Resumo: Os esforços empenhados na elaboração do presente trabalho possuem o escopo de abordar um importante ponto sobre um dos recursos naturais de maior importância, qual seja o recurso hídrico, em sua forma própria para o consumo humano. Há muito tempo a comunidade global discute, sob diferentes aspectos, a importância da água para o ser humano, seja na economia, no desenvolvimento urbano, na agricultura, na pecuária e, acima de tudo, no consumo humano. Valendo-se do método hipotético-dedutivo e análise qualitativa, ao final do trabalho, demonstrar-se-á a relação existente entre a dignidade da pessoa humana e o direito ao acesso à água com vistas a reconhecer a sua fundamentalidade, com enfoque na mudança de paradigma, principalmente quanto à nova concepção de direito difuso e sob a abrangência do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. [1]
Palavras-chave: água; dignidade da pessoa humana; direito difuso; meio ambiente.
Sumário: Considerações iniciais. 1. Limitação conceitual do vocábulo meio ambiente; 2. Solidariedade: o aspecto caracterizador dos direitos fundamentais ambientais; 3. Solidariedade intergeracional: presentes e futuras gerações como titulares do direito difuso; 4. Acesso à água potável como direito vinculado ao ideário de meio ambiente ecologicamente equilibrado. Considerações finais
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os recursos naturais têm sido objeto de exploração desenfreada em medida proporcional ao emprego de técnicas humanas atreladas ao objetivo de desenvolvimento, principalmente no plano industrial e econômico. O uso desses recursos naturais não é tido como dispensável, em verdade, perceber-se-á, se colocada sob uma sumária cognição, a história humana, naquilo concernente à evolução industrial e tecnológica, um vínculo entre o uso dos recursos advindos da natureza e o aprimoramento das técnicas empregadas pelo ser humano com o escopo de proporcionar o desenvolvimento, principalmente do ponto de vista econômico com o advento da Revolução Industrial.
Apenas recentemente as questões concernentes ao meio ambiente começaram a ganhar destaque, ocupando locais de debate que transcendem os limites territoriais nacionais, ascendendo ao plano internacional, muito por conta da tardia percepção do inadequado uso dos recursos naturais, fato responsável por acarretar danos ambientais de diferentes escalas, incluindo, em muitas situações, a impossibilidade de recuperação da natureza. Além dos danos irreparáveis, há também os efeitos conexos, resultantes da degradação ambiental, tais como a poluição, aumento da temperatura média global, intensificação dos episódios de calamidade provocados pelo desequilíbrio ambiental e surgimento e agravamento de quadros patológicos.
Nessa esteira, um dos recursos naturais que vem ocupando importante ponto de destaque em nível mundial é a água, principalmente na matéria concernente ao seu uso indevido, sua distribuição desigual, ou, até mesmo, a sua falta de acesso por populações, seja pela sua localização geográfica, pela ineficiência dos responsáveis por sua disponibilização e acesso ou a escassez, outro problema enfrentado. Diante dessa síntese, o quadro se revela delicado, pois se trata de um dos elementos essenciais da vida humana e não humana no planeta, sendo, inclusive, reconhecido como direito humano e fundamental. Nesse diapasão, buscar-se-á, dentro de uma noção do que consistiria a alcunha meio ambiente, apresentar sua estreita ligação com os conceitos de direito difuso e das características dos direitos ambientais que transpassam os limites territoriais e geracionais, sendo abrigado sob a égide conceitual do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
1 LIMITAÇÃO CONCEITUAL DO VOCÁBULO “MEIO AMBIENTE”
A preocupação com a tomada de ações com o fito de proteção ao meio ambiente começa a surgir no contexto histórico pós Segunda Guerra Mundial, com destaque para diversos mecanismos ratificados de preservação do mar e das águas doces (SCHWENCK, 2013, p. 6). Mais especificamente, foi entre 1945 e 1950 que os direitos ligados à proteção do meio ambiente começaram a ganhar força, tendo em vista as consequências e efeitos trazidos na esteira do conflito, dentre as quais, podemos destacar as armas atômicas empregadas e os danos sofridos pela natureza, resultado da destruição ambiental e do desenvolvimento tecnológico (WOLKMER, 2013, p. 130).
