Autor: Keila Mendes Santos. Acadêmica de Direito na Faculdade Integral Diferencial – Facid Wyden. Pesquisador bolsista – Iniciação Científica e Tecnológica (PICT). keila-mendes14@hotmail.com
Orientador: Professora Giovana Ferreira Martins Nunes Santos. Professora do Curso de Direito da Faculdade Integral Diferencial – Facid Wyden. Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí. gfmns@icloud.com
Resumo: Com Reforma Fiscal ocorrida com a Emenda Constitucional n. 95/2016 que estabeleceu um teto para as despesas primárias, os impactos de uma redução significativa nos recursos destinados às ações e serviços públicos de saúde se tornou uma preocupação, tendo em vista a necessidade de identificar o alcance desse impacto nos direitos que são constitucionalmente garantidos sob a égide de princípios como a universalidade e integralidade. Diante disso, o presente artigo analisa a existência de violação ao princípio da vedação ao retrocesso social, a partir das justificativas adotadas pelo Poder Constituinte derivado quando da edição da Emenda Constitucional e os efeitos de diminuição dos recursos destinados à saúde. Para tanto, foi realizada pesquisa documental e bibliográfica dos estudos técnicos realizados acerca dessa temática, bem como dos instrumentos legais vigentes no intuito de identificar eventuais critérios de natureza ideológica pela aplicação dos efeitos da reforma fiscal no Estado Democrático Brasileiro. O estudo conclui pela constatação de retrocesso social ante a redução progressiva do valor gasto com ações e serviços públicos de saúde durante 20 anos após a vigência da Emenda Constitucional, o que denota a existência de um viés ideológico na exposição de motivos que justificaram a edição do referido regime fiscal.
Palavras-chave: Vedação ao Retrocesso Social. Ideologia da lei. Emenda Constitucional nº 95/2016. Direito à Saúde.
Abstract: With Tax Reform occurred with Constitutional Amendment no. 95/2016 that established a cap on primary expenditures, the impacts of a significant reduction in resources for public health actions and services became a concern, given the need to identify the extent of this impact on rights that are constitutionally guaranteed. under the aegis of principles such as universality and completeness. Given this, this article analyzes the existence of violation of the principle of prohibition of social regression, based on the justifications adopted by the Constituent Power derived from the edition of the Constitutional Amendment and the effects of diminishing resources for health. To this end, a documental and bibliographic research was carried out of the technical studies carried out on this subject, as well as the legal instruments in force in order to identify possible ideological criteria by applying the effects of tax reform in the Brazilian Democratic State. The study concludes by the finding of social regression in view of the progressive reduction in the amount spent on actions and public health services for 20 years after the Constitutional Amendment, which shows the existence of an ideological bias in the explanation of reasons that justified the edition of the law. tax system.
Keywords: Prohibition of Social Withdrawal. Ideology of the law. Constitutional Amendment 95/2016. Right to health.
Sumário: Introdução. 1. Natureza Jurídica do Direito à Saúde. 2. Leis Orçamentárias e a Lei de Responsabilidade Fiscal. 2.1. Leis Orçamentárias. 2.2. Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101, de 04 de maio de 2000). 3. Emenda Constitucional nº 95/2016. 3.1. Estudo Técnico nº 26 elaborado pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira – CONOF e a ideologia da lei. 4. Princípio da Vedação ao Retrocesso Social ou efeito “cliquet”. 5. Aspectos ideológicos da EC nº 95/2016: Houve violação ao Princípio da Vedação do Retrocesso?. Conclusão. Referências.
Introdução
A Constituição brasileira de 1988 estabelece mecanismos de controle à edição ou reforma de normas de modo a garantir a efetivação dos direitos fundamentais e a concretização da dignidade da pessoa humana. Além disso, os compromissos internacionais firmados pelo Estado brasileiro também são regidos pelo princípio da proibição ao retrocesso social, conhecido por “efeito cliquet” (termo de origem francesa).
Segundo esse princípio, são inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, o anulem ou o aniquilem. Ocorre que em tempos de crise econômica, e sob o argumento de que os direitos sociais são financeiramente mais dispendiosos ao Estado, é comum que se observem alterações legislativas que de forma direta ou indireta acarrete em restrição aos direitos fundamentais como saúde, educação, etc. Diante disso, o presente artigo analisa, baseando-se em uma metodologia de revisão bibliográfica e documental, a ocorrência do efeito cliquet quando da Reforma Fiscal ocorrida com a Emenda Constitucional n. 95/2016.
Para tanto, inicia-se abordando os instrumentos legais que regem o direito à saúde e controlam as despesas com ações e serviços de saúde, dentre tantas outras competências de natureza orçamentário-financeira: analisa-se o Estudo Técnico nº 26 elaborado pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira – CONOF, as leis orçamentárias, compostas por três leis: Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA), definidas pelo art. 165 da Constituição Federal.
Em seguida, são apresentados os dados consolidados do impacto das ações e serviços de saúde em relação a Receita obtida nos exercícios financeiros, antes e depois da edição da Emenda Constitucional N. 95/2016 (SANTOS; FUNCIA, 2019).
Por fim, trata-se sobre o Princípio da Vedação ao Retrocesso ou efeito “cliquet” no intuito de estabelecer parâmetros para mensuração dos efeitos da Emenda Constitucional nº 95/2016.
