Ricardo Werner Friedrich é graduado em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul e pós-graduado em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Internacional. Integrante do Grupo de Pesquisas “Intersecções Jurídicas entre o Público e o Privado”, vinculado ao PPGD da UNISC. Advogado.
E-mail: ricardowfadv@gmail.com.
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo principal analisar a utilização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica da empresa, a chamada Disregard Doctrine, em casos ilícitos e fraudulentos, que culminam com a insolvência da sociedade e prejudicando terceiros ou credores. Para isso, será necessário abordar o conceito e as características da personalidade jurídica, apontando a origem de sua criação para ajudar o homem em tarefas grandiosas, bem como as suas vantagens em relação aos meios de produção de riquezas realizadas pelas empresas, por meio da utilização da autonomia patrimonial. Em seguida, será discorrido sobre a caracterização dos atos ilícitos que os sócios se utilizam para desvirtualizar a finalidade da sociedade, visando seus benefícios particulares. Por fim, será dado lugar à indicação da desconsideração no Código Civil, assim como especial explanação acerca da confusão patrimonial entre a empresa e seus sócios. A questão aqui discutida é se o uso da desconsideração da personalidade jurídica é eficaz no combate aos atos ilícitos dos sócios frente ao manto protetor do instituto da autonomia da vontade da personalidade jurídica? O artigo se propõe a analisar os mecanismos que estão presentes na lei para assegurar a aplicação da teoria frente às atividades de sócios inescrupulosos.
Palavras-chave: atos ilícitos. Desconsideração da personalidade jurídica. Sócios.
Abstract: The main objective of this paper is to analyze the use of the Disregard Doctrine theory of disregard of legal personality in illicit and fraudulent cases that culminate in the insolvency of the company and prejudice third parties or creditors. For this, it will be necessary to approach the concept and characteristics of legal personality, pointing out the origin of its creation to help man in great tasks, as well as its advantages in relation to the means of production of wealth realized by the companies, through the use of the patrimonial autonomy. Then, it will be discussed on the characterization of the illicit acts that the partners use to de-virtualize the purpose of the society, aiming at its particular benefits. Finally, it will give rise to the indication of disregard in the Civil Code, as well as a special explanation about the asset mix between the company and its partners. The question here is whether the use of the disregard of legal personality is effective in combating the illicit acts of the members in the protective mantle of the institute of the autonomy of the will of the legal personality? The article proposes to analyze the mechanisms that are present in the law to ensure the application of the theory to the activities of unscrupulous members.
Keywords: illicit acts. Disregard of legal personality. Partners.
Sumário: Introdução. 1. Principais características da personalidade jurídica. 2. Mazelas advindas em decorrência da má utilização da personalidade jurídica. 3. Hipóteses da desconsideração da personalidade jurídica. 4. Previsão legal no Código Civil. 5. Conceito de Confusão Patrimonial. Conclusão.
Introdução
O presente trabalho tem por intuito responder o seguinte problema: o uso da desconsideração da personalidade jurídica é eficaz no combate aos atos ilícitos dos sócios da sociedade frente ao manto protetor do instituto da autonomia da vontade da personalidade jurídica?
A escolha do tema da desconsideração da personalidade jurídica, também chamada de Disregard Doctrine, reside no fato de que é um mecanismo muito importante e inovador no sentido de combater o mal-uso das empresas por seus sócios, impedindo, se usado com temperança e conforme a lei, futuras perdas aos credores e terceiros que de alguma forma dependam ou trataram de negócios com as empresas. É um recurso muito interessante, fonte do esforço da doutrina e jurisprudência, e que se explorado com o devido interesse, pode vir a produzir resultados muito interessantes e proveitosos, principalmente para a sociedade e o Estado, grandes incentivadores das empresas, bem como dando crédito à legislação que proporciona o uso de tal mecanismo.
Vale lembrar também que será abordado que é um instituto excepcional, que deve ser utilizado e deferido pelo Poder Judiciário em casos únicos, desde que comprovados de forma irrefutável.
