Alexia de Melo Miguel – Acadêmica no curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Acadêmica-pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Teoria Crítica. (e-mail: alexiamiguel13@gmail.com)
Fernanda Pereira Labiak – Psicóloga pela UFU e mestra pela UFSC. Professora na UNIVALI. Coordenadora de atividades do Projeto de Extensão Direito Intergeracional e Transversalidade. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Teoria Crítica. (e-mail: fernanda_labiak@yahoo.com.br)
Resumo: Em meio à pandemia por COVID-19 que ocorre no ano de 2020, uma das estratégias necessárias a fim de mitigar a disseminação da doença é o isolamento social. Sendo uma prática sanitária que se caracteriza por afastar os indivíduos do convívio presencial com outras pessoas. A pandemia repercute não só na saúde física das pessoas, mas também na saúde mental. Desse modo, um dos abalos psíquicos que podem ser percebidos relaciona-se com os aspectos da ansiedade e os seus possíveis transtornos. Nesse sentido, este estudo tem como objetivo compreender os mecanismos psicossociais de enfrentamento do indivíduo diante da pandemia decorrente da COVID-19 a partir da teoria de coping. Para atingir o objetivo almejado, foi feito um estudo bibliográfico com abordagem qualitativa a fim de explorar as perspectivas dos autores selecionados no que se refere aos seus pontos de vistas, significados, opiniões e experiências.
Palavras-chave: Coronavírus; Isolamento social; Saúde mental; Ansiedade.
What To Do When The Mental Health Threat Is (Un)Visible: Coping And Implications Of COVID-19
Abstract: Amid the COVID-19 pandemic that occurs in 2020, one of the necessary strategies in order to mitigate the spread of the disease is social isolation. Being a practice that is characterized by distancing individuals from living with other people, isolation affects the mental health of those who adhere to this correct strategy to fight the virus. Thus, one of the psychological upheavals that can be perceived in socially isolated people is related to aspects of anxiety and its possible disorders. In this sense, understanding the individual’s psychosocial coping mechanisms in the face of the pandemic resulting from the COVID-19 from the coping theory. In order to achieve the desired objective, a bibliographic study with a qualitative approach was made in order to explore the perspectives of the selected authors with regard to their points of view, meanings, opinions and experiences.
Keywords: Coronavirus; Social isolation; Mental health; Anxiety.
Sumário: Introdução. 1. Consequências da pandemia à saúde mental. 2. Os mecanismos de enfrentar (n)a pandemia. Considerações Finais. Referências.
Introdução
Atualmente, vivencia-se a pandemia decorrente da doença infecciosa COVID-19, causada pelo agente SARS-CoV-2, popularmente conhecida como coronavírus. Esse vírus se propaga com uma velocidade grande e é letal a muitas pessoas quando contaminadas. Tal fato fez com que países por todo o mundo adotassem medidas restritivas contra o espalhamento do vírus. O isolamento social é uma dessas medidas e é entendido como a ausência de contato presencial e físico com pessoas que não estejam residindo no mesmo local de confinamento, enfim, é o distanciamento da sociedade de modo físico, e isso pode se dar de forma voluntária e involuntariamente (DOMINGUES-CASTRO e TORRES, 2018).
Essa medida tem sido considerada eficiente para retardar e diminuir a propagação do coronavírus, entretanto, o que se questiona é a sua eficácia, ou seja, se esta medida preventiva tem atingido a sua finalidade, uma vez que tudo vai depender da resposta das pessoas à política sanitária posta. Impor medidas de limitação à circulação de pessoas, sem que se conscientizem dos objetivos, pode fazer com que elas não acatem essa restrição, deixando de fazer a sua parte para que a política sanitária tenha êxito.
Nesse cenário, cabe destacar que, no Brasil, não há um consenso nos entendimentos dos governos federal, estaduais e municipais em adotar o isolamento social diante da pandemia. Existe muita discrepância entre essas três esferas no que tange aos reflexos do isolamento social e isso pode influenciar no modo como a população percebe e enfrenta a pandemia decorrente da COVID-19.