Os direitos fundamentais tiveram o seu início na Antiguidade Clássica (LUCIANA, 2011) com o desenvolvimento, no pensamento grego e romano, da ideia de igualdade entre os homens. Na Inglaterra, em 1215, com a Carta Magna houve a ideia de liberdades permanentes, e, em 1689, foram estabelecidos direitos na Bill of Rights, declaração de direitos criada pelo Parlamento Inglês.
No século XVIII (LUCIANA, 2011), com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a Declaração dos Direitos da Virgínia (1776), houve a primeira tipificação dos direitos fundamentais com força constitucional. Ademais, em 1791, na Constituição dos Estados Unidos, foi descrito o rol de direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais se dividem em “dimensões”, termo mais aceito que “gerações”, visto que passa a ideia de complementaridade, ao invés de substituição.
Os direitos de primeira geração são os direitos “negativos”, que se concretizam, na maior parte das vezes, com uma abstenção. São eles: o direito à vida, liberdade, propriedade e igualdade.
Já os direitos de segunda geração são os direitos “positivos”, ou direitos sociais, que se concretizam com a prestação estatal dos serviços públicos. Foi exigida a participação estatal devido à necessidade de que fossem garantidos os direitos e a prestação de serviço para os mais pobres, que não tinham condições de pagar por direitos fundamentais pertencentes a eles. Necessidade essa que surgiu após a supressão dos direitos do proletariado, decorrentes da sua exploração. São direitos de segunda geração: direitos à educação, moradia, lazer, trabalho, assistência social e saúde, além dos direitos dos trabalhadores.
Os direitos de terceira dimensão se caracterizam pela proteção de grupos humanos ou pela titularidade difusa ou coletiva. São garantidos com o apoio de órgãos internacionais. São eles: direito à paz, ao meio ambiente saudável, ao patrimônio histórico e cultural, à defesa do consumidor, etc.
Há ainda os direitos de quarta dimensão, resultado da globalização. São eles: direito à democracia, ao pluralismo e à informação.
O direito à saúde, como já foi mencionado acima, trata-se de um direito de segunda dimensão, que surgiu após reivindicações de uma maior atuação do Estado na garantia de direitos, caracterizando-se, portanto, como direito de um Estado intervencionista e direcionado ao Bem-Estar Social.
Segundo o Estado democrático de direito brasileiro, a saúde é um direito de todos, sendo dever do Estado prover as condições de seu exercício. É elencada pela Constituição e encontra-se no rol da seguridade social, como estabelece o art. 194 da Constituição Federal e o art. 2º da Lei nº 8.080/90:
Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. (BRASIL, Constituição Federal de 1988)
A garantia do direito à saúde está disciplinada no art. 196 da Constituição Federal:
Art. 196. “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Na Lei nº 8.080/90 a saúde é elencada como um direito fundamental, sendo dever do Estado prover as condições indispensáveis para o seu exercício, além de dever formular e executar políticas econômicas que visem reduzir riscos de doenças e garantir o acesso igualitário à saúde.
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
Além disso, o art. 195 da Constituição Federal de 1988 estabelece as formas de custeio, sendo o ônus da sociedade, de forma direta e indireta e dos entes públicos, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, sendo que os recursos que financiam a saúde devem vir da seguridade social, conforme §1º, do art. 198, da Constituição Federal de 1988:
Conforme art. 197 da Constituição Federal de 1988 é dever do Poder Público fiscalizar, regulamentar e controlar as ações e serviços de saúde, que devem ser executados diretamente ou através de terceiros e por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, e em caso de ausência ou ineficiência na prestação dos serviços de saúde o art. 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988 assegura que é direito do cidadão exigir o seu acesso
à saúde e obrigação do Estado garantir esse acesso mediante políticas sociais e econômicas (PINTO, 2017, p. 80).
No Brasil, a prestação dos serviços de saúde é de competência de um sistema composto pela União (Ministério da Saúde), Estados e Municípios, em co-responsabilidade, conforme determina a Constituição Federal,
O Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, abrangendo da Atenção Primária aos procedimentos cirúrgicos e multidisciplinares mais complexos, garantindo-se acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. Desde a sua criação, o SUS deve proporcionar o acesso universal ao sistema público de saúde, sem discriminação, com foco na saúde com qualidade de vida, visando a prevenção e a promoção da saúde.
Nesse sentido, o atendimento à sociedade está fundamentado em três princípios basilares: o Princípio da Universalização, segundo o qual, cabe ao Estado assegurar o direito à saúde, sendo que o acesso às ações e serviços deve ser garantido a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, ocupação ou outras características sociais ou pessoais. No que tange ao princípio da Equidade, almeja-se diminuir desigualdades. Apesar de todas as pessoas possuírem direito aos serviços, as pessoas não são iguais e, por isso, têm necessidades distintas. Pretende-se com a equidade, atuar e investir mais onde a carência por saúde é maior. Também merece destaque o Princípio da Integralidade que considera as pessoas como um todo, atendendo a todas as suas necessidades, com integração de diversas políticas públicas e ações governamentais, incluindo a promoção da saúde, a prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação. (BRASIL, Ministério da Saúde, 2019, disponível em http://www.saude.gov.br/sistema-unico-de-saude).
