Resumo: O artigo aborda a aparente contradição entre o poder de polícia exercido pela Administração Pública, a chamada polícia administrativa, e a salvaguarda dos direitos humanos. Aborda inicialmente sobre a concepção de poder de polícia e a denominação polícia administrativa, para caracterizá-la como uma dimensão do exercício da função administrativa. A seguir distingue a supremacia geral da qual decorrem os atos de polícia, da supremacia especial, para em seguida enfatizar sua fundamentação e suas limitações, de forma que demonstra sua incidência sobre a concretização de direitos constitucionalmente garantidos. Finaliza verificando, em tese, a possibilidade de sua concretização em decorrência direta dos princípios fundamentais da república, em especial mencionando o princípio da dignidade da pessoa.
Palavras-chave: Administração Pública. Cidadania. Dignidade Humana. Direito Administrativo. Regime Jurídico-Administrativo.
Abstract: The article addresses the apparent contradiction between police power exercised by the Public Administration, the so-called administrative police, and the safeguarding of human rights. It deals initially with the concept of police power and the name of the administrative police, to characterize it as a dimension of the exercise of the administrative function. It then distinguishes the general supremacy from which the police acts, of the special supremacy, and then emphasize its foundation and its limitations, in a way that demonstrates its incidence on the realization of constitutionally guaranteed rights. It ends by verifying, in theory, the possibility of its realization in direct consequence of the fundamental principles of the republic, especially mentioning the principle of the dignity of the person.
Keywords: Public Administration. Citizenship. Human dignity. Administrative law. Legal-Administrative Regime.
Sumário: Introdução. 1. O poder de polícia como função administrativa. 1.1. Supremacia geral e supremacia especial. 1.2. Fundamentação e limitações do poder de polícia. 2. Discricionariedade, direitos fundamentais e polícia administrativa. Conclusão. Referências.
Introdução
No ordenamento jurídico brasileiro, a Administração é dotada de poderes e deveres administrativos, através dos quais a mesma trabalha para que os direitos individuais garantidos por este mesmo ordenamento jurídico estejam em consonância com o bem-estar social. É decorrência da submissão a um regime jurídico distinto do privado, ao qual nos referimos como regime jurídico-administrativo, o qual estabelece a desigualdade nas relações jurídicas por ele regidas visando a satisfação do interesse público. É por esta razão, a existência da obrigatoriedade de satisfação do interesse público a ser estabelecido pela lei que se pode falar em desigualdade em uma relação jurídica.
Se se pode falar e se aceita que existe uma desigualdade legal estabelecida, é necessário verificar como pode ser estabelecida tal desigualdade e como ela vai se concretizar na realidade fática. As teorias do direito administrativo têm demonstrado que a criação deste ramo do direito para regular as ações da Administração Pública, por força legal, estabelece alguns poderes, os quais são os responsáveis por essa visão e compreensão da desigualdade.
Dentre estes poderes administrativos tem eminente destaque o poder de polícia administrativa, através do qual a Administração exerce suas prerrogativas sobre as atividades dos particulares para que elas se adequem ou possam bem servir ao bem-estar social. Trata-se, portanto, de uma modalidade possível e legal de intervenção na atuação dos administrados visando a paz e o bem-estar da coletividade.
Este artigo busca fazer uma reflexão sobre esta atividade da Administração e verificar em que ponto pode impactar ou resguardar os direitos fundamentais estabelecidos constitucionalmente. Desta forma, inicialmente busca compreender o conceito de polícia administrativa dentro da ideia maior de poder de polícia para depois ingressar na sua colisão com os direitos fundamentais, a partir de um contexto de aparente afronta a direitos humanos e verificar as dimensões da interpretação jurídica do simbólico.
1 O poder de polícia como função administrativa
A compreensão acerca do poder de polícia gravita entre faculdade e prerrogativa disciplinar visando sempre o interesse público, a ser desempenhada pelo Estado, sob o manto da legalidade. Quando na esfera da Administração Pública, o poder de polícia é mais adequadamente denominado, como é exposto no decorrer deste artigo, polícia administrativa, já que seu exercício decorre sempre de previsão no ordenamento jurídico, seja em decorrência de regras ou princípios jurídicos. Segundo Hely Lopes Meirelles (2013, p. 139), “poder de polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”.