O vocábulo meio ambiente, em semelhança a tantos outros, possui dimensão diferenciada no contexto jurídico, de forma a merecer especial atenção a tentativa de sua conceituação. Quatro aspectos comumente são retirados do meio ambiente pela doutrina, tendo, dessa maneira, quatro outros conceitos, o de meio ambiente natural, artificial, cultural e do trabalho (FARIAS, 2007, p. 444).
A primeira distinção feita é para o meio ambiente natural, também conhecido pela nomenclatura de meio ambiente físico, por estar compreendido em sua noção os recursos naturais, bem como das relações advindas da interação entre esses recursos; a segunda trata do meio ambiente artificial, constituído pela ação do homem, seja pela construção ou alteração de espaços públicos abertos (equipamentos comunitários), fechados (edifícios urbanos), não se restringindo apenas à área urbana, mas também à zona rural; o meio ambiente cultural, por sua vez, abarca bens de natureza material e imaterial, compreendendo-se, aqui, ao patrimônio caracterizado como histórico, científico, artístico, bem como os relacionados ao idioma danças e tantos outros, assim é entendido pela sua especialidade adquirida; e, por fim, o meio ambiente do trabalho, compreendido pelas relações entre as condições e características do ambiente de trabalho, concentrando-se no que tange à saúde do trabalhador (FARIAS, 2006b, s.p.).
A Carta da República traz em seu conteúdo disposições referentes ao meio ambiente (art. 225 da Constituição Federal Brasileira de 1988), sob a alcunha de “meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Quando a Constituição se refere ao equilíbrio ecológico, está atribuindo um sentido dinâmico ao sistema, não servindo assim, o Direito Ambiental como entrave para as evoluções e transformações ambientais, respeitando os fenômenos naturais (BENJAMIN, 2007, p. 61-62).
No tratamento dado ao meio ambiente pela Constituição Federal, não repetiu-se a visão do uso indiscriminado dos recursos naturais, existia antes uma concepção de que o meio ambiente, de maneira contínua e própria, seria de capaz de se recuperar dos danos sofridos, colocando um contraponto entre a realidade passada, na qual o meio ambiente era visto como invencível, para uma nova abordagem constitucional, evidenciando sua fragilidade e a ameaça por parte do Estado e dos próprios seres humanos (BENJAMIN, 2007, p. 63).
A situação quando encarada pelo prisma ético demonstra que os recursos naturais são geridos por seus proprietários, em contraponto com a ideia de ser o meio ambiente fonte para o desenvolvimento humano e patrimônio pertencente à coletividade, na verdade, faltaria ao ser humano a ética atrelada ao bem comum e ao meio ambiente, de forma a possuir cunho social (MILARÉ, 1996, p. 111). Ainda em relação ao tratamento ético, vale ressaltar as lições de Antonio Herman de Vasconcellos Benjamin:
“Na perspectiva ética, a norma constitucional, por refletir a marca da transição e do compromisso, incorporou aspectos estritamente antropocêntricos (proteção em favor das "presentes e futuras gerações", p. ex., mencionada no art. 225, caput) e outros com clara filiação biocêntrica (p. ex., a noção de "preservação", no caput do art. 225) […]” (BENJAMIN, 2007, p. 64).
