Os atores da justiça de transição no Brasil

Resumo: A Anistia possível foi o primeiro passo para a redemocratização do Brasil após 15 anos de regime ditatorial, iniciando o período de efetivação da Justiça de Transição no país, que ainda não obteve o direito à verdade sobre seus mortos e desaparecidos do período. O presente trabalho tem por fito a busca pela caracterização de alguns dos principais atores da justiça de transição brasileira, e como as suas atuações influenciam na aplicabilidade dos passos transicionais e na democracia brasileira.[1]

Palavras chave: JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO, DITADURA, DEMOCRACIA, ANISTIA.

Sumario: introdução. 1. Comissões da anistia, da verdade e a justiça. 2. Organizações não-governamentais. 3. Os clubes militares, militares e forças favoráveis ao regime cívico-militar. Conclusão. Referências.

Introdução

Surpreende que mesmo após passadas décadas do final do regime cívico-militar as manifestações, os debates acalorados, as acusações persistentes e mesmo manifestações pró e contra uma suposta volta do regime tomem conta da mídia e das redes sociais.  As violações legais ocorridas no período ditatorial, tanto o Estado ditatorial quanto da oposição, não se furtam de passar pelo crivo de uma análise acerca do direito penal, sobre punir ou não os envolvidos. Comissões, governamentais ou não, participam acaloradamente do debate, auxiliando na preservação da memória das partes envolvidas nos conflitos, utilizando como argumentos conceitos e fundamentos do direito penal, como fatores excludentes, legítima defesa, crimes permanentes, imprescritibilidade de crimes contra os direitos humanos.

Fica evidente que ainda hoje há uma disputa político-ideiológica, hermeneutica, por trás dos fatos narrados nos capítulos anteriores. Neste capítulo, iremos discorer sobre alguns dos atores envolvidos na disputa da memória e consequentemente, na justiça de transição brasileira.

1. Comissões da Anistia, da Verdade e a Justiça

Com o intuito de fomentar o direito à memória e enfrentar o legado do passado autoritário, as ações governamentais tem um importante papel na consolidação da transição brasileira. As ações do governo legitimam e reforçam as ações da sociedade civil organizada, como resposta de um Estado democrático às demandas da sociedade. A anistia possível materializou-se através da Lei n°6.683/79, marcando a redemocratização brasileira, permitindo o retorno dos exilados do regime.

Nascida de uma intensa mobilização nacional, veio ainda na vigência do regime cívico-militar, trazendo no seu âmago toda  a carga de incoerências do período, embarcando na anistia todos os crimes interpretados como motivados politicamente ou correlatos, tendo sido recebida como um asceno ao esquecimento dos crimes cometidos. Esse exercício de esquecimento da sociedade brasileira foi fruto de uma anistia oriunda dos últimos atos de uma ditadura prestes a ceder espaço à reformulação política que apontava para os anos 80.

Percebe-se que nos primeiros anos subsequentes à Lei de Anistia e a promulgação da Constituição de 1988 pouco ou nada foi feito no que se refere às políticas de memória e ações transicionais, não tornando público num primeiro momento as agressões cometidas pelos agentes do Estado. Dessa forma, a lei de anistia serviu como uma autoanistia dos militares momentos antes da passagem o poder, tendo passado anos sem que investigações fossem feitas sobre o período, dificultando o trabalho de reconhecimento e consequente memória do ocorrido. José Carlos Moreira da Silva Filho[2] discorre em seu livro:

“Esta anistia acabou se firmando como uma outra etapa do processo de abertura lenta e gradual, iniciada pelo ex-ditador Ernesto Geisel, eclipsando o ingrediente de conquista e mobilização que possuía. Ela revelou-se, igualmente, uma autoanistia, pois serviu de pretexto para que não se realizasse nenhum tipo de investigação e apuração das responsabilidades dos agentes do regime ditatorial por seus atos ilegais aviltantes. E, por fim, ela representou uma barreira até hoje difiícil de ser transposta, para que se concretize o Direito à Memória e à Verdade.”

