Plea bargain: considerações sobre a resistência no Brasil

Resumo: O presente artigo objetiva refletir sobre o plea bargain, oriundo do modelo processual americano, como instrumento facilitador à resolução de conflitos criminais, a partir da justiça consensual. A partir do questionamento aos principais argumentos contrários à sua aplicação, verificou-se que o plea bargain influenciou importantes mudanças no cenário processualístico em países da América Latina, como Uruguai e Brasil, de modo a tornar a tutela jurisdicional mais racional, desburocratizada e eficiente.

Palavras-chave: Plea Bargain. Direito Processual Penal. Transação Penal. Brasil.

Abstract: This article aims to reflect on plea bargain, originated from the American procedural model, as an instrument that facilites the resolution of criminal conflicts, based on consensual justice. With the questioning of the main arguments against its application, it was verified that the plea bargain influenced important changes in the procedural scenario of some Latin American countries, such as Uruguay and Brazil, making jurisdictional tutel more rational, unbureaucratized and efficient.

Keywords: Plea Bargain. Criminal Procedure Law. Criminal Bargain. Brazil.

Sumário: Introdução. 1. Considerações sobre o plea bargain frente ao modelo de justiça criminal do Brasil. 2. A mudança de concepção vivenciada na América Latina e seus reflexos na experiência brasileira. 3. Constitucionalidade do Acordo de Não-Persecução Penal (arts. 18 e 19 da Resolução 181/17 do CNMP). Conclusão. Referências.

Introdução

Importante instrumento da política criminal, eis que objetiva a concretização do Direito Penal, o processo penal brasileiro caminha em duas vertentes de atuação, que, com efeito, podem se associar à aplicação: de um lado, o enfoque garantista de direitos e liberdades individuais; e de outro, o eficientista, atribuindo maior funcionalidade e eficiência às instituições responsáveis pela justiça penal e sua consequente procedimentalização.

Em busca do equilíbrio entre os dois modelos, prezando pela preservação dos direitos fundamentais dos sujeitos envolvidos na lide criminal, mas nem por isso engessando o Poder Judiciário com procedimentos excessivamente burocráticos, apresenta-se o plea bargain como um mecanismo de diversificação, no âmbito da justiça criminal consensual.

O presente artigo, portanto, objetiva tecer reflexões acerca da possibilidade de se utilizar no Brasil o instrumento processual penal do plea bargain (pleito de barganha – uma espécie de transação entre acusação e defesa no âmbito criminal), que possui bastante utilização e popularidade notadamente nos países de língua inglesa.

O cenário latino-americano, ressalta-se, demonstra-se receptivo à ideia da democratização da justiça criminal, a exemplo do Novo Código de Processo Penal do Uruguai, o qual transmutou o Sistema Inquisitório para o Acusatório, este essencialmente oral e público, dentre outros aspectos outorgando ao Ministério Público a direção das investigações.

No Brasil, muito embora haja argumentos que se colocam em oposição à ideia de aplicação do mencionado instrumento processual no ordenamento jurídico pátrio, a Resolução 181/17 do Conselho Nacional do Ministério Público trouxe na previsão do Acordo de Não-Persecução Penal a essência do plea bargain americano. Ademais, com a proposta de reforma do Código de Processo Penal, entrevê-se a aproximação do modelo americano, considerando a disciplina do procedimento sumário penal.

Dessa feita, o artigo, inicialmente, tecerá considerações sobre o plea bargain frente ao modelo de justiça criminal do Brasil, abordando e questionando os argumentos contrários à efetiva aplicação. Seguidamente, evidenciará a mudança de concepção vivenciada na América Latina e seus reflexos na experiência brasileira, a exemplo das disposições normativas anterior e introdutoriamente elencadas.

1 Considerações sobre o plea bargain frente ao modelo de justiça criminal do Brasil

O plea bargain/ing (pleito de barganha) é um formato de aplicação do direito criminal mais ágil, que preza pela solução previsível e consensual do conflito jurídico, em regra, com a confissão do acusado; e a diminuição da pena em comparação aos casos em que há debate prolongado sobre o fato em tela até chegar a julgamento.

No direito norte-americano, o uso do plea bargain é bastante comum e alcança preponderância na solução dos processos criminais, chegando-se a apontar sua incidência em aproximadamente 90% (noventa por cento) dos processos judiciais (Plea Bargain Pros and Cons, 2017).