No entanto, apesar da grandiosidade do SUS idealizada pela Constituição de 1988, os recursos financeiros destinados não são suficientes para atender a todas à população, especialmente considerando alguns fatores como envelhecimento da população, inovações científicas e tecnológicas que aumentam os custos dos serviços disponíveis e crise econômica que diminui a arrecadação estatal para custeio de tais despesas. Por consequência, surge outra problemática sobre quem deve ter prioridade para receber o tratamento. É importante lembrar que essa questão é limitada pelo princípio da Reserva do Possível que significa que “todo orçamento possui um limite que deve ser utilizado de acordo com as exigências de harmonização econômica geral” (NUNES; SCAFF, 2011, p. 96). Ou seja, deve haver ponderação no momento em que houver a decisão sobre uma demanda judicial.
O princípio da reserva do possível “é um conceito econômico que decorre da constatação da existência da escassez dos recursos, públicos ou privados, em face da vastidão das necessidades humanas, sociais, coletivas ou individuais” (NUNES; SCAFF, 2011, p. 97). Esse princípio deve ser observado no momento da análise das demandas judiciais pleiteando o custeamento de um tratamento, por exemplo.
Além disso, caso o Estado sempre custeie os tratamentos/remédios pleiteados, faltará financiamento para outras áreas, o que afetará justamente as próprias pessoas que não possuem condições financeiras suficientes para financiar a sua própria saúde.
“Caso o Estado esteja atuando em uma situação próxima ao ótimo de Pareto[1], ao garantirmos a cobertura de alguém em procedimentos de alto custo, estamos deixando vários outros sem cobertura, ou estaremos deixando de cobrir outros direitos de primeira geração, como segurança ou educação. A grande questão é se o Estado atua próximo a essa situação ou se realmente está se empenhando dentro das suas possibilidades com a questão da saúde pública ou coletiva.” (RIBEIRO; CASTRO, 2010, p. 292).
Outrossim, o texto constitucional dispõe no art. 196 que o direito à saúde é decorrente da previsão de políticas governamentais que venham a estabelecer quais as ações e serviços de saúde devem ser enquadradas nesse atendimento à população, “a existência prima facie do direito à saúde não implicaria, em hipótese alguma, vinculação plena do Poder Público à sua oferta” (LUCIANA, 2011, p. 21). E diante da incapacidade do Estado de gerir de forma equilibrada a relação entre receitas e despesas, foi editada a Emenda Constitucional n. 95/2016 durante o Governo de Michel Temer, no intuito de estabelecer temporariamente um ajuste fiscal, através de um limite máximo de despesas primárias, dentre elas, as despesas com saúde.
Ocorre que, analisando a legislação brasileira é possível identificar facilmente diversos instrumentos normativos capazes de promover tal equilíbrio fiscal, conforme se apresenta no item seguinte.
Assim com qualquer outra prestação de serviços governamentais, as ações e serviços de saúde demandam realização de despesas, que por sua vez carecem que o Estado possua recursos financeiros oriundos de suas receitas, em uma relação de equilíbrio. Para tanto, ao longo do tempo foram editadas leis de natureza orçamentário-financeiras que buscam manter tal equilíbrio fiscal. As leis orçamentárias se encarregam do planejamento estatal, pois é a partir delas que é definido o quanto se pode gastar com a saúde. Trata-se de uma lei de iniciativa do Chefe do Poder Executivo e aprovada pelo Poder Legislativo, cabendo-lhes “a definição sobre quem vai receber estas prestações sociais, e quais prioridades, através do processo orçamentário. Ao parlamento incumbe definir as ‘escolhas trágicas’ [2] e delimitar a ‘reserva do possível’ para o atendimento das necessidades públicas através do uso dos recursos públicos” (NUNES; SCAFF, 2011, p. 135).
As Leis Orçamentárias fixam os limites das despesas que podem ser feitas pelo Poder Público. Esse limite é planejado previamente pelo Sistema Orçamentário, composto por três leis: Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA), definidas pelo art. 165 da Constituição Federal.
O Plano Plurianual (PPA) – (art. 165, I, CF) estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrente e para as relativas aos programas de duração continuada. (art. 165, §1º, CF). O projeto estabelecido do Plano Plurianual deve ser encaminhado até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa (art. 35, §2º, I, ADCT).
A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) – (art. 165, II, CF) compreende as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento (art. 165, §2º). O projeto de diretrizes orçamentárias deve ser encaminhado até oito meses e meio antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para sanção até o encerramento da sessão legislativa (art. 35, §2º, ADCT). A LDO tem o objetivo de estabelecer as diretrizes para a Lei Orçamentária Anual.
O objeto da LDO foi ampliado, visto que, com a nova legislação-Lei de Responsabilidade Fiscal- foi dado um alcance e importância à LDO. Ou seja, foi ampliado o contorno dado pela Constituição, em seu art. 165, §2º, que estabelecia contorno à LDO.
A Lei Orçamentária Anual (LOA)- (art. 165, III, CF) é o documento onde se consignam todas as atividades realizadas pelo Estado, ou melhor, por ente da Federação (LEIRIA, 2005, p. 408) e tem como objetivo a gestação administrativa e financeira do país.