Conforme o autor anteriormente citado, como legado deixado pela ditadura militar, além dos crimes contra a humanidade foi uma lei injusta, questionável quanto à validade, até hoje instransponível para que se faça um julgamento daqueles que cometeram crimes contra a humanidade sob o pretexto da defesa dos interesses nacionais.

O governo brasileiro timidamente iniciou promulgando em 1995 a Lei n°9.140, reconhecendo como mortos as pessoas que participaram ou tenham sido acusadas de participar de atividades políticas, do período de 2 de setembro de 1961 à 5 de outubro de 1988 e que por este motivo tenham sido detidas por agentes públicos e desde então estejam desaparecidas, criando assim a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, que reconheceu, representando o Estado brasileiro, a responsabilidade no desaparecimento forçado de 136 pessoas.

Criada a Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, em 2001, com a missão de analisar os pedidos de indenização das pessoas impedidas de de exercer atividades economicas por motivação política entre 1946 e 1988. A partir de 2007 a Comissão ampliou suas atividades, iniciando as Caravanas de Anistia, que tem por intuito a promoção da análise dos requerimentos no local em que ocorreram as perseguições políticas no regime militar.

Ainda em 2007, complementarmente a Comissão da Anistia iniciou uma série de atividades com o objetivo de executar a atuação educacional por meio de ações para o desenvolvimento e implantação de políticas públicas de memória verdade e reparação. Além das atividades de reparação e educação para memória, a Comissão da Anistia integra o projeto Direito à Memória e à Verdade, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Além disso, fomenta as iniciativas realizadas pela sociedade civil, universidades, organizações não governamentais e de classe, na pesquisa e atividades do tema. Incentiva o debate público sobre os quatro temas da Justiça de Transição: reforma das intituições para a democracia; direito à memória e à verdade; direito à reparação; e o direto ao igual tratamento legal e à justiça.

Já a Comisão da Verdade (CNV) é a comissão criada, em 2011, com a “finalidade de examinar e exlcarecer as graves violações de direitos humanos praticados no período de 1946 a 1988, afim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. Conforme anteriormente falado, não foi a primeira Comissão da América do Sul, sofrendo inlfuências das outras comissões no continente.

Composta por sete membros nomeados pela Presidência da República, esta comissão elaborou relatórios e audiências públicas para esclarecer as violações aos direitos humanos, inclusive auxiliando a identificação de restos mortais dos desaparecidos do período.

Conforme explica Hayner, 2001; Sikkink e Walling, 2007, sobre as Comissões da Verdade:

“as “Comissões da Verdade” teoricamente objetivam o amplo esclarecimento das

violações: aberturas de arquivos oficiais, oitiva de testemunhos de sobreviventes e familiares, investigação das circunstâncias da repressão, identificação dos agentes do Estado responsáveis direta e indiretamente pela repressão, assim como de suas ramificações civis, são algumas das formas para tanto. Como resultado, a Comissão produziria um relatório com suas conclusões para os dois próximos passos: processamento penal dos responsáveis e reconstrução história desse passado acompanhado de políticas públicas de memória das violações”.

No artigo de Marcelo D. Torelly – Das comissões de reparação as comissões da Verdade – encontramos semelhante definição:

“É relevante o destaque feito pelo autor de que, como regra, as comissões não tem poderes judiciais (dado que se repete no projeto de lei para a comissão brasileira), mas que isso não necessariamente significa que as informações por elas produzidas não possam ser posteriormente apresentadas ante ao judiciário. A natureza não-judicial das comissões da verdade atende, basicamente, a dois fins: primeiramente, o de garantir que a comissão não seja vista pelos perpetradores como uma instituição “contrária” a eles, o que inibiria sua participação; em segundo lugar, o de evitar que os comissários e seus agentes sejam obrigados a respeitar os parâmetros de devido processo legal estrito que caracterizam os atos de natureza judicial.” (TORELLY, 2012, p.4)

Percebemos com o resultado final, que as comissões da verdade apresentam à sociedade a possiblidade de verificação da autoria dos fatos reconhecidos, o que não ocorre com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão da Anistia.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) protocolou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fudamental (ADPF) em 2008, questionando a legitimidade da auto-anistia, que anistiou os representantes do Estado  que atuaram durante o regime cívico-militar praticando tortura.  Nominada de ADPF 153-6, com petição assinada pelos advogados Fábio Konder Comparato e Maurício Gentil Monteiro, a petição tinha como pedido que os crimes comuns cometidos contra os opositores do regime não fossem atingidos pela Lei de Anistia.