A conceituação de Justen Filho (2011, p. 567) guarda alguma semelhança ao afirmar que “o poder de polícia administrativa é a competência para disciplinar o exercício da autonomia privada para a realização de direitos fundamentais e da democracia, segundo os princípios da legalidade e da proporcionalidade”.
Seguindo os conceitos, verifica-se que o poder de polícia serve ao propósito de evitar que o uso da liberdade e da propriedade cause danos à coletividade, tal como instrui Bandeira de Mello (2013), ao afirmar que tais usos devem estar entrosados, ou seja, em consonância com a utilidade coletiva para não trazer obstáculos à efetivação dos objetivos públicos. Importante ressaltar que o Estado, embora reconheça e se preste a legitimar os interesses e necessidades dos particulares, não age de forma sistemática e contínua para provê-los através do poder de polícia; em suma, o poder é exercido quando a atividade particular demonstrar o risco e a capacidade de causar danos, sendo necessário então delimitá-la.
Esta delimitação necessária é referente ao uso da liberdade e da propriedade e não ao direito de propriedade e liberdade em si. Não há em nenhuma instancia do poder de polícia limitação a estes direitos, tal como se observa:
“[…] não há limitações administrativas ao direito de liberdade e ao direito de propriedade – é a brilhante observação de Alessi -, uma vez que estas simplesmente integram o desenho do próprio perfil do direito. São elas, na verdade, a fisionomia normativa dele. Há, isto sim, limitações à liberdade e à propriedade” (ALESSI apud BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 834).
Evidentemente que alguns direitos individuais já estão definidos e delimitados na legislação, no entanto, em outros casos cabe à Administração analisar no caso concreto a real extensão do direito visto que a lei não lhe deu uma forma precisa, deixando margem para tal. Ainda assim, a Administração não está restringindo ou limitando tais direitos, está apenas de modo concreto dando forma, delineando a realidade desses direitos adequando o seu gozo ao bem-estar social.
Esta limitação tão falada, geralmente se torna realidade através de um não fazer que a Administração exige do particular. Não há, entretanto, que se dizer que o poder de polícia é um poder negativo, pois embora esteja exigindo uma abstenção, o que por esse ponto seria visto como negativo, está se prestando a uma utilidade pública, ou seja, está ajudando a construir ou manter o bem-estar social, tendo então por este viés mais compreensivo um caráter positivo.
Importante ressaltar que o termo “limitar” é utilizado no conceito legal de poder de polícia contido na legislação, e no qual, se pode observar o caráter positivo através das várias razões exemplificadas. É o que dispõe o Código Tributário Nacional:
“Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos” (BRASIL, 2017a).
Ao discutir este mesmo poder de polícia, Bandeira de Mello (2013) leciona que o termo poder de polícia é uma expressão equivocada, pois engloba em um só lugar duas coisas muito distintas, submetidas a regimes inconciliáveis, que são as leis e os atos administrativos, ou seja, disposições superiores e providências subalternas. Isto já é, por si só perigoso, pois leva, algumas vezes, a reconhecer à Administração poderes que seriam inconcebíveis num Estado de Direito, dando a mesma uma autoridade que não possui, já que a Administração nada pode fazer senão atuar baseada nas leis que lhe confiram poderes para tal.
Outro ponto negativo ao termo, é que ele evoca uma concepção de poder anterior ao Estado de Direito, que é o Estado de Polícia. Ao evocar a ideia de estado de polícia, traz consigo a ideia de prerrogativas que antes existiam em prol do “príncipe” e que agora se passou ao Poder Executivo, ou seja, faz parecer haver uma naturalidade na existência de tais poderes pela Administração como se dela emanassem intrinsicamente, fruto de um abstrato “poder de polícia”.
Bandeira de Mello (2013) esclarece que na maioria dos países do continente europeu, esta matéria é tratada geralmente sob a alcunha de “limitações administrativas à liberdade e à propriedade” e não mais sob o rótulo de “poder de polícia”.
No mesmo sentido discorre Vitta (2010), ao dizer que na idade média, o monarca atuava arbitrariamente, ou seja, sem as limitações do Direito. Estas pessoas detinham poderes sem limites, absolutos. Entretanto, hoje, com o Estado Democrático de Direito toda a atividade estatal deve se fundar na ordem jurídica. É por isso que a ideia de um poder com este caráter não faz sentido atualmente, assim como ele cita a afirmação de Gordillo (apud VITTA, 2010) que diz que a expressão “poder de polícia” deveria ser excluída da seara do direito, podendo ser substituída por limites, ou condicionamentos, à propriedade e liberdade das pessoas em geral.