O planejamento orçamentário deve seguir a seguinte ordem: primeiramente devem ser observados os Fundamentos (art. 1º, CF) – soberania; cidadania; dignidade da pessoa humana; valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; pluralismo político – e os Objetivos Constitucionais (art. 3º, CF) – sociedade livre, justa e solidária; desenvolvimento nacional; erradicação da pobreza e redução das desigualdades; promoção do bem de todos, sem distinção.
Após isso, o PPA deve ser organizado, pois é uma lei que estabelece os planos e projetos de governo pelo período de 4 anos. Após isso, a LDO deve ser editada e enviada anualmente ao Congresso Nacional, essa lei tem o objetivo de orientar a construção do projeto de LOA. Por fim, a Lei Orçamentária Anual é editada e irá reger a realização das despesas governamentais pelo período de 1 ano. A LOA deverá ser composta de três orçamentos: o orçamento fiscal, o de investimentos e o de seguridade social (NUNES; SCAFF, 2011, p. 135). A fiscalização do cumprimento dessas leis deve ser feita, pelo controle interno de cada ente, órgão ou poder (art. 70, CF) e, externamente, pelo Congresso Nacional com o auxílio do Tribunal de Contas (arts. 70, 71, CF).
No início do novo século, buscando-se adotar uma atuação gerencial para a Administração Pública, o Congresso Nacional aprovou a Lei de Responsabilidade Fiscal, criando critérios mais exigentes e punições mais duras para que as despesas públicas fossem ser feitas de acordo com os limites estabelecidos por ela, gerou-se expressa vinculação entre despesas e receitas. Por despesas entende-se que “são os compromissos assumidos e reconhecidos pelo Estado por previsão legal e, além destes, são despesas também as devoluções realizadas de valores pertencentes a terceiros que estavam sob a guarda do poder público” (BLIACHERIENE E SANTOS, 2010, p. 17).
Nesse sentido, três são as principais origens de vinculação orçamentária: (a) obrigações constitucionais ou legais para o pagamento de remuneração de capital (juros), remuneração de pessoal (funcionalismo e previdência social) e assistência social; (b) vinculação de receitas derivadas de tributos com as relativas à saúde, educação, proteção da rede social e as de transferências obrigatórias para Estados, municípios e Distrito Federal e, por fim; (c) aquelas destinadas à seguridade social (contribuições sociais) (BLIACHERIENE; MENDES, 2010, p. 22).
Ademais, o art. 15 da LRF estabelece que a geração de despesas e a assunção de obrigação devem atender o que está disposto nos arts. 16 e 17, caso contrário, serão consideradas ilegais.
O art. 16, I, estabelece que deve haver a previsão específica e recursos suficientes, ou seja, deve haver recursos consignados que possam cobrir as despesas, ou então deve haver um crédito genérico para que seja autorizada a despesa.
Outrossim, o art. 16 trata das despesas que são criadas, expandidas ou aperfeiçoadas e que acarretam o aumento das despesas. Nesse artigo são estabelecidas condições para o aumento das despesas de capital e as despesas correntes. Esses limites são estabelecidos para que os recursos públicos não sejam extrapolados e se tornem irregulares, conforme inteligência do art. 15.
Ainda no art. 16 são estabelecidas algumas condições como a estimativa dos gastos e o seu impacto devem ser estimados para os dois anos subsequentes. Além disso, as despesas devem ser declaradas e devem estar em conformidade com a lei orçamentária anual, com o plano plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias- LDO. O que quer dizer que a soma das despesas que serão realizadas ou as já realizadas não podem ultrapassar o limite estabelecido.
Por fim, o art. 17 tratou das despesas obrigatórias de caráter continuado superior a dois anos, como mencionado no caput:
Art. 17. Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios.
Essas despesas também devem seguir o que está descrito no art. 16, I, ou seja, devem conter as estimativas dos gastos e o seu impacto deve ser estimado para os dois anos subsequentes. Além de ser demonstrada a origem dos recursos para custeio. O impacto causado pelos gastos deve ser suportado pelo orçamento, caso contrário será considerado lesivo ao patrimônio público. O art. 73 da LRF estabelece que as infrações às suas disposições serão punidas de acordo com o Código Penal; Lei n. 10028/00 (Lei dos crimes fiscais); Lei N. 1079/50 (crimes de Responsabilidade) e Lei N. 8.429 (Lei de Improbidade Administrativa); Decreto-Lei 201/67 (lei de Responsabilidade de Prefeitos e Vereadores), e demais normas pertinentes.
A edição da Emenda Constitucional do novo regime fiscal, inevitavelmente, demonstra que nenhum destes instrumentos normativos foi eficiente no que tange à manutenção do equilíbrio das contas públicas, mesmo com todo um aparato de competências técnicas e órgãos de controle, além das diversas de tipificações de condutas criminosas à disposição dos controladores dos gastos públicos.
A Emenda Constitucional nº 95 é resultado do Projeto de Emenda Constitucional 241, que tramitou na Câmara dos Deputados, e do Projeto de Emenda Constitucional 55, que tramitou no Senado Federal, sendo promulgada no dia 15 de Dezembro de 2016.
