O regime jurídico dos servidores do Tribunal de Contas junto à OAB

A Lei n.º 8.906/94, que Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Brasil – OAB descreve no artigo 28 as denominadas atividades incompatíveis com o exercício concomitante da advocacia:


Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as seguintes atividades:


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I – chefe do Poder Executivo e membros da Mesa do Poder Legislativo e seus substitutos legais;


II – membros de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos tribunais e conselhos de contas, dos juizados especiais, da justiça de paz, juízes classistas, bem como de todos os que exerçam função de julgamento em órgãos de deliberação coletiva da administração pública direta e indireta; (Vide ADIN 1127-8)


III – ocupantes de cargos ou funções de direção em Órgãos da Administração Pública direta ou indireta, em suas fundações e em suas empresas controladas ou concessionárias de serviço público;


IV – ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a qualquer órgão do Poder Judiciário e os que exercem serviços notariais e de registro;


V – ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial de qualquer natureza;


VI – militares de qualquer natureza, na ativa;


VII – ocupantes de cargos ou funções que tenham competência de lançamento, arrecadação ou fiscalização de tributos e contribuições parafiscais;” (Grifos nossos).


Estas incompatibilidades, conforme ensina Ruy de Azevedo Sodré, são a demonstração inequívoca que o sistema adotado no Brasil, diferentemente de outros, como o Francês, é de em regra permitir a acumulação das funções. Tão somente naquelas atividades descritas no artigo 28 do nosso Estatuto que existiria a impossibilidade do exercício da advocacia com outra função. É bom ressaltar desta historicidade nasce a obrigação de interpretar as incompatibilidades de forma restritiva, e não expansiva como fez entender o Requerido. Vejamos o ensinamento do mestre causídico:


“Embora a nossa organização profissional tenha se inspirado no exemplo francês, nesse passo das incompatibilidades e impedimentos fomos muito mais liberais, permitindo o ingresso na advocacia daqueles que já exerciam outras atividades públicas ou privadas. No sistema francês, o advogado é só advogado. No nosso, pode ser advogado e funcionário, de advogado e comerciante ou industrial, de advogado e professor etc.[1]


Em relação propriamente as incompatibilidades, o professor Bacchelli é claro em afirmar que o termo membros do inciso II do artigo do Estatuto não abrange todos os servidores do Tribunal de Contas, mas tão somente os Ministros e Conselheiros:


“Por sua vez, o termo “membros” utilizado pelo inciso II do art. 28 do Estatuto, ao se referir a Tribunais e Conselhos de Contas, abrange os Ministros e Conselheiros, respectivamente, mas também os auditores, até porque estes podem eventualmente vir a substituir aqueles em sessões de julgamento. Todavia, não se considera incompatível com a advocacia o servidor dos Tribunais e Conselhos de Contas, sendo caso de mero impedimento de advogar contra a Fazenda Pública que lhe remunere[2]”.


Tal interpretação já foi ratificada pelo próprio Conselho Federal, conforme bem historiciza o ilustre advogado Gladston Mamede, ao afirmar categoricamente, citando nada menos do que Aristóteles Atheniense e Paulo Luiz Netto Lobo, que a incompatibilidade descrito no inciso III do artigo 28 não alcança os servidores do Tribunal de Contas:


“É necessário examinar a extensão da disposição aos servidores dos tribunais e conselhos de contas, o que já foi objeto de aceso debate na jurisprudência do Conselho Federal. Servidores, contudo, não podem ser definidos como membros de tribunal ou conselho de contas, razão pela qual não lhes alcança a previsão de incompatibilidade, desde que não exerçam cargo ou função de direção (artigo 28, III, do Estatuto). Nesse sentido, pronunciou-se, aliás, o Cons. Aristóteles Atheniense, relator do processo 4.871/96/PC, sendo perfeito ao destacar que “os casos de incompatibilidade por serem numerus clausus não admitem interpretação extensiva, ainda mais quando excepcionam o acesso ao trabalho”, razão pela qual “o servidor do Tribunal de Contas não exerce atividade incompatível com a advocacia, pois não tem competência para lançamento, arrecadação ou fiscalização de tributos.” Em outra oportunidade, buscando uniformizar a jurisprudência no julgamento do Processo 4.992/96/PC, relatado pelo Cons. Paulo Luiz Netto Lobo, decidiu-se que “incompatíveis com o exercício da advocacia são os Conselheiros e auditores que possam substituí-los (artigo 28, ii, da Lei n. 8.906/94). Todos os demais servidores dos Tribunais e Conselhos de Contas estão sujeitos aos impedimentos previstos no artigo 30, I, da Lei n. 8.906/94. A fiscalização da aplicação da receita tributária não se inclui no tipo de incompatibilidade do artigo 28, VII, do Estatuto.[3]


