Resumo: O presente trabalho tem por objeto fazer uma análise sobre a publicação do doutrinador Fabián Balcarce intitulada “Derecho Penal Económico: Origen multidisciplinario, caracteres y matices de su Parte General”, a fim de produzir reflexões acerca da relação entre a escala evolutiva da disciplina e a sua consolidação enquanto matéria subsidiária do Direito Penal. Através da utilização da metodologia de revisão bibliográfica, pelo método indutivo, analisa-se, ainda, a aplicação dos institutos tradicionais do Direito Penal, sob a ótica das especificidades da matéria subsidiada. Utiliza-se como fundamento teórico as obras de Gunther Jakobs e Edwin Sutherland, sobretudo a Teoria do Etiquetamento (Labelling Approach). Os resultados do presente artigo apontam para uma relação direta entre os fatores sociais, econômicos e religiosos de um determinado momento histórico à criação ou mutação das normas legais existentes, assinalando assim, a função social da norma jurídica, tanto como aparato positivo socialmente validado, como institucionalmente legitimado a regular as mudanças que se sucedem em sociedade.
Palavras-Chave: Direito Penal Econômico; Origem; Características; Balcarce.
Abstract: This presentation has its object as an analysis of Fabián Balcarce’s publication titled as “Derecho Penal Económico: Origen multidisciplinario, caracteres y matices de su Parte General”. Its finality is to produce reflections about the relation between the discipline’s evolutionary scale and its consolidation as subsidiary theme of regular Penal Law. Through the utilization of literature review as its methodology, and by inductive method, it writes an analysis of the traditional Penal Law institute’s application under the specificities of Economical Penal Law. It uses as theoretical foundation authors as Gunther Jakobs and Edwin Sutherland, especially in what it concerns to Labbeling Approach. The results of this article points to a direct relation between religious, economic and social factors from a specific historical moment to the creation or mutation of existent law rules, signing, this way, the social function of juridical norms, both as positive apparatus socially validated, as institutionally legitimized to regulate changes that succeed in society.
Keywords: Economical Penal Law; Origins; Characteristics; Balcarce.
Sumário: Introdução. 1. O Surgimento do Direito Penal Econômico. 1.1 O Papel da Encíclica Rerum Novarum. 1.2. Antes e Depois da Constituição de Weimar. 1.3. Criminalidade de Colarinho Branco. 2. A Consolidação do Direito Penal Econômico. 3. Características do Direito Penal Econômico. 4. Críticas de Balcarce. 5. Critérios Definidores do Conteúdo do DPE. 6. Teorias envolvendo o debate. 7. Interpretação da Lei Penal. 8. Considerações sobre o Tipo Penal. 9. Erro de Tipo, Erro de Proibição e Demais Institutos Penais. Considerações Finais.
INTRODUÇÃO
Fábian Balcarce introduz o seu trabalho norteando o leitor acerca do que será tratado: Primeiramente, (1) dos conceitos de Direito Penal Econômico; (2) das causas que lhes deram origem e que lhes solidificaram; (3) suas principais características; (4) dos aspectos críticos; (5) da sua relação com o Direito Penal; e (6) dos seus matizes distintivos sob os âmbitos do delito, da pena, da teoria e da legislação.
Em “II – Conceito”, Balcarce explica que os mesmos termos utilizados em diferentes países denominam institutos distintos (Delitos Economicos – Espanha; Business Crimes – Inglaterra; Delits D’Affaires – França; Wirtschaftdelikte – Alemanha; Ökonomisk Brotliget – Suécia), daí porque há uma dificuldade maior em conceituar-se internacionalmente o estudo dos Crimes Econômicos.
Segue o autor então pela conceituação do Direito Penal Econômico, mediante três vieses: (1) o sentido genérico – DPE é o setor do Direito Penal destinado à proteção da ordem econômica; (2) o sentido amplo – DPE é o conjunto de regras jurídicas dotadas de consequências jurídico-penais cuja finalidade é a proteção do processo de proteção, distribuição e consumo de bens; e (3) o sentido estrito – DPE é a legislação penal econômica, o conjunto de regras jurídicas dotadas de sanção penal cujo objetivo é a proteção da atividade interventora do Estado e da Economia através do controle e da regulação.
Ainda no sentido amplo, Balcarce conceitua Delito econômico: toda ação punível e as infrações administrativas que se cometem no marco da participação na vida econômica ou em estreita conexão com ela.
O presente artigo busca analisar justamente quais as matizes do Direito Penal Econômico, suas particularidades quanto à aplicação dos institutos tradicionais do Direito Penal, bem como o quanto os fatos históricos, econômicos e religiosos interferiram na sua criação e modificação, ao longo dos anos.
Para este fim, realiza-se um olhar minucioso sobre a obra de Fabián Balcarce, intitulada “Derecho Penal Económico: Origen multidisciplinario, caracteres y matices de su Parte General”, concluindo, ao final, pela necessidade de um acompanhamento, por parte do direito, das mudanças que se sucedem socialmente, sob ameaça de manter-se anacrônico e defasado perante as diferentes nuances que se sucedem no decorrer do desenvolvimento das relações sociais.
1. O SURGIMENTO DO DIREITO PENAL ECONÔMICO
Em “III – Causas de Nascimento e Consolidação do Direito Penal Econômico”, Balcarce classifica como políticas, religiosas, jurídicas e científicas as quatro principais causas que deram origem ao Direito Penal Econômico: (1) a transformação do Estado agrário e a crise do Estado Liberal; (2) a atualização do pensamento da Igreja; (3) a elaboração da Constituição de Weimar, primeira Constituição com relevância econômica; e (4) a Teoria Criminológica dos Delitos de Colarinho Branco, de Sutherland.
O autor especifica que o processo de construção e solidificação do Direito Penal Econômico se deu entre o último quarto do século 19 e o início da década de 40, já no século XX: “As três décadas posteriores trouxeram novas causas que fortificaram a posição desse específico setor”.
Quanto às causas que deram origem ao DPE, Fábian Balcarce comenta: “Um Direito penal econômico, em sentido próprio, só começa a existir quando aparece a necessidade política de uma economia dirigida e centralizada”.
Neste mesmo seguimento, em “Política: Transformação do Estado Agrário e crise do Estado Liberal”, Balcarce salienta que durante a existência política do Estado liberal, não houve uma preocupação em se pensar um Direito Penal que prevenisse condutas atentatórias às práticas comerciais normais entre países. Isto porque o Direito Penal possuía um caráter liberal, cujo nascimento político se deveu à transformação dos Estados agrários em industriais e comerciais.
Assim, “Na nova estrutura social, a economia deveria se organizar segundo as leis naturais que – deixadas em liberdade –, necessariamente produziriam um bem estar generalizado. O liberalismo previu que o bem comum deveria ser alcançado através da lei da oferta e da procura”. Quanto ao Direito Penal, este teria uma função subsidiária e só seria utilizado em ultima ratio, para defender interesses mais relevantes, tais como os “Direitos Naturais” dos homens e as instituições fundamentais do Estado Liberal.
1.1. O PAPEL DA ENCÍCLICA RERUM NOVARUM
Quanto às questões de cunho religioso que influenciariam a consolidação do DPE, Balcarce explica que, foi com a publicação da Encíclica Rerum Novarum, durante o papado de Leão XIII, que os ideais de direitos sociais do proletariado foram finalmente reconhecidos pela Igreja Católica (direito à retribuição justa, ao descanso, à associação, à previdência social). Tal acontecimento demonstrou o contexto social de mudanças da época, em que passa a se reconhecer, por parte do povo e de determinadas instituições sociais, a existência de direitos supraindividuais ou coletivos, a exemplo do direito à defesa das associações e agremiações, as quais, em face dos seus contornos especiais e das suas necessidades específicas, necessitam tutela diferenciada da que recai sobre os cidadãos em sua individualidade.
Foi também através da Rerum Novarum que várias formas de expressão social puderam ser documentadas, tais como a popularização dos ideais socialistas e, sobretudo, marxistas. Os seguidores dessa linha de raciocínio acreditavam que os problemas sociais existentes, tais como a pobreza, a fome e a desigualdade patrimonial, poderiam ser sanados com o fim da propriedade privada, tornando todos os bens comuns e administrados pelo governo. Defendiam, eles, que “com esse traslado de bens do particular para as comunidades, distribuindo por igual as riquezas e o bem-estar entre todos os cidadãos, se poderia curar o mal existente”. Esse pensamento alastrado a posteriori aos movimentos da revolução industrial fora fortemente criticado pelo Papa León XIII, críticas essas as quais serão mais bem elucidadas a seguir.
A situação social da época já era conhecida: uma estrutura oligárquica onde a riqueza era acumulada nas mãos de poucos, enquanto a pobreza era a expressão da contundente maioria. Com a Igreja ainda seguramente presente, condenando a usura e o desejo de riquezas cada vez mais arraigado dentre os detentores do capital, cresce a situação de descontentamento por parte das classes sociais trabalhistas, que passam a se fortalecer ideologicamente e a se organizar objetivamente.
