim, ser alocadas em todas as três ondas de acesso à justiça de que falam Cappelletti e Garth, pois tem a função de assistir, juridicamente, as pessoas que não possuem condições de arcar com os serviços advocatícios (primeira onda), podendo funcionar como representante jurídico para interesses difusos (segunda onda), e inclui em suas funções a atuação no âmbito extrajudicial (terceira onda). (CAPPELLETTI; GARTH,1988).
Insta ressaltar que também o Ministério Público pode vir a prestar assistência judiciária gratuita sempre que ingressa com ação judicial representando ou substituindo processualmente determinada pessoa. Entretanto, essas são hipóteses excepcionais e, em alguns casos, só subsistem em decorrência da falta de estruturação da Defensoria Pública. No entanto, de fato, é esta última a instituição que dispõe de um corpo especializado de agentes, com estrutura própria, remunerados pelo Estado e dedicados, exclusivamente, a prestar assistência jurídica aos vulneráveis. (LIMA, 2015)
Do breve retrospecto histórico pôde-se constatar que a preocupação para com as questões de gratuidade e acesso à justiça há muito estavam presentes nas discussões políticas. E, na dinâmica das políticas públicas, é mesmo relevante o processo de amadurecimento das propostas ou temas, pois estas são as oportunidades de serem expostas e discutidas.
É o que Kingdon (2006b) chama de policy windows ou janelas de oportunidade que passam rapidamente e podem se perder, caso as propostas ainda não estejam gestadas o suficiente, antes que a janela se abra. Logo, é muito importante que a proposta esteja pronta para ser apresentada no momento certo.
E, embora o mérito da institucionalização em nível constitucional da política em exame seja dado à Constituição Cidadã, as anteriores à de 1988, bem como leis infraconstitucionais, já traziam a previsão de que essas eram questões que mereciam intervenção estatal.
Com o tempo, houve distinção dessas questões na forma de duas políticas que, não obstante ambas revelarem a preocupação com o acesso à justiça, não se confundem. Uma é mais geral (política de gratuidade da justiça), aplicável em geral a qualquer pessoa com insuficiência de recursos, que justifique a liberação de despesas judiciais, tais como: custas judiciais. Outra é mais específica, (política de acesso gratuito à justiça), garantida aos que se adequam ao limite de renda para serem beneficiários dos serviços da Defensoria Pública. (BRASIL, 1988)
Na literatura de políticas públicas esta situação é explicada por Kingdon (2006b, p. 237) com a consideração da possibilidade de existência de “agendas dentro de agendas”, que podem variar de agendas extremamente gerais até agendas altamente especializadas.
A segunda política, de acesso gratuito à justiça, então objeto deste estudo, só veio a ser efetivamente tornada uma política pública nacional pela Constituição de 1988, ocasião em que se determinou uma instituição específica para prestar os serviços de assistência jurídica gratuita.
Entretanto, ressalte-se que, malgrado a Defensoria Pública tal qual existe hoje não tenha sido prevista antes disso, não havia vedação a que os Estados instituíssem órgão específico para prestar a assistência judiciária gratuita ou que a atribuísse a um órgão já existente.
Por isso, pode-se dizer que há muito esta questão do acesso à justiça aos vulneráveis existia no Brasil na forma de um problem advocacy. No entanto, também há muito esta questão já se caracterizava como policy advocacy em alguns Estados, posto já estar instituída ou ser promovida por outros órgãos mesmo antes de sua institucionalização em nível constitucional.
Isso porque houve casos em que Estados imputaram a Procuradorias dos Estados em convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) funções hoje típicas da Defensoria Pública, como é o caso do Estado de São Paulo. (LIMA, 2015)
Já o Estado do Rio de Janeiro, desde 1897 já possuía um Serviço de Assistência Judiciária do Distrito Federal (que, à época, era o Rio de Janeiro). E, ainda, na década de 1950 já contava com uma instituição especificamente voltada para prestar assistência jurídica gratuita, inclusive já designada à época como Defensoria Pública. (LIMA, 2015)
Interessante o caso do Estado do Piauí, que evoluiu de promoção da assistência judiciária por parte de órgão estatal preexistente, ao tempo em que criou e, posteriormente, institucionalizou um órgão destinado exclusivamente a executá-la, também sendo este denominando de Defensoria Pública, antes do advento da Constituição de 1988.