De modo geral, as medidas adotadas pelos governos variam entre o isolamento social vertical e o isolamento social horizontal. O isolamento social vertical envolve separar apenas um grupo de pessoas para que não tenha contato com outras. No caso da COVID-19, o grupo isolado seria aquele que tem a maior probabilidade de a doença evoluir para o óbito, que são pessoas: imunodeficientes; com doenças cardiovascular, respiratória e metabólica; com idade acima de 60 anos e gestantes ou lactantes. No isolamento social horizontal, não há a seleção de grupos específicos, sendo recomendado que todos fiquem em casa e não tenham contato com outras pessoas fora do ambiente de confinamento.
A discussão acerca disso é que o isolamento social vertical não é de todo vantajoso, pois com as pessoas que não estão no grupo de risco circulando livremente, estas se tornam importantes vetores da doença e o número de contaminados pode aumentar rapidamente. Ademais, já se sabe que é expressivo o número de pessoas que perderam suas vidas e que não faziam parte do grupo de risco.
Por sua vez, o isolamento social horizontal é indicado por infectologistas e pela Organização Mundial de Saúde por restringir ao máximo o contato entre as pessoas, evitando uma grande propagação da doença. Entretanto, ele também é criticado por causar impactos negativos na economia. Se por um lado há economistas que defendem que as medidas preventivas, como isolamento social horizontal, são danosas e impactam negativamente o sistema econômico. Por outro, ter pessoas adoecidas e morrendo em decorrência da COVID-19 tende a impactar muito mais, a médio e longo prazo, o sistema econômico, uma vez que políticas sanitárias adequadas não são adotadas, levando o sistema de saúde a entrar em colapso e não ser possível prestar assistência médica e hospitalar apropriadas para aqueles que precisam.
A esse respeito, Zingales (2020) analisou os dados apresentados pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, agência governamental americana, e fez uma estimativa de perda média de 10 milhões de dólares para cada trabalhador que perder sua vida na pandemia. Goes (2018) fez uma análise semelhante no Brasil e estima 630 mil reais por brasileiro que falecer durante a pandemia. Numa projeção a longo prazo, com a morte de 2 milhões de americanos nos Estados Unidos, a perda representaria 20 trilhões de dólares e, no Brasil, a perda com 1 milhão de mortes evitáveis representaria 630 bilhões de reais. O que se tenta mostrar com estes cálculos mórbidos é que os prejuízos econômicos podem ser maiores nas situações em que o isolamento social horizontal não é adotado.
Conforme apontam estudos epidemiológicos, caso não seja possível achatar a curva de infectados, o cenário será catastrófico e muitas vidas serão perdidas. O modo como a economia é percebida afeta muito a forma de as pessoas se comportarem e adotarem medidas de enfrentamento à pandemia como o isolamento social horizontal, que pode auxiliar no achatamento da curva de infectados.
Nesse sentido, faz-se necessário atentar-se para as estatísticas relacionadas aos números de casos confirmados e mortes advindas da infecção por coronavírus. Contudo, é importante destacar que, no Brasil, os dados oficiais referentes ao número de contaminados por coronavírus não representam a situação fática real devido à falta de testes. Desde o primeiro caso notificado em solo brasileiro, no dia 26 de fevereiro de 2020, o vírus tem se disseminado rapidamente e contaminado muitas pessoas, levando a óbito por COVID-19 uma quantidade expressiva de casos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020). Nessa toada, a subnotificação dos casos de contaminados devido à falta de testes pode influenciar no modo como as pessoas organizam-se internamente para enfrentar a pandemia.
Os índices estatísticos de contágio e óbitos por COVID-19, por todo o mundo, são assustadores e têm gerado muita preocupação no que tange ao risco de prejudicar à saúde humana. Saúde é definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente como a ausência de doenças ou enfermidades” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 1946). Envolve, portanto, três domínios: saúde física, saúde psicológica e saúde social, sendo que cada um destes será influenciado pelos demais.
