Resumo: O escopo do presente é analisar o “útero em substituição” à luz do Biodireito e da Bioética. Os avanços experenciados, pelo Direito, na segunda metade do século XX provocaram uma grande evolução no pensamento tradicional que dantes subsistia. Nesta linha, as inovações proporcionadas pela biotecnologia e os impactos éticos desdobrados provocaram uma remodelagem de um novo ramo jurídico, a saber: o Biodireito. Tal ramificação é uma matéria que confronta normas existentes e disposições constitucionais relativas à vida humana, sua preservação e qualidade e que não se restringem apenas a questões ligadas à saúde, meio ambiente e tecnologia. Neste sentido, a doação temporária do útero, ou útero em substituição e popularmente chamada de “barriga de aluguel”, consiste em técnica científica objetivada em interferir no processo natural de reprodução humana através da coleta dos gametas masculinos e femininos dos doadores, para posterior fecundação assistida em um laboratório. Logo, os embates advindos de tal prática trazem a campo implicações de cunho jurídico, arrastando os princípios de índole constitucional e bioética, em especial no que toca ao ideário da dignidade da pessoa humana. A metodologia empregada no curso do presente foi o método indutivo, auxiliado por revisão bibliográfica. [1]
Palavras-chave: Útero em Substituição. Biodireito. Bioética.
Abstract: The scope of the present is to analyze the “uterus instead” in the light of Biolaw and Bioethics. The advances experienced by law in the second half of the twentieth century provoked a great evolution in the traditional thought that before it subsisted. In this line, the innovations provided by biotechnology and the deployed ethical impacts have led to a reshaping of a new legal branch, namely the Bi-Right. Such a branch is a matter that confronts existing norms and constitutional provisions relating to human life, its preservation and quality and that are not restricted only to issues related to health, environment and technology. In this sense, the temporary donation of the uterus, or uterus in substitution and popularly called “surrogacy,” consists of a scientific technique aimed at interfering in the natural process of human reproduction through the collection of the male and female gametes of the donors, for later fertilization Assisted in a laboratory. Therefore, the conflicts arising from such practice bring to the field legal implications, trailing the principles of a constitutional and bioethical nature, especially with regard to the ideals of the dignity of the human person. The methodology used in the present course was the inductive method, aided by a bibliographical review.
Keywords: Uterus in Replacement. Biolaw. Bioethics.
Sumário: 1 Introdução; 2 Útero de Substituição: primeiros contornos; 3 Princípios da Bioética em Pauta; 4 Dignidade da Pessoa Humana e a Liberdade de Formação Familiar; 5 Conclusão
1 INTRODUÇÃO
A Bioética e o Biodireito são discutidos a partir de meados do século XX, como reflexos dos avanços tecnológicos nos estudos científicos das áreas médica, biológica e química e também do resultado da aplicação prática destes avanços por experimentos humanos, algumas vezes controversos, como os casos de eugenia social que foram presenciados durante aquele século. De acordo com Leite (2009), estes avanços tecnológicos e as questões sociais em que poderiam implicar, trouxeram debates sobre os problemas éticos e legais gerados sobre o poder do homem em interferir nos processos de formação da vida humana. Essa possibilidade de controle da vida despertou a necessidade de impor limites à atuação sobre a manipulação científica genética. É “a necessidade de reajustar os sistemas de valores” em função do equilíbrio entre evolução científica, evolução social e evolução dos direitos.
A discussão ética e legal sobre a prática de reprodução assistida no Brasil esbarra em questões, legais, morais (costumeiras) e sociais. Conforme abordado por Moreira (2016), o tema desperta indagações sobre o processo de artificialidade em substituição do natural, dos conceitos de graus de parentesco e sobre a noção de formação familiar. Por isso a importância do debate relativo à bioética e ao Biodireito que se tornam os canais de diálogo entre a sociedade, as leis, a hermenêutica, as limitações às ações humana e o desenvolvimento técnico-científico.
Como apresentado por Leite (2009), o Biodireito é uma matéria que confronta normas existentes e disposições constitucionais relativas à vida humana, sua preservação e qualidade e que não se restringem apenas a questões ligadas à saúde, meio ambiente e tecnologia. Para Moreira (2016), o Biodireito surge como uma nova ciência jurídica, que busca tutelar as relações entre a biotecnologia e toda a raça humana. É o levantamento de questões sobre os limites da intervenção humana sobre o próprio homem, frente a autonomia da opção individual.
