Resumo: O objetivo do presente é analisar a proeminência dos princípios da moralidade e da impessoalidade, enquanto baldrames vinculadores constitucionais da atuação administrativa, como estertores combativos ao nepotismo. Como é cediço, historicamente, as práticas do nepotismo são advindas da confusão entre o público e o privado. Ora, a premissa que “permite” que o patrimônio público e seus interesses possam se confundir com o patrimônio e os interesses dos particulares poderosos adentrou a história do Brasil colonial, imperial e republicano, desdobrando seus efeitos até os dias atuais. O nepotismo, no cenário brasileiro, apresenta-se como uma prática odiosa que corrompe o interesse público, na condição de supremacia orientadora do agir do administrador, erigindo, em seu lugar, a tradicional máquina como mecanismo para atendimento de interesses pessoais. A partir disso, consoante o estabelecimento de um Estado Democrático de Direito, tal prática não encontra sedimento autorizador, reclamando, pois, a edição de marcos regulatórios e normativas capazes de evitar sua materialização no plano concreto. A metodologia empregada foi o método indutivo, auxiliado de revisão de literatura e pesquisa bibliográfica como técnicas de pesquisa.
Palavras-chaves: Princípio da Moralidade. Princípio da Impessoalidade. Princípios Constitucionais. Nepotismo.
Sumário: 1 Comento Introdutório: A Ciência Jurídica à luz do Pós-Positivismo; 2 Os Princípios da Moralidade e da Impessoalidade: Pequenas Reflexões aos Corolários Norteadores da Administração Pública; 3 Primeiros Comentários à caracterização do Nepotismo; 4 A Vedação Constitucional da Prática do Nepotismo
1 Comento Introdutório: A Ciência Jurídica à luz do Pós-Positivismo
Em sede de comentários inaugurais, ao se dispensar uma análise robusta sobre o tema colocado em debate, mister se faz evidenciar que a Ciência Jurídica, enquanto conjunto plural e multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as pujantes ramificações que a integra, reclama uma interpretação alicerçada nos múltiplos peculiares característicos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste diapasão, trazendo a lume os aspectos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera a ótica de imutabilidade que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática. É verificável, desta sorte, que os valores adotados pela coletividade, tal como os proeminentes cenários apresentados com a evolução da sociedade, passam a figurar como elementos que influenciam a confecção e aplicação das normas.
Com escora em tais premissas, cuida hastear como pavilhão de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Deste modo, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente.
A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo fundamental está assentado em assegurar que inexista a difusão da prática da vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras, nas quais o homem valorizava os aspectos estruturantes da Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade.
Afora isso, volvendo a análise do tema para o cenário pátrio, é possível evidenciar que com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, primacialmente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea.
Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. O fascínio da Ciência Jurídica jaz justamente na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais.
Ainda nesta senda de exame, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda de sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis.
Nesta tela, retratam-se os princípios jurídicos como elementos que trazem o condão de oferecer uma abrangência rotunda, albergando, de modo singular, as distintas espécies de normas que constituem o ordenamento pátrio – normas e leis. Os princípios passam a constituir verdadeiros estandartes pelos quais o arcabouço teórico que compõe o Direito se estrutura, segundo a brilhante exposição de Tovar[4]. Como consequência do expendido, tais cânones passam a desempenhar papel de super-normas, ou seja, “preceitos que exprimem valor e, por tal fato, são como pontos de referências para as demais, que desdobram de seu conteúdo”[5]. Por óbvio, essa concepção deve ser estendida a interpretação das normas que dão substrato de edificação à ramificação Administrativa do Direito.
2 Os Princípios da Moralidade e da Impessoalidade: Pequenas Reflexões aos Corolários Norteadores da Administração Pública
Escorando-se no espancado alhures, faz-se mister ter em conta que o princípio jurídico é um enunciado de aspecto lógico, de característico explícito ou implícito, que, em decorrência de sua generalidade, goza de posição proeminente nos amplos segmentos do Direito, e, por tal motivo, de modo implacável, atrela o entendimento e a aplicação das normas jurídicas à sua essência. Com realce, é uma flâmula desfraldada que reclamada a observância das diversas ramificações da Ciência Jurídica, vinculando, comumente, aplicação das normas abstratas, diante de situações concretas, o que permite uma amoldagem das múltiplas normas que constituem o ordenamento aos anseios apresentados pela sociedade. Gasparini, nesta toada, afirma que “constituem os princípios um conjunto de proposições que alicerçam ou embasam um sistema e lhe garantem a validade” [6].
Nesta senda, é possível analisar a prodigiosa tábua principiológica a partir de três órbitas distintas, a saber: onivalentes ou universais, plurivalentes ou regionais e monovalentes. Os preceitos acampados sob a rubrica princípios onivalentes, também denominados universais, têm como traço peculiar o fato de ser comungado por todos os ramos do saber, como, por exemplo, é o caso da identidade e da razão suficiente. É identificável uma aplicação irrestrita dos cânones às diversificadas área do saber. Já os princípios plurivalentes (ou regionais) são comuns a um determinado grupo de ciências, no qual atuma como agentes de informação, na medida em que permeiam os aportes teórico-doutrinários dos integrantes do grupo, podendo-se citar o princípio da causalidade (incidente nas ciências naturais) e o princípio do alterum non laedere (assente tanto nas ciências naturais quanto nas ciências jurídicas).