Conforme consta em seu art. 1º, que alterou o art. 106 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT foi instituído um novo Regime Fiscal que passará a vigorar no âmbito do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União e irá viger por vinte exercícios financeiros. Essa Emenda Constitucional alterou os arts. 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113 e 114.
As alterações da Emenda Constitucional são aplicadas aos órgãos e entidades que dependem de recursos públicos.
Durante o período de 20 exercícios financeiros, período de vigência estabelecido pelo novo regime fiscal, as despesas primárias não poderão ultrapassar os limites definidos pelo inciso I, parágrafo 1º do art. 102, os limites terão por base a despesa primária paga em 2016, incluindo os restos a pagar e as demais operações que afetam o resultado primário:
I – para o exercício de 2017, à despesa primária paga no exercício de 2016, incluídos os restos a pagar pagos e demais operações que afetam o resultado primário, corrigida em 7,2% (sete inteiros e dois décimos por cento);
O teto de 2017 é fixado em correspondência ao orçamento disponível para os gastos de 2016 acrescidos da inflação do ano. Para a educação e para a saúde a regra fixada tem alterações diferentes, pois para eles o ano-base será o ano de 2017 para aplicação em 2018.
Conforme essa emenda, os gastos públicos totais e reais não podem crescer acima da inflação, mesmo que a economia esteja bem. O que quer dizer que, caso o governo queira aumentar os investimentos em uma área, deverá fazer cortes em outra área.
A Câmara dos Deputados provocou a realização de um Estudo Técnico acerca da Emenda Constitucional nº 95, de 2016 da PEC N. 241/2016, que originou a EC nº 95 e tramitou na Câmera dos Deputados, o qual fora dividido em duas partes. A primeira trata-se da Introdução, nessa parte é feita uma análise inicial sobre a lei, as reações da população a ela e, por fim, é explicado o objetivo do Estudo. A segunda parte faz a análise da Emenda Constitucional.
Na primeira parte o estudo cita as diversas manifestações estudantis e debates políticos que ocorreram devido à emenda à Constituição “afetar a execução da maior parte das políticas públicas a cargo da União”. Além disso, “os efeitos do Novo Regime Fiscal alcançarão apenas órgãos e entidades dependentes de recursos públicos”.
No tópico dois, Análise, o Estudo começa discordando discorda do termo “Novo” dado às alterações feitas pela emenda, pois as novas regras feitas pela emenda não afastam as já existentes, a exemplo da Lei de Responsabilidade Fiscal, pois devem ser observadas em conjunto.
Ademais, é feita uma justificativa sobre as decisões que constam na Emenda, a exemplo do que foi apresentado no número 44 do Estudo Técnico nº 26, que apresenta duas possíveis justificativas da exclusão do aumento de capital das empresas estatais:
“44. A exclusão do aumento de capital das empresas estatais justifica-se por se tratar de aportes primários não recorrentes e muitas vezes necessários para manter a União como acionista majoritária. Supondo a colocação de novas ações dessas empresas no mercado, haveria diminuição proporcional do valor nominal das quotas da União, caso esta não realizasse aportes para aumento de capital.
Essas justificativas apresentadas se referem às alterações feitas no parágrafo 6º do artigo 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:
II – créditos extraordinários a que se refere o § 3º do art. 167 da Constituição Federal;
III – despesas não recorrentes da Justiça Eleitoral com a realização de eleições; e
IV – despesas com aumento de capital de empresas estatais não dependentes.
Portanto, o Estudo e a Emenda, apresentam justificativas, comentários, que buscam “explicar” e “justificar” [3] a emenda. Resta demonstrada a presença do viés ideológico no Estudo Técnico e na Emenda, pois ambos apresentam justificativas para as alterações, como forma de convencer os agentes econômicos.
O princípio da Vedação ao Retrocesso Social é um direito constitucional que objetiva impedir que direitos fundamentais conquistados sejam retirados. “Podemos considerá-lo, portanto, como um direito constitucional de resistência que se opõe à margem de conformação do legislador quanto à reversibilidade de leis concessivas de benefícios sociais” (CONTINENTINO, 2019).
A retirada dos direitos pode ocorrer quando, por exemplo, são criadas leis que restringem o direito de ir e vir depois de 22:00h. Essa restrição seria considerada inconstitucional, pois restringe um direito adquirido. Ocorre que, esse direito constitucional pode ser diminuído ou substituído por outra legislação que não restringisse direitos. “Não é possível a revogação total de uma lei que protege as liberdades fundamentais sem a substituir por outra que ofereça garantias com eficácia equivalente”.[4]
O ministro Celso de Mello, em seu voto na ADI nº 4.350-DF, rel. Min. Luiz Fux, Pleno do STF, DJe de 02.12.2014 disse que “a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional, impedindo, em conseqüência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou oprimidos”.
Direitos já adquiridos e garantidos pela Constituição Federal, caso sejam suprimidos ou sofram ameaça de exclusão, geram instabilidade jurídica e violam o princípio da Vedação ao Retrocesso. O Estado tem, por dever, preservar os direitos garantidos não apenas pela Constituição, mas por toda a legislação brasileira.