Na esfera da saúde física, é inquestionável os efeitos devastadores e letais da COVID-19 como mostra os estudos de Li, Hu e Gu (2020), Roncon, Zuin, Rigatelli e Zuliani (2020), Niu et al. (2020), Liu et al. (2020), Liu, Chen, Lin e Han (2020) e Zhang et al. (2020). No entanto, ainda, há muito desconhecimento acerca da evolução do vírus após o contágio e sobre o desenvolvimento da doença, bem como medicamentos que amenizam seus efeitos, daí a alta taxa de mortalidade. Na esfera da saúde psicológica e social, a discussão científica sobre a COVID-19 tem avançado timidamente. E é no intuito de contribuir para tecer entendimentos e percepções sobre os aspectos psicossociais que envolvem a pandemia proveniente da COVID-19 que este estudo visa propor discussões e reflexões.
À vista disso, este estudo tem como objetivo compreender os mecanismos de enfrentamento do indivíduo diante da pandemia decorrente da COVID-19 a partir da teoria de coping proposto pelos autores Lazarus e Folkman (1984), a fim de oferecer subsídios à ressignificação de aspectos cognitivos e comportamentais para lidar com a ameaça iminente apresentada pela situação atual.
Para tanto, retomar-se-á o referencial teórico com uma abordagem qualitativa. Isto é, este estudo se caracteriza como bibliográfico, pois é baseado em livros e artigos acadêmicos. Marconi e Lakatos (2015) ressaltam que a pesquisa bibliográfica é baseada sobre os trabalhos já realizados, com o objetivo de trazer dados relevantes e atuais ao tema estudado. Logo, ajuda na elaboração de textos reflexivos, auxiliando como uma fonte indispensável de informação e orientando na análise proposta.
O enfoque qualitativo é indutivo, auxilia na compreensão e no aprofundamento dos fenômenos estudados, explorando as perspectivas dos autores selecionados na revisão bibliográfica, analisando seus pontos de vistas, significados, opiniões e suas experiências (SAMPIERI; COLLADO; LUCIO, 2013). Com esse enfoque, evidencia-se a singularidade do olhar do pesquisador diante da temática estudada.
Segundo a OMS (2020), a situação de pandemia define-se pela presença de uma doença inédita, infecciosa, que tenha o condão de contagiar um grande número de pessoas. A doença pandêmica é, em verdade, provocada por um agente infeccioso e caracteriza-se pela facilidade de disseminação entre os indivíduos. A COVID-19, acrônimo para corona vírus deceased 2019 (doença por coronavírus), causada pelo agente infeccioso SARS-CoV-2, adequa-se, em perfeito, às condições para a caracterização de uma doença pandêmica estipuladas pela OMS. Uma vez que os indicadores iniciais de pandemia evidenciam três condições: o aparecimento de uma nova doença na população; o agente infecta humanos, causando uma doença séria e; o agente espalha-se fácil e sustentavelmente entre humanos (WHO, 2005).
Passado a avaliação inicial, a OMS define dois períodos e seis fases como critérios para a caracterização de uma pandemia: a) Período de Interpandemia: fase um: nenhum novo subtipo de vírus de gripe foi descoberto em humanos; fase dois: nenhum novo subtipo de vírus de gripe foi descoberto em humanos, mas uma doença, variante animal ameaça; b) Período de Alerta de Pandemia: fase três: infecção humana com um subtipo novo mas nenhuma expansão de humano para humano; fase quatro: pequeno foco com transmissão de humano para humano com localização limitada; fase cinco: maior foco da expansão de humano para humano ainda localizado e fase seis: pandemia, aumenta a transmissão contínua entre a população geral (WHO, 2010). A COVID-19 atingiu o segundo período e a fase seis, pois já contabilizou mais de 3 milhões de casos confirmados em todo o mundo.