É neste cenário de descontentamento que surgem os primeiros contornos de uma popularização dos ideais marxistas, que acabam por trazer consequências mais prejudiciais do que benéficas aos próprios trabalhadores que os defendiam, na medida em que, o pouco de propriedade que conseguiam, através do seu trabalho, passaria a não mais lhes pertencer, o que lhes retirava a capacidade de recompensa pelo quanto produziam. Essa era uma das mais racionais críticas dirigidas ao socialismo, por parte do papado de León XIII, a qual se mostrou presente especialmente em face da publicação da supramencionada Encíclica: “Os socialistas pioram assim a situação dos operários quando tratam de transferir os bens dos particulares à comunidade, posto que, privando-os da liberdade de seus benefícios, lhes despejam da esperança e da possibilidade de aumentar os bens familiares”.
A transferência de bens do privado para o coletivo privava os trabalhadores, deste modo, de alocarem seus ganhos onde desejassem, impossibilitando-os de atravessar a sua posição econômica ausente de privilégios sociais. Simultaneamente, o socialismo também determinaria uma amputação do direito humano do proletário à propriedade privada, em um momento cuja própria Igreja determinava que, possuir algo como próprio era um direito dado ao homem por natureza.
Estabelecia-se, ainda, que as diferenças intrínsecas de habilidade, saúde e talento dos homens acabavam por expressar-se naturalmente através das suas diferenças de patrimônio, tal como uma “meritocracia” (se alguém possui algo, foi porque suas habilidades e força o permitiram possuí-lo). Este ideal, quando analisado à luz da contemporaneidade e aos conhecimentos da pós-modernidade, é claramente considerado absurdo, especialmente se levarmos em consideração determinados pontos tais como a mais valia (o empregador lucra em cima do lucro produzido pelo seu empregado), questões históricas (dificuldades e empecilhos travados pelos pobres e negros que tentam transpor posições sociais, acadêmicas, sociais e de emprego), e demais recortes de gênero, raça e sexualidade (dados atuais evidenciam que uma mulher, por exemplo, em mesma função que um homem, recebe aproximadamente o referente a 80% do salário daquele).
Foi na Rerum Novarum que inúmeros outros temas foram tratados de maneira inovadora, tal como a família e a tese jusnaturalista dos direitos individuais (tanto aquela quanto estes existiam anteriormente à República, à sociedade civil e à constituição das comunidades políticas, daí porque deveriam ser tratados como direitos fundamentais do homem, não podendo ser-lhes retirada a possibilidade de velar sobre seus corpos e sua vida).
Outro tema tratado foi a propriedade privada, e para isso Fábian Balcarce alerta que, para que a situação das classes inferiores recebesse um melhoramento, o ideal não seria transformar todos os bens privados em comuns, e sim manter inviolável a propriedade privada, para que as funções do Estado e a tranquilidade comum permanecessem inalteradas.
Deste modo, buscar uma possível melhora na qualidade de vida de uma comunidade, tomando como ponto de partida a propriedade privada, significava crer necessário aos operários trabalhar mais, a fim de que adquirissem mais bens (com a propriedade privada inviolável) e, assim, acumulassem mais riquezas e automaticamente mais “status” social: “As leis devem favorecer este direito [à propriedade] e prover, na medida do possível, que a maior parte da massa trabalhadora tenha algo em propriedade. Com isso, se obteriam notáveis vantagens, e sem dúvida alguma, uma mais equitativa distribuição de riquezas”.
O grande problema aí residia, entretanto, na mais valia, ou, em outras palavras, no fato de que todo o excesso de lucro produzido pelo empregado se destinava ao seu empregador. A falta de direitos trabalhistas que compensassem a hipossuficiência inata dos operários os impediam de almejar a ascensão social e de concretizar esta igualdade de posição perante os seus patrões, daí que, a maior quantidade de trabalho humanamente possível nunca seria suficiente para que estes conseguissem alcançar a posição social de um empregador, devido ao fato de que não lhes eram possibilitadas condições fáticas para tanto, especialmente quando se levava em consideração que a classe rica e poderosa não apenas era detentora de riquezas, mas também de influência na Administração Pública.
Quanto às funções do Estado, compreendia-se tanto que a este cabe velar pelo bem comum como sua missão própria, como que o dever inescusável dos governantes era “beneficiar as demais ordens sociais e aliviar a situação dos proletários”, contribuindo para a prosperidade das nações (tanto da sociedade quanto dos indivíduos), a qual brotaria espontaneamente da Administração através da sua cooperação com as leis e instituições, bem como da observância dos costumes, da religião, da justiça, dos valores da família, do progresso da indústria e do comércio, da equitativa distribuição de cargos públicos, etc.: “quanto com maior afã são impulsionados, tanto melhor e mais felizmente será permitido que se vivam os cidadãos”.
Sobre a relação entre o capital e o trabalho, da Encíclica se desprendia que “nem o capital pode subsistir sem o trabalho, nem o trabalho pode subsistir sem o capital”. Em outras palavras, é o mesmo que aceitar que, tanto não há trabalho sem o salário como sua recompensa, como não há forma de se obter este mesmo salário sem que se o faça através do trabalho (e aqui, mais uma vez, nota-se o emprego do ideal de uma meritocracia, o qual pode ser rebatido pelo argumento da mais valia e dos outros demais anteriormente citados – impossibilidade física de se adquirir um montante tal, através do trabalho, que o permitisse chegar à posição de uma classe alta empregadora que recebeu o seu status através da família; impossibilidade fática de possuir influência sobre as decisões da Administração Pública; discrepância nas oportunidades de aprendizado formal e informal; etc.).
Outro ponto presente na retromencionada Carta diz respeito ao salário, sendo citada a natureza criminosa daquele que defrauda salários e o quão sagrado é considerado o daqueles que têm pouco: “quanto mais débil seja seu salário, tanto mais deve ser considerado sagrado”.
Ademais, que aos ricos cabe evitar cuidadosamente que prejudiquem os proletários, seja com violência, fraudes ou artifícios usurários, tendo em vista que não terão os empregados como se defender de tais injustiças.
No que concerne aos proletários, na supracitada Encíclica consta que seria um absurdo atender a uma parte dos cidadãos e abandonar a outra, arguindo que “devem ser prestados os devidos cuidados ao bem-estar da classe proletária, e se não o é feito, violará a justiça, que manda dar a cada um o que lhe é seu”: “Daí que entre os deveres dos governantes que velam pelo bem do povo, se destaca entre os primeiros, a defesa por igual de todas as classes sociais, observando inviolavelmente a chamada justiça distributiva (…) devendo fomentar todas aquelas coisas que de qualquer modo resultem favoráveis para os trabalhadores”, pois ao Estado [teoricamente] interessa que estes não vivam em miséria, já que sua função é manter o bem-estar social.
Quanto ao direito laboral, sobre o tema, aborda a Encíclica, que caberá intervenção legal e das autoridades quando forem praticadas injustiças pelos empregadores aos seus operários, citando as seguintes situações: quando lhes negarem direitos naturais de família; quando lhes denegarem a fé, retirando-lhes o tempo para que pratiquem sua religião; quando incentivarem a promiscuidade e o pecado; caso a classe patronal oprimir os obreiros com cargas injustas de trabalho, ou impondo condições insalubres ou ofensivas à dignidade da pessoa humana; se lhes impuserem trabalho excessivo que prejudiquem a sua saúde; se lhes impuserem condições de trabalho inapropriadas ao sexo ou à idade do trabalhador; etc.: “Os direitos, sejam de quem forem, deverão ser respeitados inviolavelmente; e para que cada um disfrute do seu, deverá o poder civil provê-los, impedindo ou castigando as injúrias (…) só que na proteção dos direitos individuais, haverá de se observar principalmente os direitos dos fracos e oprimidos”.
Deste modo, a referida Encíclica, em que pese criticar as teorias socialistas, aceita a hipossuficiência dos pobres e operários, afirmando que “As pessoas ricas, protegidas por seus próprios recursos, necessitam menos da tutela pública; a classe humilde, por sua vez, carente de todo recurso, se confia principalmente ao patrocínio do Estado (…) que deverá, por conseguinte, rodear de singulares cuidados e providências os assalariados, que se encontram desvalidos”.
A mencionada trata ainda de outras questões tais como: (1) o direito ao descanso – cria-se que, a primeira coisa que deveria ser feita para a tutela dos bens do corpo seria livrar os pobres operários da crueldade dos empregadores ambiciosos, que abusavam das pessoas sem moderação, cuidando para que a jornada diária não se prolongasse para além das forças humanas, e garantindo um intervalo para descanso, o qual deveria ser definido pela classe trabalhadora, de acordo com as condições físicas do operário e com as circunstâncias de tempo e lugar em que se era praticada a atividade laboral –; (2) os tributos – “o direito de possuir bens em privado não foi conferido por lei, e sim pela natureza, portanto, a autoridade pública não pode lhe abolir, apenas moderar o seu uso (…) procederia de maneira injusta e inumana se exigisse dos bens privados mais do que lhes é justo, a título de tributos” –; (3) as mulheres e crianças – a estes, era conferido tratamento especial, posto que se acreditava, na época, que haveria ofícios “menos aptos” para as mulheres, bem como que teriam sido nascidas para o trabalho doméstico, tanto para proteger o decoro feminino, como para responder pela educação dos filhos e pela prosperidade da família –; (4) as agremiações – as quais eram vistas com bons olhos pela Igreja, vez que existiam como uma forma de expressar as necessidades dos trabalhadores, aceitando entretanto, que sua associação era facultativa, e que quando um operário não coadunasse com algum ideal desta, que pudesse optar por não associar-se, constituindo sua própria agremiação, e quando a existente não estivesse de acordo com o que acreditava ser favorável às suas necessidades laborais –; e (5) sistema de previdência social – “em nenhum momento deve faltar ao operário abundância de trabalho (…) tanto nos casos de acidentes fortuitos da indústria quanto na doença”, de modo que possa continuar trabalhando e recebendo proveitos por este, ou que possa optar por aquele trabalho que estiver mais de acordo com as suas necessidades.