Além do mais, é inegável que a empresa tem um papel muito importante no mundo capitalista, sendo sua força comparada a países nos dias de hoje, garantindo empregos para muitas pessoas. Assim, esta situação evidencia ainda mais a importância da desconsideração, que visa diminuir as perdas da sociedade e credores, com posterior responsabilização para os sócios transgressores.
Os objetivos com relação ao presente trabalho são analisar a personalidade jurídica das empresas, suas benesses e malefícios, assim como o papel da desconsideração neste cenário, elencando suas correntes que subsidiam a efetiva aplicação da teoria, na forma da lei.
1 Principais características da personalidade jurídica
Primeiramente, mostra-se importante discorrer sobre o conceito da personalidade jurídica, para depois buscar identificar a figura da Disregard Doctrine, com a figura da desconsideração.
Ficção criada pelo Direito, o instituto da personalidade jurídica pode ser considerado uma peça chave no âmbito do direito empresarial, tratando-se de instrumento jurídico criado para satisfazer às necessidades do crescimento em escala de produção, na medida em que estimula e aumenta a atividade econômica.
REQUIÃO (1977, p. 58-77) identifica bem a natureza da personalidade jurídica, dizendo que “as pessoas jurídicas, sobretudo no que concerne ao direito brasileiro, constituem uma criação da lei”, e como tal “refletem uma realidade, mas uma realidade do mundo jurídico, e não da vida sensível”.
Conforme VENOSA (2014), a criação da pessoa jurídica se deu em razão de uma necessidade genuína do homem de crescimento, pois sozinho aquele não conseguiria concluir grandes obras, necessitando de uma ampliação dos esforços de outros homens a fim de atingir seu objetivo.
Nesta esteira, se observa a análise de COMPARATO e SALOMÃO FILHO (2005, p. 356):
“A função geral da personalização de coletividades consiste na criação de um centro de interesses autônomo, relativamente às vicissitudes que afetam a existência das pessoas físicas que lhe deram origem, ou que atuam em sua área: fundadores, sócios, administradores”.
Desta forma, como bem mencionado por SOUZA (2009), a criação da pessoa jurídica tem como objetivo se concretizar a soma de esforços e recursos econômicos para a realização de atividades produtivas impossíveis para uma só pessoa e limitar os riscos empresariais, tratando-se de verdadeira técnica de incentivo da atividade empresária em larga escala.
É interessante dizer que, ao ser constituída, como bem diz VENOSA (2014) a pessoa jurídica apresenta várias características presentes na pessoa natural, como sua capacidade, registro, personalidade, nascimento, morte e direito aos sucessores de seus bens.
PEREIRA (1986, p. 198-199) também fala sobre este novo sujeito de direitos:
“[…] a complexidade da vida civil e a necessidade da conjugação de esforços de vários indivíduos para a consecução de objetivos comuns ou de interesse social, ao mesmo passo que aconselham e estimulam a sua agregação e polarização de suas atividades, sugerem ao direito equiparar à própria pessoa humana certos agrupamentos de indivíduos e certas destinações patrimoniais e lhe aconselham atribuir personalidade e capacidade de ação aos entes abstratos assim gerados. Surgem, então, as pessoas jurídicas”.
A pessoa jurídica ganhou uma importância muito grande na vida em sociedade, a ponto de suas criações aumentarem muito em um período pequeno de tempo, a ponto de o Estado conceder direitos civis à nova pessoa criada.
Seguindo este pensamento, COELHO (2009) ensina que, na medida em que a lei estabelece a separação entre a pessoa jurídica e as pessoas que a compõem, será a própria pessoa jurídica da sociedade a titular de seus direitos e a devedora de suas obrigações. Desta forma, evidenciam-se três importantes consequências da personalização da sociedade empresária: a titularidade obrigacional, a titularidade processual e a responsabilidade patrimonial. Com isto, a própria pessoa jurídica será partícipe das relações contratuais e extracontratuais originadas da exploração da sua atividade econômica, e não seus sócios, podendo demandar e ser demandada em juízo e, sobretudo, terá patrimônio autônomo e independente do de cada um de seus componentes, podendo pagar suas dívidas independente do dinheiro de seus sócios.
