Resumo: A inclusão do Município como ente efetivo da Federação Brasileira, trouxe em seu dorso as prerrogativas de autonomia deste ente. Possuindo, entre outros caracteres, autonomia administrativa, pode o Município promover atos de força específicos do Poder Público. Pode utilizar, pois, para atingir o fim do Estado, das prerrogativas da Administração Pública inclusive do Poder de Polícia, devendo condicionar os interesses particulares, notadamente liberdade e propriedade, a fim de proteger os interesses coletivos em virtude de sua supremacia. De forma específica, deve ser responsável por promover no âmbito local a efetivação da Função Social da Propriedade Urbana, de acordo com os preceitos de desenvolvimento constantes no Plano Diretor Municipal. Possuindo competência privativa para promover a adequada ordenação do território urbano, tem o dever-poder de intervir neste direito individual do cidadão de acordo com critérios e formas específicos, atendendo principalmente ao Princípio da Legalidade.
Palavras-Chave: Poder de Polícia. Direito Municipal. Função Social da Propriedade.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal Brasileira, promulgada em 1988, elegeu como forma de governo de nosso Estado o sistema do Federalismo, porém trazendo à baila uma peculiaridade que tornou nossa federação um exemplo sui generis: a elevação do Município ao patamar de ente federativo, juntamente com a União, os Estados e o Distrito Federal. Apesar de alguns doutrinadores constitucionalistas acreditarem que a Comuna é ente dispensável e não precisaria ser parte da Federação, como coloca de forma bastante incisiva o mestre José Afonso da Silva (2007, pág. 475), entendemos, com apoio de boa parte da doutrina Administrativa (Hely Lopes Meirelles, Nelson Nery Costa, Celso Ribeiro de Bastos) que, apesar de não participar efetivamente das decisões federais, o Município é peça essencial e constitui o braço local do Estado Brasileiro, visto que, dotado de tríplice autonomia (administrativa, política e financeira) deve promover a aplicação direta dos preceitos arraigados na Constituição Federal (CF) com vistas a garantir à população de seu território a pacificação e ordem social de acordo com o Estado Democrático de Direito vigente.
Deste modo, como os demais entes federativos, possui o Município as mesmas prerrogativas de Administração Pública, inclusive a faculdade de aplicação do Poder de Polícia tendo por objetivo garantir a supremacia do interesse público frente ao individual, condicionando e limitando a liberdade e a propriedade dos administrados. Com base em ramos diversos do Direito, como o Constitucional, o Administrativo, o Municipal e o Urbanístico, trataremos neste artigo de forma mais específica, sobre a intervenção do Município na propriedade particular urbana, que busca, através dos instrumentos legais decorrentes do poder de polícia, a efetivação da Função Social da Propriedade em consonância com os preceitos constitucionais, com o Estatuto da Cidade (Lei 10. 257/2001) e de forma local com as diretrizes constantes no Plano Diretor do Município. O presente trabalho se inicia com uma curta apresentação da posição do Município no federalismo brasileiro, passando a discorrer de forma geral e didática sobre o Poder de Polícia e por fim focando sobre a intervenção do Município sobre a propriedade urbana.
2. O MUNICÍPIO NO FEDERALISMO BRASILEIRO
A forma de Estado adotada pelo Brasil, através da Constituição Federal, foi a organização fundada nos entes federativos, a chamada Federação, composta em nosso ordenamento por: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. O Estado Federal pressupõe uma repartição do poder soberano do Estado entre os entes coletivos que o compõem. Assim incidem sobre um mesmo território e uma mesma população várias ordens governamentais, representadas por pessoas jurídicas de Direito Público Interno. Porém, essa múltipla incidência só é possível a partir de uma rígida divisão de competências.
Na nossa federação a soberania do Estado é representada, tanto interna quanto externamente pela União, enquanto que os Estados-Membros e os Municípios receberam os caracteres da autonomia, ou seja, parcelas da soberania interna da União, através da outorga pela Constituição Federal de poderes políticos e administrativos necessários para sua gestão própria. Esse é o traço essencial inerente aos entes federativos: autonomia, palavra de origem grega (autonomia) que segundo Nelson Nery Costa (2006, p.116) significa “o direito de se reger por suas próprias leis (nomos), sendo a exteriorização do poder de uma comunidade de se auto-organizar”, ou como disse de forma um pouco mais sucinta e objetiva o mestre Hely Lopes Meirelles (2007, p. 90) seria “a administração própria daquilo que lhe é próprio”.