No Brasil, a seu turno, não se pode perder o rumo de que é possível a solução de um caso judicial com agilidade e, mais, prestigiando o devido processo legal, dentro do modelo normativo já existente. Afinal, ancorando-se em um raciocínio lógico, o que impede a acusação de pleitear a aplicação da pena mínima sob a condição de o acusado confessar voluntária e conscientemente o ilícito que lhe é atribuído? Ora, por que não se aliar à lógica e à eficiência, afastando o burocratismo e a irreflexão da operabilidade do mundo jurídico?

Por sinal, constitucionalmente, além da cidadania como princípio fundante (art. 1º, II) e do devido processo legal (art. 5º, LIV), com sua historicidade, já se prevê a garantia da celeridade processual (art. 5º, LXXVIII) (BRASIL, 2017b). Note-se que a ideia de cidadania tende a afastar a presunção de incapacidade do indivíduo, vista em si a concepção de responsabilidade para o cumprimento de deveres e o exercício de direitos. E, a fundir horizontes, o devido processo legal, o qual incorpora a celeridade processual inclusive, traduz o ideal racional nos vetores de razoabilidade e proporcionalidade.

Desse modo, chega a ser intuitiva a defesa de que, realmente, já se possua base teórica suficiente para dar concretude a uma aplicação processual mais eficiente e previsível a todos, implementando o formato do plea bargain (pleito de barganha) no Brasil. Outrossim, no influxo do protagonismo recaído no sistema de Justiça atualmente, derivado da paralisia que se apossa sobretudo do Legislativo e do Executivo, cumpre reconhecer a necessidade de utilização concreta e eficiente do processo penal como importante e efetivo instrumento de política criminal.

Assim, é de se reconhecer como exequível a aplicação do plea bargain no Brasil, em que se incentiva a solução rápida e previsível de considerável parte dos casos criminais, combinando a diminuição da pena com a colaboração do acusado e a dispensa do prolongamento indefinido e desnecessário do processo. Com isso, pode-se edificar um direito criminal mais apto à proteção de bens jurídicos relevantes e, ao mesmo tempo, elementar à concretização dos direitos fundamentais.

Em outro diapasão, cabe ressaltar, há pilares de sustentação da posição opositora à aplicação do plea bargain no Brasil, que, em termos gerais, revelam preocupação pelas seguintes linhas argumentativas: o plea bargain seria a causa do hiperencarceramento dos Estado Unidos; o plea bargain ocasionaria a declaração de culpa por inocentes; o Ministério Público é diferente nos Estados Unidos e no Brasil; o sistema de common law, aplicado nos países de língua inglesa (tradição anglo-saxônica), é diferente do sistema de civil law (tradição romano-germânica), aplicado no Brasil.

Pois bem, para antecipar e com a máxima vênia aos que defendem tal posição contrária à aplicação do instituto de processo penal em destaque, salienta-se que tais pilares são empiricamente falsos.

Primeiro, em outro modo de dizer, o plea bargain não é a causa do hiperencarceramento nos Estados Unidos. Esse tema é dotado de uma profundidade histórica bastante densa e complexa, para impingir sua causa ao instituto processual em questão. Muitos dos opositores usam, a título de ilustração do raciocínio, a menção ao documentário disponibilizado no provedor global de filmes e séries Netflix, denominado “13ª Emenda”, lançado em 2016, no qual se contextualiza e se associa, a rigor, o tema do hiperencarceramento com o tema da escravidão. Na verdade, o documentário focaliza muitas outras nuances, como a própria exceção à escravidão, prevista na 13ª Emenda aos condenados criminais, e a relação de interesses estreitos entre o setor privado de administração prisional e o sistema judiciário norte-americano, que tem como peculiaridade, por sinal, o ingresso de seus membros por meio de eleições diretas (DUVERNAY, 2016).

Ou seja, não obstante seu uso consagrado nos Estados Unidos, o fato é que o plea bargain é apenas mais um dentre tantos outros institutos processuais existentes no sistema norte-americano, além das diferentes nuances culturais, mormente relacionadas à questão da escravidão e ao contexto de sua abolição nos Estados Unidos.

