Dois assuntos aparentemente díspares ocuparam os noticiários de abril: a pesquisa que indicava a aprovação de 57% dos brasileiros à pena de morte e a proposta endossada pelo ministro da Saúde da realização de um plebiscito a respeito da descriminalização do aborto.
A identidade fundamental dos dois temas é o limite da democracia. Idealmente falando, pode-se dizer que todos os assuntos devem ser resolvidos plebiscitariamente? Sendo a democracia o governo do povo, por que não submeter sempre as grandes questões políticas brasileiras à consulta direta popular?
A resposta deve ser um sonoro “não”. A democracia é um valor importantíssimo da cultura ocidental, mas, de modo algum, é absoluto. Existem também outros valores fundamentais que não devem ser desprezados nem pela decisão de toda a população de um país. São valores como vida, liberdade e propriedade, todos eles decorrentes de um “supervalor”: a dignidade da pessoa humana, segundo o qual cada indivíduo deve ser respeitado como portador de uma importância intrínseca, da qual nem mesmo ele pode abrir mão[i].
Além disso, o Estado, assim como os seres humanos, deve orientar-se na busca da verdade. Isso significa que, para cada problema, existe uma solução ótima. As chamadas “ciências exatas” utilizam-se disso há tempos: seria loucura cogitar-se, por exemplo, de um plebiscito para aprovar ou não o teorema de Pitágoras, segundo o qual o quadrado da hipotenusa é a soma dos quadrados dos catetos[ii]. A verdade também existe nas ciências humanas, mas, infelizmente, ela não pode ser encontrada de modo tão simples como no campo das exatas.
Sendo a ciência exata ou humana, a busca da verdade em determinada questão sempre deve partir de determinados princípios (idéias basilares, intuitivas e auto-evidentes) e, por dedução lógica, chegar à melhor solução para o problema. Esse procedimento não utiliza o senso comum[iii], mas rigorosa lógica.
Exemplo de senso comum é basear-se no aparente movimento diário do Sol para dizer que ele gira em torno da Terra. Durante toda Antigüidade e a Idade Média, essa crença predominou, até que Copérnico demonstrasse o contrário. Ainda hoje, boa parte das pessoas não acredita que o homem foi à Lua, pois isso contraria o senso comum.
Da mesma forma, a verdade não é quantitativa. O fato de milhões de pessoa acreditarem em determinada doutrina e até se disporem a morrer em nome dela não a torna verdadeira. Eventualmente, a ampla disseminação de uma crença pode indicar apenas que a população foi induzida a pensar de determinada forma por meros argumentos retóricos[iv].
O fato de alguém ser eleito não significa por si só que será um bom governante. Aliás, a história está cheia de erros crassos cometidos em eleições. É importante ressaltar que Hitler subiu ao poder por meio de uma eleição absolutamente democrática. Na história brasileira recente, houve a reeleição de congressistas acusados de atos de improbidade gravíssimos. Isso não quer dizer que sejam honestos, mas apenas que, de alguma forma, agradaram pessoas suficientes para elegê-los.
Não se quer aqui defender regimes totalitários ou ditatoriais, mas antes lembrar que a democracia também conta com seus problemas e suas imperfeições e que, como qualquer valor, não pode ser tratada de forma absoluta[v]. Assim, a opinião pública deve ser considerada um dos elementos para a tomada de decisões governamentais, mas nunca o único critério.
Uma obviedade precisa ser lembrada: somos amplamente ignorantes a respeito do mundo que nos cerca[vi]. Não entendemos quase nada das coisas que utilizamos diariamente, e menos ainda daquelas distantes da nossa vida cotidiana. Somos ignorantes sobre diversos pontos mesmo tratando-se de nossa área de atuação profissional. Nesse sentido, não é exagero dizer que estamos em um mar de ignorância pontilhado por ilhas de conhecimento.
Pena de morte e aborto são temas a respeito dos quais existe um vasto material filosófico, religioso, antropológico e jurídico e científico (no caso do aborto) . Há séculos esses temas são discutidos em profundidade. Estará o eleitor disposto a descobrir o “estado da arte” [vii] nesses assuntos apenas para creditar um voto entre milhões? Vale a pena fazer isso ou, relativamente a custo-benefício, bastaria escolher uma opinião que seja mais simples e conveniente?[viii]
Notas:
Procurador do banco Central em Brasília e professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista
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