Nesse contexto, o federalismo brasileiro possui duas espécies de autonomia, a estadual, inerente à teoria geral do federalismo, e a municipal, traço peculiar do federalismo brasileiro, mais restrita que aquela já que não possui Poder Judiciário próprio e nem tampouco participa das decisões dos órgãos federais. Porém, apesar de não possuir autonomia ampla, o Município encontra-se em posição de igualdade com os demais entes e é parte essencial do federalismo pátrio, ao contrário do que propõe José Afonso da Silva[1]. Assim, a autonomia municipal não constitui, como podem pensar alguns desavisados, uma mera delegação por parte do Estado-Membro, antes é uma faculdade política reconhecida pela Constituição Federal e que não pode ser modificada ou ampliada. Pode porém, o Estado-Membro, delegar outras atribuições ao Município através de lei específica.
Entende-se assim, que a autonomia municipal é composta de duas ordens de atribuições, uma de origem constitucional federal, com disposições imutáveis e irredutíveis, e outra oriunda de concessão do Estado-Membro, que pode as ampliar, restringir ou extinguir, retornando ao status quo ante. As primeiras constituem conforme lição de Meirelles Teixeira, citado por Hely Lopes Meirelles[2]: “verdadeiro direito público subjetivo, oponível ao próprio Estado (União), sendo inconstitucionais as leis que, de qualquer modo, o atingirem em sua essência”. Assim percebemos que na utilização das atribuições constitucionais não há hierarquia, prevalência de lei federal ou estadual sobre a municipal. Ou seja, o Município não é submisso à União ou ao Estado-Membro, exceto em caso de competências concorrentes, onde a lei municipal cede à estadual e esta à federal. Tal constatação decorre até mesmo do princípio constitucional da Independência e Harmonia dos Poderes (art. 2º da Carta Magna), que se refere não só à relação entre Executivo, Legislativo e Judiciário, mas também à divisão de competências dos entes federativos.
Possuindo autonomia política (poderes de autogoverno, autolegislação e auto-organização), autonomia administrativa (administração própria para criar, manter e prestar serviços públicos) e autonomia financeira (poder de legislar, arrecadar e aplicar os tributos), o Município no federalismo brasileiro adquire, do ponto de vista jurídico, duas conceituações: é pessoa jurídica de direito público interno, com capacidade civil plena, podendo exercer direitos, contrair obrigações e ser responsável pos seus atos e de seus agentes; e também é entidade político-administativa estatal exercendo as atribuições de Administração Local. A autonomia administrativa, faceta mais importante para os objetivos deste trabalho, se traduz de forma geral na gestão dos negócios de interesse local, expressão que deve ser bem compreendida para delimitar a área de atuação do município.
A atuação administrativa do Município se reveste de seu caractere de ente estatal, investido de Poder Público, “imperium”, inerente e necessário ao exercício de suas competências administrativas. Suas competências são regradas pelo sentido de interesse local, tanto no que se refere à enumeração constitucional de suas competências privativas, quanto no que diz respeito às matérias concorrentes com os outros entes e ainda no que se refere ao dever-poder de ação que o Município possui nas matérias em que não há vedação de sua atuação. Compreende-se por interesse local não só aquele que é exclusivo do Município ou de interesse privativo de seus habitantes, até por que como parte do País os interesses do Município se refletem no Estado e também no âmbito nacional. Antes, o que define o interesse local é a predominância do interesse do Município sobre o do Estado e da União, independente do interesse indireto destes, conforme discorre o professor Sampaio Dória citado por Hely Lopes Meirelles (2007, grifo do autor):
“O entrelaçamento dos interesses dos Municípios com os interesses dos Estados e com os interesses da Nação, decorre da natureza mesma das coisas. O que os diferencia é a predominância, e não a exclusividade.”