Segundo, sobre o ponto específico da hipótese prática de declaração ou imputação de culpa a pessoas inocentes, propedeuticamente, antes, é de se perguntar se, atualmente, essa hipótese consegue ser descartada pelo sistema vigente (sem aplicação do plea bargain). Ora, a resposta é certamente negativa. Afinal, atualmente, mesmo sem a aplicação consagrada do plea bargain no Brasil, extrai-se da película fática subjacente a análise de que a possibilidade de que pessoas inocentes sejam declaradas ou imputadas culpadas é inerente a um sistema contrastado pela realidade social assimétrica à teoria idealizada, como é o sistema jurídico, tanto no Brasil quanto em qualquer outro lugar do globo terrestre.

Terceiro, é de se refletir previamente qual a cadeia de causalidade necessária entre a diferença do Ministério Público no Brasil e nos Estados Unidos e da imbricação dessa diferença com a aplicação do plea bargain como instituto processual criminal, como tantos infinitos outros. A rigor, nos Estados Unidos, predominam duas tubulações sistemáticas elementares: maior amplitude da competência concorrente dos Estados da Federação no âmbito criminal e processual, dentre outras matérias por sinal; e ausência de um ente ou órgão intitulado Ministério Público ou Public Ministery, que seja igual no Brasil e nos Estados Unidos. Veja-se, por oportuno, que diversas outras nuances administrativas, normativas ou designativas são diferentes em países ou estados diversos e nem por isso instrumentos jurídicos ou processuais deixam de ter sua aplicação compartilhada, sobretudo quando a resolutividade for alcançada de modo eficaz.

E mais, não obstante tudo isso, existem um ou mais órgãos, considerando as diferenças entre as competências dos Estados Federados, cujo nome traduzido se aproximaria de Procuradoria de Persecução/Investigação/Acusação (Attorney Prosecutor). Na mesma concatenação, aborda-se que tal diferença seria acentuada pelos teóricos de sua determinância no fato de que, nos Estados Unidos, as Procuradorias de Persecução (Attorney Prosecutor) seriam, em regra, providas por decorrência de eleições diretas; e, no Brasil, quanto ao Ministério Público, o provimento dos respectivos cargos dos membros da instituição se dê em decorrência de aprovação em concurso público. Ora, da mesma maneira, é de se notar a ausência de causalidade entre essa argumentação e a influência empírica da sua eficácia (sofisma formal). Afinal, sabe-se que, em linhas gerais, a distinção seria apenas a forma de provimento como escolha política estratégica, mas não a objetividade da atuação da instituição como elemento fundante da política criminal em ambos os países – política criminal esta que, por sinal, inclui a possibilidade do sentido da concepção do plea bargain.

Para elaborar: o plea bargain possui natureza de instrumento processual criminal, como tantos outros, sejam similares, sejam distintos. Como exemplos de instrumentos processuais criminais similares cita-se: transação, suspensão condicional do processo, colaboração premiada, perdão judicial. São exemplos de instrumentos processuais criminais distintos: prisão em flagrante, inquérito policial, busca e apreensão, procedimentos processuais, recursos, ações autônomas especiais.

Reprisa-se, então, a seguinte pergunta: qual a causalidade da diferença do Ministério Público, no Brasil, com a instituição semelhante, existente nos Estados Unidos, em relação à possibilidade de se aplicar o plea bargain no Brasil? A resposta há de evidenciar que, a rigor, não há nexo de causalidade algum entre uma coisa e outra: a diferença da forma de provimento do órgão acusador e a possibilidade de aplicação eficiente de um instrumento processual criminal.

Quarto, o sistema do civil law é diferente do sistema da common law. Aqui são duas as refutações preambulares: a diferença entre tais ideais de sistema é muito mais histórica e abstralizada do que concreta e até normativa; e, mais uma vez, não há encadeamento causal entre suposta diferença e a mera possibilidade de aplicação de um instrumento processual criminal, como, por exemplo, o plea bargain.

De logo, note-se que, na prática, ambos os sistemas e respectivos conjuntos de países possuem textos normativos, códigos, resoluções. Aliás, nos Estados Unidos, há mais textos normativos ainda, em decorrência da maior amplitude da competência legislativa concorrente entre os Estados Federados. E, mais que isso, também é de se notar que ambos possuem influência dos precedentes jurisprudenciais como fonte argumentativa do Direito.