Os princípios classificados como monovalentes estão atrelados a tão somente uma específica seara do conhecimento, como é o caso dos princípios gerais da Ciência Jurídica, que não possuem aplicação em outras ciências. Com destaque, os corolários em comento são apresentados como axiomas cujo sedimento de edificação encontra estruturado tão somente a um segmento do saber. Aqui, cabe pontuar a importante observação apresentada por Di Pietro que, com bastante ênfase, pondera “há tantos princípios monovalentes quantas sejam as ciências cogitadas pelo espírito humano”[7]. Ao lado disso, insta destacar, consoante entendimento apresentado por parte da doutrina, que subsiste uma quarta esfera de princípios, os quais são intitulados como “setoriais”. Prima evidenciar, com bastante destaque, que os mandamentos abarcados pela concepção de dogmas setoriais teriam como singular aspecto o fato de informarem os múltiplos setores que integram/constituem uma determinada ciência. Como robusto exemplo desse grupo, é possível citar os princípios que informam apenas o Direito Civil, o Direito Penal, o Direito Administrativo, dentre outros.
Tecidas estas ponderações, bem como tendo em conta as peculiaridades que integram a ramificação administrativa da Ciência Jurídica, de bom alvitre se revela ponderar que os “os princípios administrativos são postulados fundamentais que inspiram todo o modo de agir da Administração Pública. Representam cânones pré-normativos, norteando a conduta do Estado quando no exercício das atividades administrativas”[8]. Assim, na vigente ordem inaugurada pela Carta da República de 1988, revela-se imperiosa a observação dos corolários na construção dos institutos administrativos. Pois, olvidar-se de tal, configura-se verdadeira aberração jurídica, sobremaneira, quando resta configurado o aviltamento e desrespeito ao sucedâneo de baldrames consagrados no texto constitucional e os reconhecidos pela doutrina e jurisprudência pátrios.
Urge salientar que a Constituição Cidadã, ao contrário das Cartas que a antecederam, trouxe, de forma expressa e clara, os princípios informadores da Administração Pública, assinalando a incidência de tais preceitos a todos os entes da Federação, bem como os elementos estruturantes da administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes constituídos. Para tanto, como fértil sedimento de estruturação, é possível transcrever o caput do artigo 37 que, em altos alaridos, dicciona que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”[9]. Nesta toada, ainda, quadra, também, ter em mente os seguintes apontamentos:
“Trata-se, portanto, de princípios incidentes não apenas sobre os órgãos que integram a estrutura central do Estado, incluindo-se aqui os pertencentes aos três Poderes (Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário), nas também de preceitos genéricos igualmente dirigidos aos entes que em nosso país integram a denominada Administração Indireta, ou seja, autarquias, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as fundações governamentais ou estatais”[10].
É verificável, desta sorte, que os preceitos em comento, dada à proeminência alçada pelo texto constitucional, passam a atuar como elementos que norteiam e, corriqueiramente, conformam a atuação dos entes federativos, bem como as estruturas, tais como autarquias, sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações, que constituem a Administração Indireta. Em razão de estarem entalhados nas linhas que dão corpo à Lex Fundamentallis do Estado Brasileiro, a doutrina convencionou chamá-los de “Princípios Constitucionais Explícitos” ou “Princípios Expressos. São considerados como verdadeiras diretrizes que norteiam a Administração Pública, na medida em que qualquer ato por ela emanado só será considerado válido se estiver em consonância com tais dogmas[11].
De outra banda, tem-se por princípios reconhecidos aqueles que, conquanto não estejam taxativamente contemplados no texto constitucional, de modo explícito, permeiam, por conseguinte, toda a ramificação do Direito Administrativo. Isto é, são corolários que encontram descanso, mais evidente e palpável, na atividade doutrinária e jurisprudencial, que, por meio dos seus instrumentos, colaboram de forma determinante na consolidação e conscientização de determinados valores, tidos como fundamentais, para o conhecimento e a interpretação das peculiaridades e nuances dos fenômenos jurídicos, advindos dessa ramificação da Ciência Jurídica. “Os princípios são mandamentos nucleares de um sistema, seu verdadeiro alicerce, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas”[12].
No mais, ao se ter em visão, a dinamicidade que influencia a contínua construção do Direito, conferindo, via de consequência, mutabilidade diante das contemporâneas situações apresentadas pela sociedade, é possível salientar que a construção da tábua principiológica não está adstrita apenas aos preceitos dispostos nos diplomas normativos e no texto constitucional. Ao reverso, é uma construção que também encontra escora no âmbito doutrinário, tal como no enfrentamento, pelos Tribunais Pátrios, das situações concretas colocadas sob o alvitre. Afora isso, segundo Carvalho Filho,
“[…] doutrina e jurisprudência usualmente a elas se referem, o que revela sua aceitação geral como regras de proceder da Administração. É por esse motivo que os denominamos de princípios reconhecidos, para acentuar exatamente essa aceitação”[13].
Consagrado no texto da Carta Magna de 1988, no caput do artigo 37[14], o princípio da moralidade, como vetor de orientação e inspiração da Administração Pública, impõe que
“[…] o administrador público não dispense os preceitos éticos que devem estar presentes em sua conduta. Deve não só averiguar os critérios de conveniência, oportunidade e justiça em suas ações, mas também distinguir o que é honesto do que é desonesto”[15].