Já em relação ao inciso VII do artigo 28 temos que uma simples leitura do artigo 71 da Constituição Federal já é capaz de esclarecer que o Tribunal de Contas da União não lança, arrecada ou muito menos fiscaliza se o contribuinte pagou ou não pagou os impostos. O Tribunal de Contas da União efetua uma fiscalização não da tributação, mas sim da aplicação da receita pública, etapas estas diferentes do processo. A pergunta a se fazer é a seguinte: teria o servidor do Tribunal de Contas a competência para lançar, arrecadar, isentar, prorrogar, cobrar, ou qualquer outro ato relacionado aos tributos que inferem na vida do contribuinte? A resposta é obviamente que não, pois dentro das competências, a seguir descritas, não se poderia interpretar aquela incompatibilidade de forma tal expansiva:


Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:


I – apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;


II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;


III – apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;


IV – realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II;


V – fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo;


VI – fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município;


VII – prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;


VIII – aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;


IX – assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;


X – sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;


XI – representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.”


O servidor do Tribunal de Contas está inserido no impedimento descrito no inciso I do artigo 30 do Estatuto da OAB. Este impedimento, pelo artigo 27, não seria capaz de obstar a prática da advocacia, e sim a impetração de ações contra a Fazenda Pública que a remunere:


Art. 27. A incompatibilidade determina a proibição total, e o impedimento, a proibição parcial do exercício da advocacia.”


Art. 30. São impedidos de exercer a advocacia:


I – os servidores da administração direta, indireta e fundacional, contra a Fazenda Pública que os remunere ou à qual seja vinculada a entidade empregadora;”


Este tão bem é o pensado de Marcus Cláudio Acquaviva, que bem leciona que os servidores podem exercer a advocacia, pois não se enquadram no princípio da incompatibilidade e tão somente no do impedimento, senão vejamos:


“Já os servidores da administração direta, indireta e fundacional estão meramente impedidos de advogar, podendo exercer a advocacia desde que não atuem contra a Fazenda Pública que os remunere ou à qual esteja vinculada a entidade empregadora (art. 30, I, da Lei n. 8.906/94).[4]


No Processo de Uniformização de Jurisprudência nº 4.992/96/PCA decidiu o Conselho Federal da OAB, tendo como Relator o Conselheiro Paulo Luiz Netto Lobo que:


“Incompatíveis com o exercício da advocacia são os Conselheiros e Auditores que possam substituí-los (art. 28, II, da Lei 8.906/94). Todos os demais servidores dos Tribunais e Conselhos de Contas estão dispensados sujeitos aos impedimentos previstos no art. 30, I, da Lei 8.906/94. Precedente de uniformização de jurisprudência.” (Proc. 005.139/97/PCA-MS, Rel. Paulo Luiz Netto Lôbo, j. 20.10.97, DJ 05.11.98, p. 56922).”


Após tal decisão, o Conselho Federal em outras ocasiões tem afirmado que o servidor do Tribunal de Contas não está inserido nas incompatibilidades descritas no artigo 28 do Estatuto da OAB:


Oficial de controle externo de Tribunal de Contas. Compatibilidade.


A incompatibilidade para o exercício da advocacia não alcança aquele que exerce cargo de oficial de controle externo do Tribunal de Contas, uma vez que suas atribuições não incidem nas proibições do art. 28 da Lei nº 8.906/94. Recurso provido por unanimidade, para deferir a inscrição do recorrente no quadro de advogados da OAB, com impedimentos do art. 30, I, do Estatuto da OAB.” (Proc. nº 4.560/94/PC, Rel. Maria Helena Veronese Rodrigues, j. 17.10.94, v.u., D.J. de 25.10.94, p. 29.044).


Técnico de controle externo de tribunal de contas. Impedimento.


Inscrição de bacharel servidor do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, que ocupa o cargo de Técnico de Controle Externo. O bacharel tem direito à inscrição na OAB, com anotação dos impedimentos previstos no art. 30, I, da Lei 8.906/94, porque não exerce cargo de função de direção e não detém poder de decisão relevante sobre interesse de terceiros. A inscrição dever ser mantida nos termos de sua concessão pelo egrégio Conselho Seccional”. (Proc. 005.015/97/PC – RJ, Rel. Sady Antonio Boéssio Pigatto, j. 24.02.97, DJ 30.6.97, p. 31287) Similar: – Proc. 005.108/97/PCA – MS, Rel. Arx da Costa Tourinho, j. 15.9.97, DJ 18.11.97, p. 60086


Técnico de Controle Externo de Tribunal de Contas. Exercício de atividade-meio. Impedimento.