Então, calha visualizar que a diferença em comento é muito mais ligada a uma circunstancialidade histórica do que a um sentido palpável materialmente. Sem contar que, em uma maior profundidade da análise histórica, encontra-se a combinação dos mesmos povos nas matrizes civilizatórias que perpassam a assemblagem da Idade Média com a Idade Moderna, notadamente o final do Império Romano; a posterior tentativa de reincorporação política do Sacro-Império Romano Germânico, acentuando os influxos políticos associados à área que circunda a atual Federação Alemã; os episódios de fusão política entre França e Reino Unido, demarcados com o Rei Guilherme O Conquistador (William The Conquer); e a colonização na América do Norte. A título exemplificativo, em um ângulo de curtas palavras: veja-se que o próprio significado de tradição anglo-saxônica advém dos povos anglos e dos povos saxões, os quais originariamente eram habitantes da Ânglia, limite noroeste do território alemão, e da Saxônia, limite oeste do mencionado território. Isto é, a ideia de povo anglo-saxônico está imbricada com habitantes originários da órbita territorial alemã (e naturalmente europeia continental), que, por sua vez, em contradição, seria base do sistema distinto, o sistema chamado de civil law.

Cobra tracejar que, não último, há ainda maior profundidade nessa operação de falseabilidade da importância dogmática e prática da diferença entre common law e civil law, não compatível com a quadratura da presente reflexão compartilhada.

Satisfeitas essas considerações mais pertinentes a uma proposta de estaqueamento propedêutico, cumpre imergir a plano de outra seção de raciocínio. Ao visualizar a aplicação concreta do mesmo instituto (plea bargain), infere-se que muitos casos, quando não a maioria deles, são resolvidos por meio de um acordo entre acusação e defesa. Nessa prospecção, em consulta ao site da própria American Bar Association (entidade, nos Estados Unidos, similar à Ordem dos Advogados do Brasil), verificou-se que o plea bargaining prevalece em decorrência sobretudo das razões pragmáticas destinadas a evitar um processo longo, incerto e custoso tanto para defesa quanto acusação, assim como para o sistema de Justiça, da mesma forma que evitar o risco de imposição de pena mais alta e a publicidade negativa que pode pesar sobre os envolvidos (AMERICAN BAR ASSOCIATION, 2017).

Adicionalmente, a Bar Association salienta que todos os envolvidos no caso devem concordar para o avanço da efetivação do acordo, afastando a imposição do plea bargain àquele que não queira voluntariamente aceitar a aplicação do instituto. Pormenoriza, ainda, que diversos outros caminhos são cabíveis no âmbito do sistema criminal (a exemplo de penas restritivas de direitos, livramento condicional), ao traçar a possibilidade de aplicação de penas alternativas, em oposição a uma visão rígida e engessada de operacionalização deste sistema criminal.

Em suma, o detalhamento da operacionalização e da modulação na forma de se aplicar o instituto é campo a se adentrar em seguida à superação da barreira preconceitual acerca da possibilidade da sua consecução. Evidentemente, pode haver a regulação da aplicação em uma altimetria maior ou menor em proporção à gravidade e ao contexto do respectivo quadro fático. De qualquer sorte, aqui, é de se sedimentar a possibilidade de utilização da liberdade de atuação tanto da defesa quanto da acusação para se resolver determinada persecução penal, segundo o consenso legítimo dos atores processuais envolvidos a respeito do enquadramento normativo correlato, naturalmente pareado com o lastro fático existente.

Para além, o que não se pode perder do radar, como regra geral, é o fato de que os órgãos públicos responsáveis pelo acompanhamento da persecução criminal encontram-se verdadeiramente soterrados de casos oficializados em apuração, sem contar o considerável contingente estatístico das cifras negras (zona obscura, dark number, ciffre noir), que representam as infrações penais desconhecidas oficialmente, diante de um verdadeiro sem-número de tipos penais já criados no Brasil (em levantamento parcial, somou-se a quantidade de 1.529 tipos penais (MACHADO, MACHADO, 2008). A propósito, veja-se aqui, no contraste da persecução criminal com as cifras negras, que, apesar da manutenção de todo o formalismo e a burocracia do sistema criminal, já se desvela uma espécie de eleição de ocorrências e infratores a adentrar ao perímetro da persecução criminal. Não adianta, a artificialidade da narrativa da razão jurídica tem o seu limite ante a realidade material. Assim, se o sistema jurídico não buscar amoldar seus instrumentos, de forma previsível, com a realidade subjacente, esta revelará constantemente a artificialidade e, pior, a incongruência do sistema jurídico.