Neste diapasão, pode-se salientar que o mandamento em exame exige que o agente público oriente a sua conduta nos padrões éticos, cujo fim último se desdobra em lograr a consecução do bem comum, independente da esfera de poder ou nível político-administrativo da Federação em que sua atuação esteja fincada. Ao lado disso, cuida destacar que o preceito em comento se apresenta, no cenário contemporâneo, como o bastião de validade de todo ato da Administração Pública.
Nesta esteira, não se trata de um instrumento sistematizador de um conceito atrelado à moral comum; ao reverso, está assentado em uma moral jurídica, compreendida como o conjunto de ordenanças normativas de condutas retiradas da disciplina interior da Administração. Assim, a moralidade administrativa, distintamente da moralidade comum, é constituída por disciplinas de boa administração, a saber: pelo conjunto de disposições finais e disciplinares suscitadas não só pela distinção entre o bem e o mal, mas também, pelo ideário geral de administração e pela ideia de função administrativa. De acordo com Meirelles,
“O certo é que a moralidade do ato administrativo juntamente com a sua legalidade e finalidade, além de sua adequação aos demais princípios, constituem pressupostos de validade sem os quais toda atividade pública seria ilegítima”[16].
Neste passo, o corolário em destaque, como preceito norteador da Administração Pública, expressamente insculpido no texto constitucional e como requisito de validade dos atos administrativos, encontra seu substrato de edificação no sistema de direito, mormente no ordenamento jurídico-constitucional, sendo certo que os valores humanos que inspiram e subjazem a esse ordenamento constituem, em muitos casos, a concretização normativa de valores retirados da pauta dos direitos naturais, ou do patrimônio ético e moral consagrado pelo senso comum da sociedade. Ademais, o aviltamento ao axioma em análise se caracteriza pela desarmonia entre a expressão formal do ato, substancializada na aparência, e a sua manifestação real, consistente na substância, criada e decorrente de impulsos subjetivos essencialmente viciados no que se refere aos motivos, à causa ou à finalidade da atuação administrativa.
Quadra rememorar que a atividade estatal, independente do domínio institucional de sua incidência, está fundamentalmente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos, os quais ressoam a consagração constitucional do preceito da moralidade administrativa, que se qualifica com valor constitucional emoldura de essência ética e içada à condição de axioma fundamental no processo de poder, subordinando, de modo estrito, o exercício, pelo Estado e seus agentes, da autoridade concedida pelo ordenamento normativo. Assim, o postulado em realce norteia a atuação do Poder Público, conferindo, por via de consequência, substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos, nos quais se alicerça a própria ordem positiva do Estado. Desta sorte, é patente que o princípio constitucional da moralidade administrativa, ao estabelecer limitações ao exercício do poder estatal, legitima, de maneira proeminente, o controle de todos os atos do poder público que ofendam os valores éticos que devam sustentar, imperiosamente, o comportamento dos órgãos e dos agentes governamentais, não importando em que instância de poder eles estejam alocados.
Com realce, o preceito da moralidade administrativa apresenta primazia sobre os demais corolários constitucionalmente formulados, porquanto é constituído, em sua essência, de elemento interno a fornecer a substância válida do comportamento público. Nesta esteira, toda atuação administrativa tem como ponto de partida os influxos decorrentes do cânone em exame e a ele se volta. Os demais princípios constitucionais, expressos ou implícitos, somente podem ter a sua leitura correta no sentido de admitir a moralidade como parte integrante de seu conteúdo. “Assim, o que se exige no sistema de Estado Democrático de Direito no presente, é a legalidade moral, vale dizer, a legalidade legítima da conduta administrativa”[17], conforme o magistério de Carmem Lúcia Antunes Rocha. Com o escopo de fortalecer as ponderações estruturadas, cuida trazer à colação a manifestação apresentada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, ao apreciar o Recurso Extraordinário N° 579.951/RN, notadamente no que concerne ao princípio da moralidade, quando, com bastante pertinência, evidencia que:
“Essa moralidade não é o elemento do ato administrativo, como ressalta Gordillo, mas compõe-se dos valores éticos compartilhados culturalmente pela comunidade e que fazem parte, por isso, da ordem jurídica vigente. A indeterminação semântica dos princípios da moralidade e da impessoalidade não podem ser um obstáculo à determinação da regra da proibição ao nepotismo. Como bem anota García de Enterria, na estrutura de todo conceito indeterminado é identificável um 'núcleo fixo' (Begriffhern) ou 'zona de certeza', que é configurada por dados prévios e seguros, dos quais pode ser extraída uma regra aplicável ao caso”[18].
Como bem pontua Ávila[19], o corolário constitucional da moralidade administrativa, em razão de sua essência, “estabelece um estado de confiabilidade, honestidade, estabilidade e continuidade nas relações entre o poder público e o particular, para cuja promoção são necessários comportamentos sérios, motivados, leais e contínuos”. Alinhando-se a tais ponderações, não se pode olvidar que a partir da realidade inaugurada pela Carta de Outubro de 1988, a observância do baldrame em estudo, especialmente por parte dos agentes que integram a Administração Pública, passou a reunir aspectos e característicos que figuram como verdadeiros pressupostos de validade dos atos, independentes de estarem arrimados, ou não, em competência discricionária.
Ora, não se pode olvidar que o preceito constitucional em exposição reunião valores de essência ética que sustentam a acepção de moralidade jurídica, notadamente no que se refere à atuação do administrador. Inclusive, há que se destacar que o STF, ao se manifestar em processo que trazia em seu bojo o assunto em comento, em oportunidade pretérita, consolidou o entendimento no qual o baldrame da moralidade administrativa condiciona a legitimidade e a validade dos atos estatais.