Isto posto, temos como competência privativa de atuação administrativa do Município, as matérias dispostas no artigo 30 da Constituição Federal, e ainda como competência comum com os demais entes as dispostas no artigo 23, da CF, desde que estejam de acordo com o interesse local.
E é exatamente no contexto da autonomia administrativa do Município, que se embasa diretamente nas autonomias política e financeira, que se encontra o tema deste trabalho. Considerando que o Município é ente estatal, pessoa jurídica de direito público interno, investido de Poder Público possui como os demais entes, o poder-dever de agir em prol do interesse público, utilizando-se para isso das prerrogativas da Administração Pública, podendo e devendo inclusive condicionar os interesses particulares a fim de proteger os interesses coletivos a partir de critérios de oportunidade e conveniência sendo, porém, subordinado aos princípios do Direito Administrativo, principalmente o da Legalidade.
3. PODER DE POLÍCIA MUNICIPAL
O Poder de Polícia constitui um poder administrativo que pode ser praticado por qualquer dos entes da Administração Pública (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) conforme a necessidade de suas funções e de acordo com o seu rol de competências. Constitui para alguns doutrinadores uma faculdade que a Administração possui para “condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado” (MEIRELLES, 2007, p.469), porém acreditamos que, enquanto atividade administrativa é na verdade um poder-dever que vincula sua vontade aos interesses públicos que deve proteger e promover[3]. De qualquer modo, já possui conceito positivado em nossa legislação, podendo citar de forma emblemática o disposto no Código Tributário Nacional:
“Art. 78. Considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”. (MEIRELLES, ob. cit., p. 471)
Em sentido amplo, Poder de Polícia significa qualquer ação restritiva do Estado em relação aos direitos individuais do administrado, comportando tanto os atos normativos do Legislativo quanto as ações concretas do Executivo, já em sentido estrito, constituiria a atividade administrativa que representa verdadeira prerrogativa conferida aos seus agentes para restringir e condicionar a liberdade e a propriedade[4]. Cabe aqui uma distinção entre a polícia administrativa, da qual trata este artigo, e a polícia judiciária, sendo ambas dotadas de Poder de Polícia. Há quem as diferencie alegando que aquela tem caráter preventivo e esta caráter repressivo, o que não é de todo correto visto que a polícia administrativa também pode agir de forma repressiva, através de sanções. O que realmente diferencia uma da outra é o fato de que a polícia administrativa atua sobre bens, direitos e atividades dos administrados, cuidando de ilícitos administrativos, enquanto que a polícia judiciária prepara a atuação jurisdicional, atuando sobre o indivíduo em si mesmo, prevenindo e reprimindo ilícitos penais.
Possui como razão de sua existência a necessidade de proteger o interesse social, inerente à função administrativa e ao próprio conceito de Estado Democrático, e como fundamento maior a supremacia do interesse público sobre o particular, revelada na Constituição e nas normas infraconstitucionais e princípio fundamental do regime jurídico-administrativo. É essa mesma a sua finalidade a de proteção do interesse coletivo mais amplo, de forma que a lei autoriza uma medida restritiva e condicionadora dos interesses individuais que possam afetar a coletividade. Possui como atributos fundamentais a discricionariedade, a auto-executoriedade e a coercibilidade. O caractere de discricionariedade é expresso na liberdade de escolha que a Administração possui, segundo critérios de oportunidade e conveniência, para exercer o poder de polícia e aplicar os meios necessários para efetivar a proteção do interesse público. Deve-se ponderar, porém, que o exercício desta discricionariedade só é legítimo se o ato estiver nos limites legais, e a autoridade se mantenha na faixa de opção que lhe é atribuída, e quanto à prática das sanções, devem ser ainda considerados os critérios de proporcionalidade e correspondência com a infração (MEIRELLES, 2007). Deve-se levar ainda que, apesar de ser em princípio discricionário, o poder de polícia pode conter atos vinculados, o que se observa, por exemplo, no caso de emissão de alvará de licença (que deve ser concedido na medida em que forem preenchidos os requisitos necessários para tanto).