Do mesmo modo, à concatenação, é de se perceber, com efeito, que os processos podem durar meses e até anos. Não por menos, o relatório denominado Justiça em Números 2016 (ano-base 2015), divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, aponta, no âmbito do processo criminal no Juízo Comum, o tempo médio de três anos e três meses para julgamento em primeiro grau; nove meses para julgamento em segundo grau; e um ano e um mês nos Tribunais Superiores. De todo modo, apesar da louvável e importante referência, cumpre consignar aqui a natureza ainda embrionária do selo Justiça em Números, que reconhece o caráter inicial desse propósito de aprofundar o levantamento estatístico da demanda que chega ao Poder Judiciário, principalmente diante da alta variedade de parâmetros a serem considerados, incluindo os diversos ramos do Poder Judiciário. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2017).

Lado outro, em paralelo comparativo, é de se reconhecer que a aplicação do plea bargain possibilita a definição da persecução e da sanção penal de forma muito mais dinâmica e (por que não?) coerente também, considerando a natureza estritamente voluntária da medida, ao invés de se submeter a um longo curso processual burocrático, muitas vezes com a manutenção da prisão provisória ainda.

Nunca é demais reprisar, enfim, que a atuação da defesa técnica, seja pela advocacia, seja pela Defensoria Pública, sempre deverá consagrar a voluntariedade da aplicação da negociação do plea bargain, uma vez que não se concebe à acusação e nem mesmo ao órgão julgador a imposição desse instituto processual ao acusado sem a expressa e a voluntária concordância deste.

Vértice outro, a título de ilustração, vale observar que, em 1982, o Estado da Califórnia aprovou, em suas eleições, proposição que passou a restringir o uso do plea bargain, para vedar tecnicamente sua aplicação, em linhas gerais, em inquérito ou denúncia, que envolvessem crimes mais graves. Aqui, todavia, é oportuno abrir parêntese para salientar essa nuance técnica peculiar, esclarecendo que tal restrição normativa relacionava-se a dois momentos específicos do curso processual, nos Estados Unidos chamados de information (algo similar ao inquérito ou até mesmo à denúncia do Ministério Público como peça inicial da ação penal) e indictment (da mesma forma, similar a tais figuras, ou até mesmo a algo mais próximo ao momento do recebimento da denúncia). Pois bem, independente dessa filigrana designativa, cumpre realçar que, apesar de tudo isso, o que ocorreu foi que o plea bargain continuou a ser aplicado na Califórnia, em momentos processuais outros, que não a information ou o indictment, como, por exemplo, antes ou durante a audiência (BERMAN, 2017).

De todo modo, ao final, esse contexto situado na Califórnia demonstrou que a negociação do plea bargain era, de fato, importante e útil para a dinâmica do processo penal, notadamente para a defesa, que teria um espaço de atuação mais passível de ser controlado por si, ao poder negociar com a acusação, do que em comparação com a decisão do Júri ou até mesmo de um Juiz togado, que sempre contém boa dose de imprevisibilidade. Então, o que aconteceu foi que considerável movimento favorável à aplicação do plea bargain passou a pressionar pela revogação da vedação de sua aplicação (BERMAN, 2017).

2 A mudança de concepção vivenciada na América Latina e seus reflexos na experiência brasileira

De antemão, cabe salientar que a justiça consensuada é mais visivelmente praticada em países de primeiro mundo – como Inglaterra, Holanda, Estados Unidos, Áustria , Itália, Alemanha, França etc –, os quais estão norteados a uma sistemática de tutela jurisdicional desburocratizada. Por outro lado, percebe-se que em países sobretudo de terceiro mundo há maior resistência à negociação no provimento da justiça, eis que juristas, em geral, encontram-se doutrinados em uma linha principiológica formada na Idade Média (BARROS, 2017).

