O empregado doméstico sempre foi uma categoria especial no Brasil, categoria à qual tradicionalmente se negaram os direitos garantidos aos demais tipos de empregados.
Foi gradativamente que o doméstico foi adquirindo os direitos que hoje possui, o que ainda não lhe assegurou, entretanto, igualdade de tratamento com o empregado comum.
Diversos são os argumentos utilizados para justificar tal diferença, dentre os quais o que conta com maior adesão da doutrina e jurisprudência trabalhistas é o que sublinha a relação de confiança essencial ao emprego doméstico, relação que garantiria um tratamento diferenciado ao doméstico, “quase um membro da família”, mas que exigiria, em contrapartida, um tratamento diferenciado também por parte do legislador, que deveria ser mais “econômico” nos direitos a serem outorgados a este trabalhador.
Apesar da sua força, este argumento não tem impedido a concessão de novos direitos aos domésticos nos últimos anos, tendência que se reforçou pela recente promulgação da Lei n° 11324, de 19 julho de 2006.
1. Definição do doméstico
O doméstico, como bem se sabe, não é um empregado como qualquer outro. Ele tem não só direitos próprios. Ele tem, também, uma definição própria, que diferencia esta categoria dos demais tipos de empregados.
Nesse sentido, doméstico é o empregado que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa física ou à família, no âmbito residencial destas[1].
Desse modo, além de prestar os seus serviços, de natureza não lucrativa[2], a pessoa física ou a família, em âmbito residencial[3] – o que exclui a possibilidade do trabalho doméstico numa empresa -, o doméstico deve, para ver configurado o seu vínculo empregatício, prestar serviços contínuos.
Esse requisito da continuidade é um importante elemento de distinção com relação ao empregado comum, cujo vínculo empregatício depende somente da não-eventualidade dos seus serviços, requisito interpretado de maneira menos restritiva do que a continuidade, sinônimo de trabalho prestado várias vezes por semana[4].
Para ser um doméstico, portanto, aquele que presta serviços, na casa de pessoa física ou de família, deve fazê-lo várias vezes por semana, diferente dos outros empregados, que podem prestar serviços só uma vez por semana e já serem considerados como empregados[5].
Mas, se a definição já denota uma diferença clara, são os direitos do doméstico que o distinguem nitidamente dos demais empregados.
2. Direitos tradicionais do doméstico
O doméstico representa uma categoria que só conseguiu conquistar os seus direitos aos poucos.
Um primeiro marco nesse sentido foi a promulgação da lei regulando a categoria, a Lei n° 5859, de 11 de dezembro de 1972. Ela passou a garantir à categoria doméstica direitos como a carteira de trabalho (art. 2°, I) e as férias anuais remuneradas (art. 3°), então fixadas em 20 dias úteis.
Aos poucos, no entanto, outros direitos foram sendo garantidos aos domésticos, como o vale-transporte, previsto pela Lei 7418/85 como direito dos empregados comuns e dos domésticos.
Essa tendência foi acelerada com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que, no parágrafo único do seu artigo 7°, estendeu diversos dos direitos garantidos aos empregados urbanos e rurais, e previstos no corpo deste artigo, aos empregados domésticos.
Foram, assim, estendidos ao doméstico direitos relativos à sua remuneração, como o salário mínimo (art. 7, IV), a irredutibilidade salarial (art. 7, VI) e o décimo terceiro salário (art. 7, VIII). O empregador doméstico deve, destarte, pagar treze vezes ao ano um salário no mínimo equivalente ao salário mínimo nacional, salário que não pode ser reduzido por ele.
Como ninguém vive somente de trabalho, o legislador constitucional garantiu, também, o direito ao repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos (art. 7, XV) e às férias anuais remuneradas[6] (art. 7, XVII) ao doméstico.
Outros direitos assegurados ao doméstico pela Constituição Federal de 1988 foram a licença-maternidade, de 120 dias (art. 7, XVIII), e a licença-paternidade, de 5 dias (art. 7, XIX).
Por fim, o legislador constitucional previu proteção ao fim do contrato de trabalho do doméstico, garantindo-lhe o direito ao aviso prévio, de 30 dias (art. 7, XXI) e à aposentadoria (art. 7, XXIV), nos mesmos moldes do empregado comum[7].
Esse rol de direitos do doméstico foi aumentado recentemente, pela promulgação da Lei 11324/06.
3. Novos direitos do doméstico
A origem dessa Lei 11324 é bastante curiosa, no entanto. O governo Lula, preocupado em estimular a formalização do mercado de trabalho doméstico[8], editou uma Medida Provisória[9] prevendo, simplesmente, a possibilidade de o empregador doméstico deduzir, da sua declaração de imposto de renda, a contribuição paga ao INSS em favor do seu empregado doméstico.
Levada a votação no Congresso Nacional, essa MP acabou recebendo tantas emendas dos parlamentares que o governo Lula se deparou com situação inusitada : ter de aprovar ou vetar uma lei que previra uma série de novos direitos ao doméstico.