Por oportuno, cabe ressaltar que “[…] o meio ambiente é necessariamente algo que faz parte de nossas vidas e de que também fazemos parte […]” (FARIAS, 2006b, s.p.), se desdobrando em diferentes espectros da vida cotidiana (FARIAS, 2006b, s.p.). Apesar de o constituinte não ter se preocupado em procurar estabelecer conceitos para o meio ambiente, é de grande valia reportar-se à Lei N. 6.938 de 1981, conhecida como Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, pois, em seu texto houve o cuidado de constar a definição de meio ambiente, conforme o art. 3º, inciso I, seria “o conjunto de condições, leis, influências, e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (BRASIL, 1981). Somando o conceito legal com os comentários anteriormente apresentados, tem-se que o meio ambiente consiste em conceito de grande mutabilidade, a depender de sob qual enfoque será tratado, por essa razão, o sentido do presente, ao tratar especificamente de um recurso natural, tende a se correlacionar mais diretamente com a noção de meio ambiente natural.
2 SOLIDARIEDADE: O ASPECTO CARACTERIZADOR DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS AMBIENTAIS
A constitucionalização da proteção ao meio ambiente proporcionou a elevação do interesse no ordenamento, sendo agora o meio ambiente ponto de grande relevância (BENJAMIN, 2007, p. 20). A ótica civilista tradicional delimitada pela oposição entre público e privado acaba por ver-se desfeita, considerando o advento da terceira geração de direitos, tendo em vista a sociedade em sua evolução e complexidade (SAMPAIO, 2014, p. 23). O direito à vida das presentes e futuras gerações passam, necessariamente, pela proteção ambiental, de forma a perfazer o cumprimento dos direitos fundamentais, cria-se uma espécie de relação de dependência entre o exercício dos direitos fundamentais e a eficácia dos direitos ambientais (GOMES, 2006, p. 206).
Esculpido em sede constitucional, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é atribuído de forma indefinida quanto ao seu sujeito, ou seja, a todos, consistindo assim, em direito de objeto indivisível pertencente a um indivíduo, logo, as implicações dele para com um indivíduo afetam a coletividade, seja em benefício ou em prejuízo dessa (SAMPAIO, 2014, p. 39). A solidariedade, num panorama ecológico, traz consigo uma série de deveres, importando em projeção para a natureza como um todo, compreendida pelos habitantes de outros países, às gerações que ainda estão por vir, seja de humanos ou dos demais animais (SARLET; FENSTERSEIFER, 2014, p. 58).
A solidariedade passa a ser encarada, entre os povos, como via inescusável, discute-se um tema de interesse global, desconhecedor de limites físicos e fronteiras, pois a indiferença para com os problemas manifestados em outros países deve ser deixada de lado, abandonando-se a visão antropocêntrica (GOMES, 2006, p. 209). Até mesmo porque, pela moral tida como tradicional, falta o desenvolvimento da “[…] necessária solidariedade com o planeta vivo nem com os nossos semelhantes” (MILARÉ, 1996, p. 111).
A natureza deve ser encarada como um todo, de forma integrada e interdependente, abandonando, assim, a ótica econômica estabelecida, bem como a sua colocação como objeto de uso do ser humano, uma vez que a natureza é indispensável à vida na Terra e sua continuidade, prezando pelo interesse comum, é preciso reconhecer a natureza como vulnerável, a fim de deixar cair por terra o egocentrismo, adotando uma perspectiva biocêntrica, que passa pela preocupação com as gerações vindouras (GOMES, 2006, p. 210). Sendo direito de terceira dimensão, o direito ao meio ambiente se encontra consubstanciado em relação vinculada entre interesses de cunho público e privado que, circundando o aspecto de bem comum, se perfaz a noção de solidariedade (NUNES JUNIOR, 2004, p. 298). Os direitos de terceira dimensão apresentam como característica marcante a solidariedade, pois são direitos titularizados por um grupo de pessoas, não mais um indivíduo sozinho, consistindo em direitos difusos e coletivos (WOLKMER, 2013, p. 129). A sintonia entre a natureza e o ser humano, configurando uma relação alicerçada na harmonia e equilíbrio torna-se fundamental para a garantia de uma vida sadia à geração presente e existência daquelas ainda por vir (GOMES, 2006, p. 210).