Neste Estado, durante a breve experiência democrática entre 1945 a 1964, foi instituída uma Assistência Judiciária estadual por meio dos chamados advogados de ofício, que eram cargos isolados, por meio de concurso público, seguindo a forma e condições exigidas para ingresso na carreira do Ministério Público. E, antecipando-se à Constituição Cidadã, o Decreto Estadual n° 5.504 de 1983, instituiu a Defensoria Pública como órgão destinado a promover a assistência judiciária gratuita. (PIAUÍ, 1947)
Feito esse breve retrospecto histórico, que pode ser resumido no quadro sinóptico abaixo, já se têm alguns indícios que podem conduzir à resposta ao questionamento sobre qual o modelo de política pública de acesso gratuito à justiça o Brasil adota. Entretanto, faltam elementos para melhor identificar e conhecer a discussão no âmbito da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, que pode contribuir para a elucidação da questão.
3.3 Modelo de política pública brasileira de acesso gratuito à justiça aos vulneráveis adotada no Brasil
Integrar os elementos colhidos neste estudo na principal abordagem que trata da formação de agenda em democracias ocidentais, qual seja, o Modelo dos Múltiplos Fluxos proposto por Kingdon (2006a; 2006b), pode conduzir à resposta ao problema de pesquisa desta pesquisa.
Isso porque este autor concebe uma rica definição de políticas públicas, que consiste em um conjunto de processos: o estabelecimento de uma agenda; especificação de alternativas que orientam as escolhas; uma escolha final entre essas alternativas específicas e, finalmente, a implementação desta decisão. Todavia, destaque-se que o processo pode ocorrer não necessariamente nesta ordem, pois as soluções podem ser elaboradas para situações que ainda não são um problema.
Até o presente momento, já se percorreu o processo de formação da agenda brasileira no que se refere à preocupação para com o acesso à justiça aos vulneráveis, e já se sabe que foi estabelecida uma política em nível nacional para este problema na Constituição Federal de 1988. Assim, a questão que antes era solucionada em alguns Estados, por meio de cumulação de funções por outros órgãos, ou mesmo um específico para este fim, passa a ter regramento nacional.
Todavia, neste ínterim, insta identificar as alternativas que foram levadas em consideração na escolha pela política ora vigente. Daí a relevância de se analisar a discussão do tema na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, ocasião em que se decidiu pela política ora vigente.
Compulsando-se os Anais desta Assembleia, em busca de menções à Defensoria Pública e assistência judiciária gratuita, vê-se como foi decidida a situação anteriormente mencionada de que eram as Procuradorias dos Estados, que se incumbiam da assistência jurídica gratuita em alguns Estados da federação nos seguintes termos:
O SR. CONSTITUINTE CARLOS CARDINAL: – Estava dizendo que a Defensoria Pública, hoje, se torna assunto de extrema importância, não apenas para as populações necessitadas. Aqui, já foi argüida a questão de dar, por exemplo, às procuradorias a incumbência da assistência judiciária. Mas quando um cidadão precisa reclamar contra o Estado, digamos, vai requerer exatamente aos Procuradores do Estado a sua defesa. Então, está na hora de fazer esta correção, de se restabelecer o prestígio da nossa Justiça e levá-la de forma organizada, através de uma carreira, às populações carentes. (BRASIL, 1994, p. 77)
A problemática considerada em relação às Procuradorias do Estado funda-se no fato de estas serem órgãos responsáveis pela representação judicial e consultoria jurídica do Estado. E a cumulação desta função com a prestação de assistência jurídica gratuita poderia ser incompatível, uma vez que, muitas vezes, as populações carentes pleiteiam exatamente contra o Estado.
O SR. CONSTITUINTE MICHEL TEMER: – Sr. Presidente, essa emenda trata exatamente do problema da assistência judiciária. Foi elevada a nível institucional, constitucional, a Defensoria Pública, para ser criada e instalada nos Estados com o objetivo de prestar assistência judiciária aos vulneráveis. Ocorre, entretanto, Sr. Presidente – e fui daqueles que, ao lado do nobre Constituinte Sílvio Abreu, pugnou pela instituição das Defensorias Públicas – que, em São Paulo e em vários Estados da Federação, esse serviço ainda é realizado pelas Procuradorias do Estado. Pessoalmente, em São Paulo e em outros Estados, envidaremos todos os esforços para que as Defensorias Públicas sejam imediatamente instaladas. Mas, enquanto isso não ocorre – e esse é o teor da emenda – estamos solicitando que esta função de prestar assistência judiciária aos vulneráveis possa ser atribuída, enquanto não instaladas as Defensorias Públicas, às Procuradorias do Estado. (BRASIL, 1994, p. 167)
Vencida a discussão anterior de cumulação, na proposta acima se tem uma sugestão de medida de transição. Assim, escolhida especificamente a Defensoria Pública para a prestação de assistência jurídica gratuita, propõe-se que as Procuradorias assumam esta função até que as Defensorias estejam plenamente instaladas. Esta sugestão, entretanto, não exclui o que foi discutido anteriormente sobre incompatibilidade de funções, não tendo sido acolhida.