Técnico de Controle Externo do Tribunal de Contas. Exercente de atividade meio, e sem atribuição de substituir Conselheiro, não está incompatibilizado para o exercício da advocacia. Inexistência de relevante poder de decisão em suas atribuições. Inscrição com os impedimentos do art. 30, I, do EOAB. Provimento do recurso.” (Proc. 005.108/97/PCA-MS, Rel. Arx da Costa Tourinho, j. 15.9.97, DJ 18.11.97, p. 60086)”


O próprio Tribunal Regional Federal da 1ª Região já decidiu que o servidor do Tribunal de Contas não é alcançado por nenhuma das incompatibilidades, mas na verdade trata-se de caso de impedimento:


“MANDADO DE SEGURANÇA. NOMEAÇÃO PARA O CARGO DE ANALISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. INSCRIÇÃO NA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – OAB. COMPATIBILIDADE. LEI 8.906/94. UNIFORMIZAÇÃO DO ENTENDIMENTO PELO CONSELHO FEDERAL. 1. O Conselho Federal da OAB uniformizou a matéria no diz respeito à incompatibilidade dos cargos de servidores dos Tribunais ou Conselhos de Contas, e entendeu que “a fiscalização da aplicação da receita tributária não se inclui no tipo de incompatibilidade do art. 28, VII, do Estatuto” (Lei 8.906/94). 2. Em virtude da uniformização desse entendimento, a ação perdeu seu objeto, pois o impetrante pode realizar sua inscrição na Ordem. 3. Remessa não provida. A Turma, por unanimidade, negou provimento à remessa.” (REO 1997.01.00.055206-7/DF; REMESSA EX OFFICIO)


“CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. ANALISTA DE FINANÇAS E CONTROLE DA UNIÃO. INSCRIÇÃO COMO ESTAGIÁRIO NA OAB. POSSIBILIDADE. ATIVIDADE EXERCIDA QUE NÃO SE ENQUADRA ENTRE AS INCOMPATIBILIDADES ELENCADAS NO ARTIGO 28 DA LEI Nº 8.906/94. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. COMPROVAÇÃO. CONCESSÃO DA SEGURANÇA. 1- A inscrição como estagiário nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil deve observar as regras de impedimento e incompatibilidade previstas nos artigos27, 28, 29 e 30 da Lei nº 8.906/94. 2- Se o órgão público empregador fornece certidão informando que o cargo não se enquadra entre as hipóteses de incompatibilidade, não restando demonstrado que o impetrante exerça cargo de chefia, sua atividade apenas ocasionará o impedimento para atuar contra a Fazenda Pública que o remunere, devendo sua inscrição ser deferida com a ressalva do impedimento. 3- Pedido de inscrição que não encontra impedimento em lei. 4- Segurança que se confirma. 5- Apelação a que se nega provimento. Remessa prejudicada.” (AMS 2002.33.00.002013-5/BA; APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA).


Assim temos que o servidor do Tribunal de Contas não pode ser proibido de exercer a profissão da desobedecendo  o que dispõe o inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal[5].


 


Notas:

[1] SODRE, Ruy de Azevedo. O advogado, seu estatuto e a ética profissional. SP: RT, 1967.p.220.

[2] CIÊNCIA JURÍDICA, Belo Horizonte: Ciência Jurídica, v. 20, n. 132, p. 203-239, nov./dez./2006.

[3] MAMEDE, Gladston. A advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. 2. Ed. Ver. SP:Atlas, 2003. p.172.

[4] ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Ética do advogado. SP: Editora Jurídica Brasileira, 2000. p.27.

[5] XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

Informações Sobre o Autor

Bruno José Ricci Boaventura

Advogado militante em Cuiabá em direito público, sócio-gerente da Boaventura Advogados Associados S/C; Assessor Jurídico do Sindicato dos Trabalhadores do Ensino Público de Mato Grosso – SINTEP/MT; Assessor Jurídico da Presidência da Câmara Municipal de Campo Novo do Parecis/MT e Associações ligadas a radiodifusão comunitária. Especialista em Direito do Estado, com ênfase em Constitucional, pela Escola Superior de Direito de Mato Grosso.


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Equipe Âmbito Jurídico

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