Cabe ressaltar diante disso, que, para além da enfermidade epidêmica infecciosa e contagiosa amplamente disseminada, que possui índices de letalidade altos, como a COVID-19, há, ainda, que se considerar como o ser humano processa as informações e lida com a situação autoimposta uma vez que fatores biológicos, psicológicos, sociais e culturais podem influenciar nesse processo. O que se pondera, portanto, é que as consequências advindas da pandemia, vivenciada atualmente, podem ser mais abrangentes do que se imagina.
No intermédio da situação de calamidade gerada pela pandemia, muito se fala acerca de seus sintomas físicos, estratégias de combate ao vírus e modos de profilaxia como o uso de álcool em gel, lavagem correta das mãos, etiqueta de cumprimentos, uso de máscaras, entre outros. No entanto, é importante destacar que não é somente de processos infecciosos e virais que adoecem as pessoas, ou seja, o adoecimento não se dá exclusivamente no âmbito físico, pois o ser humano se constitui por um somatório de diversas esferas, as quais podem ser congregadas no qualitativo “biopsicossociocultural”, e, o adoecimento também abarca os âmbitos psicológico e social.
O que se ressalta, é que grande parte da individualidade de uma pessoa tende a ser influenciada fortemente pelos aspectos psicológicos, os quais podem ser negativamente afetados pelas circunstâncias sociais e físicas que rondam a pandemia por COVID-19. Nesse sentido, é importante evidenciar os possíveis efeitos psicológicos sentidos pelas pessoas diante da pandemia e das medidas sanitárias adotadas como o isolamento social, por exemplo. O aumento dos níveis de ansiedade é uma das consequências possíveis para a saúde psicológica do indivíduo e pode provocar o surgimento ou agravamento de transtornos. De acordo com o DSM-V (2014, p. 189):
Os transtornos de ansiedade incluem transtornos que compartilham características de medo e ansiedade excessivos e perturbações comportamentais relacionados. Medo é a resposta emocional a ameaça iminente real ou percebida, enquanto ansiedade é a antecipação de ameaça futura.
A ansiedade pode provocar efeitos leves, moderados ou graves nos hábitos alimentares, ou seja, muitas pessoas, em meio à situação adversa que a pandemia e o isolamento social representam, se veem diante de alterações no comportamento alimentar, tanto no que diz respeito ao excesso de alimentação, quanto à rejeição ao ato de comer. Nessa toada, podem surgir ou se agravarem distúrbios como a obesidade, a anorexia, a bulimia e a dismorfia corporal. Ainda segundo o DSM-V (2014, p. 329),
Os transtornos alimentares são caracterizados por uma perturbação persistente na alimentação ou no comportamento relacionado à alimentação que resulta no consumo ou na absorção alterada de alimentos e que compromete significativamente a saúde física ou o funcionamento psicossocial.
Outro aspecto a ser observado é a possível progressão da depressão como fator extremamente preocupante na preservação da saúde mental das pessoas em quarentena. O isolamento social, medida de total importância no combate à disseminação do vírus, impede que as pessoas tenham uma proximidade física com pessoas queridas e as afastam do convívio social. Essas medidas necessárias podem, como um tipo de efeito colateral, fazer com que as pessoas se sintam mais sozinhas e, isso, para alguns, pode tornar-se um gatilho de pensamentos negativos, o que pode gerar ou agravar um quadro depressivo.
Os transtornos depressivos incluem diversos casos específicos como o transtorno disruptivo da desregulação do humor por exemplo, no entanto, o que os diversos transtornos depressivos têm em comum é “a presença de humor triste, vazio ou irritável, acompanhado de alterações somáticas e cognitivas que afetam significativamente a capacidade de funcionamento do indivíduo” (DSM-V, p. 155).
É importante estar atento para o aparecimento de transtornos tanto os de ansiedade e alimentares quanto os depressivos, visto que eles podem ensejar a idealização ou, até mesmo, concretização de suicídio. As circunstâncias que rondam a pandemia e o isolamento social pode interferir negativamente na saúde mental das pessoas a ponto de surgir a ideação suicida, como uma alternativa plausível à cessação de determinado sofrimento. Reafirma-se a importância de considerar as especificidades individuais de cada pessoa para ressignificar a situação atual e construir mecanismos de enfrentá-la.