Apesar de toda esta rejeição, o termo continua usual e não pode ser ignorado, tal como coloca Bandeira de Mello (2013, p. 838): “embora nos pareça uma terminologia indesejável, ela persiste largamente utilizada entre nós, não se podendo, então, simplesmente desconhecê-la”.
Este termo, conforme já introduzido, tem uma acepção ampla na qual a competência do mesmo abrange tanto a competência legislativa quanto administrativa, sendo a primeira o ato de legislar sobre o exercício da liberdade e da propriedade e a segunda os atos administrativos que darão execução a estas normas. Em suma, em sentido amplo engloba tanto as leis condicionadoras da liberdade e da propriedade quanto os atos administrativos usados para dar concretude a tais normas. Mas falando em sentido estrito, significa falar apenas de atos administrativos, e este sentido pode ser resumido em outra locução, polícia administrativa.
1.1 Supremacia geral e supremacia especial
Os estudos apontam haver duas fontes de poder usadas pela Administração para intervir na liberdade e propriedade particulares. Uma advinda diretamente das leis de direito administrativo e outra advinda de relações específicas entre o poder público e o particular. É imprescindível fazer esta diferenciação porque apenas uma delas se enquadra no campo do poder de polícia.
Conforme dita Bandeira de Mello (2013, p. 839):
“[…] O poder expressável através da atividade de polícia administrativa é o que resulta de sua qualidade de executora das leis administrativas. É a contraface de seu dever de dar execução a estas leis. Para cumpri-lo não pode se passar de exercer autoridade – nos termos destas mesmas leis – indistintamente sobre todos os cidadãos que estejam sujeitos ao império destas leis. Daí a “supremacia geral” que lhe cabe” (Grifo do autor).
O ensinamento é claro e conforme continua a explanar, este poder exercido pela Administração ao desempenhar seus encargos de polícia administrativa repousa nesta chamada supremacia geral. Esta supremacia geral, no entanto, acaba sendo a própria supremacia das leis em geral, que aqui serão concretizadas pelos atos praticados pela administração.
Distinta desta supremacia geral, é a chamada supremacia especial, que só entra em voga quando existem vínculos específicos firmados entre o Poder Público e determinados indivíduos. Por isso a distinção, pois as manifestações da Administração neste sentido, embora sejam limitadoras da liberdade, se fundam em um título jurídico especial, que relaciona ela com o terceiro, não podendo ser confundidas com a polícia administrativa aqui discutida.
Esta distinção, no entanto, conforme leciona o mesmo autor, é discutida na doutrina alemã, bem como nas doutrinas italiana e espanhola, mas ignorada muitas vezes pela doutrina brasileira, e de acordo como tal, a administração pública quando fundada em supremacia geral não teria poderes emanados senão diretamente da lei, e em contrapartida quando estivesse assentada em uma relação específica esta os poderia conferir poderes que não estariam necessariamente assentados diretamente na legislação.
Claramente a supremacia especial toma importância quando se percebe a existência de relações específicas ocorrendo entre o Estado e o particular, conforme Otto Mayer (apud BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 841):
“[…] é inequivocadamente reconhecível a existência de relações especiais intercorrendo entre o Estado e um círculo de pessoas que nelas se inserem, de maneira a compor situação jurídica muito diversa da que atina à generalidade das pessoas, e que demandam poderes específicos, exercitáveis, dentro de certos limites, pela própria Administração. Para ficar em exemplos simplicíssimos e habitualmente referidos: é diferente a situação do servidor público, em relação ao Estado, da situação das demais pessoas que com ele não travaram tal vínculo; é diferente, em relação à determinada Escola ou Faculdade pública, a situação dos que nela estão matriculados e o dos demais sujeitos que não entretém vínculo algum com as sobreditas instituições; é diferente a situação dos internados em hospitais públicos, em asilos ou mesmo em estabelecimentos penais, daqueloutra das demais pessoas alheias às referidas relações; é diferente, ainda, a situação dos inscritos em uma biblioteca pública circulante, por exemplo, daquela dos cidadãos que não frequentam e não se incluem entre seus usuários que não a frequentam e nãos e incluem entre seus usuários por jamais haverem se interessado em matricular-se nela”. (Grifo do autor).