A bioética, por sua vez, tem um aspecto mais filosófico, sobre a relação da prática com o que é socialmente aceito. Conforme Moreira (2013), a bioética trata do desenvolvimento das relações éticas dos seres humanos, entre si e deles com o meio em que vive. Inicialmente é uma discussão sobre a prática dentro do próprio meio científico e que se reproduz no campo jurídico para criar limites ao desenvolvimento das técnicas científicas. Em Leite (2009), a bioética é uma disciplina autônoma sobre uma nova dimensão de pesquisa científica e acadêmica para designar os problemas éticos dentro das novas práticas desenvolvidas nas ciências biológicas e médicas, especialmente sobre o poder do homem interferir na vida e na morte do próprio homem.
A discussão se torna pertinente na área de reprodução humana assistida em virtude dos significativos e rápidos avanços científicos da manipulação genética. Conforme tutelado pela constituição federal, o planejamento familiar é livre e cabe ao Estado a garantia dos meios educacionais e científicos para garantir este direito. De acordo com Vieira (2008), a velocidade com que estes avanços vêm se concretizando cria expectativas e, ao mesmo tempo, assusta as pessoas em geral sobre a ideia de criar-se um ser humano de formas artificiais. Os avanços são tão rápidos que fica difícil acompanhar as inovações, eticamente e legalmente falando. Assim, a bioética traz constantemente novas implicações ao ramo jurídico, diante da característica evolutiva da ciência e das novas demandas da sociedade em assuntos relacionados às escolhas individuais relativas à formação familiar, sobre o direito de reproduzir-se, e os meios em que se realizarão tais desejos.
2 ÚTERO DE SUBSTITUIÇÃO: PRIMEIROS CONTORNOS
No Brasil, inexiste legislação específica sobre o método de reprodução assistida conhecido como “útero em substituição”. Apesar do consolidado avanço científico nacional e da relativa acessibilidade às práticas de reprodução humana assistida, o útero em substituição vem sendo praticado à margem da lei, regulado por resoluções do Conselho Federal de Medicina – CFM, como, por exemplo, as Resoluções 1.358/92, 1957/2010 e 2.013/13 (já revogadas) e a mais atual, Resolução 2.121/2015. A Lei nº 11.105/2005, também conhecida como Lei de Biossegurança, ainda que amplamente discutida quando se fala em manipulação genética e ética científica, versa de forma geral sobre qualquer prática de manipulação genética, pois trata das normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados, e seus derivados e também dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança.
A doação temporária do útero, ou útero em substituição e popularmente chamada de “barriga de aluguel”, conforme resumidamente elucidado por Rahal (2016), consiste em técnica científica objetivada em interferir no processo natural de reprodução humana através da coleta dos gametas masculinos e femininos dos doadores, para posterior fecundação assistida em um laboratório. Após o processo de fecundação são selecionados embriões considerados mais resistentes para que sejam implantados no útero da mulher que será a gestante (doadora do útero, apenas, e não do material genético) e assim poder seguir a gestação. De acordo com o CFM, os embriões não utilizados devem ser congelados por até 5 anos. Os responsáveis pelo embrião devem deixar a sua destinação por escrito, que findo o prazo podem ser descartados ou utilizados para pesquisas com células tronco embrionárias.
A Resolução 2.121/2015 diz que a técnica do útero em substituição deve ser utilizada em situações de existência de algum problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética ou em caso de união homoafetiva. As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau, qualquer outro caso de grau de parentesco, ou não parentes, deverá estar sujeito à autorização do Conselho Regional de Medicina, mas não sendo vedado. A resolução traz também uma lista de documentos necessários para a realização do procedimento, como por exemplo o termo de consentimento livre e esclarecido, contemplando as vontades, os riscos, aspectos legais, de filiação e biopsicossociais envolvidos na técnica. Vale ressaltar que as resoluções do CFM não possuem força de lei, mas são elas que servem de respaldo para os casos de maternidade em substituição que vão parar na justiça (PAIANO; FERRARI; ESPOLADOR, 2013).