Assim, a pessoa jurídica possui patrimônio próprio e inconfundível com o de seus sócios, o que proporciona uma maior segurança jurídica no meio empresarial. Essa restrição da responsabilidade patrimonial da sociedade limita a perda para os seus sócios, atraindo capital interno/externo e fontes geradoras de riqueza. Esta é a razão principal da criação da pessoa jurídica, a multiplicação de capitais, o lucro.
Esta máxima é dita por MARINONI e LIMA JÚNIOR (2001, p. 140):
“Com efeito, ninguém nega que o princípio ora em foco acabou por favorecer o surgimento de inúmeras pessoas jurídicas, desenvolvendo sobremaneira a indústria e a atividade comercial, gerando empregos e riquezas. Isso porque a separação entre os patrimônios social e individual do sócio possibilitou o investimento com responsabilidades limitadas. E é exatamente a ideia de preservar e incentivar a produção que ainda sustenta a vigência do princípio que diferencia a sociedade dos sócios que a compõem”.
É também o entendimento de VENOSA (2014, p. 240), que reconhece a força da pessoa jurídica:
“Atualmente, o peso da “economia” conta-se pela potencialidade das pessoas jurídicas, que transcendem o próprio Estado e se tornam supranacionais naquelas empresas que se denominam “multinacionais”.
A ideia de separação entre pessoa jurídica e os membros que a compõem estava explícita no caput do artigo 20 do Código Civil de 1916: “As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”. (BRASIL, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm>. Acesso em: 26 mar. 2018)
Embora tal regra não esteja literalmente inserida no atual Código Civil, este não abandona o conceito do antigo código, já que no artigo 986 e seguintes e no artigo 997 e seguintes do atual Código Civil, há a diferenciação entre sociedade personificada e sociedade não personificada, traçando os respectivos efeitos jurídicos de cada uma.
Ademais, nos artigos 45 e 985 do Código Civil, está o procedimento para a criação da pessoa jurídica. Além disso, o Novo Código de Processo Civil também aduz, em seu artigo 795, caput, o entendimento que “os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei”. (BRASIL, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 26 mar. 2018)
Pois assim sendo, em consequência da personalidade concedida às pessoas jurídicas pelo nosso ordenamento, as sociedades são detentoras de titularidade para a prática de atos jurídicos e para agir em juízo, tendo personalidade jurídica própria e patrimônio incomunicável com o de seus sócios. Consequentemente, em princípio, os bens da sociedade não se confundem com os bens particulares dos seus integrantes, tampouco respondem os sócios pelas obrigações da empresa, sendo a própria pessoa jurídica a titular de direitos e a responsável, ao contrair obrigação, pelo seu adimplemento e pelos efeitos do seu descumprimento. Tal situação fática demonstra que os bens dos sócios não serão alcançados por uma futura dívida da empresa, pois estes não podem ser responsabilizados por dívida da empresa ou de outro sócio, dependendo do tipo de sociedade.
Deve ser dito também que a pessoa jurídica de direito privado é originada de uma manifestação de vontade, podendo resultar em sociedade civil ou comercial, e, portanto, para que ela adquira personalidade jurídica, conforme a lei, é necessária a homologação de seus atos constitutivos (nascimento), que devem ser arquivados na Junta Comercial Estadual e no Registro Civil das Pessoas Jurídicas.
Em suma, além da finalidade de geração de capital proporcionada com a criação da pessoa jurídica, outra finalidade essencial para os negócios é lembrada por GONÇALVES (2014, p. 187):
“[…] distinção entre o seu patrimônio e o de seus instituidores, não se confundindo a condição jurídica autonomamente conferida àquela entidade com a de seus criadores. Em vista disso, não podem, em regra, ser penhorados bens dos sócios por dívida da sociedade”.
Ou seja, os sócios da pessoa jurídica podem livremente, dentro da lei, realizarem seus negócios através da vontade legal de sua empresa, que possui independência, com autonomia patrimonial e, em caso de futuras dívidas, terão a proteção de seus bens, devendo a execução alienar os bens da empresa.
