Resumo: A pena está na nossa sociedade desde sua existência, punindo toda e qualquer forma de violação às regras estabelecidas pelos povos. Este trabalho, em um primeiro momento, faz uma evolução histórica dos castigos, passando pelo homem primitivo e suas vinganças de sangue, até os tempos atuais, com as novas ideias de defesa social e estudos da vitimologia, fazendo, também, um cotejo entre a legislação penal brasileira com a de outros países. Após, serão analisados os principais princípios que norteiam à aplicação da pena, em especial àqueles que estão insculpidos na nossa Constituição Federal. Em terceiro plano, será analisada a eficácia da pena, demonstrando o fim que almeja, esmiuçando todas as teorias que antecederam àquela que é usada em várias legislações penais, inclusive na do Brasil. Por fim, concluindo a obra, será demonstrada a aplicação e eficácia da pena no Brasil, comparando-a com outros modelos de política criminal usados em países que conseguiram aliar uma aplicação da pena justa, correta e eficaz, com a exclusão de políticas criminais fracassadas, alcançando a tão almejada prevenção dos delitos.
Palavras chave: Pena. Origem. Evolução. Finalidade. Aplicação.
Abstract: The penalty is in our society since its existence by punishing any form of violation of the rules established by the people. This work, at first, is a historical trend of punishments, through the primitive man and his revenge with blood, to the present time, with the new ideas of social defense and victimology studies, making also a comparison between Brazilian criminal law with that of other countries. After the main principles guiding the implementation of the sentence will be analyzed, especially those who are sculptured in our Federal Constitution. In the third level, the effectiveness of the penalty will be analyzed, demonstrating that the order aims, scrutinizing all theories leading to what is used in many criminal laws, including in Brazil. Finally, completing the work, the implementation and effectiveness of the sentence will be demonstrated in Brazil, comparing it to other criminal policy models used in countries that have managed to combine an application of the sentence fair, correct and effective, to the exclusion of failed criminal policies, reaching the coveted prevention of crimes.
Keywords: Penalty. Source. Evolution. Goal. Application
Sumário: 1. Origem e evolução das punições. 1.1. A chamada vingança de sangue. 1.2. As punições em razão de violação dos totens e tabus. 1.3. A pena na antiguidade. 1.4. A pena na idade média. 1.5. A pena na idade moderna. 1.6. A pena na idade contemporânea. 2. Princípios e garantias constitucionais aplicados à pena. 2.1. Princípio da legalidade. 2.2. Princípio da personalidade. 2.3. Princípio da individualização. 2.4. Princípio da proporcionalidade. 2.5. Princípio da humanidade (dignidade da pessoa humana). 3. Finalidade da pena. 3.1. Teorias absolutas ou retributivas. 3.2. As teorias preventivas. 3.3. Teoria dialética unificadora. 3.4. A finalidade da pena no sistema jurídico-penal brasileiro. 4. Eficácia da pena. 4.1. O sistema punitivo brasileiro. 4.2. Modelos de política criminal. 5. Conclusão. Referências.
1. ORIGEM E EVOLUÇÃO DAS PUNIÇÕES
Para se estudar o fenômeno punitivo, torna-se imprescindível examinar suas origens para que possamos perceber como surgiu essa realidade e como ela evoluiu no tempo.
1.1 A CHAMADA VINGANÇA DE SANGUE
Não há como citar, de forma precisa, quando se iniciou o sistema punitivo nos povos. O que se sabe, é que a pena começou a ser aplicada nas comunidades primitivas àqueles que transgrediam as ordens estipuladas em determinado clã, ou seja, era estipulada uma regra e aquele que a violava era punido.
O homem primitivo era muito ligado à sua comunidade, sentindo-se desprotegido fora dela, ficando à mercê dos perigos que eles imaginavam que existiam. Esse pacto refletia-se em uma organização jurídica primitiva, dando-se o nome de vínculo de sangue, definida por Erich Fromm como:
“[…] um dever sagrado que recai num membro de determinada família, de um clã ou de uma tribo, que tem de matar um membro de uma unidade correspondente, se um de seus companheiros tiver sido morto”[1]
Ou seja, se um membro de um determinado clã era morto por um membro de um clã diverso, aquela comunidade tinha o dever sagrado de matar um indivíduo do clã inimigo para vingar a morte de seu companheiro.
Com o tempo, passaram a existir várias famílias, que se reuniam e formavam grupos de reação, com o único fim da vingança coletiva.
Referida vingança, apesar de ter um caráter meramente simbólico, tinha o poder de desfazer a ação do malfeitor, por meio de sua própria destruição ou banimento do grupo.
Todavia, essa forma de punição, porquanto desvinculada de um poder central e sem nenhum controle de sua extensão, gerava guerras infindáveis entres os clãs, as quais recaíam não só àqueles que deveriam ser punidos, mas também aos inocentes, sejam eles crianças, coisas, animais e etc.
Por tal motivo, em razão das punições indevidas, o direito de punir deixou de ser dos indivíduos e passou a ser um direito estatal, centralizado. A vingança, então, passou a ser substituída pelas penas públicas, sendo aceita no contexto social e inserida nos sistemas punitivos e, por essa razão, passou a não ser interpretada como forma de agressão destrutiva. Todavia, o sentimento vingativo ainda persistia em sua essência. O exemplo desse caráter é o talião nas leis antigas, como o Código de Hamurabi, cujo princípio era “olho por olho, dente por dente”.
“[…] Quem quebrasse os membros de outrem deveria sofrer o mesmo em seu próprio corpo. Quando um homem castigava a filha de outro e ele morria disso, sua própria filha seria castigada tanto, até que também sucumbisse. O construtor que erigisse uma casa de modo tal que seu desabamento ocasionasse a morte do comprador deveria pagar com a vida”[2]
Desse ponto de vista, a pena estaria canalizando o instinto de vingança de uma sociedade, satisfazendo a necessidade das demandas inconscientes do coletivo.
Assim, foi sendo transferido o direito de punir das comunidades a um ente estatal, o qual exercia a vontade dos indivíduos de uma determinada sociedade, porém, tal pena possuía, ainda, essência vingativa.
1.2 AS PUNIÇÕES EM RAZÃO DE VIOLAÇÃO DOS TOTENS E TABUS
Outro ponto relevante no início do modo de punir são as punições pelas transgressões totêmicas. O caráter totêmico era inerente a todo indivíduo do clã, era uma forma de crença. A partir disso, esses indivíduos começaram a acreditar que os fenômenos naturais eram provenientes das transgressões que certos indivíduos realizavam. As comunidades, então, puniam o indivíduo acreditando que estariam purificando a comunidade, libertando o clã da impureza que o crime causou.
Segundo Freud, totem é um animal, um vegetal ou um fenômeno natural que mantém relação peculiar com toda a comunidade.
“[…] o totem é o passado comum do clã; ao mesmo tempo, é o seu espírito guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos e, embora perigoso para os outros, reconhece e poupa seus próprios filhos. Em compensação, os integrantes estão na obrigação sagrada de não matar nem destruir seu totem e evitar comer sua carne”[3]
A pena, nesta época, tinha função reparatória, ou seja, pretendia que o infrator se retratasse frente à divindade.
O totemismo, em suma, constituía a base das organizações sociais e das restrições morais da tribo e tal violação implicava na punição para os transgressores. Por exemplo, na Austrália, a penalidade para as relações sexuais com uma pessoa proibida era a morte.
Por sua vez, o tabu constituía numa proibição convencional, decorrente de uma tradição com caráter sagrado, a qual era transmitida de geração para geração. Os povos entendiam que o próprio tabu violado se vingava e, para evitar a pena da comunidade inteira e garantir sua sobrevivência, eles puniam o culpado pela transgressão. A violação o transformaria em um ser perigoso e impuro, sendo ele isolado do resto da sociedade.
Foi nessa época que nasceu o chamado bode expiatório, que consistia em soltar um animal, geralmente uma cabra ou um bode, no deserto para que os deuses o “consumisse”, como forma de pagamento pelo crime cometido por um indivíduo da sociedade. As pessoas daquela época acreditavam que tal crença funcionava, já que o animal jamais voltava para o lugar em que foi solto. Todavia, evidente que o animal não morria em função do perdão dos deuses ao cometimento do crime, mas sim pelo calor excessivo dos desertos.