Em outro ponto, este mesmo constituinte expõe os fundamentos da proposta:
O SR. CONSTITUINTE MICHEL TEMER: – […] Nos Estados, há um grande litígio entre Ministério Público, Defensores Públicos e Procuradores Públicos. No meu Estado, São Paulo, os Procuradores Públicos é que exercitam a atividade da assistência judiciária e dela não querem abrir mão, até porque tomam essa função como de grande relevância no Poder Executivo estadual. Estou, num ponto, de acordo com o Constituinte Sílvio Abreu, no sentido de que podemos ampliar talvez, a sua área de atuação, para tratar, então, sim, daquilo que é o centro da preocupação de S. Ex.ª, ou seja, do problema da assistência judiciária, que está intimamente conectado com a idéia (sic) do Poder Judiciário e dos direitos individuais, mas – data vênia do colega Sílvio Abreu – com esse acréscimo da Defensoria Pública. (BRASIL, 1994, p. 8)
Outra preocupação prenunciada acerca da opção constituinte pela Defensoria Pública foi levantada na discussão da Constituinte no sentido de que o Estado não teria capacidade para levar a todos os necessitados de assistência jurídica gratuita estes serviços. E isso com base em casos concretos, já existentes à época, senão, veja-se:
O SR. CONSTITUINTE JAIRO CARNEIRO: – […] A Defensoria Pública, no modelo atual, entendo eu, com todo o respeito, não vai operar o desejo da nacionalidade brasileira. E essa é uma idéia completamente formada, mas me aproximo bastante das posições do ilustre Constituinte Michel Temer. Acredito que devemos ter defensores do cidadão pobre em todos os municípios brasileiros. Mas com a estrutura atual ou expandindo a estrutura e o modelo atual não vamos conseguir isso. No meu Estado não temos vinte defensores públicos e são trezentos e sessenta e sete municípios. Mas há advogados praticamente em todos os municípios do Estado. E poderíamos ter, seja através de mandato eletivo, seja através de indicação do Poder Judiciário ou da Ordem dos Advogados, a designação de um profissional para defender o pobre que precisa de justiça e de defesa. […] Acredito que dentro de algumas idéias desenvolvidas a assistência jurídica ou judiciária ao pobre poderá ou poderia ser prestada pelo profissional habilitado, seja por designação do Poder Judiciário ou da Ordem dos Advogados ou por eleição com mandato certo, podendo haver recondução, ou renovação com fixação com base em parâmetros e limites de uma remuneração que pode ter o caráter de jeton (sic) pela presença ou pela participação em atos, em tribunais judiciais ou extrajudiciais, mas isso seria matéria de lei ordinária. (BRASIL, 1994, p. 75)
Assim, outra proposta em alternativa à incompatibilidade entre as funções de Procurador do Estado e Defensor Público foi sugerida: que a assistência jurídica gratuita fosse prestada por advogados particulares. E esta proposta foi combatida por uma defensora pública, que representou os interesses da classe, basicamente, nos seguintes termos:
A SRª SUELY PLETEZ NEDER: – Não creio ser absolutamente inviável a institucionalização da assistência judiciária. E não creio porque Estados pobres da Federação já mostraram que têm capacidade de resolver o problema dessa forma. […] Não creio também que a obrigação do Estado possa ser transferida para a sociedade civil e o Estado se exima de cumpri-la. […] Essa é a assistência judiciária primária e originária, aquela que incumbe ao Estado, mas existe a assistência judiciária supletiva, aquela que é prestada pelo profissional liberal que não se obriga a prestá-la, mas que a presta, reconhecendo a função social do advogado; entretanto, sem dúvida alguma, de maneira diferente daquela que se faz institucionalizadamente através do serviço público. […] O ilustre Constituinte Plínio Barbosa Martins formula uma pergunta que resolve muito claramente a questão, o livro de Humberto Penha de Morais cita exatamente: “… consta ademais das conclusões do 2º Encontro de Advogados do Estado de São Paulo – 16ª Comissão de Assistência Judiciária – realizado em setembro de 1984. Unidade federativa onde a prestação de assistência judiciária, à falta de estrutura institucional compatibilizada com as reais necessidades da população empobrecida, atingiu a níveis críticos, o seguinte: devemos colaborar com a distribuição da Justiça aos carentes, não aceitando as nomeações de defesas dativas para que o Estado assuma, de uma vez por todas, a sua responsabilidade e sua obrigação…” (BRASIL, 1994, p. 76-77)
Desse modo, ao serem lidas estas colocações, se percebe um reclame pela formulação de uma política específica para o problema da falta de acesso à justiça, como também se narra o cenário da época no Estado de São Paulo, qual seja a nomeação de defensores dativos para a prestação da assistência jurídica gratuita, isto é, convocação de advogados particulares para atuar na causa de pessoas carentes, sendo estes remunerados pelo Estado posteriormente.