2 Mazelas advindas em decorrência da má utilização da personalidade jurídica
Como se observou, devido à autonomia patrimonial concedida à pessoa jurídica, em regra os sócios não respondem pelas obrigações sociais, uma vez que a sociedade tem personalidade jurídica própria e distinta da de seus membros, possuindo a titularidade para figurar nas relações que decorram da sua atividade econômica (dívidas e empréstimos).
Este benefício legal concedido aos sócios, e que está inserido no conceito de personificação das sociedades, ficava evidente que era uma situação tida como absoluta e irredutível, como um véu.
Entretanto, quando aplicado esse instituto na realidade prática, em muitos casos ocorrem atividades fraudulentas e ilícitas, como por exemplo a transferência de bens da empresa para um dos sócios, em detrimento dos credores da empresa.
Neste cenário, verifica-se a chamada crise do conceito de personalidade jurídica trazida por OLIVEIRA (1979, p. 262):
“[…] é problema comum a todo e qualquer sistema jurídico em que vigore o princípio básico da separação entre pessoa jurídica e pessoa-membro. Pois em todos esses países pode surgir (como de fato tem surgido) o fenômeno da utilização da pessoa jurídica (e de sua subjetividade autônoma, separada) no contexto da busca de finalidades distintas daquelas que inspiram o conjunto do sistema jurídico.
[…]
Trata-se, ao contrário, da utilização do instituto na busca de finalidades consideradas em contradição com tais princípios básicos”.
É também o entendimento de DINIZ (2002, p. 65):
“A pessoa jurídica é uma realidade autônoma, capaz de direitos e obrigações, independentemente de seus membros, pois efetua negócios sem qualquer ligação com a vontade deles, e, além disso, se a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas naturais que a compõem, se o patrimônio da sociedade não se identifica com o dos sócios, fácil será lesar credores, mediante abuso de direito, caracterizado por desvio de finalidade, tendo-se em vista que os bens particulares dos sócios não podem ser executados antes dos bens sociais, havendo dívida da sociedade”.
Assim, por vezes, a pessoa jurídica e o princípio da autonomia patrimonial são invocados para encobrir fraude, abuso de direito ou desvio da finalidade social da empresa, ou seja, fins diversos daqueles vislumbrados no contrato social da empresa. Esta situação propiciou aos sócios inescrupulosos da empresa em cometerem ilícitos em aparente legalidade, pois estão amparados pela personalidade jurídica da empresa, a qual protege seus bens particulares de futuras constrições.
Assim, vem à tona a figura da fraude, conceituada por COELHO (1989, p. 57):
“[…] a manobra engendrada com o fito de prejudicar terceiro, e tanto se insere no ato unilateral (caso em que macula o negócio ainda que dele não participe outra pessoa), como se imiscui no ato bilateral (caso em que a maquinação é concertada entre as partes). Na fraude, o que estará presente é o propósito de levar aos credores um prejuízo, em benefício próprio ou alheio, furtando-lhes a garantia geral que devem encontrar no patrimônio do devedor. Seus requisitos são a má-fé, ou malícia do devedor, e a intenção de impor um prejuízo a terceiro. Mais modernamente, e digamos, com mais acuidade científica, não se exige que o devedor traga a intenção deliberada de causar prejuízo (animus nocendi); basta que tenha a consciência de produzir o dano”.
Nessas situações, com sócios mal-intencionados, a consideração da autonomia da pessoa jurídica importaria a ratificação do desvio de finalidade da sociedade, com a permissão do ilícito cometido pelo sócio, pois tal ato permaneceria oculto, protegido pela aparente licitude da conduta da empresa.
Diante desta situação de injustiça, mostrou-se necessária a busca de meios legais capazes de coibir irregularidades e deformações advindas do mau uso da personalidade jurídica, evitando-se, portanto, que a empresa fosse utilizada para fins criminosos. É justamente nesse contexto que surge a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
3 Hipóteses da desconsideração da personalidade jurídica
Originalmente, a pessoa jurídica foi criada para desempenhar funções impossíveis para um único ser humano, necessitando da força de trabalho de um grupo maior de pessoas, com o intuito de gerar riquezas, sendo que a distinção entre a sua personalidade e a de seus sócios é presente. Porém, a partir do momento em que a personalidade é desvirtuada em razão de atividades ilícitas, servindo de proteção para práticas antijurídicas em prejuízo dos outros, a personalidade jurídica pode e deve ser desconsiderada, transpassada, com o intuito de se buscar a responsabilização dos sócios que a compõem. Desta forma, o princípio da autonomia da pessoa jurídica somente é respeitado se a sociedade agir de modo lícito, correto, conforme seus atos originários.