1.3 A PENA NA ANTIGUIDADE
Com o passar do tempo, a pena foi evoluindo, passando as legislações penais a serem marcadas pela natureza religiosa e regidas pelo “Estado teleológico”. Em razão disso, a pena encontrava justificativa em fundamentos religiosos e tinha por finalidade satisfazer a divindade ofendida pelo crime, reconquistando sua benevolência perante os deuses. Alguns povos passaram a utilizar espécies de sacrifícios, com o objetivo de impedir a cólera dos deuses, que, segundo Goldkorn:
“[…] o sacrifício aparecia como uma forma aparente inteligente de transferir a energia vingativa do pecado para o objeto mágico, o qual era investido de mágica e simbolicamente do poder de purgar os pecados da tribo. A figura do bode espiatório nos fornece um bom exemplo. Esse costume perdurou por muito tempo entre os judeus, que colocavam pedaços de pergaminho (onde escreviam os seus próprios pecados) amarrados num bode, e depois o soltavam no deserto para vagar e por fim morrer, expiando assim os seus (deles) pecados”[4]
Nesta época, na China, foi instituído o código das “cinco penas”, penalizando aquele que cometida o homicídio com a morte. Os furtos e as lesões eram penalizados com a amputação de um ou ambos os pés, o estupro com a castração, a fraude com a amputação do nariz e os delitos menores com uma marca na testa. Em seguida, utilizaram-se penas mais cruéis, tais como açoitamento, espancamento, furo nos olhos, abraço a uma coluna de ferro incandescente etc.
No Egito antigo, destacam-se a pena de morte, a mutilação, o confisco e o trabalho escravo forçado em minas para delitos cometidos contra os Faraós.
Posteriormente, entre os séculos VII e VI a.C., com a crescente do pensamento político, houve debilitação da ideia teocrática do Estado, o que ocasionou a necessidade de leis escritas, sendo a principal delas o Código de Dracon, de 621 a.C. Em Atenas, referidas leis trouxeram equilíbrio entre o poder do Estado e a liberdade individual, afastando as práticas penais vingativas.
Para Platão (427-347 a.C.), a lei tinha origem divina e a justiça seria a força da harmonia entre as virtudes da alma, tendo como único fim o respeito à lei. Para ele, a pena teria função de melhorar o indivíduo, servindo de exemplo para os demais cidadãos.
Aristóteles, embora discípulo de Platão, tinha concepção dissonante deste. Para ele, a pena seria um meio apto a atingir o fim moral pretendido pela convivência social, já que acreditava no poder da intimidação das sanções. Sustentava que o delinquente deveria ser castigado porque as pessoas, em sua maioria, só se abstêm de más condutas por temerem as punições. Ademais, entendia que o castigo restabelecia a igualdade entre os indivíduos violada pelo ato delituoso.
Segundo ele:
“[…] o justo é a proporção e o injusto é o que viola a proporcionalidade. Assim, se uma pessoa inflingiu as normas penais e a outra sofreu um dano, há uma injustiça pela desigualdade na proporção. Então, por meio da penalidade, o juiz tenta igualizar as coisas, “subtraindo do ofensor o excesso do ganho (o termo ‘ganho’ se aplica geralmente a tais casos, ainda que ele não seja termo apropriado em certo casos – por exemplo, no caso da pessoa que fere -, e ‘perda’ se aplica à vítima; de qualquer forma, uma vez estimado o dano, um resultado é chamado ‘perda’ e o outro é chamado ‘ganho’)”[5]
1.4 A PENA NA IDADE MÉDIA
Com a queda do império romano e a invasão da Europa pelos chamados “povos bárbaros”, inicia-se a Idade Média. Nesse período, o direito germânico teve grande aplicação e observação, pois resultava do próprio domínio exercido por este povo.
No início deste período, a pena era marcada pela forma como era aplicada, sem chances de defesa para o acusado, que tinha de caminhar sobre o fogo ou mergulhar em água fervente para provar sua inocência. Por isso, raramente escapavam das punições.
Michel Foucault noticia que:
“[…] na época do Império Carolíngio, havia uma prova para o acusado de homicídio em certas regiões do norte da França: o réu devia caminhar sobre ferro em brasa. Depois de dois dias, se permanecessem as cicatrizes, o réu era considerado perdedor da causa.”[6]
O Direito Penal canônico exerceu grande influência nesta época, pois a Igreja adquiria cada vez mais poder e as decisões eclesiásticas eram executadas por tribunais civis. A punição possuía caráter evidentemente sacral, de base retribucionista, todavia, com preocupações de correção do infrator.
Tais práticas perduraram por vários séculos, como se vê nas canções de gesta e nos romances corteses da Idade Média. Durante o reinado de Felipe I (1060-1108), época da 1ª Cruzada, que culminou com a tomada de Jerusalém, foi escrito um dos principais poemas da literatura medieval francesa, com nome de “Chanson de Roland”, no qual a justiça é estabelecida por meio do duelo do judiciário.
Para o homem medieval tudo era derivado de Deus. O direito de punir, como consequência, não fugiu à regra e, por esse motivo, a pena consistia em uma espécie de represália pela violação divina e objetivava a expiação como forma de salvação da alma para a vida eterna.
Porém, esta providência divina estava reservada somente aos cristãos, e a Igreja encontrava no paganismo o inimigo comum da unidade entre os povos. Sob essa ótica, a heresia[7] era um dos crimes mais graves, passível de penas mais severas. A fé religiosa constituía interesse próprio do Estado, que passou a utilizar a Inquisição, surgida no século XIII, para fins políticos, como ocorreu na condenação de Joana D’arc, em 1431. Assim, a religião e o poder secular estavam intimamente ligados e qualquer transgressão às regras impostas por ela constituía em infração contra o próprio Estado.
A igreja tinha forte influência na sociedade. Por exemplo, nesta época, houve a proliferação da peste negra, ocasionada pela crescente desenfreada da população de ratos, já que a própria igreja ordenou que todos os gatos fossem queimados, pois, segundo ela, os felinos eram a reencarnação do diabo.
“[…] A Igreja Católica foi a maior perseguidora de da história, e na Idade Média, travou uma dura e longa cruzada contra os gatos e seus admiradores. No ano 1232, o Papa Gregório IX fundou a Santa Inquisição, que actuou barbaramente durante seis séculos, torturando e executando, principalmente na fogueira, mais de um milhão de pessoas, sobretudo mulheres, homossexuais, e tembém os gatos, “ad majorem gloriam Dei.
O Papa Gregório IX afirmava na bula Vox in Roma que o diabólico gato preto, “cor do mal e da vergonha”, havia caído das nuvens para a infelicidade dos homens. Para acabar com a resistência dos celtas ao catolicismo, a Igreja Católica pregava que os sacerdotes druidas eram bruxos. Como os druidas viviam isolados e rodeados por muitos gatos, a Igreja começou a associar os gatos às trevas, devido aos seus hábitos noctívagos, e afirmava terem parte com o demônio, principalmente os de cor preta. Milhares de pessoas foram obrigadas a confessar, sob tortura, que haviam venerado o demônio em forma de gato preto, sendo logo depois, condenadas à morte.
(…) mulheres que tinham gatos foram torturadas e queimadas vivas. Os gatos, que eram protegidos pela Deusa Freya, foram acusados de serem demoníacos, capturados, enforcados e jogados nas fogueiras da Santa Inquisição.”[8]
As autoridades representavam uma vontade divina e as sanções impostas aos delinquentes não tinham por objetivo final a retribuição no sentido jurídico, mas sim no seu aspecto de conversão, por meio da expiação. Entretanto, não obstante essa finalidade atribuída à pena, o que prevalecia, na verdade, era a necessidade do castigo, gerada pelo sentimento de revolta contra todo aquele que se insurgisse contra os preceitos religiosos. Como o homem medieval era guiado pela fé cristã, seu maior inimigo era o herege, contra o qual recaía a vingança.
1.5 A PENA NA IDADE MODERNA
Tempos mais tarde, com o movimento do Iluminismo e todas as novas ideologias advindas do Renascimento, com obras preconizadoras de ideias liberais e humanizantes, como a do Marquês de Beccaria, a pena assumiu um fim utilitário, abandonando a fundamentação teológica. Aliás, é deste autor a ideia de que apena só é justa quando necessária.
Antes de se aprofundar na era contemporânea, é de rigor analisar o principal autor renascentista, Maquiavel (1469-1527).
Em sua obra intitulada O Príncipe, pretendeu investigar a essência dos principados e a forma de conservá-los. Para ele, os fins vantajosos para o Estado justificavam os meios, pouco importando se tais meios colocavam em risco os direitos e as necessidades de cada indivíduo.
Em seu Capítulo XVII, ao tratar “Da crueldade e da piedade”, vê-se a concepção que logo depois se instalaria na Europa Ocidental, ao assinalar que um príncipe deve:
“[…] não se preocupar com a fama de cruel se desejar manter seus súditos unidos e obedientes. Dando os pouquíssimos exemplos necessários, será mais piedoso do que aqueles que, por excessiva piedade, deixam evoluir as desordens, das quais resultam assassínios e rapinas; porque estes costumam prejudicar uma coletividade inteira, enquanto as execuções ordenadas pelo príncipe ofendem apenas um particular”[9]
Em suma, Maquiavel justificava os castigos como forma de intimidação para a segurança da sociedade e garantia do poder do soberano, concepção esta, própria do absolutismo. Contudo, a pena deveria ser aplicada conforme o quantum estabelecido na legislação, sob pena de equiparação à vingança.