Logo, remete-se ao que foi apontado no item 4.1, acerca dos modelos classificados por Cappelletti e Garth. Percebe-se que vigorava situação semelhante ao do sistema judicare antes da Constituinte de 1988, em eleger uma instituição específica para executar a política pública de acesso gratuito à justiça no Brasil, e que seus servidores públicos fossem remunerados pelo Estado.
Dessa forma, de tudo que foi exposto até o momento, seria possível concluir que o modelo adotado no Brasil, consoante a referida classificação assemelha-se ao de advogados remunerados pelos cofres públicos.
Todavia, esta seria uma conclusão prematura, pois até então só foram analisados os dois principais processos pré-decisórios: o estabelecimento da agenda e a especificação de alternativas, bem como já se sabe a escolha final entre essas alternativas específicas.
E estas fases correspondem exatamente aos três fluxos, que compõem o Modelo de Múltiplos Fluxos de Kingdon, que serve para se perceber quando uma questão se torna problema político, entra na agenda do governo e se transforma em política pública.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se aduziu, o direito ao acesso à justiça no Brasil demanda o desafio de enfrentamento de um cenário de marcada exclusão social. E isso, cumulado com o fato de que a cidadania no Brasil tem tido uma construção extremamente deficitária, deixa os “cidadãos” brasileiros pobres duplamente vulnerabilizados.
Por isso, como visto, a concretização do acesso à justiça, não raras vezes, revela-se como pressuposto para a realização dos demais direitos, além de ser instrumento de distribuição de justiça e de efetiva proteção de direitos. Logo, corolário dos pressupostos democráticos de igualdade e de justiça social.
Atento a isso, aos problemas que passaram a acometer o Judiciário em meados nos anos 1980 e, ainda, ao fato de que garantir o acesso à justiça representa a manutenção da coesão e da paz social por institucionalizar meios outros, que não a autotutela para a resolução de conflitos interpessoais, o Estado brasileiro desenvolveu vários mecanismos facilitadores de acesso à justiça para as pessoas mais carentes de recursos.
Assim, em sendo verdadeiro pressuposto para o exercício dos demais direitos, sua função de promoção da cidadania é viabilizada por diversos mecanismos desenvolvidos para este fim, tais como: possibilidade de demandar em Juizados Especiais sem advogado; jus postulandi na Justiça do Trabalho; arbitragem, conciliação e mediação.
Entretanto, considerando-se o alcance e limitações de cada um destes mecanismos subsistia a necessidade de uma política pública específica dada a premência deste acesso à larga parcela vulnerável.
Diante desta demanda, construiu-se uma discussão em torno das circunstâncias socioeconômicas do Brasil; necessidade de prestação desse tipo de assistência aos necessitados; a capacidade do Estado; os interesses de classe de procuradores, defensores e advogados; bem como as diversas experiências de alguns Estados que já dispunham, à época, dos seus próprios modelos de assistência judiciária gratuita aos carentes.
Por meio do exame de leis, constituições e outros documentos percorreu-se a trajetória desta política, desde a época de sua consideração na agenda governamental. Por fim, verificou-se que, com o advento da Constituição Federal de 1988, designou-se uma instituição específica para executar a política pública de acesso gratuito à justiça no Brasil: a Defensoria Pública.
REFERÊNCIAS
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