Em resumo, a Encíclica Rerum Novarum tanto trazia ideais favoráveis aos trabalhadores (Direito Penal Laboral, Direito Penal Tributário, etc.), como interessantes para a ideologia dirigista e controladora do Estado (previa que o operário possuía direitos, mas este continuava subserviente ao empregador, na medida em que se incentivava o ideal inalcançável de que através do trabalho, conseguiria chegar ao mesmo patamar do seu patrão).
1.2. ANTES E DEPOIS DA CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR
Voltando aos caracteres que deram origem ao Direito Penal Econômico, pode-se depreender, sob o viés jurídico, que a elaboração da Constituição de Weimar significou um dos pontos primordiais para este resultado, por tratar-se da primeira Constituição com relevância econômica para o Direito.
Anteriormente à sua elaboração, todas as demais Constituições “não possuíam mais do que escassas referências ao direito de propriedade, deixando o resto da vida econômica ao jogo natural das forças de mercado”. Foi com a Constituição de 1919 de Weimar que se introduziu, no âmbito constitucional, uma série de disposições relativas ao ordenamento econômico, fruto do acordo político entre liberais e socialistas. Inclusive, foi o estudo dessa constituição que passou a ser conhecido na Europa como Direito Constitucional Econômico, que fora complementado posteriormente com as Constituições Italiana de 1947, Alemã de 1949, Portuguesa de 1976 e Espanhola de 1978. O Direito Econômico Constitucional, por conseguinte, passou a ser definido como “o conjunto de normas básicas destinadas a proporcionar o marco jurídico fundamental para a estrutura e o funcionamento da atividade econômica (…), para a ordem e o processo econômico”.
1.3. CRIMINALIDADE DE COLARINHO BRANCO
Sob um viés científico, pode-se dizer que não haveria Direito Penal Econômico como hoje o compreendemos, se não fosse pelos estudos de Sutherland, e da sua Teoria Criminológica dos Crimes de Colarinho Branco.
Todos os fatos delitivos os quais anteriormente eram remetidos ao estudo da Criminologia, Sutherland passa a compreender como situações analisáveis pelo viés do Direito Penal, classificando ainda como fundamentais as leis penais referentes a delitos praticados por empresas, não obstante terem sido ponto de discussão, pelo direito penal clássico, se seriam seus objetos situações delitivas ou não.
Sutherland conclui que “são penais em um sentido mais fundamental”, por transpor o aspecto individual, as leis referentes às ilegalidades praticadas por empresas, tais como a lei antitruste; as leis que tratariam sobre propaganda enganosa, relações laborais ou patentes; dentre outras. O fato de serem dotadas de sanção penal ou não também se torna critério para definir se determinada lei pode ou não ser considerada penal.
A partir destes estudos, nascem os primeiros critérios de identificação dos delitos de colarinho branco e de corrupção administrativa. Esclarece o autor que, nas sociedades primitivas, os delinquentes eram considerados pessoas de uma classe social mais baixa – aqui, nota-se influência dos estudos de Gunther Jakobs e o seu Direito Penal do Inimigo, quando identifica um costume das sociedades em etiquetar o delinquente como o “estranho”, criticando a inabilidade das pessoas em reconhecerem-se no outro –, logo, é mais do que justificável, a partir do quanto demonstrado, que o procedimento legal adotado para aqueles que não são assim considerados (como inimigos) é diferenciado do comum, haja vista que seus agentes são reconhecidos pela sociedade como “homens de negócios”, status esse que produz simultaneamente medo e admiração por parte dos cidadãos comuns, os quais os colocavam na mesma posição social de juristas e legisladores, por exemplo, detentores de notável e distinto conhecimento formal.
Sobre o demonstrado, Balcarce aponta três motivos pelos quais se aplicaria diferenciadamente a lei sobre os agentes delitivos representantes de empresas: (1) o primeiro, justamente por serem considerados homens de negócios, e não serem vistos pela sociedade com o mesmo grau de reprovabilidade de um delinquente comum – atualmente, vemos resquícios deste procedimento diferenciado aplicado aos que se diferem do delinquente comum, quando vemos a possibilidade de prisão diferenciada para os “letrados” (presos provisórios com ensino superior completo – art. 295, inc. VII, CPP), bem como a de um foro privilegiado para autoridades públicas – Capítulo VII do CPP; (2) segundo, em decorrência de uma tendência natural ao não castigo (tendência de não se usar métodos penais, por não haver um ressentimento maior do público quanto aos delitos de colarinho branco – e aqui, cabe citar o “ressentimento desorganizado” da população como consequência de uma falta de maior expressão, nas mídias sociais, dos desejos do povo, já que os meios de comunicação de massa são em geral controlados por uma oligarquia que impede a proliferação de movimentos sociais através da política do “pão e circo”, e da veiculação única e exclusiva de discursos do seu interesse); e, por fim, (3) devido ao fato de que o autor dos crimes de colarinho branco estariam “socialmente adaptados”, devido ao seu cargo profissional – situação esta que tornaria o condenado resistente aos esforços preventivos-gerais da pena (nota-se aqui uma espécie de justificativa hipócrita para a falta de uma punição mais severa à prática desta classe de delitos, sobretudo quando não se observa a mesma preocupação com a efetividade ou não dos resultados almejados com os fins penais sobre aqueles condenados considerados comuns).
Quanto a essa adaptação social a uma situação ou outra, Sutherland ainda aponta como circunstância fundamental a título de motivação, na análise de um possível aumento ou diminuição da pena, o fato de que determinados agentes delitivos acabam por sofrer uma espécie de assimilação normativa, quando se encontram rodeados por uma comunidade onde a criminalidade é a regra. No que concerne a essa crença de que um indivíduo rodeado de agentes delitivos têm mais predisposição a praticar crimes, podemos rebater tal argumento com a Teoria das Janelas Quebradas, que demonstrou que um ambiente formado por pessoas de maior ou menor classe social, por si só, não determina o aumento da criminalidade praticada pelos seus integrantes.
Ademais, a única justificativa plausível para a adoção de um procedimento diferenciado sobre os crimes de colarinho branco seria a complexidade dos fatos: logicamente que seria necessário um indivíduo especialista no assunto para tratar de determinados delitos econômicos de desvio de verbas, como profissionais da área de contabilidade, por exemplo.
Todavia, quando analisamos este fato a luz das questões de cunho nacional, pode-se dizer com firmeza que: (1) os procedimentos legais adotados no Brasil são suficientemente capazes de julgar quaisquer tipos de crime – nada impede que estes profissionais especialistas sejam chamados a agir no processo, quando necessário o seu parecer – e; (2) especialmente no que concerne ao princípio constitucional da isonomia, não haveria que se falar em foro privilegiado para quem quer que fosse – se, antigamente, eram os empresários considerados figuras de alto nível social e de conhecimento, razão que justificaria o procedimento diferenciado, hoje temos o tratamento diferenciado conferido a políticos e juristas que se corrompem na sua atividade profissional, o que demonstra a reiteração de um tratamento institucionalizado que considera determinadas pessoas, em razão do cargo que ocupam, superiores às demais.
Quanto ao Labelling Approach, ou à Teoria do Etiquetamento, também citados nos estudos de Sutherland, pode-se dizer que, a aceitação da possibilidade de um maior número de pessoas predispostas a praticar um crime – e não mais uma minoria considerada “estranha” –, não mudou o fato de que, dentre esse conjunto de pessoas aptas a praticarem um crime, apenas uma parcela será considerada como delinquentes clássicos, cuja atitude terá uma reprovabilidade maior (e aqui, cabe informar que, não obstante os requintes de crueldade possuírem notável influência na forma como se enxerga seu praticante, tal determinação não será feita puramente através da análise da conduta, mas, em vultuosa parcela, serão consideradas também características pessoais do agente, tais como sua cor de pele, classe social ou escolaridade).
Neste sentido, percebe-se que não houve uma mudança considerável, por parte da sociedade, no que concerne a seus preconceitos com relação a determinados tipos de transgressores. Por mais que atualmente exista uma intolerância maior às ilegalidades praticadas por indivíduos de status social superior, tais como as autoridades políticas, ainda há um longo caminho até que se equalize o tratamento conferido a estes indivíduos e os cidadãos comuns, vez que o aumento da reprovabilidade social posta sobre os crimes contra a administração pública ainda não foi suficiente para aumentar a dureza com que se aplicam sobre estes agentes os institutos penais, bem como não diminuiu o ódio que atualmente se dissemina, em especial nas redes sociais, contra os delinquentes comuns. E esse tipo de problema influi na forma como se legisla, possibilitando a perpetuação de um tratamento desigual aos diferentes tipos de agentes delitivos, e ferindo a Carta Magna em vigência no território nacional, sobre o seu princípio da igualdade amplamente tratado em seu art. 5º.