A ideação suicida está descrita no Cadastro Internacional de Doenças (CID-11) como “pensamentos, ideias ou reflexões sobre a possibilidade de acabar com a própria vida, variando entre pensar que seria melhor estar morto até a formulação de planos elaborados” (tradução nossa) (OMS, 2019, p.1). No entanto, muitas vezes, os casos não permanecem somente na ideação. De acordo com dados da OMS, cerca de 800 mil pessoas morrem por ano em decorrência de suicídio. Ademais, o número de tentativas de suicídio é ainda maior e, se fosse possível contabilizar com segurança a taxa de ideação, esta, comporia um número alarmante.
Mas no que as circunstâncias que rondam a pandemia podem influenciar nas estatísticas de suicídio? Uma pesquisa realizada por especialistas no Chile, cujos dados oriundos foram entregues para a OMS, aponta que a taxa de suicídios no país poderá dobrar em 2020. Logo, estima-se que um milhão e meio de pessoas no país possam morrer neste ano, em meio à pandemia mundial por COVID-19. Esse cenário, de acordo com os pesquisadores, é mais acentuado entre a faixa etária que compreende os jovens de 15 a 20 anos (GJIK, 2020). Daí a importância de haver um cuidado por parte do Estado, da sociedade e da iniciativa privada, uma vez que grande parte das pessoas afetadas psicologicamente exerce atividade laboral no setor privado.
É necessário atentar-se para o fato de que as consequências psicológicas podem também ter reflexos na saúde física e, por certo, a demanda já sobrecarregada do sistema único de saúde não dará conta de emitir respostas adequadas à vazão de problemas salutares que podem surgir dessa pandemia além da própria infecção por COVID-19. Logo, destacam-se os contributos que a teoria do enfrentamento pode oferecer na compreensão de como as pessoas se articulam internamente para enfrentar o momento atual, marcado pela pandemia da COVID-19, e, a partir disso, criar estratégias sanitárias que visem o bem estar do coletivo.
Em meio à crise de disseminação da COVID-19, a saúde psicológica das pessoas tem passado por diversos abalos, os quais necessitam ser encarados para ser mais bem compreendidos e ações sanitárias serem protagonizadas de acordo com o contexto brasileiro. A teoria do enfrentamento, oriunda do termo em inglês coping, foi desenvolvida a fim de explicar a maneira pela qual os mecanismos internos dos indivíduos que enfrentam situações estressantes ou circunstâncias adversas reagem a elas. Sousa (2018) apresenta uma retrospectiva histórica no que concerne à visão dominante da teoria do enfrentamento.
Historicamente, em primeiro lugar, o coping foi assemelhado à psicologia do ego, aproximando-se, em extremo, da teoria psicanalítica. Dessa forma, o enfrentamento foi tornado quase que como sinônimo dos mecanismos de defesa internos e inconscientes, os quais se ligam à estrutura da personalidade do indivíduo. Aqui, o coping assume uma perspectiva estática (SOUSA, 2018). Essa vertente durou até os anos de 1970 quando a orientação passou a ser a separação entre o enfrentamento e os mecanismos de defesa oriundos da psicanálise. Logo, o coping passou a ser considerado um processo dinâmico, no qual as interações com variáveis biológicas, psicológicas e sociais são reconhecidas como aspectos determinantes nas estratégias de enfrentamento das situações estressantes externas (SOUSA, 2018).
À vista desse breve retrospecto histórico, pode-se afirmar, portanto, que a teoria do enfrentamento é uma perspectiva teórica que foi desenvolvida com o intuito de explicar a maneira pela qual os mecanismos internos dos indivíduos que enfrentam situações estressantes ou circunstâncias adversas reagem a elas. Lazarus e Folkman (1984, p. 141) definiram coping como “mudanças constantes de esforços cognitivos e comportamentais para gerenciar demandas externas e/ou internas específicas que são avaliadas como sobrecarregando ou excedendo os recursos pessoais do indivíduo” (tradução nossa). Caracterizando assim “um conjunto de estratégias para lidar com ameaça iminente”, conforme aponta Gimenes (1997, p. 112).