Tecendo comentários à presença do princípio da solidariedade na Constituição Portuguesa, J. J. Gomes Canotilho (2015, p. 30), anota que o texto constitucional expressamente traz o “princípio da solidariedade entre gerações”, consistindo, basicamente, em obrigação pertinente às presentes gerações, em relação às suas ações e ponderações, considerarem os interesses das futuras gerações. A Constituição Federal de 1988 traz, logo no início da redação do art. 225 a palavra todos, ao tratar do meio ambiente ecologicamente equilibrado, demonstrando a extensão de pertencimento do referido direito, gerando a discussão em torno da abrangência tanto dos seres humanos quanto os demais seres vivos nessa compreensão, sendo que, encarada pela literalidade, se chega ao entendimento de não abrangência dos demais seres vivos, apenas, pelos menos nesse momento, os seres humanos (BENJAMIN, 2015, p. 132). Sob certo enfoque, o dever de respeito às outras espécies de seres vivos por parte do ser humano consiste em “desdobramento axiológico do dever fundamental de proteção ambiental, vinculado a um critério de justiça interespécies” (SGARIONI; RAMMÊ, 2011, p. 40). Não obstante a inclusão ou não dos seres vivos não humanos, ainda sim é possível destacar, de acordo com Benjamin (2015, passim) e Sgarioni e Rammê (2015, passim), um elemento de importância quando se trata da solidariedade, principalmente enquanto princípio, pela forma expressa que a Constituição Federal coloca todos com um objetivo comum, na defesa de um bem igualmente comum.
Devido ao compartilhamento cada vez mais evidenciado da responsabilidade de proteção ambiental entre o Poder Público e a coletividade, implica, dessa forma, no surgimento de uma nova forma, tanto de Estado quanto da cidadania, com vistas a novos valores, relacionados à vida e ao uso dos recursos naturais (NUNES JUNIOR, 2004, p. 297). Apesar de não estar diretamente ligado à solidariedade, um princípio pode ser aqui aventado com a finalidade de corroborar com a ideia de participação da população como parte da elementar da solidariedade, compondo, assim, uma de suas facetas, sendo, referido princípio chamado de participação comunitária por Edis Milaré, no qual
“[…] expressa a idéia de que para a resolução dos problemas do ambiente deve ser dada especial ênfase à cooperação entre o Estado e a sociedade, através da participação dos diferentes grupos sociais na formulação e na execução da política ambiental. De fato, é fundamental o envolvimento do cidadão no equacionamento e implementação da política ambiental, dado que o sucesso desta supõe que todas as categorias da população e todas as forças sociais, conscientes de suas responsabilidades, contribuam à proteção e melhoria do ambiente, que, afinal, é bem e direito de todos […]” (MILARÉ, 1998, p. 139).
A solidariedade, como é possível observar, desponta como um aspecto muito presente no debate ambiental, principalmente quando chama à participação da sociedade e do Poder Público, ainda considerando a preocupação não somente da presente geração, mas elevando o nível de preocupação para atender também os interesses e necessidades das gerações vindouras.
3 SOLIDARIEDADE INTERGERACIONA[2]: PRESENTES E FUTURAS GERAÇÕES COMO TITULARES DO DIREITO DIFUSO
A Carta Magna, ao dispor na redação do caput de seu art. 225 que o meio ambiente é bem de uso comum da população e determinar sua essencialidade quanto à vida sadia, acabou por classificá-lo fora dos limites dos bens públicos e privados (FARIAS, 2006a, p. 538). A extensão dos direitos ambientais, uma vez que se caracterizam como difusos, não são passíveis de exata delimitação em razão da extensão de seus efeitos, pois se referem a todos os indivíduos, colocando-se as questões de cunho ambiental em uma esfera transindividual (CAMOZZATO, 2013, p. 65). Ainda com o fito de estabelecer características para distinguir esse aspecto, “[…] o direito ao meio ambiente diferencia-se de um direito individual ou de um direito social na medida em que a obrigação a que ele corresponde não é apenas dever jurídico do Estado, mas também do próprio particular, que é seu titular” (NUNES JUNIOR, 2004, p. 298).