A auto-executoriedade constitui a prerrogativa que a Administração possui para decidir os atos cabíveis e colocá-los em prática sem a necessidade de manifestação judicial. Sendo o ato passível de ação do poder de polícia, dentro dos pressupostos legais, a Administração pode praticá-lo diretamente. Deve-se considerar, porém que há atos investidos de poder de polícia que não podem ter aplicação imediata, como no caso de sanções (multa), onde só pode ocorrer depois de decorrido o processo administrativo correspondente e a cobrança através de ação judicial pertinente, exceto nos casos de urgência que põem em risco a segurança ou a saúde pública, e nos casos de claro flagrante. O atributo da coercibilidade decorre diretamente do ius imperii que gera a prerrogativa do poder de polícia. Demonstra assim o grau de imperatividade dos atos de polícia, admitindo o emprego da força pública para o seu devido cumprimento, independente de decisão judicial.
A polícia administrativa atua de forma preferentemente preventiva, emitindo atos normativos de natureza condicionadora e limitadora, com conteúdo genérico, abstrato e impessoal, estabelecendo as chamadas limitações administrativas. Fixa assim as condições e requisitos que devem nortear a atividade a ser policiada e estabelecem os critérios a serem utilizados no ato concreto (alvará, fiscalização). Além de atuar concretamente por meio do alvará, que promove a autorização para a prática de ato ou atividade que depende do policiamento administrativo, e por meio da fiscalização, que busca averiguar se a atividade autorizada está fluindo de acordo com os ditames legais, pode a Administração aplicar sanções, elementos de coação e intimidação que visam à efetivação do policiamento em questão, demonstrando assim o caráter repressivo que tal poder pode assumir. A atuação da polícia administrativa está condicionada pelos requisitos de validade inerentes a qualquer ato administrativo, quais sejam: a competência, a finalidade e a forma, e ainda, quanto à aplicação das sanções, à proporcionalidade (correspondência entre a infração e o ato repressivo) e à legalidade dos meios empregados para sua efetivação.
No que se refere a este trabalho a competência para os atos de polícia administrativa constitui uma das condições de validade primordiais para a atuação do Município. De forma geral, o exercício do poder de polícia compete à pessoa federativa designada para regular a matéria, nos moldes do sistema de enumeração traçado na Constituição Federal, assim os assuntos de interesse nacional são regulados e policiados pela União, da mesma forma que os referentes ao interesse regional o são pelo Estado e os assuntos de interesse local se sujeitam ao policiamento administrativo municipal. Isto posto, percebemos que cabe ao município regular todas as atividades que afetem direta ou indiretamente a coletividade de seu território, conforme a definição de interesse local já referida em tópico anterior, de forma prática esse policiamento se direciona principalmente ao ordenamento da cidade, devido à sua maior concentração populacional e o maior número de conflitos entre a Administração e os administrados. Apenas a título exemplificativo, visto que não poderemos apreciar todos os setores em que atua o poder de polícia municipal, citamos os principais: polícia sanitária, polícia das águas, polícia da atmosfera, polícia das plantas e animais nocivos, polícia das construções, polícia dos logradouros públicos, polícia dos pesos e medidas, polícia das atividades urbanas em geral (MEIRELLES, 2007; COSTA, 2006).
4. INTERVENÇÃO DO MUNICÍPIO SOBRE A PROPRIEDADE URBANA
O direito à propriedade constitui na Carta Magna vigente, conforme os dizeres do professor Vladimir França (1999), uma “garantia inviolável do indivíduo” o que não significa porém, que não possa ser limitado ou restringido. Na realidade de acordo com a evolução do Estado Moderno, atualmente o exercício de tal direito privado está diretamente condicionado ao princípio maior da Função Social da Propriedade, como dispõem os incisos XXII e XXIII, do art. 5º da Constituição Federal:
“XXII – É garantido o direito de propriedade;
XXIII – A propriedade atenderá a sua função social.”
Sendo elevada ao patamar de princípio constitucional fundamental, a Função Social da Propriedade vincula não só a conduta do indivíduo como também a do Estado[5].