2. A CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO PENAL ECONÔMICO
Posteriormente a essa análise sobre as circunstâncias que deram origem ao Direito Penal Econômico, Balcarce passa a discorrer sobre as causas que estabilizaram a vigência do DPE, classificando tais motivos em três âmbitos distintos: (1) Político – o nascimento do Estado Social (Democrático de Direito); (2) Social – a transformação do protagonista econômico: do empresário à empresa societária e a transnacionalização da delinquência econômica; e (3) Sociológico – a descrição da Sociedade do Risco.
O nascimento do Estado Social, ou Estado Democrático de Direito, foi marcado pela superação de três ideais: liberal, totalitário e socialista. Cada uma dessas três vertentes caiu por terra, tendo sido criticadas majoritariamente pelas seguintes razões: o Estado Liberal, pela sua falta de compromisso para com o indivíduo de baixa renda; o Estado Socialista, por não se preocupar com a autorrealização da classe operária; e o Estado Totalitário, por anular quaisquer possibilidades das pessoas comuns terem acesso à vida pública.
Foi no século XX, com a publicação da Lei Fundamental Alemã de 1949, que o Estado Social passou a ser denominado Estado Democrático de Direito, com a construção de um novo modelo de organização política o qual possibilitou uma união dos aspectos positivos dos modelos anteriores: os direitos sociais defendidos pelo Estado Socialista, e os direitos de autonomia individual do Estado Liberal, marcadamente pela garantia da participação do cidadão na vida pública (social e política), bem como pelo seu caráter de permitir a autorrealização do ser humano.
Quanto à substituição da compreensão de um empresário individual para a aceitação de uma pessoa jurídica de caráter industrial/de prestação de serviços com fins lucrativos, é a partir desse marco que se possibilitou a diferenciação entre os sócios cotistas e os sócios administradores das empresas (enquanto um aporta capital, o outro administra a atividade empresarial).
Neste sentido, passa-se a diferenciar os delitos cometidos pelos empresários, dos delitos cometidos pelos funcionários da empresa, abrindo espaço para novos sistemas de imputação penal: Quem passa a responder não são os funcionários da empresa, e sim a pessoa jurídica individualmente.
A consequência dessa mudança, na realidade criminológica da delinquência econômica, foi a utilização do nome da empresa para tentar esconder as práticas infracionais dos próprios agentes, ou para garantir a sua própria execução (determinados crimes só podem ser praticados por pessoas físicas, daí que tomar atitudes criminosas em nome da empresa se apresentava como uma solução para tentar contornar a justiça ou uma possível sanção penal).
Vale ressaltar que, neste período inicial, ainda não se falava em despersonalização da pessoa jurídica, fenômeno atualmente comum após a popularização da prática dos “laranjas” – alocação de terceiros em nome da empresa, por parte do empresário, para tentar evadir-se da responsabilização penal.
Sob um viés sociológico, outro fenômeno de suma importância para a consolidação do Direito Penal Econômico é a descrição de Ulrich Beck sobre a “sociedade do risco”. Para Ulrich, “a sociedade pós-moderna assume uma carga de risco em sua própria identidade que encerra uma grave contradição: o perigo da sobrevivência da espécie”.
O projeto do Welfare State, na concepção de Ulrich, acabou por se mostrar demasiadamente genérico, e não levou em consideração os riscos inerentes ao desenvolvimento técnico-econômico das sociedades (os problemas ecológicos; as catástrofes nucleares; o desemprego em massa; dentre outros).
Em outras palavras, o potencial genocida causador de possíveis danos massivos e irreversíveis oriundo do desenvolvimento nuclear era imprevisível, quando consideramos o modelo econômico e a estrutura social daquele século. A tecnologia passou a se constituir como principal causadora de riscos; e uma sociedade tecnológica e excessivamente desenvolvida passou a ser considerada potencialmente catastrófica: “Enquanto as sociedades do passado viviam sob a permanente ameaça de perigo natural, grande parte dos riscos a que estão expostas as sociedades atuais têm sua origem na própria atividade humana”.
Em seguida, Balcarce comenta brevemente a situação da América Latina, salientando que a discussão do tema se iniciou paralelamente aos debates jurídicos sobre o assunto na Europa, tendo em vista a necessidade de estímulo à adoção de novas políticas de desenvolvimento nesses países de “Terceiro Mundo”, isso por conta da escassa atividade científica e da inexistente atividade política nesses locais, cujas finalidades seriam a unificação das normas básicas e da doutrina existente sobre o Direito Penal Econômico.
3. CARACTERÍSTICAS DO DIREITO PENAL ECONÔMICO
Balcarce dá seguimento ao seu trabalho pontuando as principais características do DPE: (1) Prevalentemente Acessório; (2) Dinâmico e Variável; (3) Adstrito ao Princípio da Solidariedade; (4) Propiciador de Diferentes Vias à binária tradicional da Pena e da Medida de Segurança; e (5) Vinculação estreita com o DPE Processual.
O DPE é considerado acessório, tendo em vista se encontrar, no ordenamento jurídico argentino, inserido em diversas leis de outros ramos, tais como no Código Aduaneiro, ou ainda, na Legislação Penal Extraordinária (citado, por exemplo, na legislação penal tributária).
Deste fato depreende-se que o Direito Penal Econômico se situa, no mundo das leis, em pouca medida, dentro do Código Penal. Daí porque não pode ser considerado um ramo principal do Direito, tal como o Direito Civil ou o Direito Penal propriamente dito.
É, ainda, considerado um ramo dinâmico e variável do direito, vez que segue o ritmo de transformação da legislação a qual se submete, devendo possuir, desta forma, uma construção flexível que permita a sua atualização, de acordo com as novidades que venham a se suceder no mundo econômico.
Também é adstrito ao Princípio da Solidariedade, o que significa dizer que, oriundo de um Estado Democrático de Direito, tem a sua existência submetida a esta norma, “cujo fundamento se deve a uma vinculação positiva e prévia entre o agente e a instituição”.
Este enlace se baseia na solidariedade enquanto expressão de um mundo comum, o qual se sustenta a partir de determinadas instituições basilares da vida social, tais como a proteção ao ecossistema – direito penal ambiental –, ou à Fazenda Pública – direito penal tributário.
Além disso, é propiciador de vias alternativas à tradicional binária “pena x medida de segurança”. No DPE, tem-se a reparação do dano como terceira via, que pode ser uma opção para quando não se mostrar cabível ou necessária a aplicação de uma pena propriamente dita (a exemplo dos casos de menor clamor social, ou dos crimes de ofendem bens jurídicos mediatos, tais como os crimes tributários ou ainda, os de colarinho branco); e as denominadas “consequências acessórias”, como quarta via – “modalidade destinada a alcançar as pessoas jurídicas beneficiadas por feitos delituosos de caráter econômico através de sanções concretas”: “Mesmo quando se sustentam na periculosidade do agente, um setor da doutrina estima que a diferença se funda no fato de que as medidas de segurança se aplicam às pessoas que tenham delinquido e que possam voltar a delinquir; enquanto que as consequências acessórias se aplicam às coisas (armas, benefícios) ou organizações incapazes de delinquir, mas que são perigosas por favorecerem o cometimento de delitos às pessoas físicas que deles se utilizam”.
Possui, igualmente, uma estreita vinculação com o direito penal econômico processual, visto que as questões processuais, tais como a possibilidade de provar uma conduta, acabam por modificar o direito material.
Balcarce comenta ainda sobre uma possível tensão existente entre o DPE e o Direito Penal propriamente dito; e passa a tratar das Relações do DPE com o Direito Administrativo e com o Direito Penal latto sensu.
No que concerne à sua relação com o Direito Penal material (latto sensu), pode-se dizer que há certa tensão sobre a relação existente entre estes dois campos: o direito penal tradicional fora pensado para delitos comuns, não se vislumbrando, à época, o surgimento de um direito penal voltado especificamente para crimes econômicos.
Deste modo, torna-se desafiador agregar princípios obsoletos, pensado para outras espécies criminosas, às espécies previstas no DPE. Cabe ao direito penal material, então, atualizar-se, de modo a se adaptar às necessidades desses novos tipos delitivos, os quais necessitam de novas estruturas formais de imputação.
De outro giro, o DPE mostra-se cabível a título de legislação penal especial, visto que pode ser considerado uma “normativa de exceção”. Nessa esteira, tem-se o art. 4º do CP Argentino, que aventa: “As disposições gerais do presente Código se aplicarão a todos os delitos previstos por Leis Especiais, enquanto estas não dispuserem em contrário”.
Do mesmo modo, comenta Balcarce: “Os princípios gerais do CP são aplicáveis tanto quanto não dispor em contrário a Lei Especial”.