Obviamente, levando em consideração o exposto, tais relações de sujeição especial não têm enquadramento junto do poder de polícia, aquele poder de polícia encarregado das limitações administrativas à liberdade e à propriedade aplicáveis a toda a sociedade.
1.2 Fundamentação e limitações do poder de polícia
Segundo Bandeira de Mello (2013) poder de polícia possui sua razão assentada sobre o interesse social, mas em seu contorno jurídico. E seu fundamento é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, é este princípio que autoriza que a Administração tenha superioridade sobre os administrados. No entanto, esta mesma predominância do interesse público apenas persiste enquanto, ou quando, houver interesse da coletividade. É possível compreender que o próprio fundamento do poder de polícia traz no seu bojo sua principal limitação.
Meirelles (2013) leciona que o poder de polícia tem seus limites demarcados pela conciliação do interesse social com os direitos individuais assegurados na Constituição da República (BRASIL, 2017b). Afirma que o poder de polícia procura o equilíbrio entre o gozo dos direitos individuais e os interesses da coletividade:
“[…] Os Estados Democráticos, como o nosso, inspiram-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana. Daí o equilíbrio a ser procurado entre a fruição dos direitos de cada um e os interesses da coletividade, em favor do bem comum” (MEIRELLES, 2013, p. 143-144).
Na visão de Justen Filho (2011) os limites do poder de polícia estão na lei e no princípio da proporcionalidade. Desta forma as restrições e imposições autorizadas pela lei deverão ser determinadas para cada caso concreto levando em consideração o princípio da proporcionalidade. No caso de uma sanção, por exemplo, “o sancionamento ao infrator deve ser compatível com a gravidade e a reprobabilidade da infração. São inconstitucionais os preceitos normativos que imponham sanções excessivamente graves” (JUSTEN FILHO, 2011, p. 589).
Demonstrando com um exemplo mais concreto, a questão da limitação administrativa da liberdade, a mesma tem como regra não gerar indenização, pois conforme já discutido, não se trata de uma extinção do direito, mas tão somente uma adequação pela Administração Pública, através da adequação deste direito, ao interesse público. Sendo assim, a regra é que no exercício da polícia administrativa a limitação da liberdade não gera direito a indenização. No entanto, há certos padrões, pois se as limitações acabarem produzindo efeitos exagerados ocorre a chamada desnaturação da limitação.
A desnaturação ocorre quando a medida adotada pela administração impuser tal limitação que vede absolutamente sua fruição ou retire seu conteúdo econômico. Neste caso, acabou-se por distorcer o ato administrativo fundamentado no poder de polícia, aspecto que pode significar a invalidade desde ato praticado ou a necessidade de indenização ao particular atingido. Um importante ponto que coloca o autor é que “o vínculo entre a limitação e a satisfação de interesses coletivos não afasta o eventual direito à indenização em prol do particular” (JUSTEN FILHO, 2011, p. 596), já que aparentemente estará ocorrendo a sua desnaturação por estar a Administração se negligenciando do princípio da proporcionalidade.
Bandeira de Mello (2013) também leciona sobre o princípio e acaba por afirmar que, a finalidade legal para a qual foi instituída a medida de polícia a ser tomada pela Administração, é o limite.
“[…] é preciso que a Administração se comporte com extrema cautela, nunca se servindo de meios mais enérgicos que os necessários à obtenção do resultado pretendido pela lei, sob pena de vício jurídico que acarretará responsabilidade da Administração. Importa que haja proporcionalidade entre a medida adotada e a finalidade legal a ser atingida” (BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 859, grifo do autor).
Sobre o uso da coação pelo poder público, esclarece o autor que, qualquer coação que venha a exceder o estritamente necessário à obtenção do efeito jurídico licitamente desejado pela administração pública é injurídica. Logo, se a medida coativa for de intensidade maior que a necessária para a compulsão do obrigado ou se a extensão desta medida ultrapassar o necessário para a obtenção dos resultados licitamente pretendidos, estará além das fronteiras do permitido e não terá validade jurídica. Neste sentido, a coação pelo poder público só pode ser exercitada se não houver outro meio capaz de produzir o resultado necessário, bem como, que a execução destes meios ou medidas deve ser compatível e proporcional ao resultado pretendido através do poder de polícia.