Desta sorte, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, a atividade estatal está imperiosamente submetida à observância de parâmetros ético-jurídicos, que são refletidos de modo claro na consagração do princípio da moralidade no caput do artigo 37 da Carta de 1988. Nesta esteira, é possível colacionar robusto entendimento jurisprudencial que sustenta as ponderações vertida até o momento, consoante se inferem dos arestos:
“Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade (…). O princípio da moralidade administrativa – Enquanto valor constitucional revestido de caráter ético-jurídico – Condiciona a legitimidade e a validade dos atos estatais. – A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado. O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos agentes e órgãos governamentais. (…)”
(Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ ADI 2.661 MC/ Relator: Ministro Celso de Mello/ Julgado em 05.06.2002/ Publicado no DJ em 23.08.2002, p. 70).
“Ementa: Recurso ordinário em mandado de segurança. Concurso público. Aprovação dentro do número de vagas. Direito líquido e certo. Recurso provido. 1. O princípio da moralidade impõe obediência às regras insculpidas no instrumento convocatório pelo Poder Público, de sorte que a oferta de vagas vincula a Administração pela expectativa surgida entre os candidatos. 2. A partir da veiculação expressa da necessidade de prover determinado número de cargos, através da publicação de edital de concurso, a nomeação e posse de candidato aprovado dentro das vagas ofertadas, transmuda-se de mera expectativa à direito subjetivo. 3. Tem-se por ilegal o ato omissivo da Administração que não assegura a nomeação de candidato aprovado e classificado até o limite de vagas previstas no edital, por se tratar de ato vinculado. 4. Recurso provido para determinar a investidura da recorrente no cargo de Médico Generalista para o qual foi devidamente aprovada”. (Superior Tribunal de Justiça – Quinta Turma/ RMS nº 26.507-RJ/ Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho/ Julgado em 18.09.2008/ Publicado no DJe em 20.10.2008).
O postulado em destaque tem o condão de conferir substância, ao tempo em que atribui expressão a uma plural tábua de valores éticos, servido, também, como pilar fundante da ordem positiva do Estado. Além do entalhado, patente se revela a necessidade de salientar que tal dogma legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam, ofendam ou inobservem os valores éticos que devem sustentar o comportamento dos agentes e órgãos governamentais. Ao lado disso, ao espancar a respeito do princípio da moralidade administrativa, importante destacar a robusta e singular lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, que assim versa:
“De acordo com ele, a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição. Compreendem-se em seu âmbito, como é evidente, os chamados princípios da lealdade e boa-fé, tão oportunamente encarecidos pelo mestre espanhol Jesús Gonzáles Peres em monografia preciosa. Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos”[20].
Concretamente, refletindo os ideários acobertados pelo princípio da moralidade administrativa, precipuamente seus valores ético-jurídicos, colhe-se julgados que, afetos à realidade que vigora no Estado Brasileiro, vedam os aumentos desmedidos dos cargos comissionados da Administração, principalmente quando estes não respeitam as técnicas de produção e aprovação legislativa.
Entalhado no caput do artigo 37 da Constituição Federal de 1988[21], quadra anotar, em um primeiro momento, que o corolário da impessoalidade, enquanto axioma fundante dotado de proeminência e relevância no ordenamento jurídico, ultrapassa as barreiras de sua delimitação constitucional, figurando como verdadeira flâmula dos sobre-princípios, que, consigo, têm o condão de fundar a República Federativa do Brasil e que podem ser extraídos dos artigos 1º ao 4º da Carta da República. Com efeito, Amaral, ao discorrer sobre o tema em destaque, pontua, com bastante pertinência e acertadamente, que “não se trata de princípio específico da Administração Pública, consoante aparentemente prescreve o texto constitucional, mas de norma a qual estão vinculados todos os poderes do Estado”[22].
Como exemplo concreto da incidência do corolário em apreço, é possível mencionado o procedimento adotado para a elaboração das normas que integram o Ordenamento Jurídico Pátrio. Independente do ente federativo, as normas devem ser orientadas por critérios de generalidade, ou seja, não são cunhadas a partir de uma situação específica, nem tão pouco podem se revestir de caráter pessoal, sob pena de aviltamento dos aspectos característicos dos diplomar normativos. “Isto é, a lei não pode ser elaborada tendo em vista o rosto de determinado(s) administrado(s), sob pena de ofensa à impessoalidade”[23]. Prosseguindo em tais ponderações, ao volver os olhos para o Poder Judiciário, é plenamente possível verificar a manifestação dos ideários que emanam do princípio da impessoalidade, quando os magistrados se dão por suspeitos ou impedidos em determinadas causas.