A petição da OAB contestava o 1° artigo da Lei de Anistia, que considera anisitiados crimes de quaisquer natureza relacionados aos crimes políticos ou por ele motivados. De estarte, o Ministério da Justiça e a Advocacia-Geral da União antagonizaram-se nos seus pareceres. O Ministério da Justiça defendia a inconstitucionalidade do parágrafo 1°, e a Advocacia-Geral da União defendeu o não reconhecimento da arquição de descumprimento, dando sua improcedência.

Em 2010, por sete votos a dois o Supremo Tribunal Federal, através do relator da arguição o Ministro Eros Grau, considerou improcedente o mérito da arguição, rejeitando os argumentos apresentados pela OAB, afirmando que somente o Poder Legislativo estaria autorizado a rever a Lei de Anistia.

 No geral, na Justiça brasileira as sanções aos membros do Estado ditatorial são ainda hoje de caráter administrativo e civil, não tendo alcançado a esfera penal.

Carlos Alberto Brilhante Ulstra foi reconhecido como torturador em sentença proferida pelo Juiz Gustavo Santini Teodoro,  como tendo responsabilidade civil por ter gerado danos morais decorrentes da prática da tortura. Entretanto, até hoje não houve condenação penal ou investigação criminal sobre a autoria das torturas, desaparecimentos forçados e mortes do período.

2. Organizações Não-Governamentais

Embora a sociedade civil tenha sido parte considerável na ditadura, por isso a emblemática revisão do termo ditadura militar para ditadura civil-militar, grande parte da sociedade sentia-se ameaçada com o desenrolar dos governos militares. Desde o início do regime, grupos que antes eram favoráveis pela intervenção militar, como forma de salvar o país de uma provável ditadura comunista, perceberam que contribuíram para a criação de um monstro sem freios, que utilizava da força para fazer sua vontade e permanecer no poder. Trocaram uma suposta ditadura comunista por uma ditadura militar nacionalista. Setores da igreja, que no início eram favoráveis a intervenção militar, com passar dos primeiros anos do regime já tinham grande parte de seus clérigos apoiando direta ou indiretamente os opositores do regime, dada tamanha violência opressora empregada pelo Estado brasileiro naqueles anos de chumbo. Algumas das mais famosas demonstrações de oposição à repressão estatal foram apresentados na forma de relatórios, como o Brasil: nunca mais, da Arquidiocese de São Paulo; Outros foram os tantos relatórios, como Report on allegations of torture in Brazil, da Anistia Internacional ou o Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

Os delitos praticados pelos agentes da repressão política acumulavam cada vez mais opositores ao método de controle social imposto pelo Estado brasileiro, mesmo entre seus apoiadores de início. No final da década de 70, os militares já não tinham uma oposição  armada em território nacional, tendo todos os grupos de esquerda sido presos, exilados ou mortos. A oposição que faltava era a oposição política, que cada vez mais aumentava devido aos meios desumanos empregados pelos militares. Nesta parte, fato interessante na história brasileira é de que, embora os militares tenham sido vitoriosos na luta armada contra a oposição, perante a opinião pública acusaram uma derrota moral sem precedentes na história nacional, tendo os grupos de oposição ao regime sido retratados, nos artigos acadêmicos e no cinema nacional como os verdadeiros heróis da resistência brasileira ante um regime ditatorial. Sobre o fato, discorre Lauro Joppert Swensson Junior:

“Apesar dos militares terem saído vitoriosos na luta contra os seus “inimigos”, chamados “terroristas, comunistas e subversivos”, eles veem-se hoje obrigados a amargar uma derrota moral (de moral social) e a sofrer uma sanção social, devido principalmente aos meios empregados para alcançar os seus fins, como a tortura, os desaparecimentos forçados e as execuções sumárias.”