Maquiavel, naquela época, reforçou o poder intimidativo das sanções penais, como a prevenção geral, por meio do castigo. A ideia da retribuição proporcionada pelas penas restou absorvida pelo absolutismo, que viria ser instalado na Europa Ocidental.
Na sequência, iniciaram-se, na Idade Moderna, novas formas de punir. Os feudos foram substituídos pelas monarquias absolutas de direito divino. A pena, então, era aplicada para demonstrar o poder e soberania do monarca, este não devendo prestar contas de sua administração a quem quer que fosse. Não vigorava o princípio do duplo grau de jurisdição, a pena era aplicada sem a mínima proporção com o delito cometido, não possuindo nenhum conteúdo jurídico nem qualquer objetivo de ressocialização do condenado.
As sanções severas previstas nas Ordenações do Reino tinham o objetivo de intimidar a população e reafirmar o poder soberano. O crime ofendia a pessoa do Rei e a punição vinha recheada de sofrimento, constituindo um aviso para que as ordens do monarca fossem obedecidas.
Os suplícios integravam o próprio cerimonial da justiça penal daquela época. Por isso, como relata Michel Foucault, prolongavam-se ainda após a morte. Os cadáveres eram queimados e as cinzas jogadas ao vento. Os corpos dos condenados eram arrastados e depois expostos à beira das estradas. O corpo do condenado não deixava de ser perseguido pela justiça, mesmo após a sua morte.
A punição, em termos de proporção, sempre ultrapassava a gravidade do crime cometido. Na França, em nome da vingança pública, tem-se o exemplo do suplício suportado por Damiens, condenado em 1757 por ter cometido o crime de “parricídio”. Após ter de pedir perdão publicamente, foi transportado em uma carroça pelas ruas de Paris, antes de ser torturado, esquartejado e, ao final, queimado perante toda a população.
A ilustrar as execuções daquela época, em especial a de Damiens, transcreve-se matéria veiculada no jornal Gazette d’Amsterdan, em 1° de abril de 1757, retirada da obra de Michel Foucault.
“[…] Damiens fora condenado, a 2 de marco de 1757, a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Gréve, e sobre um patíbulo que alí seria erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos a tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas.
Afirma-se que, embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador, nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios; apenas as dores excessivas faziam-no dar gritos horríveis, e muitas vezes repetia: “Meu Deus, tende piedade de mim; Jesus, socorrei-me.”
[O comissário de policia Bouton relata]: Acendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão mal e mal sofreu. Depois, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes de aço preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa, daí passando as duas partes da barriga do braço direito; em seguida os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificuldade em arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e o que ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras.
Os cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e enfim, após várias tentativas, foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte forma: os do braço direito à cabeça, os das coxas voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas juntas. Esses arrancos foram repetidos várias vezes, sem resultado. Ele levantava a cabeça e só olhava. Foi necessário colocar dois cavalos, diante dos atrelados às coxas, totalizando seis cavalos. Mas sem resultado algum. Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda forca, levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços, com as espátulas e axilas e as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase os ossos; os cavalos, puxando com toda força, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro. Uma vez retiradas esses quatro partes, desceram os confessores para lhe falar; mas o carrasco informou-lhes que ele estava morto, embora, na verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como se falasse. Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que assim que desse levantaram o tronco para o lançar na fogueira, ele ainda estava vivo. Os quatro membros, uma vez soltos das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha reta do patíbulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se pôs fogo à palha ajuntada a essa lenha. Em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite. Os pedaços de carne e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo. Os oficiais, entre os quais me encontrava eu e meu filho, com alguns arqueiros formados em destacamento, permanecemos no local até mais ou menos onze horas.
Alguns pretendem tirar conclusões do fato de um cão se haver deitado no dia seguinte no lugar onde fora levantada a fogueira, voltando cada vez que era enxotado. Mas não é difícil compreender que esse animal achasse o lugar mais quente do que outro.” (Gazette d’Amsterdan, 1 abr. 1757).[10]
1.6 A PENA NA IDADE CONTEMPORÂNEA
Na época contemporânea, chegaram novas conquistas no modo de punir. A partir de então, a sociedade deveria encontrar uma forma justa e humana de punir os criminosos. Com o fim do absolutismo, a pena não era uma reafirmação do poder do rei, mas sim uma represália em nome da sociedade. O criminoso tornou-se inimigo da sociedade. Nesta época surgiu o livro que marcou o que se entende por pena, Dos Delitos e das Penas, publicado em 1764, escrito por Cessare Beccaria.
Com as novas conquistas liberais, em especial com a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, os suplícios impostos pela vingança foram se acabando. A partir disso, deveriam os povos encontrar uma forma justa de punir os criminosos. A pena, nesse contexto, perdia seu caráter religioso, uma vez que o predomínio da razão sobre as questões espirituais, por influência dos enciclopedistas e filósofos iluministas, contribuiu para afastar o caráter de penitência, inserido na anatomia dos suplícios.
Assim, Beccaria insurgiu-se contra as injustiças do absolutismo do século XVIII, combatendo arduamente a pena de morte, alegando que tal punição mostra-se ineficaz em relação aos que têm firme determinação par praticar crimes, trazendo ao sistema, de forma inovadora, a certeza de que a pena proporcional, e não sua gravidade, constitui o meio mais eficaz para prevenir a criminalidade. Além disso, evidenciou que a pena de morte demonstra aos cidadãos um exemplo de crueldade e ferocidade.
Beccaria ressalvou que a medida da pena deveria, então, seguir o critério da necessidade para salvaguardar a sociedade atingida pelo crime, como bem cita Franco Venturi:
“[…] O nó que durante milênio se formou unido com mil fios pecado e delito, crime e culpa, foi cortado por Beccaria com um único golpe. Que a igreja, se o desejasse, se ocupasse dos pecados. Ao Estado cabia apenas a tarefa de avaliar e ressarcir o dano que a infração da lei havia acarretado ao indivíduo e à sociedade. O grau de utilidade ou não utilidade media todas as ações humanas. A pena não era uma expiação.”[11]
Cessare, ainda, criticou a tortura como forma de punição, a qual foi abolida no final do século XVIII na Europa, e que hoje, no ordenamento jurídico-penal-brasileiro, configura crime equiparado a hediondo.
Outros autores de destaque naquela época reforçaram os ensinamentos de Beccaria, como Jean Paul Marat, seguidor de Rousseau; Manuel de Lardizabal y Uribe (1739-1821), Jeremias Bentham (1748-1832), idealizador do projeto arquitetônico do Panóptico (um edifício circular ou polígono com seus quartos à roda de muitos andares, que tenha no centro um quarto para o inspetor poder ver todos os presos), que seria utilizado na construção de várias prisões; GiandomenicoRomagnosi (1761-1835); Emmanuel Kant (1704-1804); Hegel (1770-1831); Francesco Carrara (1805-1888), dentre outros.
O período clássico (século XIX) seguiu o modelo do positivismo criminológico, que tendia a usar o mérito do direito penal, excluindo qualquer discussão de cunho filosófico. Nesta época, surgiram novos doutrinadores, como por exemplo, CesareLombroso (1836-1909), o qual elaborou a tese de que o delinquente é uma espécie do gênero humano que comete crimes em razão de seus caracteres antropológicos, explicados pelo ativismo.
Na visão de Lombroso, reaparecem no delinquente sentimentos religiosos e associações criminosas, próprios dos selvagens primitivos, que não passaram pelo processo de civilização.
As teorias acerca da pena foram evoluindo. No final do século XIX, o alemão Franz Von Liszt afirmou que a certeza da punição exerce muito mais eficácia que uma pena rígida.
“[…] para o indivíduo que pretende cometer um crime, tanto faz que a pena cominada seja de um mês ou de dez anos de reclusão, ou mesmo a prisão perpétua, ou ,ainda, a pena de morte. Ele irá delinquir, seja qual for a pena, desde que as oportunidades de impunidade lhe pareçam satisfatórias, desde que suas aquisições culturais lhe façam crer que o Sistema Penal não atuará em seu caso”[12]
Entre as duas guerras mundiais, o direito penal distanciou-se da corrente humanitária e tornou-se extremamente repressivo, predominando o tecnicismo jurídico, segundo o qual o direito deve se desvincular de qualquer indagação de política criminal ou de cunho filosófico. O direito penal permanece estático, restrito aos princípios estabelecidos no ordenamento positivo. Dessa forma, as leis vigentes passam a ser o único objeto de estudo do Direito Penal.