Ora, diante de tal cenário, é assegurada a imparcialidade que figura como dever do julgador, ao analisar as causas que lhe são apresentadas, e que tem como base de estruturação a impessoalidade. Como bem leciona o mestre Gasparini, “a atividade administrativa deve ser destinada a todos os administrados, dirigida aos cidadãos em geral, sem determinação de pessoa ou discriminação de qualquer natureza”[24]. Neste sentido, inclusive, necessário se faz colacionar os arestos que:
“Ementa: Apelação Cível – Mandado de Segurança – Contratação Temporária – Professor – Processo Seletivo – Encerramento – Perda do Objeto – Inocorrência – Aplicação do Art. 515, §3º do CPC – Validade do Diploma Apresentado – Candidata que preenche os requisitos do edital – Violação ao princípio da legalidade e da impessoalidade – Recurso Provido. (…) 4 – Sabe-se que o princípio da impessoalidade objetiva justamente a igualdade de tratamento que a Administração deve dispensar aos administrados que se encontrem em idêntica situação jurídica. 5 – No caso em comento, além da flagrante violação ao princípio da legalidade, eis que a apelante preencheu os requisitos do edital e mesmo assim foi eliminada do certame, verifica-se o desrespeito ao princípio da impessoalidade, pois, diante de duas candidatas com mesma qualificação profissional, a Administração deu tratamento diferenciado. 6 – Recurso provido. Segurança concedida.” (Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo – Terceira Câmara Cível/ Apelação Cível 20103566780/ Relator: Desembargador Roberto da Fonseca Araújo/ Relator Substituto: Desembargador Luiz Guilherme Risso/ Julgado em 24.01.2012/ Publicado no DJe em 09.02.2012).
“Ementa: Remessa Necessária e Apelação Cível – Concurso Público – Princípio da Legalidade – Vinculação ao Edital – Curso de Formação – Necessidade de Aprovação – Pontuação Mínima – Razoabilidade da Norma – Princípio da Impessoalidade, Eficiência, Isonomia – Recurso Provido. (…) 3. O concurso público deve possuir como norte a aplicação dos princípio da impessoalidade, eficiência e isonomia. 4. Com base no princípio da impessoalidade, o alvo a ser alcançado pela Administração deve ser o interesse público, e não o interesse do particular, porquanto haverá nesse caso sempre uma atuação discriminada. 5. O princípio da eficiência visa, além de reduzir os desperdícios de dinheiro público, a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento funcional, afastando a antiga ideia de deficiência da prestação do serviço. 6. Conceder nova possibilidade de realizar outro Curso de Formação quando o candidato já foi considerado reprovado por não atender aos critérios estabelecidos nas normas daquele, fere tanto o princípio da impessoalidade e da eficiência, como também o da isonomia, pois estará concedendo ao aluno chance a que aos demais não foram oferecidas. 7. Mostra-se de acordo com o princípio da razoabilidade a regra estabelecida no art. 66 do NPCE para que o aluno seja considerado aprovado no Curso de Formação. 8. Recurso provido”. (Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo – Quarta Câmara Cível/ Remessa Ex-officio 24090041955/ Relator: Desembargador Telemaco Antunes de Abreu Filho/ Julgado em 20.06.2011/ Publicado no DJe em 07.07.2011).
Busca-se, por meio desse corolário, pôr por terra a antiga e aviltante prática do atendimento do administrado em razão do prestígio que detém ou ainda porque o agente público a ele (administrado) deve alguma espécie de favor ou obrigação, como bem aponta o doutrinador ora mencionado. Como tão bem destaca Di Pietro[25], o princípio da impessoalidade desfralda, como luz maior, que a Administração Pública, pautando-se no interesse público que imperiosamente norteia seu agir, não pode ter objetivas prejudicar ou beneficiar pessoa(s) determinada(s). Nesta linha de exposição, revela-se necessário colher o entendimento de Meirelles, no que concerne ao princípio da impessoalidade, em especial quando destaca:
“O princípio da impessoalidade, referido na Constituição/88 (art. 37, caput), nada mais é do que o clássico princípio da finalidade, o qual impõe ao administrador público que só pratique o ato para seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele que a norma de Direito indica expressamente ou virtualmente como objetivo do ato, de forma impessoal. Esse princípio também deve ser entendido para excluir a promoção de autoridade ou servidores públicos sobre suas realizações administrativas (CF, art. 37, §1°). E a finalidade terá sempre um objetivo certo e inafastável de qualquer ato administrativo: o interesse público. Todo ato que se apartar desse objetivo sujeitar-se-á a invalidação por desvio de finalidade, que a nossa lei da ação popular conceituou como o “fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência” do agente”[26].
Ora, em razão dos influxos provenientes do corolário da impessoalidade, os quais reclamam que os atos sejam praticados sempre com finalidade pública, o administrador fica obstado de buscar outro objetivo ou mesmo de buscar promover os interesses próprios ou de terceiros. É possível, todavia, que o interesse público coincida com o de particulares, tal como ocorre costumeiramente nos atos administrativos negociais e nos contratos públicos, situações em que é permitido conjugar a pretensão do particular com o interesse coletivo. Insta ponderar, ainda, que a vedação apresentada pelo cânone em comento se estrutura na prática do ato administrativo sem interesse público ou conveniência para a Administração, visando unicamente satisfazer interesses privados, por favoritismo ou perseguição dos agentes governamentais, sob a forma de desvio de finalidade.
3 Primeiros Comentários à caracterização do Nepotismo
Historicamente, ao analisar a origem do nepotismo no território brasileiro, denota-se que seu nascedouro é oriundo da confusão entre o público e o privado, conforme pontua Almeida[27]. Ora, a premissa que “permite” que o patrimônio público e seus interesses possam se confundir com o patrimônio e os interesses dos particulares poderosos adentrou a história do Brasil colonial, imperial e republicano, desdobrando seus efeitos até os dias atuais. O nepotismo, no cenário brasileiro, apresenta-se como uma prática odiosa que corrompe o interesse público, na condição de supremacia orientadora do agir do administrador, erigindo, em seu lugar, a tradicional máquina como mecanismo para atendimento de interesses pessoais.