Isto posto, considera-se que a limitação e condicionamento da propriedade ao princípio da Função Social expressam diretamente área de atuação do poder de polícia. Poder este que não pode mais ser considerado apenas como negativo, impondo somente obrigações de não fazer, mas, a partir da ampliação de seu conteúdo e extensão verificada principalmente nos últimos dois séculos, adequa-se à sua aplicação a imposição de obrigações de fazer e deixar de fazer, quanto à regulamentação da propriedade privada. Visto que a função social da propriedade engloba limitações referentes a vários âmbitos de incidência, necessita de ação estatal também no que se refere a obrigações de fazer ou seja, impondo o dever de utilizar o bem em conformidade com o ordenamento pátrio. Considerando que o poder de polícia constitui atuação da Administração limitando a propriedade do administrado com vistas à consecução e proteção do interesse público, não podemos negar que ele está presente na intervenção do Estado sobre a propriedade privada.
Percebe-se assim que a possibilidade de intervenção do Estado na propriedade encontra seu fundamento maior, do mesmo modo que a prerrogativa do poder de polícia, na supremacia do interesse público sobre o privado, mas também deve ser norteada pelo atendimento ao princípio da Função Social da Propriedade. É a supremacia que possui o Estado sobre o indivíduo, em relação vertical, que possibilita a restrição e condicionamento do uso e gozo da propriedade pelo seu dominus, e de forma paralela a intervenção só pode existir quando a propriedade não estiver de acordo com a disposição constitucional. Este princípio não busca aniquilar o direito individual à propriedade, como podem supor alguns desavisados, na verdade esse direito é inviolável, constituindo um dos pilares de nossa ordem econômica (art. 170, inciso II, CF), porém deve estar condicionado ao atendimento de sua função social. Busca-se assim, segundo os dizeres do mestre Celso Ribeiro de Bastos, citado por José dos Santos Carvalho Filho (2005) “recolocar a propriedade na sua trilha normal”, adequando-a aos ditames da justiça social que regem a constituição pátria vigente e buscando conciliar os interesses privados com os coletivos, apenas dando primazia aos últimos em caso de conflito.
Para atingir os fins do interesse público, que são diversos e presentes em várias áreas da atividade humana, o Estado possui algumas modalidades de intervenção na propriedade. Para José dos Santos Carvalho Filho[6] essas modalidades podem ser divididas em duas espécies básicas, de acordo com sua natureza e efeitos: a intervenção restritiva, englobando a servidão administrativa, a requisição, a ocupação temporária, as limitações administrativas em sentido estrito e o tombamento, e a intervenção supressiva, que seria referente à desapropriação, onde o Estado, valendo-se de sua supremacia transfere para si a propriedade de terceiro com base em interesse público, arcando com o dever de indenizar o particular. Para os doutrinadores que consideram o poder de polícia apenas em seu sentido negativo, apenas as limitações administrativas constituiriam forma de efetivo poder de polícia[7]. Porém, concordando com Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2007) acreditamos que a partir da ampliação do conceito de poder de polícia o dever de utilização do bem está presente na nova concepção vigente, o que englobaria também as outras formas de intervenção, visto que também constituem limitação ao direito de propriedade com vistas à satisfação do interesse público.
Constituindo o princípio da função social da propriedade conceito jurídico aberto, a Constituição buscou estabelecer certos parâmetros para a verificação do dever de utilização do bem. Assim, para aferir no caso concreto se a propriedade atende à sua função social distinguiu a propriedade rural da propriedade urbana traçando para cada qual o alcance da expressão. No que se refere à propriedade rural, cuidou o constituinte de proteger da intervenção estatal a pequena e a média propriedade rural, além da que se manifestar produtiva, o que pressupõe (iures et de iure) que estarão atendendo à sua função social, para as demais estabeleceu os requisitos dispostos no artigo 186 da Constituição Pátria, quais sejam aproveitamento racional e adequado do solo; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Quanto à propriedade urbana esta atenderá à sua função social quando atender aos preceitos contidos no Plano Diretor Municipal, conforme dispõe o artigo 182, § 2º da Carta Magna, in verbis: “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
Entramos aqui na matéria específica do Direito Urbanístico, ramo autônomo do Direito com bases em princípios constitucionais e administrativos que segundo José Afonso da Silva citado na monografia de Natália Arruda Guimarães (2003) seria o:
“[…] conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos, sistemáticos e informados por princípios apropriados, que tenha por fim a disciplina do comportamento humano relacionado aos espaços habitáveis, ou seja, […] arte e técnica social de adequar o espaço físico às necessidades e à dignidade da moradia humana.”