A doutrina da Disregard Doctrine, tem o intuito de garantir as relações empresariais lícitas, as quais somente têm a contribuir para o País e a sociedade, bem como tem por intenção evitar o desvio de finalidade das ações da pessoa jurídica, quando esta for utilizada para fins estranhos às suas atividades empresariais, responsabilizando-se, por consequência, os sócios, os quais sempre estão por trás de atividades macumunadas, secretas, prejudicando a empresa e terceiros:
“Em primeiro lugar, como parece óbvio, o afastamento da forma externa da pessoa moral permite que se busque no patrimônio pessoal dos sócios a satisfação dos créditos frustrados. Dessa forma, todos aqueles que, valendo-se do manto societário, agiram de modo fraudulento ou abusivo, burlando a lei, violando obrigações contratuais ou prejudicando terceiros, responderão pelos créditos insatisfeitos dos credores sociais”. (MARINONI e LIMA JÚNIOR, 2001, p. 155)
Todavia, existem regras para a aplicação da teoria da desconsideração, como lembra SOUZA (2009, p. 45), “[…] somente deve ser aplicada nas hipóteses em que a autonomia da pessoa jurídica se apresenta como um obstáculo para a composição dos diversos interesses envolvidos no caso concreto, ou melhor, para a realização da justiça”. Também se justifica a transposição da autonomia patrimonial da sociedade no caso de houver ilicitude praticada através dela, nas palavras de COELHO (2009, p. 45), “exatamente para revelar o oculto por trás do véu da pessoa jurídica”.
Explicação além é feita por KOURY (2011, p. 23):
“Uma vez personificado, o ente passa a ter existência jurídica, adquire personalidade e atua no mundo jurídico da mesma forma que as demais pessoas jurídicas, não podendo o ordenamento que o personificou ignorar esta nova realidade ou afastar arbitrariamente os seus efeitos. Daí decorre a necessidade de uma doutrina como a da desconsideração da personalidade jurídica para a fixação dos limites de utilização da personalidade jurídica, criada por lei, de acordo com o interesse social, o que seria totalmente desnecessário se as entidades personalizadas não fossem reais para o direito e se a personalidade se reduzisse a mera expressão vocabular”.
Portanto, a fim de combater as ilicitudes sob o manto da personalidade jurídica, foi necessária a aplicação da corrente subjetiva no direito, para que se possa desconsiderar a personalidade jurídica da empresa distinta da pessoa de seus sócios, assim como reste comprovado o desvio de função da sociedade, através da fraude ou do abuso de direito. O elemento subjetivo, muito importante nestes casos de investigação dos sócios, prova a intenção do agente de prejudicar terceiros ou de buscar o benefício indevido, ou, pelo menos, de sua conduta culposa é indispensável para a aplicação da desconsideração, a qual necessidade de provas irrefutáveis para a comprovação do ilícito. Assim, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica se resume à comprovação, no caso concreto, da conduta culposa do sócio ou da sua intenção abusiva ou fraudulenta na utilização da proteção da personalidade jurídica para fins ilícitos.
A definição do abuso de direito, a título de informação para se ter um entendimento maior acerca dos atos ilícitos praticados pelos sócios, é bem definido por VENOSA (2014, p. 577-578):
“Deve ser afastada qualquer ideia de que exista direito absoluto. No abuso de direito, pois, sob a máscara de ato legítimo esconde-se lima ilegalidade. Trata-se de ato jurídico aparentemente lícito, mas que, levado a efeito sem a devida regularidade, ocasiona resultado tido como ilícito.