Direitos dos quais o mais polêmico era a transformação do FGTS do doméstico em obrigatório, já que, até então, o empregador doméstico podia escolher se inscrevia ou não o seu empregado no FGTS.
A solução encontrada pelo governo, desse modo, foi a de aprovar alguns e vetar outros direitos contidos na lei, chegando-se à redação final da Lei 11324, aprovada em 19 de julho de 2006.
3.1. Direitos garantidos
Poucos sabiam, mas o empregador doméstico podia, até a aprovação desta lei, descontar do seu empregado os valores despendidos com a sua alimentação e moradia, no caso de ele morar e se alimentar na casa do patrão. A Lei 11324 proibiu esse desconto, inserindo novo artigo na Lei 5859/72 : “Artigo 2º-A. É vedado ao empregador doméstico efetuar descontos no salário do empregado por fornecimento de alimentação, vestuário, higiene ou moradia”.
Outro fato desconhecido de muitos : antes da promulgação desta lei, o empregador doméstico podia exigir do seu empregado o trabalho nos feriados, pois este direito tinha sido expressamente excluído do doméstico pela lei específica dos feriados, a Lei 605/49. Ocorre que tal exclusão foi expressamente revogada pela nova lei : “Art. 9º Fica revogada a alínea a do art. 5º da Lei nº 605, de 5 de janeiro de 1949”. Em outras palavras, o doméstico passou a ter direito ao repouso nos feriados oficiais.
A Lei 11324 teve, ainda, uma importante função : ela dissipou intrincada controvérsia relativa ao número de dias de férias do doméstico[10]. A partir de julho de 2006, não resta dúvida : o doméstico tem direito a férias anuais remuneradas de 30 dias corridos, como os demais empregados[11].
Outro direito estendido à doméstica, pela Lei 11324/06, foi a estabilidade da gestante. Alvo das mais severas críticas da doutrina, o fato de a doméstica poder ser dispensada quando grávida era permitido pela legislação anterior, mas não mais pelo novo artigo 4°-A da Lei 5859/72, cuja redação é clara : “Artigo 4º-A. É vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada doméstica gestante desde a confirmação da gravidez até 5 (cinco) meses após o parto.” A doméstica que fica grávida, portanto, somente poderá ser dispensada, a partir de agora, se cometer falta grave, essa estabilidade indo do momento em que confirma a gravidez até 5 meses após o parto.
Trata-se, destarte, de alguns direitos suplementares assegurados ao doméstico, direitos bastante relevantes, sublinhe-se de passagem. Mas nem todos os direitos previstos no texto original da Lei 11324 foram aprovados pelo governo Lula.
3.2. Direitos não garantidos
O centro da discórdia, durante os dias que antecederam a decisão do governo federal, foi o FGTS, que passaria, pela redação original da Lei 11324, a ser obrigatório.
Após ter consultado representantes dos domésticos e da classe média, o governo decidiu vetar essa parte da lei, afirmando ter apenas adiado a medida, a ser tomada em momento posterior, por meio de novo dispositivo legal.
O fato é que o FGTS do doméstico continuou, em razão disso, a ser uma mera faculdade do empregador, que decide se inscreve ou não o seu empregado. Essa decisão do patrão é bastante importante, aliás, pois, além de ser irretratável[12], ela implica em duas conseqüências básicas : a obrigação de o empregador depositar, todo mês, 8% do salário do seu empregado na conta vinculada deste[13]; e a de pagar, em caso de dispensa sem justa causa do doméstico, uma multa equivalente a 40% do valor dos depósitos do FGTS realizados durante aquele contrato de trabalho[14].
Mantido como facultativo foi também o seguro-desemprego do doméstico, que continua tendo este direito garantido somente quando inscrito no FGTS, uma faculdade do empregador, como vimos. Desse modo, pela redação mantida do artigo 6-A da Lei 5859/72, o doméstico poderá receber até 3 parcelas do seguro-desemprego, no valor de um salário mínimo, se tiver sido incluído no FGTS pelo seu empregador.
Se é inegável o fato de que a regulação do trabalho doméstico sofreu uma evolução, ainda há parte do caminho a ser percorrido para chegarmos à justa igualdade de direitos com o empregado comum.
Como justificar, por exemplo, a ausência do direito a uma jornada de 8 horas de trabalho ao doméstico? Ou do conseqüente adicional de horas extras quando tal jornada é ultrapassada? Ou, ainda, como aceitar que o doméstico não tenha direito ao adicional noturno quando exerce suas funções à noite[15]?
Se novos direitos foram garantidos ao doméstico, ainda há outros a serem assegurados em futuras reformas da legislação regulando o trabalho doméstico. Esperemos que este futuro não se perca de vista.
Mestre e Doutor pela Université de Paris 1 – Panthéon-Sorbonne, Juiz Federal do Trabalho da 8ª Região
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