A influência do tecnicismo fez-se sentir em várias legislações da primeira metade desse século, como no Código Italiano de 1930 e na Constituição Brasileira de 1937.
Após a segunda guerra mundial, em reação aos crimes contra a humanidade nela cometidos, ocorreu um movimento de retorno às concepções humanitárias, que contribuiu para a atualização da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e para o respeito à dignidade da pessoa humana.
Em 1954, no Terceiro Congresso Internacional, foi aprovado o “Programa Mínimo”. De acordo com ele, na luta contra a criminalidade, deve-se buscar meios preventivos de ação. Por essa nova concepção, o delito deixa de ser considerado apenas do ponto de vista abstrato para ser compreendido e estudado com base em pesquisas criminológicas, segundo a realidade subjetiva do agente. Trata-se da individualização da pena, com vistas à reinserção do individuo na sociedade. A pena deixa de ser retributiva e passa a utilizar medidas racionais de tratamento do delinquente, com o intuito de ressocializá-lo.
As ideias de Nova Defesa Social, “Programa Mínimo”, foram acrescidas de um adendo, adotado pela Assembleia Geral da Sociedade Internacional de Defesa Social, reunida em Milão, em 1985, buscando atualizar, melhorar e humanizar a atividade punitiva do Estado. Foi proposto, ainda, estudos ligados à vitimologia, principalmente em relação à assistência à vítima e à reparação do dano causado pelo crime.
A legislação brasileira encontra-se igualmente em consonância com o movimento de defesa social acima referido ao estabelecer meios eficazes para prevenir e reprimir a criminalidade organizada. Porém, a legislação atual distancia-se da corrente moderna de defesa social ao prever agravamento das sanções penais, com penas privativas de liberdade de longa duração (Lei de crimes Hediondos, 8.072, de 1990).
2. PINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS APLICADOS À PENA.
Os princípios têm uma "substância política ativa" e uma "estrutura dialógica" capaz de captarem as mudanças da realidade e estarem "afinados" às concepções cambiantes da "verdade" e da "justiça". Os princípios, sem sombra de dúvidas, são a base do direito.
A Constituição Federal de 1988 traz à baila vários princípios, principalmente em relação ao direito penal, já que tal matéria está ligada à liberdade pessoal. Além deles, a Constituição incluiu em seu texto diversas garantias à eficaz aplicação dos princípios.
As garantias consistem nas prescrições que vedam determinadas ações do Poder Público que violariam direitos consagrados, como, por exemplo, o artigo 5°, IV, que diz ser livre a manifestação de pensamento, proibindo a censura.
A expressão “garantias constitucionais” também é empregada para designar os chamados remédios constitucionais, como, por exemplo, o mandado de segurança e o habeas corpus.
O caráter constitucional dos princípios decorre da limitação ao poder punitivo imposta ao se situar a pessoa humana no centro do sistema prisional. Eles disciplinam matérias penais constitucionalmente relevantes e que, por isso, devem ser observados pelo legislador na elaboração da norma penal, condicionando o conteúdo da matéria penalmente disciplinada.
Em relação à pena, estão expressamente previstos no texto constitucional os princípios da legalidade, da personalidade, da individualização e da humanização. Ademais, o texto constitucional permite extrair princípios implícitos, os quais serão analisados em seguida.
2.1 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
A origem do princípio da legalidade gera divergência na doutrina penal. Alguns autores, como Vicenzo Manzini, sustentam que ele teve origem no Direito Romano, como uma extensão do princípio da reserva legal. Frederico Marques tem entendimento diverso, afirmando que as raízes do princípio da legalidade encontram-se no direito medieval, nas instituições do Direito Ibérico, tendo precedência sobre o documento inglês Magna Charta Libertatum, que, segundo muitos historiadores, é o primeiro documento a estabelecer o princípio da legalidade (artigo 39).
A controvérsia só foi pacifica por volta do século XVIII, com a influência dos pensadores e filósofos daquela época, em especial o Marquês de Beccaria, afirmando que […] Somente as leis podem fixar as penas correspondentes aos delitos; e este só ao legislador pode pertencer, ele que representa toda a sociedade unida por um contrato social[13]
Ainda sobre alguns registros históricos do princípio da legalidade, ressalta-se a alteração do Código de Reich de 1871, na Alemanha socialista (nazista), cujo artigo segundo dizia “Será castigado quem cometa um fato que a lei declara punível ou que mereça castigo segundo o conceito básico de uma lei penal e segundo os sentimentos do povo. Se nenhuma lei determina pode se aplicar diretamente ao fato, este será castigado conforme a lei, cujo conceito básico melhor lhe corresponder”.
As constituições brasileiras não deixaram de prever o princípio da legalidade, atualmente entendido sob três aspectos, os quais derivam de consequência lógica. Assim, decorrem do princípio da legalidade penal o princípio da reserva legal, o princípio da anterioridade e o princípio da taxatividade. Em suma, as características destes três princípios geram consequências no princípio da legalidade.
O princípio da legalidade dispõe que a pena aplicada àquele que comete determinado crime ou contravenção penal deverá sempre estar prevista em lei. Pode-se usar, analogicamente, o que dispõe no artigo primeiro do Código Penal, “Não há crime sem lei anterior que o defina(…)”; e o que dispõe no artigo terceiro do Código Tributário Nacional “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei(…)”.
Com imensa precisão, José Frederico Marques discorre, sucintamente, sobre o assunto:
“[…] A condenação do réu não pode trazer a imposição da pena que a lei não preveja. É o nullapoenasine lege do Direito Penal Liberal que dita e inspira o caráter de estrita legabilidade das sanções punitivas, pois se trata do princípio destinado a garantir o jus libertatis em face dos poderes de sujeição do Estado.”[14]
Nesse ínterim, o princípio da legalidade deve ser entendido como exigência de lei para criminalizar determinada conduta ou impor penas, excluindo-se os costumes e os princípios gerais de direito como fontes do direito penal, ao menos ao que concerne às normas incriminadoras. Diante dessa análise, por lógica, a analogia não pode ser usada para integrar as normas penais, uma vez que a exigência de lei refere-se à previsão escrita, abstrata e genérica aprovada pelo Poder Legislativo competente, ou seja, lei em sentido estrito, diga-se lei ordinária.
O sistema de pena mais utilizado em países democráticos de direito é aquele que estabelece penas determináveis dentro de margens, no qual o legislador estabelece limites rígidos, mínimos e máximos para que o julgador possa atribuir a pena dependendo das circunstâncias de cada caso concreto. Todavia, as margens não podem ser distantes para que não se delegue ao julgador funções privativas do legislador.
O nosso sistema de aplicação da pena está inserido no nosso sistema jurídico-penal a partir do artigo 59 do Código Penal. A pena base será fixada com base nas circunstâncias do crime e na personalidade do agente. Após, serãoanalisadas agravantes e atenuantes e, por fim, verificada causas de aumento e diminuição de pena.
Por derradeiro, há que se falar sobre o princípio da anterioridade ou da irretroatividade da norma penal incriminadora, ressaltando de imediato a possibilidade de aplicação retroativa da lei penal mais benéfica ao agente (artigo 5°, XL, da CF e artigo 2° do Código Penal). É uma garantia ao cidadão de que apenas será punido pela lei que estiver em vigor na data da conduta prevista como delituosa, podendo a lei mais benéfica posterior retroagir à data do fato para beneficiar o acusado.
Não se duvida, ainda, que o princípio da legalidade deve ser aplicado às matérias de execução penal, contravenção penal e medidas de segurança.
2.2 PRINCÍPIO DA PERSONALIDADE
O princípio da personalidade, pessoalidade ou responsabilidade pessoal encontra-se expresso na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5°, inciso XLV. Sua origem deriva dos filósofos do iluminismo, sendo previsto em quase todas as Constituições Federais.
Em tempos antigos, as penas corporais, pecuniárias ou infamantes poderiam atingir todo o grupo social ou, ainda, os familiares do condenado. A doutrina cita a condenação de Tiradentes como o principal exemplodesta prática.
Sobre referido princípio, Giuseppe Bettiol:
“[…] Do caráter aflitivo deriva também para a pena o caráter pessoal, no sentido de que pode ser submetido à pena somente quem comete o crime. Não há responsabilidade penal pelo fato alheio, adversamente do que ocorre com as sanções civis. A responsabilidade penal está intimamente ligada à pessoa do agente, assim como o pressuposto da pena, isto é, a culpabilidade tem caráter estritamente pessoal. Deve-se notar que, nestes últimos tempos, em várias leis penais especiais, foram criadas infelizmente presunções de culpabilidade, de participação num fato alheio que ferem via de regra o princípio de que não se pode punir por motivo algum quem não participou, de algum modo, da prática de um crime. A responsabilidade penal, assim como não se comunica a estranhos, não se transmite aos herdeiros”.[15]
Portanto, o que se extrai do dispositivo constitucional é que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, assim, ninguém responderá por crime que não cometeu ou, ao menos, colaborou com sua consumação.