Essas estratégias de enfrentamento são distinguidas por Folkman, Lazarus, Gruen e DeLongis (1986) em dois prismas que envolvem: o enfrentamento focado no problema, o qual se refere à quando uma pessoa entra em contato com a situação causadora de estresse, tentando controlar, resolver e organizar para tentar modificar o problema estressor e; o enfrentamento focado na emoção, que concerne na pessoa procurar controlar sua resposta emocional causada pela situação estressante, podendo afastar, esquivar, negar ou procurar comportamentos paliativos. Nesse sentido, cabe acrescentar que a religiosidade, a distração e a busca de suporte psicossocial podem se estabelecer como estratégias de enfrentamento essenciais para o indivíduo.
No âmbito da espiritualidade, por exemplo, a fé das pessoas, muitas vezes, é revelada pela espera de um milagre, pela obrigação de não perder a esperança e pela perspectiva de mudanças da situação atual desfavorável. As distrações, como meio de enfrentamento, podem ser variadas. Em tempos de tecnologias digitais, muitos são os atrativos como jogos e filmes, que podem passar a mensagem de esperança e de que as situações difíceis podem ser vencidas ou superadas em etapas, dia após dia. Do mesmo modo ocorre com o suporte psicossocial, que é estendido para além do suporte de profissionais relacionados a essa área do saber, isso inclui amigos, familiares, entre outras pessoas capazes de promover acolhimento e aconchego nas situações estressantes de forma a amenizar o sofrimento. Dessa forma, é necessário atentar-se para as diferentes formas de enfrentar (n)a pandemia.
É importante destacar que as estratégias de enfrentamento são individuais e que a tendência é cada um encontrar uma forma de mitigar o sofrimento e preservar a saúde mental. No caso da pandemia por COVID-19, as pessoas têm se sentido inseguras, com dúvidas, vivenciando o medo do adoecimento e da morte, porque, ainda, há muito o que se conhecer sobre o vírus, bem como acerca da evolução da doença.
Num primeiro momento, o medo do desconhecido na fase inicial da pandemia é muito comum e as pessoas podem se desorganizar biopsicossocialmente. Desse modo, elas precisam buscar novas estratégias para se reorganizar e se equilibrar, no entanto, sentem dificuldade em se reestabelecer, pois se desestruturam emocionalmente. E, com o alongamento da pandemia, a preocupação e o sofrimento são aumentados porque acontecem, rapidamente, mudanças na dinâmica e na rotina familiar. Visto que muitas pessoas estão em home office (trabalho realizado de casa) ou perderam seus empregos e, ainda, para os que estudam, as aulas estão sendo ofertadas online ou estão suspensas.
Essas mudanças instauradas pela crise resultante da pandemia se dão de modo voluntário ou involuntariamente e aumentam as chances de sobrecarga emocional, conflitos conjugais, agressividade, dependência de drogas lícitas (a exemplo de medicamentos, bebidas alcoólicas e cigarro) e drogas ilícitas (por exemplo, cocaína e craque), entre outros. As consequências da pandemia são diversas e dependem de como as pessoas lidam com a situação.
Para uma fatia da população que desenvolve o trabalho organizacional de casa no período da pandemia, há a realização, também, de atividades do ambiente doméstico como comprar mantimentos, cozinhar, limpar e lavar, planejar, coordenar a rotina em casa, antecipar necessidades de todos da casa e o cuidado com os filhos, que estão em período integral em casa devido ao isolamento social. A grande demanda e intensidade do trabalho realizado podem gerar a percepção de não haver tempo para o autocuidado. A cobrança e metas altas postas a si próprio podem gerar a sensação de impotência quando alguma tarefa não foi de todo cumprida, seja ela autoimposta ou imposta por chefes, colegas e familiares. Diante de uma rotina intensa, muitas vezes, não é estabelecido um tempo para o descanso e o desenvolvimento de atividades de lazer e as consequências podem ser a sobrecarga e a maior vulnerabilidade psíquica, favorecendo sentimentos de ansiedade, angústia, impotência, incapacidade, inutilidade, entre outros.