Ainda, de acordo com a mencionada Resolução de 2015 do Conselho Federal de Medicina, a cessão do útero é recomendada apenas para mulheres com até 50 anos de idade, mas, caso uma mulher com mais de 50 anos deseje doar o seu útero, não há restrições desde que, junto com seu médico, assumam os riscos de uma gravidez tardia. Em caso de reprodução assistida por casais homoafetivos femininos, o Conselho e a Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida entendem como doação do útero quando uma das parceiras gera um embrião formado pelo óvulo da outra parceira.
Os homens podem doar espermatozoides para a reprodução assistida até o limite de idade de 50 anos e as mulheres podem doar seus óvulos até 35 anos de idade e devem estar em processo de tratamento para reprodução assistida. Interessante também que o Conselho Federal de Medicina autoriza a divisão das custas do procedimento de fertilização entre duas mulheres, estando uma infértil recebe óvulos em excesso da mulher que tenha óvulos férteis, os óvulos não podem ser doados livremente, apenas os espermatozoides podem, com a finalidade de se evitar o comércio genético. Solteiros e casais homoafetivos masculinos também podem realizar a reprodução humana assistida por útero em substituição. Embriões podem ser utilizados na condição de Post Mortem, inclusive no método de barriga de aluguel, desde que haja autorização prévia da pessoa falecida para a utilização de seu material genético para este fim após a sua morte.
A presente resolução regulariza a prática do diagnóstico genético pré-implantação, que consiste em verificar eventuais incompatibilidades genética entre os pais e que possibilitam realizar uma seleção para tentar evitar que o filho venha a nascer com graves problemas de saúde ou ainda permitir que as células tronco do cordão umbilical da criança que será gerada possam ser utilizadas no tratamento de doenças de um irmão doente já nascido. Ao lado disso, são vedadas a seleção de sexo, exceto em caso de doença grave associada ao sexo, conforme estabelece o conteúdo da Resolução FCM 2.121/2015.
Além da citada resolução, conforme destacado por (PAIANO; FERRARI; ESPOLADOR, 2013), a própria constituição federal garante o livre acesso às técnicas de reprodução assistida e também a Declaração Universal de Direitos Humanos. Ainda, Ferreira (2016) destaca a relação direta do assunto com o Código Civil Brasileiro, mais especificamente em seu subtítulo II que trata das relações de parentesco, reconhecimento de paternidade, do poder familiar dentre outras partes do código, como sucessão de bens, por exemplo.
A fim de exemplificar podem ser analisados alguns Artigos do Código Civil Brasileiro. O Artigo 1591 diz que “são parentes em linha reta as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes”, o Artigo 1953 versa que o parentesco é natural ou civil. Deste modo, levanta-se a questão de como ficariam as relações de parentesco de uma criança gerada por útero de substituição. Poderia esta criança ter três origens de parentescos, ou três pais? O Artigo 1958 reconhece a filiação de filhos concebidos por fecundação artificial homóloga e heteróloga e ainda, de acordo com o artigo 1.160, caso venha a ser reconhecida a paternidade ou a maternidade de um filho, esta é irrevogável. Como ficaria ainda a questão do poder familiar sobre o filho gerado? De acordo com os artigos 1.161 e 1.164, o pleno poder familiar compete aos Pais (ambos os pais) e é assegurado a qualquer um deles recorrer à justiça para solução de desacordos. Em casos como este, deve ser dada à hermenêutica uma capacidade de interpretação extensiva da lei.
Como pode ser observado, apesar da lacuna legal existente sobre a prática de cessão do útero, o Conselho Federal de Medicina, através de resoluções, tenta ao menos dar os contornos básicos da regularização da prática dentro do que se é considerado cético e legal no meio médico e científico. Neste sentido, dentro do vasto ordenamento jurídico-legal brasileiro, torna-se necessário aos operadores de direito envolvidos em questões de cessão uterina, assim como profissionais e outros interessados, estarem sempre atentos às interligações que as leis possam fazer com o caso concreto, além da pura e simples observância das resoluções editadas pelo FCM e feitas também pela Lei de Biossegurança.
3 PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA EM PAUTA
A Constituição da República Federativa do Brasil (1988) consagra uma ampla série de princípios, expressos ou não, e outras disposições que podem ser abordadas na análise do direito em relação aos limites da ciência na interferência da vida, assim como nos limites da lei (Estado) na interferência do avanço da ciência e nas liberdades individuais. Em seu Artigo 1º, II, a Constituição apresenta um dos mais relevantes e abrangentes princípios, o da Dignidade da Pessoa.