Continua no mesmo tema o o cronista Zuenir Ventura (VENTURA, 2008):

“Uma simples arqueologia dos fatos pode dar a impressão de que esta (a geração de 68) é uma geração falida, pois ambiciou uma revolução total e não conseguiu mais do que uma revolução cultural. Arriscando sua vida pela política, ela não sabia, porém, que estava sendo salva históricamente pela ética”.  

Os opositores do regime militar ocupam hoje altos cargos no Estado Brasileiro, são homenageados como mártires, tendo seus nomes em escolas e avenidas, enquanto que com os membros do regime militar o ocorrido é um movimento contrário: não lhes são concedidas honras e aqueles que tinham seus nomes em Avenidas, ruas ou praças, tem seus nomes substituídos gradativamente. Sobre o tema, afirma Luciano Oliveira (OLIVEIRA, 2008):

“O que se deu no Brasil mostra que os vencidos podem ter a ultima palavra, quando os vencedores ganham a guerra valendo-se de métodos que cobrem de vergonha aqueles que os empregam. Não há fim, por mais nobre que seja, que não seja manchado pela obscenidade suprema que é aplicar choques elétricos no corpo de um ser humano nu, imobilizado e trêmulio de medo e dor. Esse é o único capítulo dessa história dolorosa que está concluído.”

Ao falar das ações de resgate e disputa da memória, é obrigatório falar das associações organizadas pelos familiares de mortos e desaparecidos dos militantes da resistência política, como o Grupo Tortura Nunca Mais que lutam para manter viva a memória do período ditatorial, através de denuncias e influência política institucional pelo resgate da memória, através do resgate dos restos mortais dos desaparecidos, como prova inequívoca da tortura, para fortalecer o reconhecimento público dos fatos ocorridos. Dentre suas atividades destaca-se o projeto de assistência clínica-médico-psicológica, de reabilitação física e social e de apoio jurídico gratuito – voltado para as pessoas atingidas pela violência do Estado. Contam com aproximadamente 100 filiados e suas reuniões são públicas. A partir da publicação da lei que estabeleceu a Comissão Nacional da Verdade (CNV), o grupo passou a reunir-se semanalmente para discutir como ponto único de pauta de suas reuniões a própria CNV.

Nesse movimento de resgate e disputa pela memória, com os resultados mostrados acima, demonstram que mesmo havendo uma disputa pela memória, hoje o campo democrático contrário ao regime militar conta com mais apoio, organização e visibilidade na sociedade brasileira do que os defensores do regime militar, mas isso não quer dizer que os militares não contem ainda com defensores do regime e seus meios empregados.

3. Os Clubes Militares, militares e forças favoráveis ao regime cívico-militar

No campo dos militares, não há uma representação de grupo formalmente instituída, com o propósito de representá-los nesta questão sobre a disputada ”verdade”. Devido aos anos de silêncio e esquecimento instituídos informalmente e principalmente as próprias regras e estatutos militares que não permitem associações de classe, pouco existe na academia sobre a opinião dos militares, institucionalmente falando, se não entrevistas espaçadas. PINTO, Igor (2013, monografia UFRJ) em seu trabalho entrevistou alguns militares sobre a Comissão Nacional da Verdade, colheu algumas informações valiosoas sobre o pensamento dos militares sobre esta questão. Um dos primeiros entrevistados, um oficial reformado do Exército Brasileiro, quando perguntado sobre o que achava da Comissão Nacional da Verdade, respondeu que a opinião dele é de que a Comisão é um pretexto para a revisão da Lei de Anistia.

O pesquisador Igor Alves Pinto, em pesquisa realizada no Clube Militar do Rio de Janeiro tentou captar a opinião do Clube sobre a questão, no dia em que havia uma palestra sobre “ A Revolução de 31 de Março de 1964 – Com os olhos no futuro”. Suas percepções foram que, além da idade extremamente avançada do grupo, todos se conhecem ao menos pelo nome, como se amigos de longa data fossem.