O DPE também mantém relações estreitas com o Direito Administrativo, e sobre a matéria, é possível afirmar que determinados delitos representam uma ofensa simples aos interesses da Administração Pública, não se projetando sobre a consciência jurídica e moral do povo. Por essa razão, o juspuniendi sobre essas espécies delitivas (delitos administrativos) seriam de competência da autoridade administrativa. E a pena administrativa, diferentemente das penas correcionais comuns, se constituiria como uma simples pena de ordem.
Sobre o mesmo assunto, Balcarce faz uma rápida distinção entre crime e contravenção (o primeiro pode ser considerado “um feito moralmente reprovável que ofende os direitos naturais ou princípios da ética universal”; enquanto que o segundo “se reprime por meras razões de utilidade pública”), bem como entre delitos penais e delitos administrativos (enquanto um fere interesses da Administração Pública, o outro “lesiona ou põe em perigo direitos subjetivos”), de modo a ilustrar que determinadas situações se encaixam mais em um âmbito administrativo do que penal propriamente dito, visto que nem sempre se referem ao valor da justiça, e sim ao valor do bem-estar social.
Neste desiderato, Balcarce aponta que não se pode confundir o direito penal administrativo com um direito penal de bagatelas, visto que o valor da causa ou a lesividade do feito não são critérios de distinção entre um delito penal ou administrativo, e sim o bem jurídico que ofendem ou ameaçam ofender. Defende, ainda, ser plenamente possível utilizar-se do direito penal administrativo para “expressar determinada realidade legislativa ou constituir um postulado dirigido ao legislador, para que ponha limites ao Direito Criminal”.
4. CRÍTICAS DE BALCARCE AS QUESTÕES ENVOLVENDO O DIREITO PENAL ECONÔMICO
Em dado momento, o autor passa a tecer críticas genéricas a temas como (1) a inflação penal; (2) a crise do princípio da subsidiariedade; (3) a proliferação dos delitos de perigo abstrato; (4) a manifestação das ideologias de esquerda; e (5) o nascimento de um direito penal simbólico.
Todas essas críticas, de algum modo, se relacionam com o chamado Direito Penal do Risco (ou Direito Penal da Seguridade), o qual busca tutelar padrões de segurança considerados necessários para a estabilidade do sistema. O direito penal do risco possui três finalidades: a preservação do futuro, através da luta contra os novos grandes riscos; a aquisição de um caráter de direção global, pela proteção dos bens jurídicos universais atingidos pelos delitos de perigo abstrato; e, por fim, a sua incidência na sociedade como Direito Penal simbólico.
A primeira crítica geral diz respeito à Inflação Penal, ou seja, às costumeiras mudanças penais “in malam partem”, por assim dizer. O que ocorre é uma incidência maior de novos tipos penais ou um aumento nas formas de criminalização, quando das transformações realizadas sobre os Diplomas Penais. E essa ampliação ou incorporação de novos tipos ou qualificações penais são resultado de um pensamento punitivista engendrado na sociedade, seja nos próprios legisladores, seja na população em geral (vide inserção da qualificadora do feminicídio ao CP Brasileiro, como resultado de uma pressão social na defesa de seus interesses).
Neste sentido, Balcárce defende ser a inflação penal o resultado de um conjunto de fatores, dentre eles o nascimento de novos interesses sociais; o desenvolvimento da economia; a aparição de novas tecnologias; e o aumento da proteção aos bens jurídicos independentes.
A segunda crítica geral trata do Princípio da Subsidiariedade, vez que “o Direito Penal Econômico deve ajustar-se rigorosamente aos postulados do Estado de Direito”. Isso quer dizer que, “antes de uma expansão desmedida dos instrumentos penais, devem-se propor alternativas que permitam manter o núcleo histórico liberal da legislação penal”.
Sobre esta observação, cabe lembrar a obsolescência da distinção qualitativa entre delito e contravenção penal: o Direito Penal Econômico não mais se situa como constituinte de um Direito Penal Administrativo, visto que a nova distinção quantitativa entre crime e contravenção não permite esta subsidiariedade – pelo contrário, atualmente, na Argentina, o Direito Penal Econômico se situa em via tal que é considerado Direito sancionador, em um “meio caminho” entre a tutela dos crimes e das contravenções.
O DPE é considerado um “Direito de intervenção de segunda velocidade”, justamente por não tratar-se de um direito cuja tutela imediata seja necessária, através da mantença das políticas criminais tradicionais, tais como a aplicação das penas privativas de liberdade (considerada finalidade última da tutela penal) ou ainda os princípios político-criminais e as regras clássicas de imputação criminal, ambos característicos de um direito de intervenção de primeira velocidade.
Não há como situar o DPE em um direito de intervenção de terceira velocidade, visto que, em razão da sua matéria, não se considera a aplicação da pena privativa de liberdade, neste caso, como fim último da pena (busca-se, dentre outros objetivos, a reparação do dano e o estorno dos valores desviados, quando for o caso), e o direito de intervenção de terceira velocidade trata justamente de uma aplicação flexibilizada das penas privativas de liberdade, as quais não se suscitam aplicar no caso em questão (o DPE estaria situado como direito de intervenção de segunda velocidade, destinado aos casos em que se mostram mais adequados a aplicação de multas pecuniárias ou penas restritivas de direito).
A terceira crítica geral aborda a proliferação dos crimes de perigo abstrato, a qual se sucedeu com a sociedade do risco pós-industrial (este foi o momento em que se abriu caminho para a punição adiantada de determinados comportamentos, com base no Princípio da Precaução).
Sobre o tema, aludiram Giovanni Fiandaca e Enzo Musco, em sua obra Direito Penal Parte Geral, de 2006, que: “os crimes de perigo tem mostrado uma relevante expansão nos tempos recentes (…). A contínua evolução tecnológica tem produzido um aumento no número de atividades perigosas, entretanto socialmente úteis, das quais resulta oportuna a promulgação de normas cautelares penalmente sancionadas, dirigidas a impedir que o risco se transforme em dano”.
Em face da proliferação de tais crimes, o legislador se vê obrigado, neste momento, a antecipar a tutela penal sobre determinados bens “particularmente importantes para a sociedade”.
Balcarce afirma, sobre essa questão, que “essa espécie de objetividade jurídica [mesmo tratamento conferido à lesão e à ameaça de lesão] dificulta demasiadamente a concretização de um substrato empírico suscetível de afetação casual”. Em outras palavras, esse excesso de proteção do DPE impede uma separação objetiva entre os crimes de lesão e os crimes de perigo de lesão.
Somado a isso, tem-se duas questões a serem consideradas: a primeira, que diz respeito a uma tendência natural do direito penal econômico em tutelar os bens jurídicos supraindividuais, mesmo quando apenas colocados em risco; e a segunda, que é a afirmação da Teoria da Acumulação Delitiva de Kindhäuser, ou seja, do acreditar ser necessário que se reprimam certas condutas em estágios iniciais, tendo em vista “a possibilidade certa de um dano irreversível para a humanidade”.
Novamente, aclaram Fiandaca e Musco: “Também existem bens coletivos ou supraindividuais, tais como o ambiente ou a economia pública que, por sua natureza, podem ser lesionados somente por condutas acumulativas, ou seja, vários comportamentos que se repetem no tempo, de maneira a resultar impossível provar que uma conduta típica em particular seja idônea para, por exemplo, afetar a integridade do ambiente e provocar um desequilíbrio nas finanças públicas”.
Nesta linha, o fundamento da pena não recai sobre a prática individual de um injusto penal, e sim sobre a possibilidade de uma desobediência em massa.
Como aduz o referido autor: “Na verdade, se trata exclusivamente de um dever de obediência de natureza administrativa, cujo descumprimento é elevado à categoria de injusto com merecimento e necessidade da pena, por considerações de prevenção geral”.
Sob este mesmo viés, afirma Rafael Alcácer: “não é preciso nem sequer um perigo abstrato e atual para os interesses individuais, basta que possa concluir-se uma previsão de realização futura de condutas similares por terceiras pessoas (in iniuria tertii), e que a soma delas alcance um poder destrutivo ao meio ambiente”.
Com opinião similar, Balcarce conclui: “O critério de imputação baseado no dano cumulativo, pois, só pode justificar-se no pressuposto axiológico da necessidade e merecimento de proteção das gerações futuras (…)”.
A figura delitiva do crime de perigo abstrato, desvinculando-se de um resultado material para adquirir determinada autonomia, é justificada, destarte, pela supracitada Teoria. E a lesividade desses crimes reside justamente no fato de que determinados bens jurídicos possuem importância tal que deles não podemos dispor de maneira despreocupada, mostrando-se imprescindível que sobre eles recaia tutela penal antecipada à ocorrência do dano propriamente dito.
A quarta crítica geral discute a manifestação de ideologias de esquerda, ou seja, um aumento na incidência dos pensamentos neomarxistas, especialmente nos setores marginalizados em relação à estrutura dominante, como por exemplo, entre os pobres, mulheres e homossexuais. Acreditava-se que equiparar as classes dominantes às classes minoritárias traria como consequência a redução do Direito Penal, visto que se acreditava ser a incidência criminosa resultado de uma discrepância econômica entre classes sociais, daí porque a necessidade de se criar, através do Estado, meios de garantir aos pobres e oprimidos formas de se transpor a essa realidade, partindo do pressuposto que o local de privilégio da estrutura dominante corroboraria para a mantença do status quo do oprimido.