Em tempos tecnológicos, nos quais parte do trabalho realizado no Brasil durante a pandemia está ocorrendo por meios virtuais, pensar maneiras de mitigar os efeitos negativos na saúde mental do trabalhador também é tarefa da empresa. Assim, a promoção de encontros virtuais semanais para a socialização com os colegas de trabalho a fim de discutir as dificuldades e possibilidades de melhorias nos sistemas de labor adotados pelas empresas é uma estratégia interessante. Outrossim, a disponibilização de sessões de terapia com profissionais da psicologia devidamente qualificados pode ser uma forma de a empresa se posicionar quanto à garantia do direito a um meio ambiente laboral saudável.
Ainda sobre o aspecto laboral, é nítido que a divisão e choque de classes presentes no capitalismo tornou-se mais evidente com a crise gerada pela pandemia. Por todo o mundo, a política sanitária adotada, embora sofrendo abalos pelas divergências entre governos e autoridades, permanece sendo o isolamento social (GJIK, 2020). No entanto, o que se percebe, em verdade, é que ficar em casa é um privilégio de classes mais abastadas. A pandemia revela as engrenagens do capitalismo à medida que os pobres se veem obrigados a movimentar essa máquina todos os dias, sem o direito de permanecer na segurança do home office.
Durante a pandemia, com o isolamento social, os serviços de delivery têm expandido significativamente. Soupin (2020) fez um levantamento no Rio de Janeiro e verificou que os restaurantes que investiram neste serviço, viram a procura de clientes aumentar em até 400% para entregas de comidas em domicílio. Em contrapartida, é importante destacar que por trás desses serviços, que parecem prosperar durante a pandemia, há o trabalho de milhares de pessoas que se arriscam, todos os dias, para que as entregas aconteçam. Utilizando, comumente, aplicativos de delivery, diversos indivíduos, compondo as camadas basilares da economia capitalista, trabalham sem nenhum tipo de garantia ou vínculo trabalhista e, muitas vezes, sem os cuidados básicos para prevenção do coronavírus.
A saúde mental das pessoas que estão trabalhando na rua, portanto, também é deveras abalada. Para além dos abalos psíquicos que as pessoas em isolamento podem sofrer, um fator adicional à ameaça que a pandemia tem sobre os indivíduos que necessitam trabalhar presencialmente é o constante medo de ser infectado, ao passo que há a consciência de que sem trabalhar, não há o que comer. Nesse sentido, é importante compreender, que tanto as pessoas com o privilégio de cumprir o isolamento social em casa, quanto as pessoas que não possuem esse privilégio podem apresentar maneiras de enfrentamento das consequências que a pandemia por COVID-19 tem o condão de propiciar. Dessa forma, é importante que a iniciativa privada assuma não só um papel de empregador, mas de garantidor do bem-estar físico e mental de seus colaboradores.
Muitas pessoas estão fadadas a passar por dificuldade financeiras e, sem ter subsídios para se alimentar e tomar cuidados com higiene e limpeza, se veem numa situação desesperadora e traumática, ocasionando, em algumas delas, medo intenso, ansiedade e desesperança no decorrer e no desfecho da pandemia e até mesmo vontade de morrer. É importante salientar que quanto menor a condição socioeconômica, maior a sobrecarga das pessoas no enfrentamento da pandemia (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2020).