A EC n. 95/96 alterou o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a fim de introduzir o “Novo Regime Fiscal”. A apresentação da proposta informou, entre outros argumentos, que:
“A raiz do problema fiscal do Governo Federal está no crescimento acelerado da despesa pública primária. No período 2008-2015, essa despesa cresceu 51% acima da inflação, enquanto a receita evoluiu apenas 14,5%. Torna-se, portanto, necessário estabilizar o crescimento da despesa primária, como instrumento para conter a expansão da dívida pública. Esse é o objetivo desta Proposta de Emenda à Constituição.
[…]
Com vistas a aprimorar as instituições fiscais brasileiras, propomos a criação de um limite para o crescimento das despesas primária total do governo central. Dentre outros benefícios, a implementação dessa medida: aumentará previsibilidade da política macroeconômica e fortalecerá a confiança dos agentes; eliminará a tendência de crescimento real do gasto público, sem impedir que se altere a sua composição; e reduzirá o risco-país e, assim, abrirá espaço para redução estrutural das taxas de juros. Numa perspectiva social, a implementação dessa medida alavancará a capacidade da economia de gerar empregos e renda, bem como estimulará a aplicação mais eficiente dos recursos públicos. Contribuirá, portanto, para melhorar da qualidade de vida dos cidadãos e cidadãs brasileiro. (sic) (BRASIL, Exposição de motivos n. 83/2016))”
Em resumo, as razões apresentadas para a modificação do texto constitucional foram: Crise fiscal motivada pelo crescimento das despesas primárias, necessidade de responsabilidade fiscal através do controle das contas públicas e diminuição da dívida pública, pois a contenção do crescimento do gasto primários abrirá espaço para a redução das taxas de juros pelo reestabelecimento da confiança dos agentes econômicos (cairá o risco de insolvência do setor público e a política monetária “não precisará ser tão restritiva”). Ademais, alega tratar-se de “medida democrática […]. Uma vez aprovada a nova regra, caberá à sociedade, por meio de seus representantes no parlamento, alocar recursos entre os diversos programas públicos, respeitado o teto de gastos.”
Ao final da justificativa expõe-se que “vale lembrar que o descontrole fiscal a que chegamos não é um problema de um único Poder, Ministério ou partido político. É um problema do país! E todos (sic) o país terá que colaborar para solucioná-lo”.
Sob tais fundamentos, a Seguridade Social foi fixada para o exercício de 2017, no limite equivalente à despesa realizada em 2016, corrigida pela inflação observada em 2016. E desde 2018, o limite para a despesa primária foi incorporado ao processo de elaboração da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual, e consistindo no valor do limite do exercício anterior, corrigido pela inflação do exercício anterior (IPCA).
SANTOS e FUNCIA (2019) afirmam que a Emenda Constitucional 95 fere o núcleo essencial do direito à saúde e criticam a insuficiência de recursos destinados à saúde. Dentre os seus argumentos, citam que existem quase dois milhões de ações judiciais que tramitam requerendo o acesso à saúde (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018). Além disso, segundo eles, se gasta R$ 3,60 per capita/dia com a saúde nas três esferas do governo. Esse valor implica um gasto público consolidado (União, estados e municípios) em saúde de 4% do PIB (em 2017), quase a metade do gasto do Reino Unido (7,9% em 2015, segundo a Organização Mundial da Saúde) (SANTOS; FUNCIA, 2019).
A Emenda Constitucional nº 86 estabelecia que o piso mínimo da saúde fosse referente a 15% da Receita Corrente Líquida da União[5], que possibilitava adequação conforme o crescimento econômico do país. Dessa forma, o piso da saúde seria móvel em relação ao desenvolvimento econômico do país. Todavia, com a Emenda Constitucional 95 as despesas com saúde estão engessadas durante o período de 20 exercícios financeiros, independentemente de condições de déficit/superávit econômico. A partir de 2017, as despesas primárias só serão alteradas de acordo a variação do IPCA em relação à RCL. Ou seja, nos novos cálculos da EC 95, o percentual mínimo da saúde passou a ser o valor da receita corrente líquida de 2017, acrescida da variação do IPCA.
Na tabela a seguir, elaborada por SANTOS E FUNCIA (2019), é demonstrada mostrada a queda do piso federal do SUS em relação à receita corrente líquida:
Fonte: Adaptado de: Ministério da Fazenda/STN (Demonstrativo da Receita Corrente Líquida da União – Série Histórica); Ministério da Saúde/SPO – Relatórios Quadrimestrais de Prestação de Contas – 3º Quadrimestre de 2015 a 2017 e Relatório Anual de Gestão 2014 a 2017; e Câmara dos Deputados (Estudo PLOA 2019). Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-21/opiniao-ec-95-fere-nucleo-essencial-direito-saude.
No segundo quadro consta a Receita Corrente Líquida (em milhões) dos anos de 2014 a 2019. No terceiro quadro foi apresentado o valor destinado às Ações e Serviços Públicos de Saúde e a porcentagem indicando o que foi deduzido da receita corrente líquida. Por fim, no quarto quadro são apresentados os valores do empenho das Ações e Serviços Públicos de Saúde, em relação à receita corrente líquida, e o seu valor em porcentagem.
Os valores referentes aos anos de 2014 e 2015 utilizam a regra da EC 29. A partir do ano de 2016 é utilizada a regra da EC 95.