2 Discricionariedade, direitos fundamentais e polícia administrativa
As limitações administrativas impostas pelo poder de polícia, segundo Meirelles (2013), têm como atributo a discricionariedade. Para o autor, o poder de polícia é, em princípio, discricionário, de forma que a discricionariedade reside na valoração das atividades policiadas e na graduação das sanções aplicáveis aos infratores. Em resumo, segundo seu entendimento, o poder de polícia é discricionário mas passará a ser vinculado se a lei estabelecer o modo e a forma de sua realização.
Justen Filho (2011), no entanto, defende que não se pode afirmar que o poder de polícia seja discricionário visto que não existe essa categoria de poder discricionário. Afirma ele que o que há são competências administrativas disciplinadas em lei, mas as quais podem contemplar um certo grau de discricionariedade.
De forma semelhante defende Bandeira de Mello (2013), afirmando que não há na Administração Pública poder, propriamente dito, discricionário, em vez disso, existem atos nos quais Administração Pública irá desfrutar de uma competência discricionária e outros atos que serão totalmente vinculados, sem margem para manobra.
Neste sentido, resta claro afirmar então que o poder de polícia não é por si só um poder discricionário, mas nos atos por ele emanados podem existir certa discricionariedade. Isto se deve basicamente a dois motivos, conforme leciona Justen Filho (2011): o primeiro deles é a impossibilidade material de a lei conseguir exaurir a matérias das limitações às liberdades, até porque deve-se analisar as circunstâncias de cada caso. A lei, então, dará os moldes delimitadores para as decisões da Administração, pois, “um regime democrático exige que a solução para o exercício da liberdade seja proporcionada às circunstâncias concretas” (Justen Filho, 2011, p. 576).
O outro motivo é o surgimento de situações novas, não previstas na lei. A própria liberdade dos indivíduos de agir, de ir e vir, de negociar, propiciam o aparecimento de novas e atividades e consequentemente de novas situações do interesse do poder de polícia. No entanto, tal situação nova, imprevista, não significa que não estarão sob a vigilância da administração, nem significa que fica impossibilitada a aplicação do poder de polícia. Mesmo com esta aparente falta de regulação da matéria o poder de polícia poderá ser aplicado nas novas manifestações de liberdade tendo em vista os princípios jurídicos fundamentais.
Justen Filho (2011) traz como exemplo um caso discutido nas cortes francesas que ficou conhecido como “caso do arremesso de anões”, pois segundo relato dos fatos, uma discoteca promovia uma espécie de competição, arremesso de anões a distância, na qual, obviamente, se arremessavam pessoas com nanismo como parte do jogo de entretenimento. Não havia, no caso, riscos a integridade física dos anões e eles se voluntariavam para participar da atividade em troca de remuneração.
O município (Comuna de Morsang-sur-Orge) proibiu tal prática invocando para tal o poder de polícia. A proibição de polícia decorreu do fato que a prática foi considerada contrária à dignidade humana. O próprio anão, Manuel Wackenheim, recorreu ao Tribunal Administrativo de Versailles, sob os argumentos de que ao ser “arremessado”, receber pagamentos e conviver com as pessoas foi o único momento em que sua vida teve sentido. Por isso, embora em princípio a prática fosse vista como afronta à dignidade humana, na prática o anão não se sentia discriminado e estava feliz com ela, obtendo a anulação da decisão da Comuna de Morsang-sur-Orge. A Comuna recorreu ao Conselho de Estado, mais alto Tribunal administrativo da França, O debate buscou esclarecer o que seria admissível como motivo para uma autoridade administrativa, através do exercício da polícia administrativa, proibir atividades por questões de ordem pública e moralidade pública. O Conselho de Estado, entretanto, considerou que a decisão administrativa, mesmo sem ter lei que proibisse o arremesso de anões, tinha lastro de legalidade, fundamentada que estava nos direitos fundamentais da pessoa. (CONSEIL D’ETAT, 2017).
O Conselho de Estado reformou a decisão considerando, entre outros argumentos, que pertence à autoridade municipal investida de polícia administrativa o poder para tomar quaisquer medidas para prevenir e violação de ordem pública, considerando que o respeito pela dignidade da pessoa humana é um dos componentes da ordem pública. Considerou, ainda, que ao utilizar como projétil uma pessoa com deficiência física a atração atinge a dignidade da pessoa humana, estando amparada a decisão administrativa mesmo quando a medida tenha sido tomada para garantir a segurança da pessoa embora com seu consentimento e mediante remuneração. A decisão do Conselho de Estado foi fundamentada no artigo 3º da Convenção Europeia sobre a proteção de direitos humanos e liberdades fundamentais (CONSEIL D’ETAT, 2017).