Nesta linha, o nepotismo pode ser descrito como a concessão de privilégio ou de cargos na Administração Pública sob o exclusivo influxo dos laços de parentesco. Acquaviva[28], inclusive, descreve que o nepotismo é a prática por meio da qual uma autoridade pública nomeia um ou mais parentes próximos para o serviço público ou, ainda, lhes confere outros favores, com o escopo de ampliar sua renda ou ajuda a montar um equipamento político, em lugar de cuidar da promoção e do bem-estar público. Neste cenário, é possível classificar o nepotismo em: direto (ou próprio), indireto, cruzado e trocado.
O denominado nepotismo direto ou próprio caracteriza-se como a forma mais usual, tendo assento quando a autoridade competente nomeia parentes seus nas linhas reta, colateral ou por afinidade (cônjuge, companheiro, filho, neto, bisneto, irmão, tio, sobrinho, sogro, genro, nora, cunhado) até o terceiro grau para a execução do serviço público. Trata-se de modalidade com maior facilidade de detecção, em razão da proximidade do grau de parentesco. O verbete contido na súmula vinculante nº 13 explicita que estão excluídos da vedação os primos, porquanto são considerados parentes colaterais em quarto grau.
Além disso, no que atina aos parentes por afinidade em linha reta, insta rememorar que o Código Civil, de maneira expressa, menciona que o vínculo não é extinto com a dissolução do casamento ou da união, conforme dicção do §2º do artigo 1.595. Logo, em razão de tal redação, a nomeação de ex-sogro ou ex-sogra, tal como “ex-genro” ou “ex-nora” pode configurar o nepotismo direto.
Por sua vez, o nepotismo indireto se configura quando a autoridade, dotada de poderes para tanto, nomeia parentes de subordinados seus. Desse modo, é interessante destacar que a nomeação pelo prefeito de parentes do vice-prefeito para cargos comissionados não configuraria nepotismo indireto. Tal fato decorre da premissa que inexiste a hierarquia ou a subordinação do agente político (vice-prefeito) à autoridade nomeante (prefeito), conforme elucida Rodrigues[29].
A redação do verbete sumular nº 13 dicciona, com clareza, em “nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade […] da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento”[30]. Assim, o vice-prefeito é um agente político eleito, e não somente um servidor público no sentido estrito do termo, gozando, dessa forma, da independência típica dos agentes políticos, não se encontrando subordinado ao prefeito (autoridade nomeante). Rodrigues[31], ainda, em mesma trilha, menciona que a nomeação de parentes de um desembargador, de um procurado de justiça ou de um deputado, nos lindes literais da súmula vinculante nº 13 não constituiria nepotismo, porquanto a autoridade nomeante seria o presidente do Tribunal, o procurador-geral de Justiça ou o presidente da Assembleia Legislativa.
Ademais, como os membros destes órgãos são agentes políticos, não se encontram subordinados à autoridade nomeante e nem exercendo cargos de direção, chefia ou assessoramento, não se subsumindo aos termos explicitados por aquela súmula. Em que pese tais situações não se encontrarem compreendidas pelo círculo proibitivo da súmula vinculante, há que se explicitar, fincado nos princípios da moralidade e da impessoalidade, que tais práticas são vedadas.
Por sua vez, o nepotismo cruzado – também, nominado de impróprio, dissimulado ou por reciprocidade -, consiste em uma espécie de troca de favores, um ajuste que assegura nomeações recíprocas entre os “Poderes” do Estado, tal como Prefeitura e Câmara Municipal; Executivo Estado, Assembleia Legislativa e Judiciário. Trata-se de cenário em que o prefeito contrata um parente do presidente da Câmara e este, por sua vez, nomeia um parente do prefeito. Rodrigues afiança que “o nepotismo cruzado pressupõe um ajuste para designações ou nomeações recíprocas. Esse ajuste tem de ser provado para configurar a categoria nepótica”[32]. Trata-se de modalidade que, na prática, é difícil de ser provada, sobretudo em relação ao desvio de poder, porquanto o agente não declara sua verdadeira intenção; ao reverso, ele busca ocultá-la com o escopo de produzir a enganosa impressão de que o ato é ilegal. Em decorrência de tal cenário, o desvio de poder comprova-se por meio de indícios.
Por derradeiro, dentre as modalidades de nepotismo reconhecidas pela doutrina pátria, cuida mencionar que a redação da súmula vinculante nº 13[33] afixa situação em que a prática dá-se dentro da mesma pessoa jurídica e em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. Desse modo, as designações recíprocas aludidas pelo verbete estão circunscritas ao âmbito da mesma pessoa jurídica (município, estado, Distrito Federal ou União), rendendo ensejo à prática do nepotismo cruzado. Contudo, se as designações recíprocas ocorrerem entre pessoas jurídicas distintas – a exemplo de dois municípios, dois estados ou até entre um município e um estado -, tem-se uma nova modalidade de nepotismo reconhecida pela doutrina, o nepotismo trocado. Em que pese o silêncio do verbete, entende-se que tal prática encontra vedação no Texto Constitucional.
4 A Vedação Constitucional da Prática do Nepotismo
O nepotismo pode se examinado à luz de dois aspectos, a saber: uma natureza objetiva e outra de natureza subjetiva. Rodrigues[34] assinala que o aspecto objetivo está concentrado na efetivação relação de parentesco existente entre o nomeante e o nomeado. Desta feita, havendo a relação de parentesco, resta subsumida a figura do nepotismo, demandada em seu aspecto objetivo. Noutra dimensão, o elemento subjetivo consiste no propósito deliberado de satisfazer a interesses pessoais advindos da nomeação do familiar ou de privilegiar o vínculo sanguíneo. Sem embargos, estará presente o aspecto subjetivo do nepotismo quando o escopo da escolha do parente para a ocupação do cargo em comissão ou função de confiança for a satisfação pessoal decorrente do laço familiar.