Os interesses difusos possuem o caráter transindividual, todavia não é possível, de maneira exata, determinar os indivíduos que partilham esse mesmo interesse (MAZZILLI, 1992, p. 42). O interesse difuso, justamente pela relação existente entre os indivíduos comuns, está imbricado na discussão ambiental, como pode extrair das palavras de Hugo Nigro Mazzilli:
“Por difuso se quer, portanto, entender o interesse de um grupo, ou de grupo de pessoas, entre as quais não há um vínculo jurídico ou fático muito preciso: trata-se de um grupo menos determinado de pessoas. Aliás, os mais autênticos interesses difusos – o exemplo, por excelência, é do meio ambiente – não podem deixar de ser incluídos, lato sensu, na categoria de interesse público” (MAZZILLI, 1992, p. 42) (negrito no original).
A não degradação da biodiversidade do planeta Terra é vista pela ótica da garantia de sobrevivência das gerações futuras, tanto no que diz respeito a suas espécies quanto ao seu habitat, aumentando e melhorando as condições de vida, consistindo em compromisso ético de preservação (BENJAMIN, 2007, p. 12). A linha de proteção ambiental escolhida pelo constituinte e gravada na redação da Constituição aponta para uma perspectiva ética desse dever de caráter fundamental, imbricado ao ideário de justiça intergeracional, de maneira que é possível constatar, pela observação da imposição dada ao Poder Público e à sociedade de defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado por uma ótica que contempla a geração presente e as futuras. (SGARIONI; RAMMÊ, 2011, p. 39). Ao abarcar o interesse das futuras gerações, fica evidenciada a localização do direito ao meio ambiente como direito de terceira dimensão, conforme as lições de Talden Queiroz Farias:
“Os direitos humanos fundamentais de terceira dimensão são os transindividuais, que são aqueles cuja titularidade não pertence a um indivíduo ou a um grupo determinado, e sim a toda coletividade, indistintivamente. Dentre eles, destacam-se os direitos do consumo, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à autodeterminação dos povos, à paz e o desenvolvimento. Também são chamados de direitos transgeracionais, por envolverem os indivíduos ainda não nascidos, atuando na perspectiva temporal da humanidade […]” (FARIAS, 2006a, p. 551).
Não obstante ao já apresentado, cabe uma última consideração, em relação aos danos resultantes das agressões ao meio ambiente que, por diversas vezes, não fica limitado a uma determinada circunscrição territorial, podendo afetar mais de um país ou ainda, o planeta como um todo, de forma que a proteção ambiental gera interesses dos países em plano internacional, podendo-se extrair daí, o princípio da cooperação entre os povos (MILARÉ, 1998, p. 148), o que, em última análise, também fornece subsídios aptos a corroborar com a caracterização de direito difuso atribuída ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
4 ACESSO À ÁGUA POTÁVEL COMO DIREITO VINCULADO AO IDEÁRIO DE MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO
O fato do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não se encontrar topograficamente localizado no rol do art. 5º da Constituição Federal de 1988, onde estão localizados os direitos fundamentais, não gera qualquer óbice quanto à caracterização de sua fundamentalidade à pessoa humana (MILARÉ, 1998, p. 135). Dentro do conceito de meio ambiente ecologicamente equilibrado, se fosse possível o mesmo comportar uma graduação das diferentes facetas nele compreendidos, a água, certamente, tenderia a compor um dos principais conteúdos dessa tutela, pois inegável é que a água compõe o leque de abrangência de proteção da tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Ao tratar do princípio fundamental do ambiente ecologicamente equilibrado, leciona Édis Milaré (1998, p. 135), tal princípio toma o sentido de proporcionar condições de vida adequadas no contexto de um ambiente sadio. Por essa análise, uma escala pode ser imaginada, a título de estabelecer uma relação de fácil visualização, tendo como ponto principal o bem maior, a vida, e, de maneira sequencial, outros dois pontos, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a preservação e uso racional da água. Considerar-se-á sadia a vida de determinada sociedade quando o sistema ambiental, compreendido pelos diversos elementos suscetíveis à variação e responsáveis pela saúde, se encontram em equilíbrio (SANTOS, 2011, p. 117).
