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O uso da maconha medicinal na perspectiva dos Tribunais

Por Yuri Sahione *

O ano de 2014 marcou a história do uso do canabidiol (CBD), no Brasil. Anny Fisher, criança brasileira que sofria de epilepsia refratária, à época com cinco anos de idade, conseguiu na Justiça, com decisão proferida pela 3ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, o direito à importação do óleo de canabidiol dos Estados Unidos.

A família Fisher teve deferido seu pedido de antecipação dos efeitos da tutela para determinar que a ANVISA se abstivesse de impedir a importação do CBD, tendo em vista “a imprescindibilidade do medicamento na proteção da saúde e da vida da criança e as demonstrações preliminares da eficácia e da segurança do produto ao menos no que diz respeito ao tratamento da EIEE2” (autos nº 24632-22.2014.4.01.3400).

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Pouco tempo depois, algumas pessoas com epilepsia do estado da Paraíba reunidas obtiveram, em grupo, decisão liminar favorável que autorizou a importação desse mesmo óleo.

Os anos seguintes, 2015 e 2016, foram marcados por determinações judiciais que ordenaram a retirada do canabidiol (2015) e do THC (2016) da lista de substâncias proibidas no Brasil pela (Anvisa), além de resoluções da própria agência que aprovaram a simplificação das regras para importação excepcional de produtos à base de tais substâncias, mediante requisição e uma série de exigências.

Ainda em 2015, começaram a surgir decisões judiciais que obrigaram a União a custear o tratamento com CDB de pacientes com diferentes tipos de crises convulsivas, não apenas epiléticas. Uma das decisões que ganhou notoriedade foi proferida pelo Juízo da 3ª Vara Federal de Sorocaba/SP, que concedeu o direito a um paciente menor de idade que sofria de problemas relacionados com epilepsia.

Da mesma forma, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região determinou, em outro processo, o custeio do medicamento Hemp Oil, pelo governo federal, a um morador de Erechim/RS, portador de esclerose tuberosa, sob o argumento  de que “são públicos e notórios, em virtude da vasta divulgação pela imprensa nacional, os resultados positivos obtidos com a aplicação do canabidiol no tratamento de algumas doenças neurológicas, tanto que já houve diversas autorizações excepcionais de importação para uso pessoal” (https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=11246).

Em 2016, foi concedida uma liminar em habeas corpus preventivo, para evitar que os pais de uma menina de sete anos, que sofre de epilepsia refratária, fossem presos por cultivar maconha em casa.

No ano de 2018, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça abriu um precedente importante, ao permitir, no julgamento do REsp 1.657.075, a importação direta de um medicamento à base de canabidiol, para ser usado no tratamento de uma criança com paralisia cerebral, que tinha em média 240 crises epilépticas por mês.

O caso foi julgado em recurso apresentado pela União, que buscava derrubar uma decisão da Justiça Federal que, além de permitir a importação direta, também proibiu a União de destruir, devolver ou impedir que o canabidiol importado chegue ao seu destino – diante da indisponibilidade de tal medicamento na rede pública, os próprios pais providenciaram a importação.

Em 2019, ganhou ainda mais força a discussão acerca do fornecimento do CDB por parte do Estado para tratamento de pacientes que necessitassem de recursos da saúde pública. Em julgamento envolvendo menor portador de epilepsia, ficou registrado que a ausência do registro do canabidiol junto à ANVISA não poderia obstar o seu fornecimento a usuários que dependessem do Sistema Único de Saúde (“SUS”), dada a disparidade de tratamento aos cidadãos verificada com a autorização para importação que privilegiava os mais ricos.

O mesmo entendimento foi exarado no julgamento de recurso de Apelação interposto pelo Distrito Federal em face da sentença que, nos autos da ação de conhecimento, julgou procedente o pedido aduzido na inicial, condenando a unidade da Federação a fornecer à parte requerente medicamento à base de canabidiol, conforme a prescrição médica e enquanto perdurasse a necessidade do tratamento. Vide trecho do acórdão:

Tendo sido o tratamento indicado pelo profissional médico que acompanha o paciente, em razão do insucesso na utilização de outras alternativas terapêuticas, e restando demonstrado que a própria ANVISA já reconheceu a eficiência da substância para o controle da enfermidade que acomete o autor, está caracterizado o dever do Estado de tomar as providências necessárias à proteção da saúde do menor, devendo fornecer o medicamento pleiteado.” (Acórdão 1166414, 07030637320178070018, Relator: ROBERTO FREITAS,  1ª Turma Cível, data de julgamento: 10/4/2019, publicado no PJe: 29/4/2019”

No julgamento do RE nº 566.471, o Supremo Tribunal Federal definiu, em sede de repercussão geral, que o Estado poderá ser obrigado a fornecer remédios de alto custo não disponíveis no SUS, desde que comprovada a extrema necessidade do medicamento e a incapacidade financeira do paciente e de sua família para a aquisição. Os ministros salientaram em seus votos que, em caráter excepcional, é possível a concessão de medicamentos não registrados na lista da Anvisa.

Posteriormente, a ANVISA elaborou a Resolução da Diretoria Colegiada n° 327/2019 (RDC), que entrou em vigor no Brasil em março de 2020, para regulamentar a fabricação, a comercialização e a importação de produtos derivados da cannabis para fins medicinais.

A tendência jurisprudencial e normativa apresentada acima representa, sem dúvida, uma mudança relevante de perspectiva jurídica para a questão do acesso ao medicamento à base de canabidiol pelo cidadão brasileiro.

Se antes a questão se mantinha completamente indissociável da seara criminal, exigindo dos interessados o ajuizamento de habeas corpus para preservação da liberdade em face dos riscos envolvidos na busca pelo acesso a esses medicamentos, hoje se revela uma nova fase, na qual as barreiras entre a necessidade desse tipo de tratamento e sua obtenção esbarra em obstáculos, sobretudo, administrativos e orçamentários dos governos.

* Yuri Sahione é advogado, sócio da área de Compliance, Penal Econômico e Investigações do Cescon Barrieu

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