Há exceção ao princípio da personalidade, por exemplo, na legislação ambiental, que prevê que a pessoa jurídica pode responder penalmente pelas condutas lesivas ao meio ambiente.
2.3 PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO
Este princípio está inserido na Constituição Federal em seu artigo 5°, inciso XLVI, e consiste em mensurar a pena de acordo com o caso concreto, ou seja, haverá uma pena para cada fato, pois se pune o fato, e não a pessoa.
Em relação à execução da pena, o princípio está insculpido no inciso XLVIII da Carta Magna, que dispõe que o cumprimento da pena se dará em estabelecimentos distintos, tendo sempre presente a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado.
Para Luiz Vicente Cerniccharo:
“[…] causas distintas das relações jurídicas e delinquentes diferentes impõem solução diferente. A individualização da pena leva em consideração o fato global, ou seja, o fato-infração penal com os seus protagonistas (sujeito ativo e sujeito passivo) com revisão da vida de ambos e projeção da futura conduta do delinqüente.”[16]
No momento legislativo, o princípio destina-se ao legislador infraconstitucional, que, ao estabelecer penas para determinados crimes, deve observar o que dispôs a respeito o texto constitucional. O artigo 5°, XLVI, da Constituição, relaciona algumas espécies de penas, sendo as seguintes: privação ou restrição da liberdade; perdimento de bens; multa; prestação social alternativa; e suspensão ou interdição de direitos. Trata-se de rol exemplificativo, permitindo-se ao legislador a criação de outros tipos de penas, desde que respeitado os preceitos básicos.
No momento judicial, o julgador deve observar o princípio da individualização para aplicar uma pena que condiz com a gravidade do fato e demais circunstâncias, respeitando, também, outro princípio que será estudado, o da proporcionalidade. Para tanto, o juiz deverá respeitar as regras estabelecidas no artigo 59 do Código Penal, como acima referido.
Por fim, em relação à execução penal, o princípio da individualização está presente para que o apenado receba um tratamento diferenciado, de acordo, lógico, com a natureza do seu crime, sua idade, seu sexo e etc. Neste sentido é o inciso XLVIII do artigo 5° da Constituição Federal. Insensato submeter à convivência diuturna alguém que teve sua condenação fundada em um simples furto com alguém que cometeu vários homicídios.
Entretanto, a realidade não é uníssona com a teoria. O que ocorre é uma mistura dos mais diferentes tipos de condenados, que acabam por influenciar a maioria daqueles que são condenados ao cárcere. Por exemplo, o PCC (Primeiro Comando da Capital), no Estado de São Paulo, oferece aos delinquentes condições melhores nas prisões em troca de uma mensalidade, além de aliciar presos primários para o crime organizado.
A finalidade do princípio da individualização da pena é a de buscar uma adequação da pena ao delito, garantindo também a eficácia da sanção penal aplicada, utilizando-se de um método individualizador para que o condenado não sofra mais do que o prescrito em lei e possa exercer os direitos que não foram atingidos pela pena.
2.4 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
O princípio da proporcionalidade não foi previsto de forma expressa na Constituição, porém, pode ser extraído de diversas normas contidas no texto constitucional, sendo eles, segundo Luis Flávio Gomes, o artigo 1°, III;o artigo 3°, I; e o artigo 5°, caput e incisos II, XXXV e LIV.
A noção de proporcionalidade surgiu com a ideia de limitação do poder estatal no Iluminismo do século XVIII, embora alguns sinais de proporcionalidade possam ser identificados anteriormente (Lei de Talião).
Outros exemplos de proporcionalidade podem ser retirados de documentos internacionais de declarações de direito, como a Magna Charta Libertatum,de 1215, (“não se poderá multar um homem livre por pequena transgressão, exceto de acordo com o grau de transgressão” – artigo 20) e Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, (“as penas devem ser proporcionais ao delito e úteis à sociedade” – artigo 15).
Em matéria penal, este princípio deve ser observado em três momentos diferentes: momento legislativo, de cominação penal, e de aplicação da pena.
No primeiro momento, o legislador deve fazer a ponderação do fato que ele vai descrever como crime e a pena imposta no tipo penal. No segundo momento, o magistrado deve levar em conta a conduta do agente e aplicar uma pena proporcional à gravidade do delito. No terceiro momento, a ponderação será feita na pena em concreto e a forma como será aplicada, por exemplo, um crime cuja pena seja inferior a quatro anos e o agente preencha os demais requisitos, será a pena privativa de liberdade substituída por uma restritiva de direitos.
A grande questão é a relação com os critérios que devem ser adotados para definir qual sanção ou pena a ser aplicada a determinado delito.
Por fim, cabe ressaltar a importante relação do princípio da proporcionalidade com outros princípios constitucionais de Direito Penal, como o princípio da igualdade, da culpabilidade e etc, mormente para a efetivação da proporcionalidade da pena em concreto. A legislação penal brasileira encontra-se em consonância com esse moderno entendimento de proporcionalidade, haja vista que o artigo 59 do Código Penal determina que o juiz aplique a pena conforme seja necessário e suficiente à reprovação do delito.
2.5 PRINCÍPIO DA HUMANIDADE (DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA)
O princípio da humanidade ou dignidade da pessoa humana trata-se não só de princípio aplicado ao Direito Penal, mas sim de fundamento da Constituição Federal (artigo 1°, III). A pessoa humana deve ser a medida primeira para a tutela do Estado, alcançando ainda maior destaque no Direito Penal, pois o condenado deverá ser encarado como sujeito de direitos e deverá manter todos os seus direitos fundamentais que não forem atingidos pela condenação. Como dizia Kant, a pessoa deverá ser considerada como fim do Estado, e não como meio.
A prisão é privativa da liberdade, não da dignidade.
Nesta linha, tem-se o artigo 5°, III, da CF, o qual estabelece que “ninguém será submetido à tortura ema tratamento desumano ou degradante”.Por isso, a importância do referido princípio no nosso ordenamento jurídico, visto que, sem ele, as pessoas seriam colocadas em penas degradantes, retornando à era das punições cruéis.
“[…] O condenado deve ser tratado com humanidade. Não se permite que o castigo imposto venha a ser instrumento de inquidade e degradação; necessário se faz, no entanto, que a pena, como um mal que o delinquente deve sofrer, não se dilua e desapareça no tratamento conferido ao condenado.”[17]
Em consonância com a Constituição, encontram-se na legislação ordinária dispositivos que consagram o princípio da humanidade das penas, como por exemplo, o artigo 3° da Lei 7.210/84, artigo 82, §1°, da LEP, dentre outros.
Ademais, é por meio da forma de punir que se verifica o avanço moral e espiritual de uma sociedade, não se admitindo, pois, nos tempos atuais, qualquer castigo que fira a dignidade e a própria condição do homem.
Nesse contexto, merece destaque o Recurso Extraordinário com repercussão geral n° 580.252, interposto por Anderson Nunes da Silva em face do Estado do Mato Grosso do Sul, da relatoria do Ministro Ayres Britto, no qual pede indenização por danos morais em decorrência de superlotação carcerária e falta de condições mínimas de saúde nos estabelecimentos prisionais.
O STF não julgou o caso ainda, porém, os relatórios dos ministros são no sentido de que é dever do Estado fornecer ao preso condições mínimas de dignidade humana e, portanto, passível de indenização, com base na responsabilidade objetiva.
Transcreve-se o voto do Ministro Marco Aurélio na decisão que deu repercussão geral ao recurso.
“[…] 2. Vem-no das Constituição Federal, como verdadeiro princípio ligado à dignidade do homem, o dever do Estado de preservar o respeito à integridade física e moral do preso – inciso XLIV do artigo 5°. Grande veículo de comunicação – Rede Globo, mediante os programas Fantástico e Bom Dia Brasil – escancarou as precárias condições das penitenciárias brasileiras. Ora, descabe tornar a teoria da reserva do possível como polivalente a ponto de se colocarem segundo plano a Carta da República. No mais, a situação versada no extraordinário extravasa o campo subjetivo do processo em que proferido ao acórdão impugnado. Cumpre ao Supremo, como guardião-maior da Lei Fundamental, pronunciar-se sobre a matéria, tal como admitiu o relator, Ministro Ayres Britto.”
3. FINALIDADE DA PENA
Não é fácil afirmar qual das teorias a serem estudadas é a mais completa, até porque a justificativa atribuída às penas é a justificativa do próprio Direito Penal. Ao analisá-las ver-se-á que elas trazem a ideia do próprio Direito Penal.