Após analisar as porcentagens da tabela é possível constatar que os valores do Piso para Ações e serviços públicos de saúde reduziram, pois em 2014 a 2015 os valores chegavam 14,28% e 14,77% respectivamente. Em 2016 e 2017, apesar de o valor ter chegado a 15,00% da receita corrente líquida, despencaram para 13,95% em 2018 e 13,85% em 2019.
Ademais, conforme tabela também elaborada por Lenir Santos e Francisco Funcia (Santos; Funcia, 2019), os valores destinados à saúde em 2018, com a Emenda Constitucional nº 95, foi de R$ 112.361 bilhões. Ocorre que, se fosse observada a antiga regra e os valores destinados à saúde fossem referentes a 15% da Receita Corrente Líquida, o investimento deveria ser de R$ 120.802 bilhões. Isso quer dizer que, em 2018 houve uma perda de R$ 4,2 bilhões (cálculo matemático) em seu valor real que poderia ter sido destinado à saúde.
Já em 2019, em uma estimativa, o valor destinado à saúde, pela regra da EC 95, foi de R$ 117.293 bilhões, sendo que se o montante correspondesse a 15% da RCL, o valor seria de R$ 127.005 bilhões. Por fim, a soma dos valores de 2018 e de 2019 representa uma perda de 9,7 bilhões para a saúde.
Por fim, é possível constatar que a Emenda Constitucional n. 95/2016 provocou perda para o orçamento público da saúde. Além disso, como não existe nenhuma disciplina para a suspensão dos efeitos da emenda em caso de aumento de receitas, a tendência é que continue se ampliando esse retrocesso social, haja vista que os valores per capita destinados à saúde, que já eram insuficientes para o atendimento às demandas da população, têm a projeção de diminuir ao longo dos 20 anos estabelecidos pela EC 95/2016.
Conclusão
Este estudo analisou o impacto da EC N. 95/2016 quanto às ações e serviços de saúde. O objetivo foi aferir a existência de retrocesso social travestido de um discurso ideológico na medida jurídica adotada com o intuito de resolver o problema do déficit fiscal brasileiro. O governo federal, seguido dos estados, optou por uma reforma que implicaria em estabelecer um teto às despesas primárias, em outros termos, limitar as despesas com gastos sociais. Adotou-se como parâmetro o estudo técnico n. 26 realizado pela Câmara dos Deputados.
Pela literalidade do Projeto de Emenda Constitucional contatou-se que na exposição de motivos n. 83/2016 proferida pelo governo federal que serviu de justificativa para a modificação transitória no texto constitucional, a causa do problema fiscal estaria no crescimento acelerado da despesa primária, sendo que o estudo técnico demonstrou que essa despesa se manteve estagnada, ou mesmo reduzida, em alguns dos últimos anos de gestão. Assim, a redução do PIB está mais relacionada com a redução de receitas decorrente da queda de arrecadação motivada pela recessão econômica que o país vem enfrentando desde 2012, ou mesmo pela renúncia voluntária de receitas por parte do governo.
Destaca-se ainda a preocupação demonstrada pelos textos do governo federal, da Consultoria da Câmara em garantir as “expectativas” e a “confiança dos agentes econômicos”, pois o país precisa “aprimorar as instituições fiscais”[6]. Inobstante, tal fato, não foram apresentados nos documentos oficiais nenhuma informação acerca da utilização dos recursos financeiros em contextos de crescimento econômico para os próximos 20 anos, haja vista que só se tratou da desvinculação do governo em alocar, mesmo que minimamente, recursos no SUS. Também não foram considerados aspectos relacionados ao aumento demográfico, aspectos epidemiológicos e envelhecimento populacional, que implicam em um impacto ainda maior da redução per capita.
Ressalta-se o fato de que as despesas com benefícios sociais possuem o efeito de multiplicador para o PIB, o que também foi evidenciado pelos estudos técnicos[7], mas que não foram pontuados pelos documentos favoráveis à alteração constitucional. Além disso, todos os argumentos contrários à Emenda Constitucional enfatizaram que os pisos constitucionais não poderiam ser desconsiderados sob pena de restrições a direitos e garantias individuais (SANTOS; FUNCIA, 2019).
Por fim, destaca-se a terminologia adotada na Exposição de motivos n. 83/2016, que além dos termos “confiança” e “expectativa”, fez reiteradamente a utilização de adjetivos e promessas, sem a devida justificativa de ordem técnica, e corroborando a colocação acima referida de Alan Hunt, incluiu o “apelo de consenso” à sociedade, conforme se verifica na sua parte final:
“Uma vez aprovada a nova regra, caberá à sociedade, por meio de seus representantes no parlamento, alocar os recursos entre os diversos programas públicos, respeitado o teto de gastos. Vale lembrar que o descontrole fiscal a que chegamos não é problema de um único Poder, Ministério ou partido político. É um problema do país! E todos (sic) o país terá que colaborar para solucioná-lo. (BRASIL, Exposição de motivos n. 83/2016)”
O texto se posiciona como se não existisse nenhuma outra alternativa para a solução do problema fiscal, num posicionamento que Marc Leroy qualifica de “ideologia do constrangimento”. Para ele, “a ideologia neoliberal utilizou, com certo sucesso, do mercado globalizado para influenciar as políticas fiscais e orçamentais, apoiando-se em teorias econômicas prestigiosas (como as de Hayek e Buchanan). O objetivo é o de equacionar o problema da decisão financeira como estando determinado por constrangimentos que não deixam lugar a escolhas políticas” (LEROY, 2013, p.74).