No tocante à justiça criminal, todavia, percebe-se na América Latina o início de uma tendência a processos céleres, dinâmicos, no contexto de uma administração pública gerencial, baseada na eficiência da prestação jurídica, sem desmerecimento de direitos.

No Uruguai, em especial, a partir do Novo Código de Processo Penal (URUGUAI, 2017), em vigor desde 1º de novembro de 2017, houve a consolidação do sistema penal acusatório, de modo a outorgar maior autonomia às estruturas estatais responsáveis pelo tratamento criminal, permitindo, inclusive, transação penal entre acusação e acusado, favorecendo a realização de procedimentos abreviados.

No Brasil, por sua vez, há também institutos similares ao que está em estudo, como a transação penal e a suspensão condicional do processo, nos termos da Lei 9.099/95 (BRASIL, 2017c), para as chamadas infrações penais de menor potencial ofensivo; e a colaboração premiada, nos termos da Lei 12.850/13 (BRASIL, 2017d), em casos de organizações criminosas.

Além disso, vislumbra-se uma abertura à prática do processo criminal consensual, com a edição da Resolução 181 do Conselho Nacional do Ministério Público (2017), que, segundo seu art. 18, prevê a possibilidade do Acordo de Não-Persecução Penal aos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, desde que o acusado confesse formal e detalhadamente a prática do crime e indique eventuais provas de seu cometimento, além de outros requisitos descritos nos arts. 18 e 19 da aludida disciplina.

A prática em voga concederá maior racionalidade ao sistema penal brasileiro, ao passo em que crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa poderão ser resolvidos mais rapidamente, mediante acordo – seguindo o exemplo de países de primeiro mundo.

Não bastasse o exposto, na futura reforma do Código de Processo Penal (Projeto de Lei 156/09) (BRASIL, 2017e), há previsão do procedimento sumário, com possibilidade de antecipação do juízo condenatório e negociação entre as partes. Com a nova medida, o Ministério Público e o acusado poderão requerer, antes da audiência de instrução do processo, a aplicação imediata da pena, inclusive privativa de liberdade, desde que haja confissão do réu.

Ao contorno, calha tracejar que o Anteprojeto do Código de Processo Penal não traduz propriamente o instrumento do plea bargain, eis que não há discricionariedade total da acusação, mas sim possibilidade regrada de transação. Nada obstante, o ato, em adendo, implica proximidade entre os modelos, em vista da exigência do reconhecimento da culpa e da aceitação da pena proposta ao acusado.

3 Constitucionalidade do Acordo de Não-Persecução Penal (arts. 18 e 19 da Resolução 181/17 do CNMP)

Neste tópico, cobra visualizar, primeiro, que, independente da própria previsão e da denominação do acordo de não-persecução no teor da resolução epigrafada, o Ministério Público, na condição de titular da ação penal (art. 129, I, da CF) (BRASIL, 2017b), poderia promover o arquivamento da investigação preliminar em diferentes hipóteses (excludentes de tipicidade, ilicitude, culpabilidade, punibilidade), conjugado com a aplicação do art. 28 do CPP (BRASIL, 2017a), artigo este também entrosado na aplicação do acordo de não-persecução penal fortalecido pela Resolução 181/17 do CNMP (CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2017). Em segundo ponto, compete, de fato, ao CNMP, zelar pela autonomia funcional da instituição (art. 130-A, § 2º, I, da CF) (BRASIL, 2017b), a qual, sem dúvidas, notadamente em um contexto de inflação legislativa criminal, deve albergar a definição de prioridades de política criminal e racionalização de sua atuação, dentro de uma visão deveras gerencial, em combinação com os influxos contemporâneos necessários à eficiência do serviço público, para além de uma ultrapassada e inoperante visão burocrática, que, no mais das vezes, limita-se a se desdobrar em sofismas tanto formais (falsos dilemas, falsas proposições pressupostas etc), quanto informais (argumentum ad hominem – abusivo e circunstancial –, ad misericordiam etc).

A avaliação da ocorrência de inconstitucionalidade na espécie leva em consideração a efetividade ou não da autonomia funcional do órgão ministerial. Cumpre realizar que ao Ministério Público seja assegurada autonomia funcional, incluindo definição de política criminal, além das autonomias administrativa e financeira (art. 127, §§ 2º e 3º, da CF) (BRASIL, 2017b).