Não obstante a consideração da água como direito fundamental compreendido no meio ambiente ecologicamente equilibrado, a água segura e limpa é também um direito humano, reconhecido pelas Nações Unidas, conforme Resolução adotada pela Assembleia Geral de vinte e oito (28) de julho (07) de dois mil e dez (2010), a Resolution A-RES-64-292, sobre o direito humano à água e saneamento (the human right to water and sanitation). Supracitada Resolução reconhece o direito à água potável, sadia e limpa, como direito humano essencial para o aproveitamento completo da vida e dos demais direitos humanos. O elemento natural em comento, a água, é, nitidamente, essencial para a sobrevivência dos seres vivos, sendo, nesse diapasão, direito fundamental e universal (FLORES, 2011, s.p.).
A poluição das águas doces é problema que afeta a diversos países, tendo, entre algumas razões, o despejamento de esgoto em grande quantidade, a presença de detergentes, até de elementos como o mercúrio, e resíduos eliminados pelas indústrias decorrentes de suas atividades, o que acarreta prejuízos aos seres vivos e a vegetação, sem contar o nível de complexidade dos métodos a serem utilizados para a purificação da água (PIERANGELLI, 1988, p. 12). O desenvolvimento sustentável passa pelo uso dos recursos naturais de forma equilibrada, com o escopo de satisfazer as necessidades da presente geração e das futuras no que tange ao seu bem-estar, resultando em abordagem do meio ambiente sadio paralelamente ao desenvolvimento (SCHWENCK, 2013, p. 15). Numa abordagem histórica do tratamento dado a esse recurso natural, Rômulo Sampaio faz os seguintes apontamentos:
“Historicamente, a água foi considerada um recurso natural renovável e ilimitado. Contudo, com o crescimento demográfico acelerado, o surgimento de novas fontes de poluição e políticas públicas insustentáveis, as pressões sobre este recurso natural, vital à própria vida no planeta, tornaram-se fonte de extrema preocupação. O tratamento da água como um recurso ilimitado e passível de ser apropriado gratuitamente, acabou por influenciar inúmeros sistemas legais ao redor do mundo, contribuindo para políticas públicas desastrosas na gestão deste recurso natural tão precioso, quanto vital.
A partir do momento em que a água passa a ser encarada como um recurso renovável, porém limitado, houve a necessidade de reconstrução dos ordenamentos jurídicos para adequarem e harmonizarem noções econômicas e preservacionistas […]” (SAMPAIO, 2014, p. 159).
Nesse ínterim, a administração do recurso hídrico, em momento anterior à sua distribuição, ocupa posição fundamental para o estabelecimento de uma justiça ambiental, lançada sobre três importantes pilares, a equidade, justiça e acesso entre as gerações, e, em relação à sua distribuição propriamente dita, as questões devem ser consideradas sob uma abordagem macroeconômica, tanto em termos regionais quanto nacionais (SELBORNE, 2001, p. 57). Diante de uma situação na qual as pessoas mais atingidas pelos efeitos prejudiciais da degradação do meio ambiente, principalmente por afetar os mais pobres, com condições de vida precárias, pode-se dizer, acompanhando o aventado por Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer (2014, p. 64), a configuração de uma situação de “necessitados ambientais” ou ainda, “refugiados ambientais”. Um interesse vem despertando no contexto relacionado à questão da água, promovendo um debate com efeitos em relação à redução das desigualdades, passando pela participação dos cidadãos e a melhoria na qualidade de vida (RUSCHEINSKY, 2004, p. 12).