“[…] É sabido como o problema dos fins (…) da pena criminal é tão velho quanto a própria história do direito penal (…). A razão de um tal interesse e da sua persistência ao longo do tempo está em que, à sombra do problema dos fins das penas, é no fundo toda a teoria do direito penal que se discute e, com particular incidência, as questões fulcrais da legitimação, fundamentação, justificação e função da intervenção penal estatal. Por isso se pode dizer, sem exagero, que a questão dos fins da pena constitui, no fundo, a questão do destino do direito penal.”[18]
3.1 TEORIAS ABSOLUTAS OU RETRIBUTIVAS
É com as teorias absolutas ou retributivas que começa a discussão da finalidade da pena. Estas teorias causaram grande impacto nas ideias jurídicas do século XIX. Elas estipulam que o fim da pena é unicamente punir o agente que comete o delito.
Essa fórmula tem por base um único princípio moral, o qual mostra ao delinquente que ele merece ser punido pelo que fez.
Sobre as teorias absolutas, é o posicionamento de Cézar Roberto Bitencourt:
“[…] Através da imposição da pena absoluta, não é possível imaginar nenhum outro fim que não seja único e exclusivamente o de realizar justiça. Apena é um fim em si mesma. Com a aplicação da pena, consegue-se a realização da justiça, que exige, frente a um mal causado, um castigo que compense tal mal e retribua, ao mesmo tempo, o seu autor. Castiga-se quiapeccatur est, isto é, porque delinquiu, o que equivale dizer que a pena é simplesmente a consequência jurídico-penal do delito praticado”.[19]
Por outro lado, ressalta-se que mesmo quando se fala em teoria absoluta, esta procura demonstrar uma finalidade, a “promoção da justiça”, porém, este não é, claramente, o objetivo da pena.
É de se observar que, para os adeptos desta teoria, é absolutamente indispensável que a pena seja aplicada. Deixar de executar uma sentença condenatória representaria uma renúncia ao direito e à Justiça.
“[…] Lá pena que corresponda al delito cometido tiene que ejecutarsesiemprey em sutotalidad; La no ejecución de La pena, o suejecuciónsolamente parcial, Es inimaginable em El contexto teórico de lãs teorias absolutas de La pena, por cuanto que ello de La Justiça o El Derecho”[20]
Cumpre ressaltar que, dentre as teorias absolutas, os posicionamentos de Kant e Hegel merecem destaque especial. De forma lacônica, Kant imaginava que a pena era punição meramente moral. Para ele “o mal imerecido que tu fazes a outrem, tu fazes a ti mesmo”[21], ou seja, a sanção penal era punição que deveria ser dada ao agente para que ele se libertasse do mal que fez à sociedade. Para Hegel, a pena representa a afirmação do direito. O crime é uma violação do direito, a pena, por sua vez, uma violência que anula a violência, servindo, unicamente, para reprimir a violação do direito.
Kant e Hegel adotaram, claramente, as ideias de Talião, em que a reprimenda seria tal qual a conduta. Trata-se de um método desumano de aplicação de pena, ordinariamente carregada de violência. Todavia, representou um avanço em comparação à incerteza da duração e à medida das punições que reinava anteriormente.
Expostas e analisadas as teorias absolutas ou retributivas, passa-se ao estudo das teorias preventivas.
3.2 AS TEORIAS PREVENTIVAS
As teorias preventivas buscam uma finalidade para a pena, razão pela qual esta deixa de ser um fim em si mesma, passando a ser vista como algo instrumental, um meio de combate para a reincidência de crimes. Desse modo, elas representam uma evolução das teorias absolutas.
Uma das finalidades das teorias preventivas é a de desencorajar o cometimento de novos crimes. Referidas teorias são divididas em dois grandes grupos, que são a prevenção especial e prevenção geral:
“[…] Para aquela (prevenção especial), o fim a que aspira a pena é desencorajar ou dissuadir o indivíduo que, tendo infringido uma norma penal, volte a cometer delitos. Dito mais claramente: a sua finalidade precípua é combater a reincidência. Já esta – a prevenção geral – pode ser tomada como prevenção geral positiva, em que se objetiva a manutenção dos padrões e valores da sociedade, partindo da premissa que esta é um todo orgânico, estruturalmente organizada para funcionar bem, ou, ainda, como prevenção geral negativa, em que se propõe a motivar condutas, impedindo que uma pessoa pratique um delito”.[22]
As formas de prevenção dizem respeito, em verdade, ao momento em que começa a preocupação em evitar a ocorrência dos delitos.
Para os adeptos da corrente da teoria da prevenção especial, a norma penal se dirigiria a uma parte da sociedade, aqueles que cometeram os delitos. Em última análise, esta teoria visa a evitar a reincidência.
Von Liszt foi o maior expoente desta teoria. Ele dizia que o objetivo da pena criminal é a ressocialização social. O grande problema é que, mesmo tendo como objetivo evitar a reincidência, pode-se falar que existem três formas de promover esta finalidade: a inocuização, intimidação e correção. Para ele, a função da pena e do direito penal era a proteção de bens jurídicos por meio de incidência da pena sobre a personalidade do delinquente, tendo por finalidade evitar futuros delitos.
Em contrário sensu da prevenção especial, a prevenção geral visa impedir que as pessoas adentrem à prática delituosa pela primeira vez, trata-se de uma advertência a todos para que se abstenham de delinquir. Esta teoria pode ser subdividida em prevenção geral positiva e prevenção geral negativa.
A prevenção geral negativa, também conhecida como prevenção da intimidação, ainda encontra defensores na atualidade, a exemplo de Luigi Ferrajoli, que entende que deve haver uma dupla intimidação: uma incide sobre as pessoas, para que não cometam crimes e uma outra que, dirigida à uma coletividade, buscaria inibir a existência de reações sociais contra o delinquente.
A prevenção geral positiva propõe a confirmação de valores e estrutura sociais, abalados pelo cometimento de um ilícito. Trata-se de uma teoria eclética, que alia a necessidade de limitar o jus puniendi estatal com uma ideia de prevenção especial, voltada para a ressocialização.
3.3 TEORIA DIALÉTICA UNIFICADORA
Após o estudo das teorias absolutas e preventivas, faz mister analisar a teoria mais completa no que se entende por finalidade da pena, esta formulada por ClausRoxin.
Esta teoria junta ideias das opiniões anteriores, todavia, não é uma mera soma. Roxin vê finalidades na pena, devendo cada momento referente à pena (cominação, aplicação e execução) ser analisado com suas particularidades.
Primeiramente, deve-se analisar qual a finalidade do Estado, visto que a pena é objetivo do direito penal e, decorrentemente, do Estado. Para Roxin, a finalidade do Estado é proteger os bens jurídicos essenciais e prestar serviços substanciais aos cidadãos, ou seja, além de proteger certos bens jurídicos, ele deve zelar pela efetiva aplicação das cominações às transgressões, uma vez que zela pela garantia da ordem social.
Para ele:
“[…] No Estado moderno, junto a esta proteção de bens jurídicos previamente dados, surge a necessidade de assegurar, se necessário, através dos meios do direito penal, o cumprimento das prestações de caráter público de que depende o indivíduo no quadro da assistência social por parte do Estado. Com dupla função, o direito penal realiza uma das mais importantes das numerosas tarefas do Estado, na medida em que apenas a proteção dos bens jurídicos constitutivos da sociedade e a garantia das proteções públicas necessárias para assistência possibilitam ao cidadão o livre desenvolvimento da sua personalidade, que a nossa Constituição considera como pressuposto de uma condição digna”[23]
Frisa-se que Roxin cita que o Direito Penal é subsidiário, devendo interferir em situações extremas, em que não há outra solução. Nasce, então, a ultima ratio do controle social. A subsidiariedade é importante na teoria dialética unificadora, pois é ela, juntamente com o fim do Estado, que definem as condições de limitações das penas. Forma-se, então, a primeira premissa da finalidade da pena, cominação das penas.
Posto isso, Roxin entende que não se deve punir apenas porque o crime atenta à moral, mas porque há a necessidade de um controle social. Por exemplo, não se pode deixar impune um indivíduo que está sempre cometendo furtos, pois ele atenta ao controle social da sociedade em que vive.
Dando continuidade ao pensamento de Roxin, tem-se que reconhecer a necessidade da pena, ou seja, a sua aplicação está inserida em uma ideia de prevenção geral e prevenção especial (conforme item 4.2), como preconizam as teorias preventivas, fixando-se, assim, a segunda premissa da finalidade da pena, aplicação.
Ressalta-se que a função prevista nesta premissa seria de prevenção geral (limitada pelas garantias) e especial (restringida pela culpabilidade).
Por fim, já na fase de execução (última finalidade indicada por Roxin), a pena tem a finalidade de reinserir o criminoso à sociedade, respeitando as garantias constitucionais, algumas delas citadas no capítulo 3 deste trabalho.