Em se tratando da análise da reprodução humana por métodos assistidos, como no caso do útero em substituição, comumente chamado de “barriga de aluguel”, vale ressaltar ainda algumas outras relevantes partes da Constituição. Artigo 3º, IV, a Carta Magna diz ser um dos objetivos do Estado a promoção do bem de todos, sem preconceitos ou qualquer forma de discriminação. O Art. 5º, IX diz que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
Para o estudo em voga, ainda é relevante destacar as seguintes partes da Constituição: art. 23, inciso V, proporcionar os meios de acesso à cultura à educação e à ciência; art. 203, inciso I, proteção à família, maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; art. 218, O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica; art. 225, inciso II, preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético e Inciso V, controlar a produção, comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Além disso, o art. 226, § 7º, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
Mais especificamente, no caso do útero em substituição, merece destaque o princípio da dignidade da pessoa humana e a liberdade de formação familiar. De acordo com Leite (2009) a medicina e a biologia introduziram uma nova dinâmica em algo que antes era um processo natural. A geração da vida passa a ser assistida, controlada, criando novos conceitos de pessoa, pai, mãe e filho, parentes e até onde pode-se considerar aceitável o ato de “emprestar” uma barriga para gerar um filho para outra pessoa e como serão estabelecidas as relações familiares desta criança após o seu nascimento. É neste cenário que deve ser analisado os limites do direito e as limitações às quais são impostas ao desenvolvimento de novas técnicas científicas e nas liberdades de escolha dos indivíduos sobre paternidade, maternidade, formação familiar e a realização pessoal, além disso, a capacidade da ciência em interferir ou selecionar as características genéticas da criança conforme os desejos dos pais, com o objetivo de buscar melhoramento genético das condições humanas. Segundo Moreira (2016), a questão “envolve uma redefinição do que antes era circunscrito ao domínio da natureza, sem haver intervenção do indivíduo ou da sociedade”.
Conforme apresentado por Amorin e Pithan (2006), é justamente neste cenário que é necessária a proposição de uma “harmonização entre ética e Direito.” Estas práticas reprodutivas com o avanço da ciência e da medicina criam dilemas éticos e jurídicos em um ambiente onde inexiste limites exatos de até onde se pode ir e do que pode e não pode ser feito. Por exemplo, até onde se manipular geneticamente um embrião para evitar doenças? Ou ainda, quais os graus de parentescos de uma criança gerada com o auxílio de mais de dois indivíduos em sua formação genética e gestacional? São questões como estas que o Biodireito e a Bioética travam no campo jurídico e também na seara do socialmente aceitável e profissionalmente ético.
Conforme apresentado por Viegas (2015), a gestação por cessão uterina traz ao debate ético mais questões, que vão além dos aspectos comerciais. Para a autora é necessária existência de regulamentação específica para lidar com casos em que a geradora crie laços de afetividade materna com a criança gerada, ou ainda casos em que a mãe doadora do útero não quer entregar a criança, casos em que tanto os pais gestores ou mãe gestora se recuse a reconhecer a paternidade da criança, dentre outros casos.
Ainda segundo Amorin e Pithan (2006) estes novos e complexos fenômenos não devem ser restringidos, mas faz-se necessário controlar a sua utilização através de alguns valores. Apesar da lacuna legal, a Bioética se preocupa com três princípios no que concerna à interpretação dos procedimentos científicos e as decisões a serem tomadas quanto à sua aplicabilidade prática dentro dos aspectos éticos. São os princípios da beneficência, da justiça e o princípio da autonomia. O primeiro preza pelo bem do paciente, o segundo se posiciona pela equidade nos serviços de saúde e o respeito e consideração ao direito à saúde e, por último, fundamentado na dignidade da pessoa humana, o princípio da autonomia se refere ao direito de o indivíduo aceitar ou rejeitar o tratamento que lhe é oferecido de conforma consentida.