Na palestra acompanhada pelo pesquisador, a Professora Sandra Cavalcanti foi a primeira a apresentar, discorrendo sobre valores morais e a necessidade de se proteger “ a verdade, a família e o amor ao próximo”. O segundo palestrante, o General Coutinho, citou que as Forças Armadas não são a vanguarda da sociedade civil e sim as reservas cívicas e morais, sendo recebido com aplausos pelos ali presentes. O terceiro palestrante foi Ives Gandra, que em seu relato disse que sofreu em 1969 pedido de confisco de seus bens e abertura de Inquérito Policial Militar, tendo apresentado-se como tendo participado da Anistia Internacional. Quando perguntado pelos presentes sobre o que achava da Comissão Nacional da Verade, o terceiro palestrante disse que a Comissão seria uma “Comissão da Vingança”.

Ainda em sua pesquisa, o pesquisador cita um inusitado fato: na entrada do Clube Militar do Rio de Janeiro há vários jornais da época, que exaltam o ocorrido.

Seguindo seu ciclo de pesquisas e entrevistas, Igor Alves Pinto, numa segunda entrevista, com o oficial B, colhe a seguinte informação do entrevistado: De forma implícita, B diz que as pessoas participantes do Clube Militar do Rio de Janeiro são os mais radicais dentro do círculo militar, como pessoas de ideologia de “ultra direita”. Seguindo a entrevista, B diz que quanto a Comissão da Verdade não há problemas, desde que se levante os dois ladosque cometeram as violaçõesaos Direitos Humanos na época, e que se siga a Lei de Anistia. Que não se discute a Comissão da Verade nas Forças Armadas, que os comandantes das forças e o Ministro da Defesa, caso fosse necessário, pronunciariam-se através de nota oficial.

Como podemos perceber no trabalho exposto, embora não organizado, há grupos da sociedade brasileira que ainda tem o entendimento de que o golpe cívico-militar além de necessário, foi um ato de bravura dos militares. Negam o fato de ter havido tortura. Sobre esse entendimento, cita José Carlos Moreira da Silva Filho[3]:

“A sociedade brasileira encontra-se , portanto, ainda sob fortes efeitos das políticas de esquecimento que vieram com a ditadura e com a anistia. Parte expresiva da opinião pública, incluindo principoalmente os mais jovens, sabe pouco sobre esse período repressivo. As Forças Armadas brasileiras ainda ostentam em seu seio o entendimento de que o golpe não só foi necessário como constituiu um ato de heroísmo patriótico. Muitos até chegam a duvidar que a tortura tenha de fato ocorrido em larga escala durante o regime.”

Nos clubes militares encontram-se, mesmo não organizados, um grupo ideológico que defende as ações no período, como ultima ratio contra uma ação comunista em território brasileiro, e defendendo o direito ao esquecimento do ocorrido, sucitando a Lei de Anistia como fundamento jurídico. Há resistência, nesse grupo em especial e entre os apoiadores do regime cívico-militar de admitir as torturas e os desaparecimentos, referindo-se ao golpe como uma revolução nacionalista, numa vã tentativa de legitimar os meios empregados.

Há ainda neste campo de atuação o Deputado Jair Bolsonaro, político carioca eleito pelo Partido Progressista do Rio de Janeiro, um dos atores mais atuantes na disputa pela verdade na Justiça de Transição Brasileira. Tendo sido eleito em grande parte por votos dos militares, frequentemente ele se posiciona como se representasse os setores militares, embora esta informação não seja confirmada pelas Forças Armadas ou pelos Clubes Militares como instituição. Sobre as afirmações do Deputado, cita em sua pesquisa Igor Alves Pinto:

“Em discurso no plenário o Dep. Ao falar sobre indenizações para presos políticos disse “Vamos acabar com essa idéia, com essa história, que esse pessoal era preso político. Ora, meu deus do céu, eram seqüestradores, assaltantes de banco, estupradores, terroristas e praticavam a corrupção em larga escala.”. Em discurso do dia 20 de abril de 2010  aonde se discutia o PNDH-3 e o Dep. falava sobre a Comissão da Verdade o Dep. discutia com o então Ministro Vannuchi ao dizer “Sobre isso eu volto sobre a confusão da Comissão, eu não posso permitir que latrocidas, torturadores, seqüestradores, assaltantes, terroristas se transformem em presos e desaparecidos políticos muito bem remunerados, eu não posso admitir isso. E essa Comissão vai levar para endeusar esse pessoal…” “Nós queremos saber sobre o carro bomba no aeroporto de Recife, ou melhor, a bomba no aeroporto de recife, que matou um jornalista e também um almirante, Quem foi o autor? Eu acho que eu sei o nome desse autor. Quer me pagar pra ver? Nós queremos abrir todos os arquivos também. O carro bomba que matou Mario Costa teve também a participação de uma mulher, vossa excelência não quer saber que mulher é essa?” – Ao que foi respondido por “Eu quero” – “Eu acho que não quer! Pra botar uma Comissão composta por pessoas desse naipe, indicada por gente ao teu lado, não quer a verdade. Assim sendo, seu Ministro, não vale essa idéia de que nós democraticamente vamos decidir a comissão, você está jogando pra platéia, está serviço desse seu governo. Por que o Zé Dirceu se refere a Dilma Roussef  como companheira em armas?” e depois continuou com “Nós militares não temos medo da Memória e da Verdade mas essa Comissão vai ser a Comissão da Calúnia composta por fascínoras. Eu perguntaria de novo, 6 traficantes pra julgar o Beiramar, ele será condenado ou absolvido? Ele será endeusado, glorificado, anistiado e ainda ganhará polpudas indenizações como os muitos dos seus companheiros ganham. Agora se sua excelência tem medo da verdade e não aceita incluir integrantes das forças Armadas, do Clube Militar, do Clube da Aeronáutica, do Clube Naval, do Grupo Terrorismo Nunca Mais. Assim você vai ficar a vontade pra dar as cartas.” e por fim disse “Então seu presidente, continuo batendo já que vossa excelência não vai ceder pra integrar a gente nossa na Comissão e de restante vai colocando aqui, na tribuna da Verdade, a Verdade que o povo tem que saber.” 

O Deputado Jair Bolsonaro é contrário à Comissão da Verdade, ao seu ponto de vista, de que a comissão irá elaborar um relatório arbitrário, sob o ponto de vista revanchista de um dos lados da disputa – A esquerda, ou os comunistas, como citado pelo Deputado em seus discursos.

Nas palavras do Deputado Jair Bolsonaro, em Audiência Pública na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, realizada em 9 de abril de 2013 na Câmara dos Deputados:

“… o ocorrido nós temos de levar em conta desde antes de 31 de março de 1964, prezado Dallari, desde antes. Não se pode julgar um crime a partir de um corpo no chão, a partir daquele momento. Tem que se anteceder um pouquinho. Desde 1961, já se articulava um golpe de esquerda em nosso País(…) nós não temos medo da justiça não. Os senhores têm medo da verdade. Tanto é que nesta Comissão, Dr. Dallari, não tem ninguém do nosso lado. Todos os sete foram impostos, indicados por Dilma Rousseff, exatamente para esconder os seus atos terroristas.”

Conforme o início do discurso do Deputado, constatamos nitidamente que: Primeiro, ele se coloca como representante dos militares; Segundo, que mesmo essa representação não sendo legítima, representa a palavra de um Deputado Federal, dos mais votados da última eleição pelo Rio de Janeiro; Terceiro, que é contrário ao espaço temporal que a Comissão se dispõe a esclarecer; Quarto, que o discurso de uma articulação de um golpe comunista ainda é sucitado quando lembrado dos motivos das Forças Armadas mobilizarem-se para a tomada do poder; Quinto, partindo da premissa de que ele fala em nome dos militares, o discurso rotula os militares como portadores da justiça, por isso não a temem, e que a “verdade” está ao seu lado; E por último, deslegitima a Comissão, pela forma como foram escolhidos e empossados, com a intenção de encobrir atos terroristas dos militantes de esquerda opositores ao regime.