[…]
Conclui-se, portanto, que o titular de prerrogativa jurídica, de direito subjetivo, que atua de modo tal que sua conduta contraria a boa-fé, a moral, os bons costumes, os fins econômicos e sociais da norma, incorre no ato abusivo. Nessa situação, o ato é contrário ao direito e ocasiona responsabilidade do agente pelos danos causados”.
Conforme as palavras acima, a desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada apenas simplesmente quando houver intenção ou culpa do sócio em utilizar, de maneira fraudulenta, a pessoa jurídica, não bastando a ocorrência de mero prejuízo financeiro a terceiros. Em razão disto, o elemento subjetivo é muito importante para caracterizar a Disregard Doctrine, pois é a origem da atividade ilícita, necessitando, portanto, para a sua aplicação, a comprovação da fraude ou do abuso de direito da sociedade empresária. Acerca do tema, COELHO (2002, p. 55) ensina que:
“O elemento subjetivo, consistente na intenção fraudulenta ou abusiva na utilização da pessoa jurídica, é imprescindível para a desconsideração da autonomia desta, e a prudência na aplicação desta teoria, de forma a circunscrevê-la estritamente aos casos em que este elemento subjetivo se verifica, é condição de sua credibilidade e aceitação nos meios doutrinários e judiciários”.
Mas, mais uma vez que importante destacar o caráter excepcional do uso de tal instituto, sendo possível ser aplicado apenas nos casos em que realmente houver o cometimento de um ato ilícito, prevalecendo sempre o instituto da personalidade jurídica nas atividades da empresa pelos sócios, desde que amparadas pela lei.
Tal ponto é importante de se mencionar, uma vez que as empresas, sejam elas de pequeno, médio e grande portes, todas têm papel fundamental na economia capitalista, seja em escala local, regional e internacional, sendo fundamental nos negócios o princípio da personalização das sociedades empresárias, pois a má utilização da desconsideração da personalidade jurídica poderia causar sérios danos às empresas, assim como quem dependem delas para sobreviver. Sem falar que prejudicaria o sistema jurídico.
É cediço que o Estado, grande beneficiado pelas empresas, seja diretamente ou indiretamente, estimula a atividade empresarial, atendendo às necessidades da coletividade. Desta forma, não se pode ignorar que o uso desmedido da Disregard Doctrine possa prejudicar a comunidade como um todo.
Não obstante, uma outra ferramenta se utiliza pela jurisprudência como pressuposto para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que se trata da confusão patrimonial, observada nos casos em que o patrimônio de sócios e das sociedades se confundam, parecendo ser apenas um único patrimônio de uma pessoa, estando, inclusive, previsto no artigo 50 do Código Civil (exposto mais adiante).
De qualquer sorte, a Disregard Doctrine deve ser autorizada pelo Poder Judiciário como medida de exceção, apenas nas situações acima elencadas, bem como não seja possível a utilização de outro remédio jurídico capaz de reprimir a fraude, o abuso de direito ou a confusão patrimonial entre os bens do sócio e da sociedade (desvio de finalidade da empresa). Caso houver razão para se pensar o contrário, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica deve se manter imaculada, conforme demonstra KOURY (2011, p. 87):
“Assim, deve-se, em princípio, respeitar a forma da pessoa jurídica, consoante a vontade do legislador, que, certamente teve boas razões para criá-la, operando-se a desconsideração apenas quando houver uma razão suficientemente forte, conforme o ordenamento jurídico, para fazê-lo, pois, do contrário, levar-se-ia ao descrédito o próprio instituto da pessoa jurídica”.
Em suma, a teoria da desconsideração somente deve ser aplicada quando a autonomia da pessoa jurídica se mostrar obstáculo para coibição de fraudes e abusos de direito. Nestes casos, deve ser aplicada a desconsideração da personalidade jurídica, para que se possa responsabilizar os sócios. Mas, a autonomia da pessoa jurídica permanecerá intocada quando esta seguir todos os parâmetros legais de sua constituição e funcionamento, atendendo aos requisitos previstos em seu estatuto ou contrato social, e não ocultar atos ilícitos nem aspectos fraudulentos praticados pelos responsáveis.