Em termos técnicos, para a substancialização da prática do nepotismo, é necessário a presença concomitante dos dois elementos, objetivo e subjetivo. Há exemplos de situações que objetivamente materializam nepotismo – a exemplo do cargo de natureza política ou parentes que ocupam cargos por meio de concurso público -, mas não subjetivamente. A comprovação, porém, do elemento subjetivo é mais complexa, motivo pelo qual a simples presença do aspecto objetivo, concernente ao grau de parentesco, vem se apresentando como suficiente para caracterizar tal prática. De acordo com Rodrigues, “o caráter objetivo da constatação da situação a envolver nepotismo torna irrelevante, até por indecifrável em muitos casos, o elemento anímico presente no ato de nomeação”[35].
Neste talvegue, é observável, com clareza ofuscante, que a Constituição Federal, em especial por meio dos princípios da moralidade e da impessoalidade, enquanto estertores peculiares à Administração Pública, bem como o corolário da isonomia (igualdade de tratamento e iguais oportunidades de acesso aos mais diversos níveis de administração pública), todos estes aplicáveis à administração pública, veda a prática do nepotismo. Desta feita, partindo-se do princípio hermenêutico da hierarquia da norma constitucional e do método sistemático de interpretação do Texto Constitucional, denota-se que inexiste a exigência de uma lei para que a regra seja respeitada por todas as entidades políticas. Neste sentido, antes da edição da súmula vinculante nº 13, já era o entendimento da jurisprudência do Excelso Pretório:
“Ementa: Administração Pública. Vedação nepotismo. Necessidade de lei formal. Inexigibilidade. proibição que decorre do art. 37, caput, da CF. RE provido em parte. I – Embora restrita ao âmbito do Judiciário, a Resolução 7/2005 do Conselho Nacional da Justiça, a prática do nepotismo nos demais Poderes é ilícita. II – A vedação do nepotismo não exige a edição de lei formal para coibir a prática. III – Proibição que decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da Constituição Federal”. (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ RE 579.951/ Relator: Ministro Ricardo Lewandowski/ Julgado em 20.8.2008/ Publicado no DJe de 24.10.2008).
A súmula vinculante nº 13, por seu turno, conferiu aos princípios da moralidade e da impessoalidade o aspecto de autoaplicabilidade, sendo desnecessária a edição de lei em sentido formal para regular tal temática. “A conduta do administrador público deve-se limitar não apenas à disposição literal da lei, mas também à aplicação da moralidade, dos bons costumes, ao poder-dever de probidade, que resguarde a confiabilidade do administrado”[36].
A vedação ao nepotismo afeta ocupantes de cargos em comissão, função de confiança e empego de contratação excepcional ou temporário. Logo, se o parente em exercício de função gratificada ou comissionada for servido efetivo, não há que se falar em incompatibilidade, porquanto, de acordo com a redação do inciso V do artigo 37 da Carta Federal de 1988, as funções de confiança são exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargos efetivos. Ora, compreende-se por cargos em comissão aqueles cujo provimento dispensa concurso público e são ocupados, precariamente, por pessoas do círculo de confiança da autoridade nomeante, que pode exonerar livremente. Neste sentido, transcreve-se parte do voto proferido pelo Ministro Ayres Britto, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 579.951:
“Então, quando o art. 37 refere-se a cargo em comissão e função de confiança, está tratando de cargos e funções singelamente administrativos, não de cargos políticos. Portanto, os cargos políticos estariam fora do alcance da decisão que tomamos na ADC nº 12, porque o próprio capítulo VII é Da Administração Pública enquanto segmento do Poder Executivo. E sabemos que os cargos políticos, como por exemplo, o de secretário municipal, são agentes de poder, fazem parte do Poder Executivo. O cargo não é em comissão, no sentido do artigo 37. Somente os cargos e funções singelamente administrativos – é como penso – são alcançados pela imperiosidade do artigo 37, com seus lapidares princípios. Então, essa distinção me parece importante para, no caso, excluir do âmbito da nossa decisão anterior os secretários municipais, que correspondem a secretários de Estado, no âmbito dos Estados, e ministros de Estado, no âmbito federal.” (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ RE 579.951/ Relator: Ministro Ricardo Lewandowski/ Voto do Ministro Ayres Britto/ Julgado em 20.8.2008/ Publicado no DJe de 24.10.2008).
As funções de confiança, em tal conjuntura, são preenchidas pela livre escolha da autoridade competente, contudo o nomeado deve integrar o quadro interno da administração público, aspecto responsável por distingui-las dos cargos em comissão. Sendo assim, para incidência da redação do verbete vinculante nº 13, o nepotismo só pode ser considerado existente dentro da mesma pessoa jurídica se houver nomeação de parentes (até terceiro grau) da autoridade nomeante ou, ainda, se houver, dentro da mesma pessoa jurídica, parente de pessoa nomeada também investida em cargo em comissão ou função gratificada. Para tanto, compreende-se as designações ou nomeações recíprocas (nepotismo cruzado) como integrantes do mesmo esquema.