Continuando seu dircurso, ainda na mesma audiência:

“(…) O Congresso, Dr. Belisário, que elegeu Castelo Branco foi feito em 1961. Que ampla maioria tinha os militares? Nenhuma. E V. Exa. deveria lembrar à sua igreja que os padres pregavam, antes de 1964, que os militares assumissem o Governo, porque estavam partindo para aditadura – indisciplinada, insubordinações, greves, corrupção generalizada. E quem disse isso, ali na bilioterca, foi o Dr. Roberto Marinho, em seu editorial de 7 de outubro de 1984. “Participamos da revolução”, e por aí vai. Disse também, em 2 de abril de 1964, e o título era “ Ressurge a democracia”.”

Voltando à análise do discurso do Deputado Bolsonaro, podemos perceber a tentativa de legitimar o golpe cívico-militar como um produto da conjuntura do período, da vontade e mobilização nacional, incluindo aí a igreja católica e os grandes grupos de comunicação. A conclusão lógica, depois da análise dos relatos e discursos, é que que o Deputado reconhece uma disputa hermeneutica pelo sentido da “verdade e justiça”, reconhece também que, se há disputa, há dois lados, colocando-se ao lado dos militares e dos membros do regime cívico-militar.

O grupo TERNUMA, grupo organizado em resposta as ações do Grupo Tortura Nunca Mais, em seu texto de descrição no sítio da internet apresenta-se como “um punhado de democratas civis e militares, inconformados com a omissão das autoridades legais e indignados com a desfaçatez dos esquerdistas revanchistas”. Continuam, declarando que tem como objetivo opor-se a todos aqueles que teimam em defender os referenciais comunistas. Ainda em seu site, o grupo conta, ainda na entrada do site, com a inscrição “Bem vindo! Aqui você conhecerá a história das ações terroristas praticadas por maus brasileiros”, associando a expressão “maus brasileiros” aos militantes de esquerda, os comunistas. Em seus arquivos, há o espaço Baú da Verdade, onde apresenta outras versões da verdade, com o intuito de se contrapor à Comissão da Verdade e suas conjecturas sobre a verdade desvelada em seus relatórios.

A disputa pela “verdade e justiça” existe, é pública embora não declarada e os  atores da justiça de transição brasileira atuam na disputa dentro do campo formal, seja dentro do próprio governo, seja no legislativo ou no judiciário, representando a disputa que há na memória da sociedade brasileira.

Conclusão

O presente artigo destinou-se a revisar bibliograficamente atigos e livros na busca dos principais participantes da justiça transicional brasileira, logrando êxito na busca, conseguindo demonstrar os participantes e suas mobilizações/atuações.

A política de resgate das memórias e mobilizações contra o esquecimento são hoje o único meio para a efetivação da Justiça de Transição no Brasil, pelo direito à verdade aos mortos, desaparecidos políticos e seus familiares. Quando os atores dessa disputa são reconhecidos, suas intenções não mais consideradas dúbias ou não orquestradas, podemos perceber que as movimentações de todos os atores demonstram uma disputa por esta rica memória ainda pouco explorada do passado ditatorial brasileiro.

 

Referências
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Notas:
[1] Trabalho orientado pelo Prof. Msc. Jaime John.
[2] José Carlos Moreira da Silva Filho. Justiça de Transição da ditadura civil-militar ao debate jurisdicional. Livraria do Advogado, 318p, 2015. Porto Alegre, RS.
[3] José Carlos Moreira da Silva Filho. Justiça de Transição da ditadura civil-militar ao debate jurisdicional. Livraria do Advogado, 318p, 2015. Porto Alegre, RS.

Informações Sobre o Autor

Rodrigo da Silva Soares

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande. Pós-graduado em Direito Público


Equipe Âmbito Jurídico

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