Contudo, a realidade demonstrava que o crescimento desses setores sociais marginalizados havia se potencializado de tal forma que, enquanto se aumentava o rigor da legislação penal para tentar abarcar a nova realidade criada por estes grupos, simultaneamente esta inflação penal acabava por multiplicar, de forma exponencial, o Direito Penal.
A quinta crítica geral aventa o nascimento de um Direito Penal simbólico, através de um aumento crescente nos setores de direito penal cuja eficácia não se mostra como objetivo principal, restando instrumentos e leis penais puramente formais, positivadas, mas sem uma preocupação real em produzir efeitos práticos.
Quanto a isso, Hassemer expressa: “o legislador obtém, por esses meios, a ganância política de ter respondido aos medos sociais e às grandes catástrofes com prontidões e com os meios mais radicais que são os jurídico-penais”; todavia, tais medidas acabam por se configurar como meros “tapa-buracos”, a fim de responder a um clamor público, sem se preocupar em como tais feitos positivados serão assegurados no mundo concreto.
O autor do texto apresenta críticas específicas, igualmente, a questões como a globalização e a ausência de contornos conceituais bem definidos sobre a definição de direito penal econômico. Em sua compreensão, “não existe uma clara distinção entre este setor do direito penal e o resto do direito penal acessório, nascido à sombra da evolução científica e tecnológica. Existem amplas zonas de penumbra das quais resultam difícil distinção”.
No que concerne à sua crítica sobre a globalização, aventa o seguinte: “O DPE promove a trasnacionalização da matéria penal. O delito econômico não respeita fronteira e demanda da justiça (1) que não tenha limites geográficos e (2) certa uniformidade nos critérios de imputação a serem aplicados aos responsáveis sobre este tipo de ilícito. Deste modo, se relativiza o conceito de soberania, sendo a aldeia global o território onde se produzem esses fenômenos delitivos”.
Lorenzo Morillas, em “Reflexões sobre o Direito Penal do futuro”, prevê: “Uma das questões que há de apresentar-se com maior intensidade no Direito Penal do futuro é a sua mundialização, ou, ao menos, o de sua relação com o acelerado movimento econômico da globalização e sua incidência no que diz respeito aos direitos humanos, desde uma perspectiva de compromisso mundial”.
5. CRITÉRIOS DEFINIDORES DO CONTEÚDO DO DIREITO PENAL ECONÔMICO
Balcarce ainda versa sobre o conteúdo do DPE, com base nos seguintes critérios: (1) Critério Estritíssimo; (2) Critério Meramente Estrito – Intervenção do Estado na Economia como bem jurídico protegido; (3) Critério Amplo – Interesses Difusos ou Genéricos; (4) Critérios Criminológicos – delitos de colarinho branco e delitos funcionais; (5) Critérios Vinculados à Empresa; (6) Critérios dos Instrumentos Modernos da Vida Econômica; (7) Critérios Processuais – Prova Complexa e Organização Judicial; e (8) Delitos Conexos.
Pelo critério estritíssimo, se entendia que “a matéria própria do DPE era a legislação vinculada à regulação dos preços dos bens de primeira necessidade social (alimentos, vestimenta, etc.)”.
Pelo critério estrito, o DPE estava “destinado a assegurar a intervenção do Estado na regulação da Economia nacional”, destacando-se algumas finalidades em particular, tais como: (1) regular a programação econômica mediante união de forças interventivas ou por decisão unilateral do Estado; (2) fixar regras de competência; (3) regular e fiscalizar o ingresso de capital estrangeiro no país e sua incidência na economia nacional; (4) regular o uso de crédito e seu destino, taxa de juros e emissão de valores mobiliários; (5) controle de preços, em especial dos artigos de primeira necessidade; etc.
Quanto ao critério amplo, este defendia os interesses difusos como bens jurídicos mediatamente protegidos, em especial, o meio ambiente (a normativa se relacionaria à intervenção do Estado na economia, vinculando-se à produção, distribuição e consumo de bens, levando em consideração o respeito ao ecossistema terrestre).
O autor comenta que a consideração do meio ambiente como bem jurídico mediato possui objeções tanto do Direito Penal Ambiental como da Dogmática penal, o que não impede a sociedade de compreender “a responsabilidade que nos compete frente às futuras gerações”. E nesta mesma esteira, Günther Stratenwerth adverte: “o que está em jogo é a existência biológica do homem e do seu ambiente”.
No âmbito dos critérios criminológicos, seu parâmetro leva em conta o sujeito ativo dos delitos econômicos. Enquanto o DPE é classificado pelo critério estrito como o setor dos crimes de colarinho branco e dos delitos empresariais; o critério amplo ainda adiciona a estes os delitos de colarinho azul, introduzindo o funcionário público ao âmbito da criminalidade econômica.
Na seara dos critérios empresariais, é importante compreender que: “a delinquência empresarial é compreendida como aquela que se deriva de uma empresa que, em sua atividade, também comete condutas ilícitas”. Salienta Balcarce que estão de fora os casos em que empresas são criadas para fugir do cumprimento da lei, bem como aqueles delitos que se incidem contra a própria empresa.
Quanto aos critérios dos modernos instrumentos da vida econômica, “se propõe na atualidade estender a matéria penal econômica aos referidos, entre os quais se destacam documentos como os cheques, cartões de débito, crédito e compra, a informática, as modernas formas de contratação como o leasing, fundos comuns de inversão, transferência de tecnologia, etc.”.
No que compete aos critérios processuais (prova complexa e organização judicial), Balcárce esclarece que a primeira diz respeito à “dificuldade em obter elementos de prova que sirvam para o esclarecimento e sanção do feito delituoso”, e a segunda, estabelece que o seu parâmetro “atende à criação de determinados organismos de caráter judicial destinados à investigação, esclarecimento e sanção” de determinados delitos.
Por fim, em relação aos delitos conexos: “Se somam ao DPE os crimes vinculados mediatamente à afetação de um bem jurídico supraindividual de caráter econômico, por vinculação objetiva ou subjetiva com um delito destas características à estrita matéria penal econômica”.
6. TEORIAS ENVOLVENDO O DEBATE SOBRE O DIREITO PENAL ECONÔMICO
Ensina Balcárce, outrossim, sobre (1) a Teoria da Lei – Princípio da Legalidade; Classificação das Leis Penais em Branco; Interpretação e Fraude da Lei –; (2) a Teoria do Delito – Bem jurídico; Ação; Tipo; Erro de Tipo e de Proibição; Prescrição; Responsabilidade Individual; Tentativa; Autoria e Participação; Concurso de Crimes e de Agentes –; e (3) a Teoria das Consequências Jurídico-Penais.
Sobre o Princípio da Legalidade, o autor inicia seu discurso sobre o tema explicando o quanto tal princípio fora relativizado, dentro da ótica do DPE, especialmente levando em conta a proliferação dos tipos penais em branco, os quais abrem espaço para diferentes interpretações normativas.
De acordo com Balcarce, “rara é a família delitiva em que não se pode encontrar um exemplo de algum dos fenômenos anteriormente citados que remetam o intérprete a outros preceitos extrapenais (…) [isso porque] é difícil para o legislador cobrir todas as possíveis formas delitivas”.
Quanto às Leis penais em branco, essas podem ser classificadas de acordo com: (1) a menor ou maior relativização do princípio da legalidade; (2) onde se encontra o mandado de determinação; (3) o grau de remissão; (4) a mobilidade da disposição a que se refere a remissão; (5) a factibilidade de reenvio; e, por fim, (6) a menção à lei penal.
Considerando uma maior ou menor relativização do princípio da legalidade, as leis penais em branco podem ser classificadas como próprias ou impróprias. As próprias são as leis penais que remetem a uma instância inferior à lei, tais como os regulamentos ou demais normais administrativas. Já as impróprias, são aquelas leis penais que remetem a uma norma extrapenal que esteja em posição de igualdade ou superioridade em relação à primeira, a exemplo de outra lei ordinária que não o código penal, ou ainda a própria Constituição Federal, ou demais Tratados Internacionais.
Ponderando a localização do mandado de determinação de uma lei penal em branco, esta pode ser classificada como genuína ou não genuína. Será genuína a lei pena em branco cuja infração a que se referir esteja situada na norma extrapenal a que faça referência (seja ela norma administrativa, lei ordinária ou norma constitucional); e será não-genuína, por sua vez, quando a infração a que estiver se referindo esteja situada na própria normal penal.
Analisando o grau de remissão, uma lei penal em branco pode ser classificada como total ou parcial. Será parcial a lei penal em branco cuja instância extrapenal tenha sido citada apenas sobre determinados aspectos do tipo delitivo (não é todo o conteúdo da norma que depende de uma complementação externa). Já as leis penais totalmente em branco “se restringem a estabelecer uma sanção, relegando a definição de toda a esfera do punível a uma instância diferente”.