As resoluções do CFM têm um caráter de regulação ética e se balizam por trais princípios, da mesma forma, servem estes e as resoluções de subsídio para as discussões jurídicas acerca do tema no âmbito do Biodireito. Também, de acordo com Leite (2009), deve ser considerado o princípio da não-maleficência, em que não se deve causar mal ao outro, devendo haver ações para prevenção ou eliminação de danos. A mesma autora destaca ainda as questões éticas que são abordadas além da questão da manipulação genética e das relações familiares, mas em relação ao cunho religioso e filosófico, como as considerações sobre quando se inicia a vida humana de fato. Este reflexo decai diretamente sobre o descarte do excedente de embriões não utilizados e o entendimento de que para haver resguardo de direitos a um embrião, da mesma forma que há para um feto no útero, o embrião deve passar por nidação, que consiste em ter sido implantado no útero. Conforme exposto por Saldanha (2009), o art. 2º do Código Civil Brasileiro, considera que a personalidade civil começa com o nascimento com vida, adotando assim a teoria natalista para a personalidade civil, mas o feto também tem sua expectativa de direito resguardada.
Entretanto, a bioética por si só é uma discussão subjetiva e não tem poder de coação sobre a ação do indivíduo. Como exposto por Amorin e Pithan (2006), são as reflexões da bioética aplicadas ao Biodireito de forma coativa que trazem controle sobre a utilização de práticas biotecnológicas. E a aplicação dos princípios e a interpretação das leis devem levar em consideração o momento histórico em que está sendo analisado o fato, o caso concreto.
Apesar da inexistência de legislação Específica sobre a reprodução por útero em substituição, a prática de “barriga de aluguel” como um negócio jurídico de prestação de serviços mediante pagamento à gestante, não é possível no Brasil. De acordo com Viegas (2015), a prática de barriga de aluguel é enquadrada no Artigo 15 da Lei n° 9.434/97, no âmbito penal, que considera como crime o ato de comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano. A cessão uterina só é regulada de forma gratuita através das mencionadas resoluções do CFM. Entretanto, é corriqueiro aparecer casos em que mulheres alugam o seu útero para gerar filhos para outras pessoas. Inclusive existem vertentes doutrinárias que defendem a regularização da prática contratual do útero em substituição. Algumas das alegações destes defensores se referem ao fato de que o negócio não se relaciona com a venda de partes humanas, não é a criança ou o feto que é vendido, o negócio jurídico seria a prestação do serviço de gestação, o que, por si só, não se enquadraria na legislação penal. Estes defendem a criação de uma legislação específica para os casos de barriga de aluguel e as condições em que um negócio jurídico seria aceitável.
Exemplo da discussão ética da ciência no direito são as próprias resoluções do Conselho Federal de Medicina, que tentam criar os primeiros aspectos de legalidade específica sobre a reprodução humana assistida e, em especial, o caso do útero em substituição e, de forma mais ampla, a Lei de Biossegurança. Por meio desta lei podem-se destacar algumas determinações que são derivadas das discussões da bioética, tais como: artigo 5º, § 3º, que veda a comercialização de células-tronco embrionárias, artigo 6º, inciso III que proíbe a engenharia genética em embrião humano, o Inciso IV, que proíbe a clonagem humana, artigo 24 e 25 que cominam as penas para a utilização ilegal de embriões.
A legislação e as resoluções tendem a colocar alguns limites na prática indiscriminada da reprodução assistida. Conforme exposto por (PAIANO; FERRARI; ESPOLADOR, 2013), tem-se a intenção de impedir que a maternidade por substituição quando a doadora não for parente, torne-se uma mera atividade comercial, por exemplo. Seria a transformação do útero da mulher em um mero instrumento de prestação de serviço reprodutivo.
Ainda, em concordância com Moreira (2016), o Biodireito, inspirado na discussão científica da bioética tem como pressuposto avaliar melhor os avanços tecnológicos e buscar humanizar os seus efeitos e consequência no plano legal e social, impondo limites aos processos biotecnológicos. O Biodireito requer normas coercitivas, embasados nos princípios da Bioética para tutelar os bens jurídicos envolvidos de forma que melhor se encaixe com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Acontece que o avanço da ciência e as demandas sociais são muito mais rápidas que o avanço do direito.
4 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A LIBERDADE DE FORMAÇÃO FAMILIAR
Dentre as previsões legais sobre o tema de reprodução assistida e a cessão uterina, mais especificamente, a que merece considerável destaque é o artigo 227, § 7º, da Constituição Federal que diz “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício deste direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.