Manuel Wackenheim recorreu ao Comitê de Direitos Humanos da ONU contra a decisão do Conselho do Estado para anular a decisão do Conselho de Estado. O Comitê de Direitos Humanos da ONU, entretanto, manifestou o entendimento de que a proibição de lançamento de anões não é abusiva, mas necessária para proteger a ordem pública, incluindo considerações sobre a dignidade humana, razão pela qual a proibição não poderia ser considerada discriminatória (ONU, 2017).
Este caso, embora tendo ocorrido na França, é ilustrativo para o estudo dos limites do exercício da atribuição de polícia administrativa no Brasil. Fica evidente que após a manutenção, pelo comitê de direitos Humanos da ONU, da decisão proferida pelo Conselho de Estado Francês, esta passa a ser uma referência no âmbito da proteção dos direitos humanos. Dela decorre o reconhecimento da legitimidade do ato municipal de polícia orientado à proteção da dignidade da pessoa humana, mesmo que pautado diretamente de princípio fundamental da república.
Sobre tal exemplo afirma ele:
“[…] É evidente que nenhuma lei dispõe expressamente sobre essa hipótese. Invocar o poder de polícia para proibir a atividade não equivale a reconhecer que a Administração Pública pode atuar sem vínculo a uma lei. Aplicam-se os princípios gerais e as regras legislativas que proíbem a exploração do ser humano para fins comerciais, com sua transformação em objeto e a violação do respeito decorrente da condição humana” (Justen Filho, 2011, p. 577).
Esta hipótese mostra que o gatilho ativador do poder de polícia é o interesse público, da coletividade, independentemente de haver prévia legislação específica sobre o caso concreto. É evidente que que no caso do direito administrativo brasileiro entende-se, em tese, que todo e qualquer ato administrativo deva decorrer da lei, ou seja, deve existir regulamentação legal da Constituição para a execução administrativa. Todavia, neste caso concreto se colocou a dignidade da pessoa humana como móvel para a emissão do ato, entendo a Corte recursal que haveria o lastro da legalidade no caso concreto.
Esta atitude do poder público, entretanto, deve ser cuidadosamente baseada nos princípios fundamentais para que a discricionariedade não se torne arbitrariedade e acabe por extrapolar os limites do poder de polícia.
Conclusão
A exposição demonstra que a previsão da atribuição de polícia administrativa, mesmo que represente uma forma de reprimenda ao exercício das liberdades, tem amparo legal pela sua previsão no próprio regime jurídico-administrativo, de forma que a ação da Administração Pública fica, em tese, ampara para a utilização imperativa da força quando for necessário à salvaguarda dos interesses públicos. Isso é razoável em razão de que sem a autorização legal de uso da força, seria praticamente impossível o próprio resguardo do interesse público concreto.
A questão, entretanto, depende da análise de algumas questões para autorizar o uso destas prerrogativas. Tais prerrogativas dependem da autorização legal, as quais, em regra, devem ser expressas. Todavia, existem entendimentos nos quais pode-se defender o uso da discricionariedade administrativa, casos em que, por exemplo, a autorização estaria implícita nos próprios princípios fundamentais que resguardam os direitos fundamentais do cidadão.
Embora não se tenha aprofundado o tema a ponto de discutir a questão da legalidade da ação no direito administrativo brasileiro, analisando o caso do “arremesso de anões” verificou-se que é defensável a ideia de que em temas que digam respeito à salvaguarda de direitos fundamentais é pertinente a defesa de que a atribuição de polícia pode ser exercida por se considerar a ofensa aos direitos fundamentais.
Nesta linha, em tese existe a possibilidade de exercício da polícia administrativa em decorrência direta dos princípios fundamentais da república, em especial quando mencionado o princípio da dignidade da pessoa humana.
Acadêmico de Direito na UNIJUÍ
Doutorando e Mestre em Educação nas Ciências Unijuí; Especialista em Direito Tributário Unisul; Graduado em Direito e Administração Unijuí; Professor do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí.
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