É importante frisar que a Disregard Doctrine não pode ser utilizada apenas em casos de constatação da ausência de patrimônio da sociedade. O simples inadimplemento de uma empresa não autoriza o redirecionamento da dívida na pessoa de seus administradores, ainda que haja insolvência. Ou seja, em caso de prejuízo ao credor da sociedade, isto só não justifica a aplicação do instituto, devendo estar presente a má utilização da pessoa jurídica, com a observância dos requisitos já apresentados, não podendo, desta maneira, ser autorizada a desconsideração por estarem caracterizadas, tão somente, a insolvência.
Conclui-se que, a utilização do instituto da desconsideração da personalidade jurídica de ver ser utilizada em casos excepcionais, com a prova irrefutável de abuso de direito ou fraude cometida pelos sócios da empresa em questão, devendo o Poder Judiciário analisar o caso concreto em questão, e afastando qualquer desejo subjetivo de algum credor ou terceiro que foi prejudicado pela sociedade empresária de forma não fraudulenta ou ilegal. Neste sentido, se não houver a prova de que a sociedade foi utilizada em casos que não estão presentes em seu contrato social ou documento de sua constituição, não há motivo para o deferimento da Disregard Doctrine.
4 Previsão legal no Código Civil
O atual Código Civil possui a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, e seu caráter eminentemente excepcional, prevendo também as hipóteses de seu cabimento antes tratadas:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”. (BRASIL, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 26 mar. 2018)
Da leitura do artigo acima referido, percebe-se que Código Civil seguiu a corrente subjetivista, uma vez que exige provas do abuso, e não apenas o prejuízo a terceiro, autorizando a desconsideração, desde que preenchidos os requisitos legais.
Esta situação deixa à mostra que o referido código está atualizado quanto aos últimos estudos da jurisprudência e da Doutrina, determinando como pressuposto para a aplicação da teoria o abuso de direito ou cometimento de ato ilícito pela personalidade jurídica da empresa, através do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial, o que evidencia a intenção do instituto de coibir a utilização indevida da pessoa jurídica.
5 Conceito de confusão patrimonial
Importante figura da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a confusão patrimonial é corrente objetiva, pois aquela é pressuposto necessário e suficiente para se aplicar a desconsideração. Ocorre em situações de confusão patrimonial que se configuram quando, na prática, torna-se difícil perceber a separação entre o patrimônio social e o dos sócios, que restam confundidos, parecendo ser apenas uma única massa de bens.
Como já dito acima, importante destacar que, por ser de corrente objetiva, a confusão patrimonial para ser caracterizada e em seguida a desconsideração, não depende de se verificar abuso de direito ou fraude (elementos subjetivos). A corrente objetiva tem como grande diferencial e vantagem a facilitação da prova no processo judicial, bastando a comprovação somente da existência da confusão da propriedade dos bens, não sendo necessária a prova do elemento subjetivo.
Esta confusão patrimonial não é defendida pelo Direito, uma vez que se trata de responsabilidade dos sócios a separação de bens com a sociedade, evitando-se, assim, possíveis fraudes e atos ilícitos.
Contudo, lembra XAVIER (2002) que, havendo a mistura de patrimônios, e, por conseguinte, a confusão patrimonial entre bens dos sócios e das sociedades, as fronteiras da autonomia da pessoa jurídica tornam-se fluídas, causando a perda da responsabilidade limitada de quem lhe dá causa. Essa situação ocorre, por exemplo, quando os rendimentos da sociedade pagam as dívidas dos sócios, ou seja, os ganhos da sociedade não voltam para ela, e sim para cobrir dívidas de seus administradores.
Nesse caso, ocorrendo a situação de confusão patrimonial, XAVIER (2002) informa que é devida a superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, pois esta é utilizada para fins indevidos, não podendo os sócios invocar, perante possíveis credores da empresa, a propriedade sobre objetos supostamente seus, ou seja, que eles próprios classificam, alternadamente, ora como seus, ora como da sociedade.
Desta forma, se aplicada a desconsideração da personalidade jurídica com base na confusão patrimonial e verificada a responsabilização dos sócios para com a dívida societária, eles responderão no limite de suas respectivas partes na empresa.