Outrossim, para além da aplicação acrítica e superficial do art. 28 do CPP (BRASIL, 2017a), em atenção ao que ensinam Pacelli e Fischer (2014, p. 77), é de se refletir que sequer deveria competir ao juiz a avaliação da correção do juízo negativo de propositura da ação penal, a fim de preservar a própria imparcialidade do julgador. Logo, tem-se até que seria mais adequado o exercício de tal controle à instância revisora do parquet, não obstante a previsão da aplicação do art. 28 do CPP (BRASIL, 2017a) na resolução destacada (CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2017).

Conclusão

Como se colhe das coordenadas aqui alinhadas, apesar de haver no rol dos direitos fundamentais, isto é, aqueles definidos como mais importantes, da Constituição Federal, em seu art. 5º, LXXVIII (BRASIL, 2017b), a imposição do princípio da razoável e célere duração do processo, a nortear a tramitação dos casos levados à decisão judicial, de fato, parece que o brasileiro não se reconhece como capaz de traçar um mínimo resquício de previsibilidade de exercício do poder, assim como de solução dos seus problemas civilizatórios, por mais simples que sejam estes. Além disso, no mesmo sentido, outro princípio estimado no sistema jurídico em análise, é o da segurança jurídica, também inscrito constitucionalmente, no topo do art. 5º (BRASIL, 2017b), princípio este que traduz em seu significado justamente a proteção à confiança das pessoas na racional previsibilidade do exercício do poder, e a estabilidade das criações jurídicas.

Nesse sentido, pela análise trazida à tela do presente artigo, tem-se que o instrumento do plea bargain não contraria os objetivos do Direito Penal ou ainda do Direito Processual Penal, sobretudo em face também da Constituição Federal, haja vista que a justiça criminal consensual não mitiga a legalidade processual e não infringe direitos e garantias do acusado, considerando que a sua efetivação depende da aceitação deste, orientado por profissional habilitado (advogado privado ou membro da Defensoria Pública). Ademais, o pleito de barganha (ou o próprio acordo de não-persecução penal) contribui para a elevação da administração funcional da justiça, tornando-a desburocratizada, consistindo em verdadeiro fiel da balança entre o garantismo e o eficientismo do sistema criminal.

O horizonte vislumbrado a partir da Resolução 181 do Conselho Nacional do Ministério Público (2017), e também do Anteprojeto do Novo Código de Processo Penal (BRASIL, 2017e), a seus turnos, leva a crer que o sistema brasileiro inclusive já pavimenta e reitera o caminho para a consecução de respostas rápidas e eficientes à política criminal, sem prejuízo da garantia da racionalidade de sua aplicação, com a possibilidade de acordo entre o operador acusatório do Direito e o acusado, desde que confessada a prática delituosa de forma clara, consciente e desprovida de coerção, juntamente com a análise e a orientação da defesa.

Reforça-se, todavia, a necessidade da dogmática jurídica aperfeiçoar-se em convergência com a realidade social e econômica que envolve os brasileiros, no mundo real, buscando a sintonia entre a concepção teórica dos institutos jurídicos e a sua aplicação e efetividade concreta. Ao arranjo, é essencial ter em mente que meros discursos aparentemente benevolentes acabam por depreciar a visão dinâmica e eficiente dos recursos disponíveis, nublando, por mais óbvio que seja, o reconhecimento de que se alcança um distanciamento altamente nocivo entre teoria e concretude, o qual afeta todos os cidadãos e a credibilidade do sistema jurídico brasileiro.

Nesse patamar, o que se precisa, na verdade, é construir modelos bem elaborados teoricamente, sim, e, sobretudo, efetivos realmente, isto é, institutos jurídicos que funcionem e sejam confiáveis, para além do mero discurso. Logo, cabe perceber, ao tempo, a incumbência de concretizar as conquistas teóricas construídas pelos antepassados; e que se evite despencar no abismo existente entre teoria e prática. Afinal, pensa-se que essa busca seja, de fato, a realização da ciência, levada às fronteiras do conhecimento.

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

Eraldo Silveira Filho

Graduado em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense; Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera; Ex-servidor do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina; Defensor Público do Estado de Alagoas


Equipe Âmbito Jurídico

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