Atendendo à mobilidade da disposição a que se refere a remissão, uma lei penal em branco pode ser classificada como estática ou dinâmica. A lei penal em branco será considerada dinâmica quando possibilitar que qualquer sentido conferido à sua norma, pelo Diploma a que fizer referência, será considerado válido, ou seja, sua interpretação poderá ser modificada de acordo com as alterações que venham a se suceder sobre a norma a que fizer referência. Será estática, de outro modo, quando apenas um único sentido for possível de ser considerado válido a título de complementação do seu conteúdo. Isso quer dizer que, a referência que faz à norma extrapenal se limita à interpretação que foi dada a este Diploma no exato momento da publicação da Lei Penal em Branco, não cabendo modificações no seu sentido, caso sobrevenham alterações à norma que fizer referência.
Apreciando a factibilidade de seu reenvio, uma lei penal em branco pode ser considerada de primeiro grau, ou de segundo grau. Será de segundo grau quando necessitar complementação de uma norma extrapenal, mas já se constituir enquanto complementação de outra lei penal em branco anterior. Será de primeiro grau, de outro modo, quando não for referência de nenhuma outra norma penal em branco, vinculando-se diretamente a uma única norma extrapenal que possa vir a ser ou não considerada lei penal em branco. Caso faça referência a uma outra lei que também necessite de complementação, essa lei a que se refere será considerada lei penal em branco de segundo grau, mas o fato da lei a que fizer referência necessitar ou não de complementação não impede a primeira de ser considerada lei penal em branco de primeiro grau.
Por fim, levando em conta sua menção à lei penal, ela pode ser considerada como uma lei penal expressa, concluinte ou oculta. Será considerada expressa quando “fixar com claridade que a determinação dos elementos da descrição típica deve se encontrar em outra instância diferente”; será definida como concluinte, quando “a remissão se efetuar de modo tácito ou implícito”, através do seu conteúdo jurídico-valorativo; e, por fim, será considerada como oculta quando seu texto, por si só, ou até mesmo os seus elementos jurídico-valorativos, não forem suficientes para fazer notar a necessidade de uma complementação de conteúdo. É necessário, neste último caso, que se faça uma análise indireta da norma, como é o caso do homicídio, por exemplo, que em determinados casos, pode necessitar implicitamente de uma complementação da Lei Nacional de Transplantes.
7. INTERPRETAÇÃO DA LEI PENAL
No que concerne à interpretação ou à fraude da lei, Balcárce inicia essa fase do texto explicando a maneira como, via de regra, se estabelece que não será castigado, nem será o seu comportamento considerado reprovável ou contrário à finalidade da norma penal jurídico-econômica, aquele que não realizar uma conduta exatamente igual à prevista em um tipo penal.
Quando uma conduta, todavia, é analisada a partir de uma interpretação econômica, a qual se traduz em “interpretar um elemento normativo do tipo penal que provém de outro setor do Direito, em conformidade com o seu significado econômico ou real, e não de acordo com o seu sentido jurídico”, a regra inicial cai por terra.
Balcárce ressalta que “às vezes, as leis extrapenais contêm cláusulas expressas sobre fraude ou abuso. Essa regulação tem relevância para a valoração penal e possibilita o castigo”. Entretanto, se a lei penal em branco se tratar de cláusula geral ou causas de justificação, a interpretação que lhes deverá ser aplicada é a restritiva ou a literal, respectivamente, o que impedirá que as cláusulas extrapenais de que faça referência surtam qualquer efeito sobre o seu conteúdo, ainda que seja para regular temas de fundada importância, tais como a fraude ou o abuso.
Por este motivo, em consonância com o quanto defende Joachim Vogel, em sua obra intitulada “Fraude de lei, abuso de direito e negócio fictício no direito penal europeu”, Fábian Balcárce aborda a possibilidade de se restringir tais interpretações literais sobre as causas de justificação, quando for caso de abuso de direito, tema este que, de acordo com os dois autores, mereceria regulamentação legal específica.
Em “Teoria do Delito”, ao tratar do instituto “bem jurídico”, Fábian Balcárce analisa o seu grau de afetação, bem como o classifica como individual e coletivo ou mediato e imediato.
Os bens mediatos (aludem ao motivo do preceito, às razões que conduzem o legislador a criminalizar um determinado comportamento) serão sempre coletivos, enquanto que os imediatos (efetivamente protegidos pela figura delitiva) poderão ser coletivos ou individuais.
Quando coletivo ou supraindividual, o bem jurídico pode ser, ainda, geral ou difuso.
No que tange ao seu grau de afetação, Balcárce aponta as subclassificações dos crimes de perigo abstrato como: (1) puramente formais – aqueles cujo perigo é presumido; (2) genuínos – aqueles cujo perigo não se presume, sendo necessário um juízo demonstrativo da sua existência; e (3) de perigo hipotético – aqueles cujo juízo demonstrativo necessário se dê quanto a uma potencial ocorrência do perigo, sendo prescindível a sua ocorrência anterior, visto que basta a prova do risco que possa vir a acontecer.
Ainda na Teoria do Delito, Balcárce trata do instituto jurídico da Ação, perpassando pelos crimes omissivos próprios e impróprios, bem como pela responsabilidade penal das pessoas jurídicas.
Sobre os crimes omissivos próprios, o autor salienta a necessidade da criação dessa figura delitiva, para que se alcance uma sanção adequada às meras infrações ao dever de cuidado, especialmente na seara dos delitos empresariais, na qual apenas respondem penalmente os funcionários que praticam atos delitivos materiais (crimes omissivos impróprios ou comissivos por omissão).
Relativamente aos crimes omissivos impróprios (comissivos por omissão), estes surgem também em razão de uma infração a um dever de cuidado, entretanto, na seara da criminalidade econômico-empresarial, diz respeito à responsabilidade dos órgãos diretivos empresariais, devido às infrações positivas praticadas pelos seus funcionários (nesse caso, seus empregadores foram omissos quanto ao dever de fiscalização).
Subentende-se, então, que “aqueles órgãos diretivos, superiores hierárquicos na organização empresarial, que não tivessem evitado que o feito delitivo se executasse por parte de seus subordinados (…), [possuíam] competência específica que lhes obrigavam a controlar todos os fatores de perigo derivados da mesma [a empresa], e, consequentemente, a evitar a realização de delitos por seus subordinados”.
Trata-se do “domínio do garante sobre a causa do resultado”, visto que os atuantes dos órgãos diretivos na cadeia hierárquica de uma empresa (conhecidos como “garantes” ou “garantidores” nas situações referentes à pessoa jurídica que administram) devem possuir controle sobre o que acontece no âmbito interno da sua empresa. Em outros termos, supõe-se que os representantes desses órgãos diretivos possuem domínio sobre a atividade empresarial, tendo como dever, consequentemente, a fiscalização dos atos praticados pelos seus funcionários.
De acordo com o autor, esse domínio que o empresário possui sobre as causas que geraram um resultado delitivo dentro de sua empresa, é justificativa decisiva para que se equipare o comportamento ativo do funcionário com o comportamento negativo do empregador (delito omissivo impróprio ou comissivo por omissão), e “as fontes da posição de garante, segundo a doutrina majoritária, são o senhorio sobre as coisas e procedimentos materiais, e a responsabilidade de garantia do superior pelas ações de seus subordinados”.
Em “Responsabilidade penal das pessoas jurídicas”, Balcárce aponta a inexistência, no ordenamento penal argentino, de uma tutela específica sobre o tema, razão pela qual, se propõe a utilização de duas vias: (1) o direito penal administrativo ou contravencional; ou (2) o direito penal comum, através da “quarta via” do direito penal (sanções conhecidas como “consequências acessórias”). Há ainda, destaca o autor, aquela corrente que defende a criação de uma estrutura imputativa específica para as pessoas jurídicas, reconhecendo autonomamente a responsabilidade penal da figura jurídica mencionada.
8. CONSIDERAÇÕES SOBRE O TIPO PENAL
Ao passar para o instituto do Tipo, o autor classifica o mencionado como (1) descritivo; (2) subjetivo; (3) normativo; e (4) de injusto.
Quanto aos tipos descritivos, Balcárce cita Roxin, e a sua previsão acerca da iminente substituição das relações de causalidade pelos critérios probabilísticos no DPE. Essa substituição, de acordo com o eminente doutrinador, se daria através da responsabilidade pelo produto (responsabilidade que se deriva da situação de risco ou lesão à saúde provocada pelo mesmo).
Tal responsabilidade, pela existência de produtos perigosos no mercado para a saúde dos cidadãos, se concretiza em dois momentos: se o produto puder afetar potencialmente a saúde pública (o Direito penal deve responder por todos os crimes de perigo que atentem contra este bem jurídico); e se, uma vez utilizado, ele tenha ocasionado uma lesão à saúde individual ou à vida de um cidadão, mediante a consumação, em função do perigo, dos delitos de homicídio ou de lesão (note-se que, sobre as situações lesivas que não acarretem a subsunção do fato ao tipo penal, restará responsabilização no âmbito do direito do consumidor, a título de vício ou defeito do produto).
Sobre este aspecto, induz Navarro Cardoso: “a relação de causalidade se resolve (…) [através] de uma causalidade geral, que aglutina tanto o juízo ontológico de causalidade [a causalidade em si mesma] como o juízo axiológico [aspecto valorativo] de imputação objetiva. Esta necessária relação de causalidade é substituída pela suficiência da relação de risco, chegando-se a suprimir a constatação da primeira”.