Tem-se neste artigo a mais significativa liberalidade trazida pela constituição em matéria de formação familiar, isto é verdade, mas ainda assim, como já discorrido neste trabalho, existem as limitações que também são impostas pela constituição, por leis, costumes e moral, dentre outras normas. Entretanto, cabe ser analisado o limite desta força de dois lados, da liberdade e do controle. Até onde vai a liberdade de formação familiar e quais os limites na ciência empregados para tal? Como é sabido, o direito e as práticas sociais são correlacionados e possuem um perfil evolutivo. De acordo com Arnaldo Rizzardo (apud QUARANTA, 2010), a formação familiar e as decisões internas da família, quanto à educação, costumes, moral e outras, é livre desde que “não afetados princípios de direito ou o ordenamento legal”, assim, cabe ao Estado garantir a saúde sexual dos indivíduos e garantir acessos às técnicas que garantam o tratamento em prol da reprodução e fertilidade.
Como um princípio fundamental e de dignidade à pessoa humana, Quaranta (2010), considera o assunto também fundamentada na Lei 9.269 de 1996, referente ao conjunto de ações e garantia de acesso aos tratamentos de fecundidade como garantia às previsões constitucionais sobre a limitação ou aumento da prole pela mulher, homem ou pelo casal. Neste sentido, segundo a mesma autora, o direito de acesso a técnicas de reprodução assistida consiste em um cunho negativo por parte do Estado, por este não poder proibir e também de cunho positivo, por este garantir os meios de acesso a tais práticas.
As próprias Resoluções do Conselho Federal de Medicina, que versam sobre útero em substituição e reprodução assistida exteriorizam, em suas sucessões no tempo, o caráter inclusivo e evolutivo no que concerne à dignidade da pessoa humana. A primeira das resoluções, de 1992, positivava os primeiros preceitos éticos quanto à manipulação do embrião e vedação ao comércio do procedimento, mas estabelecia que a cessão uterina deveria ocorrer apenas em casos de infertilidade da mulher doadora e a cessão só poderia ocorrer entre parentes da mulher e de até o segundo grau. A resolução de 2010 inovou abrangendo a idade anterior de 35 anos para mulheres doadoras do útero, para até 40 anos, e passou a permitir a fertilização post mortem.
Em 2013, a idade da mulher doadora do útero foi estendida até 50 anos, parentes até o quarto grau podem ceder o útero e ainda abriu precedentes para situações excepcionais de útero em substituição ocorrer com doadora fora da família. Esta resolução também incluiu o método para casais homoafetivos, a doação compartilhada de óvulos e a triagem genética. Em 2015, mantiveram-se os avanços incluídos nas demais resoluções e clarificou a situação de casais homoafetivos femininos, permitindo a gestação compartilhada e restringindo a doação de gametas apenas aos homens e mantendo as limitações de comercialização de material genético e avanço nas práticas de melhoramento genético seletivo.
É importante ressaltar que os avanços nas resoluções tendem a incluir cada vez mais as novas possibilidades e demandas de formação familiar e seguir restringido aspectos de cunho ético quanto à manipulação indiscriminada dos embriões e comercialização desses. Segundo matéria reproduzida pelo CFM, é natural que o Conselho amplie o alcance das normas, visto que esta deve refletir os avanços na área de reprodução assistida e da própria sociedade. As mudanças nas resoluções têm o objetivo de garantir a segurança e oferecer um escopo ético para o trabalho do médico.
Conforma abordado por Saldanha (2009), A dignidade é um valor intrínseco do ser humano, que gera ao indivíduo o direito deste decidir de forma autônoma sobre os seus projetos existenciais e de felicidade, com certa autonomia. Deste modo, “a dignidade é o limite e a tarefa dos poderes estatais”. Ainda, segundo o mesmo autor ordenamento jurídico brasileiro considera a família não somente pelos seus laços genéticos, mas assegura a proteção da família formada pelo afeto e comunhão de vida de seus integrantes por “colaboração, solidariedade e respeito recíproco”. Neste sentido, decidiu-se:
“Família é, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada, o que a credencia como base da sociedade”. (BRASIL, 2011)
Como exemplo de liberdade de formação familiar através do método reprodutivo do útero em substituição e de sua absorção e defesa pelo Estado, pode ser citado um caso recente, veiculado pelo jornal Gazeta Online, em 17 de abril de 2017, em que uma mulher de 52 anos duas crianças gêmeas para o seu filho e seu companheiro homoafetivo. Neste caso, a avó das crianças foi quem as gerou, sendo que as gêmeas são, cada uma, filha, geneticamente falando, de um dos homens e foram civilmente registradas como filhas do casal homoafetivo, também pais biológicos. A gestora assinou um documento afirmando a não maternidade das crianças, confirmando apenas que ela foi o útero em substituição. Porém, o registro de filiação só foi possível mediante a intervenção da justiça, através de um ofício da Defensoria Pública, visto que o Cartório queria registrar a criança com o nome da mãe gestora e sem reconhecimento do pai.