“[…] Não é lícito ressocializar com a ajuda de sanções jurídico-penais pessoas que não são culpadas de agressões insuportáveis contra ordem dos bens jurídicos, por mais degeneradas e inadaptadas que sejam essas pessoas. Caso este ponto de vista seja ignorado, estaremos sob a ameaça do perigo de uma associação colectivista que oprime o livre desenvolvimento da personalidade. As conseqüências da garantia constitucional da autonomia da pessodeve, pois, respeitar-se igualmente na execução da pena. É proibido um tratamento coativo que interfira com a estrutura da personalidade, mesmo que possua eficácia ressocializante – o que é válido tanto quanto à castração de delinquentes sexuais, como quanto à operação cerebral que transforma contra a sua vontade o brutal desordeiro num manso e obediente sonhador” [24]
Assim é que, pelo pensamento de Roxin, percebe-se que a pena, ao estabelecer um direito penal subsidiário, preocupa-se com a punição do criminoso, a prevenção geral e especial, todas limitadas pela culpabilidade do agente e executadas no intuito de ressocializá-lo.
“[…] Se quiséssemos consagrar numa só frase o sentido e limites do direito penal, poderíamos caracterizar a sua missão como protecção subsidiária de bens jurídicos e prestações de serviços estatais, mediante prevenção geral e especial, que salvaguarda a personalidade no quadro traçado pela medida da culpa individual.”[25]
3.4 A FINALIDADE DA PENA NO SISTEMA JURÍDICO-PENAL BRASILEIRO
O nosso Código Penal adotou a chamada teoria unitária, a qual deriva da teoria demonstrada no item acima, tendo como finalidade precípua a retribuição, prevenção (especial e geral) e a ressocialização.
Segundo Greco:
“[…] Nosso Código Penal, por intermédio do artigo 59, diz que as penas devem ser necessárias e suficientes à reprovação e prevenção do crime. Assim, de acordo com a nossa legislação penal, entendemos que a pena deve reprovar o mal produzido pela conduta praticada pelo agente, bem como prevenir futuras infrações penais”[26]
O artigo 59 do Código Penal nos diz que a pena será estabelecida “conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime”, completando a teoria unitária, a LEP, em seu artigo 1°, faz referência à finalidade do processo de execução, “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.”
A ressocialização deverá ser feita respeitando a individualização da pena, em um ambiente prisional saudável, com assistência social, assistência médica e etc. Uma vez ressocializado o autor do fato delituoso, a finalidade da pena estará parcialmente cumprida, já que este não é o único fim dela.
Ademais, nesse contexto, a Lei 12.594/12, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), o qual regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas aos adolescentes que praticam atos infracionais, estabelece em seu artigo 1°, §2°, seguindo a teoria unitária do Código Penal, que tal medida deverá punir, prevenir novas práticas e ressocializar o menor infrator.
“Art. 1o Esta Lei institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e regulamenta a execução das medidas destinadas a adolescente que pratique ato infracional.
§ 2o Entendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art. 112 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), as quais têm por objetivos:
I – a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação;
II – a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento; e
III – a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei”. (grifo nosso)
4. EFICÁCIA DA PENA
É fato que se a pena cumprir com sua finalidade ela será eficaz, ou seja, ela terá de punir o agente, prevenir para que os crimes não aconteçam novamente e ressocializar quem o cometeu. Por questões óbvias, não há sistema penal que consiga cumprir com todas essas finalidades, porém, há como amenizar a não incidência desses acontecimentos, já que, de fato, eles vão ocorrer.
4.1 O SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO
O Brasil, em síntese, adotou o sistema punitivo burguês, não por escolha, mas por derivação do capitalismo selvagem, resultando, então, na versão mais cruel, ignóbil e mais desumana do sistema punitivo burguês, fundado em escolhas político-criminais desastradas (ausência de políticas socioeconômicas, educativas, populismo-midiático-vingativo, edição desregrada de leis penais, encarceramento massivo sem critério legítimo, etc).O sistema burguês consiste na aplicação desigual da norma penal, beneficiando as classes dominantes, embora o crime seja ubíquo.
O sistema punitivo é falho por completo, as prisões não oferecem aos presos condições básicas de higiene, educação, convívio, etc. Não há ressocialização dos condenados e a taxa de reincidência é alta. O sistema está falido e o Estado não investe nele, preferindo adotar medidas ineficazes, como criar leis absurdamente inoperantes.
Como forma de exemplificar a negligência do Estado em relação às condições dos presídios brasileiros, traz-se a este trabalho matéria exibida na revista “Carta Capital”, a qual explica o nascimento e organização do PCC (Primeiro Comando da Capital), que teve seu início em razão das más condições do sistema penitenciário, e que hoje deixou de ser uma gangue de presídio para se tornar uma “pré-máfia”.
“[…] Até aqui, a história do PCC divide-se em três momentos. O primeiro começa em 1993. No presídio de Taubaté, interior de São Paulo, dá-se a criação do bando em resposta às péssimas condições do sistema penitenciário paulista e aos excessos de violência praticados pelas forças de segurança contra detentos.[…]
Dados do setor de inteligência do Ministério Público de São Paulo, primeira e única instituição a colocar no papel o tamanho, o modelo organizacional, métodos e números sobre o PCC, apontaram para um resultado desastroso. Entre 2006 e 2010, o PCC consolidou-se e expandiu-se consideravelmente. Em São Paulo, de todas as 152 unidades prisionais, 137, ou 90% delas, foram dominadas pelos 6 mil membros da facção presos. Do lado de fora, outros 1,8 mil integrantes começaram a pagar R$650,00 como mensalidade e a comprar rifas de carros, apartamentos e casas. Somente com essa renda, 2 milhões de reais entraram nos cofres da organização criminosa mensalmente. […]
Assim como deveria caber ao governo paulista, o PCC dá as condições mínimas de segurança, higiene e saúde aos detentos. Nos presídios superlotados, é a facção a provedora do sabonete, do colchão, do cigarro e do espaço mínimo nas celas. É ela que garante também a solução dos problemas internos entre os detentos, primeiro por meio de conversas e, depois, com as devidas punições. […]
O fato é que, enquanto o PCC vivia sua primeira fase de organização, bastava ao Estado dar as condições mínimas de segurança, higiene e saúde aos detentos para, em seguida, investir na educação, de sorte a ressocializá-los.[…]
Hoje, o problema deixou de ser apenas do governo paulista e, caso queiram reverter essa situação, todos os governos estaduais e o federal precisarão revolucionar o sistema penitenciário, investir pesadíssimo em inteligência e unificar o combate à facção.”[27]
Evidente que a omissão do Estado em dar aos presos condições básicas de saúde, higiene, educação, etc, abre espaço para organizações criminosas como o PCC atuarem em função “substituidora” ao poder estatal, o que, na verdade, só fortalece tais organizações, uma vez que elas cobram taxas dos presos para fornecimento de “regalias”, que deveriam ser fornecidas pelo Estado, aumentando seu capital, o que viabiliza investir em armamento, força corruptiva e etc.
A função ressocializadora é a medida necessária para dar um novo caráter à pena, que, por isso, deve ser revista. No contexto em que ela é aplicada, não atende as condições mínimas de reinserir o sujeito à sociedade,tendo a pena privativa de liberdade o objetivo não apenas de afastar o criminoso da sociedade, mas, sobretudo, de excluí-lo. Note-se que a pena de prisão hoje atinge o objetivo exatamente inverso ao da ressocialização.
Neste pensamento:
“[…] A ressocialização do delinquente implica um processo comunicacional e interativo entre o indivíduo e sociedade. Não se pode ressocializar o delinquente sem colocar em duvida, ao mesmo tempo, o conjunto social normativo ao qual se pretende integrá-lo. Caso contrario, estaríamos admitindo, equivocadamente, que a ordem social é perfeita, ao que, no mínimo, é discutível.[28]
A prisão, como sanção penal de imposição generalizada não é uma instituição antiga e que as razões históricas para manter uma pessoa reclusa foram a principio, o desejo de que mediante a privação da liberdade retribuísse a sociedade o mal causado por sua conduta inadequada; mais tarde, obrigá-la a frear seus impulsos antissociais mais recentemente o propósito teórico de reabilitá-la. Atualmente, nenhum especialista entende que as instituições de custódia estejam desenvolvendo as atividades de reabilitação e correção que a sociedade lhe atribui. O fenômeno da prisionização ou aculturação do detento, a potencialidade criminalizante do meio carcerário que condiciona futuras carreiras criminais (fenômeno de contagio), os efeitos da estigmatização, a transferência da pena e outras características próprias de toda a instituição total inibem qualquer possibilidade de tratamento eficaz e as próprias cifras de reincidência são por si só eloquentes. Ademais, a carência de meios, instalações e pessoal capacitado agravam esse terrível panorama.”[29]
E não é só a pena de prisão que é ineficaz, mas as medidas despenalizadoras também não cumprem com sua finalidade. O que temos é uma generalização da ineficácia da pena.