Em outros termos, Cardoso afirma ser mais importante que se analise o risco existente, a potencial periculosidade oferecida por um produto, do que a relação de causalidade entre o fato que se apresenta e a sua consequência. A relação de causalidade, com isso, não será obrigatoriamente descartada, mas, quando levada em consideração, sopesada sob um viés mais genérico e secundário em relação à análise do risco.
Quanto aos tipos subjetivos, Balcárce acentua a inexistência de figura jurídica para tratar sobre o instituto do erro de tipo, ponderando que, por essa razão, os casos de imprudência acabam por não sofrer responsabilização penal alguma.
Não obstante o exposto, poder-se-ia concluir que, levando em consideração a imprescindibilidade de um dolo direto para a constituição do instituto da tentativa, por exemplo, não se aceitariam como válidas quaisquer condutas cometidas sem o dolo direto.
No que concerne a esta situação específica, todavia, o que ocorre na prática jurídica é justamente o contrário: nota-se hoje, de acordo com o autor, certa tendência em se aceitar figuras delitivas imputáveis a título de dolo eventual. E quanto aos efeitos desse dolo eventual, o enfoque que é dado diz respeito prioritariamente aos seus caracteres cognoscentes, descartando uma análise acerca da vontade do agente ao momento da ação (elemento volitivo do dolo).
Sobre os tipos normativos, o autor explana que os próprios tipos subjetivos do DPE passaram por um processo de renormatização o qual exige que o risco seja valorado de acordo com padrões médios sobre os quais a conduta deva ser executada. Igualmente, destaca que os tipos subjetivos devem ser analisados sob critérios normativos a respeito do conhecimento do risco produzido.
No que concerne aos tipos de injusto, Balcárce inicia sua explicação afirmando ser critério tradicional para classificar uma conduta como delituosa ou não, no DPE, o seu valor em montante (limite quantitativo), a exemplo do Princípio da Insignificância (determinados valores são considerados irrelevantes quando comparados ao patrimônio da pessoa cujo bem fora subtraído).
O que se discute, entretanto, na doutrina e jurisprudência do país, é se este valor monetário se trata de mero elemento do injusto ou de condição objetiva de punibilidade: “Se se tratar de uma condição objetiva de punibilidade, não é necessário que seja abarcado pelo dolo o limite quantitativo. Não há possibilidade de tentativa (…). Contrariamente, se é um elemento do injusto, o limite quantitativo tem que ser abarcado pelo dolo e o erro sobre o mesmo é um erro de tipo. Ademais, é possível a tentativa (…) e se pode castigar a participação…”.
Passando para uma análise sobre o sujeito ativo dos tipos penais, o autor destaca a relativa frequência com que se observam, no DPE, os tipos especiais próprios, ou seja, aqueles cujo sujeito ativo influencia na própria caracterização do crime (é elementar do tipo): “No DPE, a regra geral é que a configuração do injusto típico se apoie, na maior parte dos casos, na atribuição de uma determinada particularidade objetiva do autor”.
Essa elementar do tipo acarreta em certas características específicas de autoria e participação. Isso quer dizer que, normalmente, quem pratica esses injustos penais, não possui as características específicas do sujeito ativo que se encaixaria no tipo em abstrato, e do mesmo modo, os que as possuem, nem sempre cometem tais ilícitos.
Em geral, para evitar a subsunção da conduta concreta ao tipo em abstrato, os agentes delitivos procuram formas de se adequar à situação do “atuar em lugar de outro”, o que abre espaço, na seara processual, para a denominada intervenção de terceiros. Essa, por sua vez, se limita à responsabilidade por participação, o que impede o DPE de alcançar uma real penalização para estes tipos de delito.
9. ERRO DE TIPO, ERRO DE PROIBIÇÃO E DEMAIS INSTITUTOS PENAIS
Balcárce dá seguimento ao seu trabalho, ainda na Teoria do Delito, tratando dos institutos do Erro de Tipo e Erro de Proibição.
Neste momento, o autor discute acerca da hipertrofia normativa no terreno do Direito Penal Econômico. De acordo com o seu entendimento, é possível compensar esse excesso de normas mediante algumas medidas, todas elas relativas a uma maior flexibilização da Teoria do Erro. Cita como exemplos a equiparação entre erro de tipo e erro de proibição; a consideração de que todo erro de proibição é inevitável; e a consideração de que tanto o erro sobre elementos normativos de conteúdo jurídico como o erro sobre elementos normativos extrapenais (leis penais em branco) devem ser caracterizados como erros de tipo, e não erros de proibição.
Ademais, propõe uma aproximação entre a Teoria do erro do DPE e a Teoria do dolo, “onde o erro sobre o feito, o erro de direito extrapenal e o erro de direito penal se equiparem”. Como todas as figuras imprudentes abarcadas na Teoria do Erro são cabíveis na Teoria do Dolo, não fazê-lo seria aceitar a impunidade da conduta.
Os últimos institutos tratados em Teoria do Delito são (1) a Prescrição; (2) a Responsabilidade Individual; (3) a Tentativa; (4) a Autoria e Participação; e (5) os Concursos Delitivos.
Quanto ao instituto da Prescrição, o autor aventa: “Ante a dificuldade de investigação e a complexidade no esclarecimento dos feitos delituosos econômicos, se propõe de lege ferenda a extensão dos prazos de prescrição da ação penal”.
No que diz respeito à responsabilidade individual, se retoma a discussão acerca da responsabilidade penal das pessoas jurídicas: “as categorias tradicionais de imputabilidade e reprovabilidade (…) foram funcionalmente previstas para a atribuição à pessoa natural”.
Dito isto, resta ao ordenamento penal econômico “criar um novo sistema de imputação para a pessoa jurídica em particular” ou flexibilizar as figuras jurídicas de imputação existentes, para que abranjam ambas as hipóteses. O problema da segunda opção é que, pode gerar como desdobramento uma redução de garantias para as pessoas físicas, e, consequentemente, a uma série de crises no âmbito do Direito Penal.
Concernente à figura da tentativa, Balcárce cita o modo como “alguns projetos europeus de legislação penal comunitária seguem apelando para a doutrina francesa do “começo de execução”, promovendo teorias ecléticas objetivo-subjetivas, sem que haja um acordo acerca do critério normativo de imputação”.
Aborda, ainda, a técnica do delito de empreendimento, ou “técnica de nivelação”, utilizada na legislação econômica argentina em relação aos crimes tentados, em que a tentativa é equiparada à consumação: “Como consequência deste, a desistência voluntária é improcedente nesta classe de delitos”.
Sobre os casos de autoria e participação, o autor, para evitar repetições, apenas cita determinados pontos os quais considera importantes: “a problemática dos delitos especiais próprios; a falta de qualidades específicas do representantes da pessoa jurídica; a inexistência de uma cláusula na Parte Geral do CP sobre atuar em nome de outro; a autoria mediata nos delitos comuns cometidos por estratos mais baixos da estrutura vertical da empresa; e a elaboração de delitos culposos impróprios ou irregulares”.
No que tange à figura dos concursos, no DPE, a regra é o Princípio da Especialidade. “Não obstante, existem leis que preveem expressamente a subsidiariedade relativa: “As disposições do presente título serão aplicáveis sempre que a conduta não estivesse prevista com uma pena maior no Código Penal ou em outras leis penais””.
Finalizando o seu trabalho, por derradeiro, Balcárce debate sobre a Teoria das Consequências Jurídico-Penais, onde conclui sabiamente que “não pode haver verdadeira pena para as pessoas jurídicas sem o risco de abandonar completamente o conceito de pena”. Portanto, é correto admitir uma classe intermediária de sanção penal a ser aplicada sobre essas figuras (as chamadas “consequências acessórias” ou “quarta via”), visto que não lhes cabe nem a pena ou medida de segurança, que são personalíssimas por natureza, nem a pura reparação (ou “terceira via”).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É sabido que o convívio em sociedade cria e modifica relações, situação esta que necessita intervenção estatal no sentido de regular conflitos e executar o juspuniendi. O direito civil, historicamente, tem-se mantido presente e aberto a modificações, vide as constantes atualizações legislativas nos Códigos Penais da maioria dos países da América Latina.
Tendo dito isso, e após análise minuciosa do quanto a criação e desenvolvimento do Direito Penal Econômico se sucedeu após a influência de origens multidisciplinares, faz-se necessário atentar para as constantes mudanças a que se submetem as relações sociais, sobretudo no que concerne ao aprimoramento das técnicas criminosas e das suas estratégias de organização.
Neste sentido, é fundamental que se mantenha um direito atual, com normas aplicáveis a uma realidade constantemente mutável, sem, no entanto, olvidar-se de uma segurança jurídica que permita à sociedade manter a sua confiança perante um estado representante e protetor dos interesses da coletividade.
Em sendo assim, deve-se buscar um equilíbrio entre a força normativa do quanto é positivado e as necessidades de atualização legislativa, para abarcar as necessidades específicas de uma disciplina preocupada com o tratamento de uma situação especial, qual seja, a prática criminosa envolvendo delitos econômicos.
Mestranda em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador. Pós-graduanda em Ciências Criminais pela Universidade Católica do Salvador
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