Tampouco identificou-se qualquer justificativa referente aos efeitos dos instrumentos legais para controle e fiscalização dos atos administrativos que impliquem em desequilíbrio fiscal que já existem, mas que aparentemente não foram suficientes para evitar a ocorrência do alegado “aumento de despesas primárias”. Essa lacuna suscita o questionamento: a imposição de um teto para as despesas primárias, sem que sejam adotadas medidas eficientes para o aumento das receitas será suficiente para resolver o problema do déficit fiscal?
Portanto, resta demonstrada a ocorrência do retrocesso social no âmbito da saúde brasileira pela redução do quantum per capita despendido com ações e serviços públicos de saúde, bem como a presença do viés ideológico nos instrumentos jurídicos e escolhas políticas pelos governos brasileiros em relação à previsão constitucional afeita direito à saúde, em especial, na Emenda Constitucional N. 95/2016, que foi apresentada como única solução viável para resolver o problema do déficit fiscal, quando os estudos analisados demonstram o contrário. Essa situação nos leva a acreditar que trata-se de uma medida voltada unicamente à “confiança” e à “expectativa” dos agentes econômicos. Ocorre que, a confiança de um país, tanto para seu povo como para os estrangeiros, está sobretudo na sua capacidade de oferecer qualidade de vida e bem-estar para sua população, aliada a um equilíbrio fiscal adequado ao contrato social, nesse caso representado pelo texto constitucional.
Referências
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[1] O «ótimo de Pareto» ocorrerá, quando existe uma situação (S) onde ao se sair dela, um agente fica, necessariamente melhor, isto é, aumenta o seu bem-estar. MARTINS, Catarina. Ótimo de Pareto. 2017. Disponível em: <knoow.net/cienceconempr/economia/otimo-de-pareto/>. Acesso em: 28 dez. 2018.
[2] Escolhas trágicas é um termo que foi definido inicialmente por Calabresi e Bobbit e tem o objetivo de demonstrar a relação entre as escolhas realizadas pela sociedade e suas consequências.
[3] Termos citados pelo Estudo Técnico que fez uma análise da emenda.
[4] GARCIA, Carla Rosane Pesegoginski. Princípio da vedação do retrocesso: efeito “cliquet”. 2014. Disponível em: <https://juridicocerto.com/p/carlaadvogada/artigos/principio-da-vedacao-do-retrocesso-efeito-cliquet-436>. Acesso em: 15 jan. 2019.
[5] Art. 2º, IV, LC nº 101/00 (LRF) IV- Receita Corrente Líquida: receita corrente líquida: somatório das receitas tributárias, de contribuições, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de serviços, transferências correntes e outras receitas também correntes, deduzidos o que consta nas alíneas a, b e c do mesmo inciso
[6] “Um desafio que se precisa enfrentar é que, para sair do viés procíclico da despesa pública, é essencial alterarmos a regra de fixação do gasto mínimo em algumas áreas. Isso porque a Constituição estabelece que as despesas com saúde e educação devem ter um piso, fixado como proporção da receita fiscal. É preciso alterar esse sistema, justamente para evitar que nos momentos de forte expansão econômica seja obrigatório o aumento de gastos nessas áreas e, quando da reversão do ciclo econômico, os gastos tenham que desacelerar bruscamente. Esse tipo de vinculação cria problemas fiscais e é fonte de ineficiência na aplicação de recursos públicos. Note-se que estamos tratando aqui de limite mínimo de gastos, o que não impede a sociedade, por meio de seus representantes, de definir despesa mais elevada para saúde e educação; desde que consistentes com o limite total de gastos.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/ExpMotiv/EMI/2016/83.htm. Acesso em 20 jul. 2017.
[7] Além da Nota técnica n. 28 do IPEA, cita-se também o estudo que ganhou o XXI Prêmio do Tesouro Nacional “os multiplicadores fiscais no regime recessivo são elevados e consideravelmente superiores aos do regime expansivo, que assumem valores não significativamente distintos de zero ou até mesmo negativos. Por exemplo, nas recessões (suficientemente) fortes o multiplicador de impacto máximo nos modelos das despesas com aquisição de ativos fixos, benefícios sociais e pessoal assumem valores da ordem de 1,68, 1,51 e 1,33, respectivamente – muito superiores aos valores de 0,16, 0,15 e 0,0 verificados nas expansões (suficientemente) fortes.” ORAIR, Rodrigo Octávio. SIQUEIRA, Fernando de Faria. GOBETTI, Sergio Wulff. Política fiscal e ciclo econômico: uma análise baseada em multiplicadores do gasto público. XXI Prêmio tesouro nacional 2016. Disponível em: < http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/558095/2o-lugar-rodrigo-octavio-orair-086.pdf/ff2dc598-149a-419d-b95f-fb6e54e10d4f>. Acesso em: 02 jul. 2017.
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