Conforme apresentado por Oliveira e Júnior (2016) existe de forma regulamentar o Provimento 52 de 14 de março de 2016 do Conselho Nacional de Justiça, que pretende regulamentar o registro e a emissão de certidão de Nascimento de Crianças Nascidas por reprodução assistida. De acordo com tal provimento, não é necessária qualquer intervenção judicial para a emissão de Certidão de Nascimento aos filhos gerados por técnicas de reprodução assistida, seja ao casal heteroafetivo ou homoafetivo. Antes a criança era registrada em nome da gestora, pois se entendia por mãe biológica aquela que viesse a parir a criança. Agora não mais, e para o sucesso do registro é necessário apresentar a declaração de nascido vivo do hospital e a documentação da clínica de fertilização que tenha feito o processo além de todos os outros documentos necessários para comprovar a cessão uterina legítima e a paternidade biológica dos pais requerentes. Ainda, não deverá constar no registro o nome da parturiente, que constará apenas na declaração de nascido vivo.
Entretanto, de acordo com Silvera (2015) a falta de legislação específica quanto à gestação por substituição ainda traz problemas na área de filiação do registro civil, como visto no caso noticiado em exemplo, cabendo à justiça aplicar aos casos concretos princípios de direito em conformidade com ética e moral. Para a autora a questão da filiação não pode se limitar apenas ao campo genético ou civil por adoção, a filiação deve ser entendida como o vínculo existente entre pais e filhos, decorrentes de uma relação socioafetiva, seja adotivo, institucional, ou por reprodução assistida.
5 CONCLUSÃO
A discussão sobre a reprodução humana assistida pela técnica de útero em substituição é ampla, envolve temática ética, moral, social, religiosa e lega. Por não haver uma legislação específica sobre a técnica, a mesma permanece em um limbo legal em que se tem por reverência a análise de uma vasta série leis, princípios, normas, regulamentos e outros que tentam dar um mínimo de legitimidade e comportamento ético possível a pratica. A dualidade entre o devir de permitir e o dever de controlar do Estado, é perceptível. O Estado deve garantir a evolução da ciência e a liberdade de formação familiar, da mesma forma que deve proteger o próprio homem do avanço das técnicas da ciência.
E é neste cenário de conflito e debate de ideias que a Bioética tem papel fundamental, sendo o ramo filosófico do pensar os limites da prática e evolução científica, inserida dentro de um contexto social, histórico e evolutivo, que dá subsídio à discussão sobre as legalidades e os limites legais de tais práticas. O Biodireito tenta positivar o que é discutido e inserido como eticamente aceitável ou não aceitável. É imprescindível, porém, que no dever do Estado através da Lei de proteger a vida social e os seus bens jurídicos essenciais, não seja suprimida a individualidade, as liberdades individuais, a liberdade de felicidade e a própria dignidade da pessoa humana que é considerada pela Constituição Federal como o princípio base à formação familiar.
O cenário social contemporâneo consagrou a existência de diversas formas de composição familiar e os avanços científicos encontraram novos meios de realizar o sonho de algumas famílias, ou indivíduos, de terem seus filhos e formarem suas famílias. O direito deve ter interpretação extensiva, a fim de fazer valer o princípio constitucional da contramajoritariedade, promovendo a inclusão e regulando novas demandas sociais e novas práticas científicas, evitando assim que procedimentos sejam realizados à margem da lei e deixando espaços para interpretações vagas.
Acadêmico de Direito da Faculdade Metropolitana São Carlos FAMESC Unidade de Bom Jesus do Itabapoana. Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Cândido Mendes UCAM. Membro do Grupo de Pesquisa: Faces e Interfaces do Direito: Sociedade Cultura e Interdisciplinaridade do Direito
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES
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