Vale dizer, por fim, que a confusão patrimonial não exaure as hipóteses de cabimento da Disregard Doctrine, uma vez que nem todas as fraudes ou abusos de direito implicam em confusão patrimonial. Deve-se lembrar da corrente subjetiva da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, na forma do abuso do direito, desvio de finalidade ou da fraude. Portanto, o operador do direito tem à sua disposição as duas correntes para buscar a caracterização da desconsideração da personalidade jurídica, buscando, desta forma, o cumprimento da lei àqueles que de certa forma tentam ludibriar terceiros ou credores, lembrando a aqueles que não fugirão do braço da lei.
Conclusão
O presente trabalho discutiu sobre uma das incríveis criações do Direito, tão importante nos dias de hoje, a personalidade jurídica. A criação genuína de seu surgimento é resultado da concretização dos anseios de homens que realizavam trabalhos individuais, mas que necessitavam de uma forma de aglutinar esforços para viabilizar e potencializar as suas atividades econômicas.
A autonomia concedida às sociedades pelo instituto da pessoa jurídica permite que estas possuam personalidade distinta e, sobretudo, patrimônio próprio dos membros que a compõem, tornando-as pessoalmente responsáveis pelas obrigações que vierem a contrair. Ou seja, criou-se um novo ser de direitos, incorpóreo, mas que nasce, cresce e morre como um indivíduo. Vem da autonomia da pessoa jurídica a extrema importância de tal ficção para o Direito, uma vez que estimula a atividade empresarial, encorajando os potenciais e futuros empresários a investirem no setor e desenvolverem novas empresas, devido à garantia da lei de que aqueles não arriscarão seu patrimônio pessoal em casos de infortúnios que venham a acontecer.
E é exatamente isto que impulsiona o crescimento e o desenvolvimento do país, através da expansão da sua economia, pois, do contrário, certamente, menos pessoas se aventurariam na área empresarial, tornando estagnado o setor.
Porém, se vislumbra através do uso da personalidade jurídica uma má utilização da finalidade da empresa, que passou a ser aproveitada para prática de atos fraudulentos ou abusivos, escondendo, por detrás dessa autonomia da pessoa jurídica, objetivos que desviam a real finalidade da sociedade. Assim, a personalidade jurídica acaba se tornando um leque de possibilidades ilícitas, que vêm a prejudicar a sociedade, o País.
Deste panorama se criou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, como meio de impor esses limites, reprimindo e responsabilizando o desvio de finalidade das empresas, realizadas através da prática de fraudes ou abusos de direito, tão corriqueiras atualmente.
Neste contexto, a Disregard Doctrine mostra-se indispensável para a boa relação empresarial, impedindo que a personalidade jurídica seja utilizada de maneira ilegítima, através da responsabilização dos sócios ou administradores das sociedades pelos atos praticados em discordância com a sua função social.
Mas, o objetivo da desconsideração não é, de maneira alguma, a anulação do instituto da personalidade jurídica, nem mesmo o seu enfraquecimento, pois somente é concedida e aplicada tal medida, que é extrema, em casos provados, sob o crivo do Poder Judiciário, sempre com o intuito de preservar a existência da empresa, bem como os credores da sociedade vítimas de práticas ilícitas.
Cabe dizer também que a teoria está positivada no Código Civil, que é a principal hipótese de cabimento da desconsideração, tão somente, os casos de fraude, abuso de direito (desvio de finalidade), ou, ainda, em atenção à redação do artigo 50 do Código Civil, a confusão patrimonial, todos pressupostos contemporâneos, que foram estudados pela doutrina.
Diante o exposto, a desconsideração da personalidade jurídica realmente tem papel fundamental na proteção das empresas e responsabilização dos sócios transgressores, uma vez que nenhum ato ilícito deve ficar impune, mas entende-se que não deve ser a única ferramenta a combater as mazelas que afetam as empresas, devendo o Estado intervir no sentido de se evitarem as atividades ilícitas nas empresas, pois aquele é, juntamente com a sociedade, grande incentivador e beneficiado da atividade econômica.
REFERÊNCIAS
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