Estabelecidos tais pontos, convém afixar que algumas situações, conquanto presentes alguns elementos constitutivos da prática nepótica vedada, não se verifica o nepotismo constitucionalmente vedado, sendo possível mencionar quando: (i) o parente já é servidor efetivo numa determinada entidade política; (ii) a nomeação de parente para ocupar cargo de natureza política, como: ministros, secretários de estados e secretários municipais; (iii) o servidor (efetivo ou não) que já exercia cargo em comissão (ou de confiança) ou função gratificada antes de seu parente ser eleito ou nomeado – nas hipóteses de secretários ou ministros; (iv) não se verifica a prática vedada quando o casamento ou o início da união estável se der posteriormente ao tempo em que os cônjuges ou os companheiros já estavam no exercício dos cargos ou funções; (v) a contratação de serviços ou de produtos de empresas pertencentes a parentes de gestor, desde que tenha se submetido ao processo regular de licitação[37].
Ademais, como bem anota Carvalho Filho[38], o preceito em exame apresenta como fito a isonomia de tratamento que a Administração deve dispensar aos administrados que se encontram em idêntica situação jurídica, consubstanciando, neste ponto, uma das múltiplas facetas apresentadas pelo princípio da igualdade. Doutro viés, para que reste materializada a verdadeira impessoalidade, tal como ambicionado pelo preceito em tela, incumbe a Administração volver sua atuação exclusivamente para o interesse público, e não para o privado, vedando, por consequência, que ocorra o favorecimento de uns indivíduos em detrimento de outros, bem como prejudicados alguns para favorecimento de outros. Nesta senda, é possível colacionar os entendimentos:
“Ementa: Recurso em mandado de segurança. Nepotismo. Prática ofensiva aos princípios constitucionais. Violação de direito líquido e certo. Inocorrência. Súmula Vinculante Nº 13/STF. Aplicabilidade. 1. A nomeação de cunhado da autoridade nomeante ou indicado por ela para ocupar cargo em comissão no Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás viola os princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade e eficiência. 2. Não configura ameaça de lesão a direito líquido e certo o ato do Presidente do Tribunal de Contas do Município que, ao constatar a configuração de nepotismo, faz cumprir determinação contida na Súmula Vinculante nº 13 do Supremo Tribunal Federal. 3. Recurso em mandado de segurança improvido.” (Superior Tribunal de Justiça – Primeira Turma/ RMS 31.947/GO/ Relator: Ministro Hamilton Carvalhido/ Julgado em 16.12.2010/ Publicado no DJe em 02.02.2011).
“Ementa: Administrativo. Ação civil pública. Improbidade administrativa. Nepotismo. Violação de princípios da administração pública. Extinção da ação. Art. 17, §§ 7º e 8º, da LIA. Impossibilidade. Retorno dos autos para julgamento do mérito da ação civil pública. (…) 5. O ato de favorecimento do marido pela Juíza importa, necessariamente, em violação do princípio da impessoalidade – já que privilegiados interesses individuais em detrimento do interesse coletivo. É também dissonante com o princípio da moralidade administrativa, pois fere o senso comum imaginar que a Administração Pública possa ser transformada em um negócio de família. (Nesse sentido: GARCIA, Emerson. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, 4ª Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008 págs. 401-407). 6. "A prática de nepotismo encerra grave ofensa aos princípios da Administração Pública e, nessa medida, configura ato de improbidade administrativa, nos moldes preconizados pelo art. 11 da Lei 8.429/1992." (REsp 1.009.926/SC, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 17.12.2009, DJe 10.2.2010). 7. In casu, verifica-se a contrariedade aos artigos 17, §§ 7º e 8º, da Lei n. 8.429/92, porque há, em tese, a realização de conduta violadora de princípios da administração pública a ser apurada no âmago do processo, sobre o crivo do contraditório e da ampla defesa. Agravo regimental improvido”. (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ AgRg no REsp 1.204.965/MT/ Relator: Ministro Humberto Martins/ Julgado em 02.12.2010/ Publicado no DJe em 14.12.2010).
Prima realçar, também, que o desvio de conduta em análise materializa uma das mais insidiosas modalidades de abuso de poder. A administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O principio da impessoalidade objetiva a igualdade de tratamento que a Administração deve dispensar aos administrados que se encontrem em idêntica situação jurídica. Ademais, no caso do princípio em comento, de bom alvitre se revela citar o voto do Ministro Ricardo, ao relatoriar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 4.259 MC/PB, firmou seu entendimento no sentido:
“[…] o referido princípio traduz a ideia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia. E a norma jurídica atende o princípio da igualdade quando é geral, abstrata, ou seja, não é editada com vistas a beneficiar um indivíduo”[39].
Assim, as condutas de identificação de candidatos em concurso público, por exemplo, é robusta e clara manifestação que desrespeita, atenta e fere de morte o princípio da impessoalidade, pois, “sendo identificado o candidato no recurso administrativo, bem como a inobservância do Edital do certame, deve este ser anulado, para fins de evitar o prejuízo ou benefício de alguns candidatos”[40]. Ao lado disso, deve-se destacar, com fortes cores e grossos traços, que o baldrame da impessoalidade, como princípio constitucional norteador da Administração Pública, valoriza o ingresso dos administrados no serviço público, por meio de concurso, dotado de linhas claras a favorecer aqueles que reúnem a competência e capacidade e não aqueles que se valem da influência de terceiros, evitando-se, por consequência, o fortalecimento do famigerado nepotismo.
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES
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