Dentre alguns dos pormenores que circundam a questão da distribuição da água, há a problemática envolvendo o Poder Público e sua atuação, bem como a iniciativa privada, face à possibilidade de privatização na prestação de tal serviço, em razão da transparência empregada e as vias de obtenção de informação, além dos “aspectos comercializáveis da água”, diante do quadro de privatização, possa contrariar o gerenciamento dos recursos hídricos de forma integrada e com vistas à sua ética (SELBORNE, 2001, p. 57-58). Cumpre salientar o papel do Estado responsável pela “saúde pública, no que se refere à água potável, devem ser aquelas que proporcionem a todo cidadão dispor de água em quantidade suficiente e qualidade adequada para atender as suas necessidades básicas” (PONTES; SCHRAMM, 2004, p. 1323).
Muitos outros aspectos podem ser ventilados à guisa de robustecer o diálogo em torno do acesso à água potável, seja destacando a relação vital do recurso hídrico para com a humanidade, passando pelo seu emprego em diversos campos do desenvolvimento. Há ainda um sem número de problemas relacionados à maneira que precioso recurso é empregado, seja pelo uso doméstico, industrial ou comercial, sem perder de vista os diversos óbices ao seu acesso por parte de um grande número de pessoas, ou ainda de seu correto tratamento, seja na fase antes do consumo, ou após seu uso, acarretando outro problema: a poluição. De toda forma, justamente por ser fundamental esse recurso para a sociedade, o seu uso racional se torna imprescindível, com foco não apenas no agora, mas de maneira a incluir também os interesses das gerações futuras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O recurso hídrico, pela sua própria natureza e vinculação à essencialidade para a vida humana, já é carregado de especificidades suficientes e merecedoras de cuidado especial. Ocorre que, em razão de um sem número de fatores, não foi esse o caminho escolhido pela humanidade, culminando, assim, numa realidade na qual se discute um leque de efeitos negativos para o ser humano em razão do uso inadequado, desregulado e não permeado pela solidariedade entre pessoas. Apesar de tal característica ser inerente ao recurso hídrico, chegou-se ao atual quadro, no qual a discussão em prol de uma distribuição adequada de tal recurso essencial à vida humana, possibilitando o seu acesso e uso para todos, em observância ao princípio da solidariedade e, justamente, por respeito ao mesmo princípio, o uso dentro dos limites ambientalmente aceitáveis, a fim de possibilitar o desenvolvimento da vida humana digna.
No plano internacional, o movimento de reconhecimento da água como direito humano sinaliza a guinada tomada pelos diversos atores envolvidos na busca pela apresentação de soluções para os problemas da água. Mas o trabalho desempenhado não pode ficar restrito apenas aos representantes das nações nos diversos encontros promovidos nessa temática. Por isso, importante salientar o papel da Constituição Federal de 1988, que, no contexto social brasileiro, cumpriu importante missão de lançar o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Portanto, apresenta-se, a título de consideração, a clara identificação do acesso à água potável como direito humano e fundamental, pois, diante do quadro nacional e internacional, conforme evoluem os estudos dos contornos existentes pelas diversas desigualdades e, também, suas consequências, compõe importante aspecto a dialogar para a concretização da dignidade da pessoa humana, a fim de estabelecer uma relação entre o acesso à água potável como etapa para perfazimento de certo espectro do princípio da dignidade humana, sem deixar de lado a importância da preservação e garantia de que as futuras gerações também poderão se valer do uso de recurso tão imprescindível para a vida humana.
Acadêmico do Curso de Direito pela Faculdade Metropolitana São Carlos FAMESC. Técnico em Informática pelo Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia Fluminense
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES
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