Para a pena de prisão, é imprescindível a importância da aplicação de novos métodos no tratamento penitenciário, com ênfase na ressocialização do indivíduo, fazendo com que ele possa voltar ao convívio social com respeito e dignidade. Tal cenário contribuiria para a diminuição da reincidência criminal, ocasionada principalmente pelo preconceito, pela exclusão social, pelo despreparo educacional e profissional e pela falta de oportunidades de trabalho.
Portanto, é primordial fazer uma reforma no sistema carcerário, com o propósito de buscar a ressocialização do criminoso. Deste modo, o Estado tem o dever de punir e prevenir o crime e, em contrapartida, tem a obrigação de ressocializar e reintegrar o preso na sociedade.
Podemos dizer que não adianta apenas castigar o indivíduo. É necessário lançar mão de medidas importantes, orientando o apenado, a fim de que ele possa ser reintegrado novamente a sociedade. O Estado tem que proporcionar um amparo integral a esses indivíduos para que, dessa forma, consigam resgatar os seus valores e princípios, retornando para o convívio familiar e, sobretudo, para sociedade, evitando assim a reincidência.
4.2 MODELOS DE POLÍTICA CRMINAL.
Franz Von Liszt sustentou (no século XIX) “que o direito penal seria a barreira intransponível da política criminal”, ou seja, esta não se pode valer da pena para alcançar seus objetivos de controle social, de dominação e de poder. Quem detém o poder está usando o direito penal para iludir a população, que ainda acredita que a pena severa seja suficiente, por si só, para diminuir a criminalidade. Nas entrelinhas, há uma falsa ideia de utilidade do sistema penal.
No cerne do pensamento da maioria da população brasileira, insculpido no senso comum, acredita-se que contra o crime temos de reagir com pena severa. A eficácia da pena depende de sua capacidade dissuasória, ou seja, da sua gravidade. Se existe crime é porque suas penas são débeis, logo, quanto mais severa, mais ela intimidaria as pessoas.
Contudo, não é a severidade da pena que impede o cometimento de novos delitos, mas, por exemplo, a certeza do castigo, políticas de prevenção social, dentre outros elementos, chamados de prevenção geral.
Há países que combinam a prevenção social com a certeza do castigo, chamados de países “escandinavizados” (Suécia, Noruega, Coreia do Sul, Japão, Alemanha, Nova Zelândia, Austrália, Islândia, Finlândia). Eles acreditam que não é a severidade da pena que conta, mas sim a certeza do castigo, combinada com uma excelente política social. A média de assassinatos, nesses países, é de1 para cada 100 mil pessoas por ano[30].
A Holanda fechou 8 presídios em 2012 e a Suécia fechou 4 em 2013. Por que Holanda e Suécia estão fechando prisões enquanto Brasil e EUA estão aumentando o número de presos? Uma boa pista que se poderia sugerir para entender essas abissais diferenças pode residir na cultura de cada país. Um ponto relevante consiste em examinar o quanto os países mais liberais já se distanciaram do arquétipo do Pai (patriarcal) para fazer preponderar a alteridade. No campo econômico, apesar de todas as crises mundiais e locais, as nações mais prósperas com capitalismo distributivo são mais cooperativas, mais solidárias, com menos desigualdades. A igualdade material está mostrando que produz uma sociedade menos violenta e menos criminosa, daí a desnecessidade de tantas prisões. Os países escandinavizados são adeptos da chamada prevenção precoce.
Outros países confiam na severidade da pena e contam com boa eficácia na certeza do castigo, mas pecam na prevenção social e ainda se distinguem pela desigualdade extrema. A média para esses países, dos quais os EUA é representante, é de 5 assassinatos para cada 100 mil pessoas por ano[31].
Os países político-criminalmente fracassados, como o Brasil, são os que não praticam nenhum tipo de prevenção social (melhoria as condições de vida, mais educação de qualidade, etc.) e tampouco contam com estrutura burocrática eficiente para garantir a certeza do castigo. A esses países só resta iludir a população inculta, alienada e desesperada a apoiar, inclusive, as medidas irracionais dos governantes. A média, desses países, é de 27 assassinatos para cada 100 mil pessoas por ano[32].
Quando consideramos todos os eixos centrais da política criminal e do império da lei, vemos que o Brasil falha em todos eles, a começar pelos seus dois eixos centrais. O Brasil tem taxa quase zero de prevenção socioeconômica e educativa e apresenta altíssimo grau de seletividade e ineficiência na repressão, já que a lei é dura, mas de eficácia generalizada – pune poucos.
Os legisladores brasileiros, assim como a criminologia populista-midiática-vingativa, acham que sabem, mas nada sabem sobre o real efeito preventivo da edição de novas leis penais e do agravamento das sanções ou da execução penal, assim como do encarceramento abusivo, que inclui a prisão das classes tidas como perigosas, mesmo sem o cometimento de crimes violentos.
Ancorado em sua ideologia conservadora, o legislador brasileiro já reformou nossas leis penais 150 vezes, de 1940 a 2013 (72% com mais rigor), segundo Luis Flávio Gomes em seu livro “Beccaria (250 anos) E o drama do castigo penal: civilização ou barbárie?”. Mesmo diante da ausência de estudo científico sério, que fundamentariam o modelo eminentemente repressivo praticado no Brasil, insiste-se nessa política reativa com se fosse a solução para o problema da violência e da insegurança.
Ademais, a sugestão central de Beccaria de que as penas deveriam ser justas, rápidas e certas, não é aplicada no nosso país, de forma que aqui a severidade da pena prepondera em detrimento da certeza do castigo. Por exemplo, somente cerca de 5 a 8% dos homicídios são devidamente investigados e processados. Segundo a Associação Brasileira de Criminalística, no Reino Unido a taxa é de 90%.
Nos países de capitalismo avançado e distributivo, adotou-se um sistema penal menos rigoroso, o qual diminuiu o índice de violência e aumentou a segurança no país.
Existe relação direta entre igualdade material e a redução da violência e criminalidade.
“[…] Disso as elites do capitalismo selvagem e/ou extremamente desigual não querem saber (não lhes interessa saber). Estamos no campo da cegueira deliberada, que não quer enxergar a seguinte verdade: está terminantemente inviabilizada a política criminal que se guia (1) pelo ópio do fundamentalismo religioso, (2) pela morfina das ideologias sofistas, (3) pelo veneno das radicalidades partidárias ou dos políticos, (4) pela droga mais entorpecente de todas que é o capitalismo selvagem e/ou extremamente desigual (caminho que vem sendo seguido pelo novo imperialismo capitalista mundial), (5) pela vulgaridade cultural, (6) pelas crenças da ignorância massiva e (7) pela crueldade vingativa do populismo midiático”.[33]
5. CONCLUSÃO
Assim, após realizar sintética análise sobre a evolução da pena no tempo, os principais princípios que envolvem a pena, as teorias acerca da finalidade da pena, bem como sua aplicação e eficácia no Brasil, comparando-a com outros modelos de política criminal usados em diversos países, chega-se a seguinte conclusão.
É evidente que a pena no Brasil sucumbiu, em especial a privativa de liberdade. O sistema encontra-se em crise, econômica e política, já que não é capaz de cumprir com sua principal finalidade, que seria a ressocialização do condenado para torná-lo apto ao convívio em sociedade livre.
Os presídios não têm a mínima condição de receber os condenados, submetendo-os a situações de insalubridade, propiciando o surgimento de várias doenças. Junte-se a isso a superlotação das celas, a ociosidade, a falta de atividades educacionais e falta de trabalho ao condenado.
Podem, ainda, serem citados outros fatores que não condizem com o escopo reeducador da pena, como a prisisionização, fenômeno psicológico inerente à prisão, que imprime no preso a cultura da prisão, dessocializando-o e, ao final do cumprimento, jogando-o na sociedade, o qual não se readapta à vida em sociedade, voltando, em breve, ao crime.
Embora a Lei de Execuções Penais seja uma das mais avançadas no que tange à aplicação da pena, ela não é colocada em prática em virtude do não direcionamento de recursos à execução penal.
Nesse contexto, surgem as penas restritivas de direito, que visam substituir as penas privativas de liberdade e representam o melhor remédio na busca da ressocialização, já que não retiram o condenado do convívio em sociedade, além de serem menos onerosas para o Estado.
O Estado tem de se abster dessa política criminal, investir mais em segurança, educação e saúde, proporcionar ao cidadão um padrão de vida melhor. Não se trata apenas de melhorar a aplicação da pena, mas sim o convívio social do brasileiro, evitando que os delitos ocorram.
Advogado militante na área penal, civil e sindical
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