Por sua vez, não são incomuns ideações suicidas, tentativas de suicídio e o ato consumado diante de situações críticas, como a vivenciada na pandemia decorrente da COVID-19. De acordo com Botega (2014), uma pessoa, ao ter distorções cognitivas, percebe qualquer obstáculo como irreversível e a consequência disso é o desejo de pôr fim ao sofrimento diante de uma situação estressante que considera ser infindável. O autor aponta que esses pensamentos suicidas variam desde a vontade de morrer até a programação de se matar.
Observa-se, portanto, que os fatores que dificultam a elaboração psíquica das formas de sair dessa situação estressante, enfrentando-a, estão relacionados com a ausência de uma rede de apoio. O acolhimento das pessoas é essencial para que se sintam confiantes diante da pandemia. A admissão social, seja por uma equipe de saúde, pelo estabelecimento de relacionamento com outras pessoas e comunidades ou por intermédio de políticas públicas que versam sobre o suporte das pessoas quanto à fome, ao desemprego, aos despejos de imóveis, às execuções hipotecárias e à falta de moradia, é primordial para o enfrentamento da pandemia.
A conscientização e o entendimento das pessoas sobre a pandemia por COVID-19 e da crise instaurada é de grande relevância para que mantenham a boa saúde mental e encontrem estratégias de enfrentamento adaptativas. Em tempos em que o isolamento social é considerado uma medida preventiva essencial para conter a propagação do vírus, tem-se observado, em veículos digitais de informação e comunicação, registros de artistas fazendo shows em suas janelas como uma forma de ser ouvido e visto, ao passo que interagem por meio da arte com outras pessoas.
Vale a pena destacar que, diante do fato de as pessoas estarem vivenciando por meses a pandemia e seus efeitos, há a possibilidade de ficarem mais acostumadas à rotina imposta, de forma a não se abalarem com tanta intensidade como no início da pandemia. Isso está relacionado com a capacidade de resiliência de cada indivíduo em desenvolver a paciência, a força interior, a coragem para lidar com a situação e o sentimento de esperança, que surgem em face dos avanços da medicina e da adoção de políticas sanitárias coerentes.
Considerações finais
Este trabalho contribuiu para compreender, à luz da teoria de coping, os mecanismos de enfrentamento psicossociais do indivíduo diante da pandemia decorrente da COVID-19 e os fatores que dificultam esse enfrentamento. Nesse sentido, o estudo proposto destacou, no contexto da pandemia e de políticas sanitárias como o isolamento social necessário, em vista da crise por COVID-19, dificultadores e facilitadores quanto ao enfrentamento da situação estressante que se forma com o afastamento do convívio social.
Assim, alguns dos dificultadores percebidos durante a pandemia foram as contradições relacionadas à adoção de políticas sanitárias que persistem na atuação de governantes locais, estaduais e da autoridade nacional; a falta de incentivo governamental ao isolamento social em termos econômicos e, por consequência, o agravamento de intempéries financeiras no cotidiano do trabalhador brasileiro; a ausência de contato físico com pessoas queridas, entre outros aspectos.
Já no que concerne aos facilitadores, pôde-se observar a presença de alguns fatores que tornam o enfrentamento da crise uma tarefa mais suportável. Nesse diapasão, podem ser citados como facilitadores o acolhimento das pessoas – mesmo que por intermédio de instrumentos virtuais –, a espiritualidade, a prática de atividade físicas e atividades de lazer como jogos, assistir filmes e séries, além de práticas de governos locais que se articularam para doar às pessoas, sem ou com poucos recursos financeiros, máscaras de proteção – para se evitar a propagação do vírus – junto a cestas de alimentos básicos.
A partir desse estudo, portanto, foi possível observar os diversos dificultadores e facilitadores no equilíbrio da saúde mental frente à situação de pandemia em que as pessoas se encontram. Avalia-se, diante disso, a necessidade de desenvolver pesquisas empíricas acerca do efeito da pandemia no psicológico dos indivíduos. Considera-se importante que sejam elaboradas análises de dados para traçar políticas públicas que contemplem a manutenção e preservação da saúde mental das pessoas, já que não é só a infecção por coronavírus o único perigo da pandemia.
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