Assim, de acordo com a enumeração constitucional das competências administrativas, cabe privativamente ao Município a aplicação deste ramo jurídico, de acordo com a disposição do inciso VIII, do artigo 30 da Lei Maior:
“Art. 30. Compete aos Municípios: […]
VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.”
Esta atuação municipal encontra-se baseada na prerrogativa do poder de polícia municipal e tem como fundamento, conforme dantes mencionado, a consecução das funções sociais da propriedade e da cidade (caput do artigo 182, CF), de acordo com os princípios e diretrizes gerais apresentadas pela União. Deve então a Administração Municipal promover o adequado desenvolvimento da cidade de acordo com o Plano Nacional de Urbanismo e as disposições presentes na Lei 10.257/2001, o chamado Estatuto da Cidade. Para a efetivação desta atuação além das previsões acerca dos instrumentos de modulação do desenvolvimento municipal constantes na Lei Orgânica, o Município com população superior a 20.000 habitantes deve produzir um Plano Diretor, traçando medidas mais específicas com vistas ao adequado desenvolvimento urbano, definindo em substância a utilidade funcional da propriedade de acordo com as peculiaridades locais.
Demonstramos assim que cabe à Administração Pública Municipal a execução da política de desenvolvimento urbano, devendo concretizar as limitações e intervenções previstas em lei e fiscalizar o seu devido cumprimento, aplicando sanções quando for necessário. Neste sentido, a Comuna tem a prerrogativa tanto de atuar mediante atos normativos limitadores e abstratos, quanto de promover atos concretos de acordo com os preceitos legais e visando atingir o interesse público em comento. Cabe ainda tecer um comentário importante quanto à amplitude da Função Social da Propriedade Urbana, regida pelo Plano Diretor Municipal. As disposições deste instrumento normativo não devem se restringir aos critérios técnicos referentes à construção de edificações particulares, antes deve ser compreendida considerando a propriedade como parte de um todo, o ordenamento urbano, que também trás em si uma Função Social de raiz constitucional. Assim, a atuação municipal, seja através de atos normativos, seja através de atos concretos, deve considerar tanto a realidade social de cada área do município (bairros), quanto à preservação de seu patrimônio histórico e cultural e de forma não menos importante, deve promover o bem-estar de sua população garantindo a infra-estrutura necessária para sua digna vivência e também a efetivação do direito dos munícipes ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, compatibilizando todas essas facetas da vida municipal com o seu desenvolvimento econômico.
5. CONCLUSÃO
No decorrer deste artigo, verificamos a importância fundamental que adquiriu o Município no contexto do sistema federalista brasileiro, que, apesar de ser formado por uma união de Estados-Membros, necessita de forma imprescindível da atuação do ente municipal para promover a aplicação dos preceitos constitucionais na vida local. Possuindo autonomia administrativa, como ente federativo que é, além da política e da financeira que a consubstanciam, possui as prerrogativas de Administração Pública, inclusive o Poder de Polícia.
Assim, segundo as competências constitucionais que lhe foram conferidas, a Comuna pode atuar na limitação e condicionamento da propriedade, visando atingir a proteção e efetivação do interesse público com base na Função Social da Propriedade. Ou seja, tal como os outros entes, pode o Poder Público municipal intervir na propriedade privada tanto restringindo o exercício do direito de propriedade quanto, até mesmo, o suprimindo mediante atos de polícia fundamentados na supremacia do interesse público sobre o privado. De forma específica, no que se refere à propriedade urbana, percebe-se que somente a partir de uma atuação efetiva do Poder Público Municipal é que poderemos aferir a real adequação do exercício deste direito ao princípio constitucional da Função Social da Propriedade.
Isto posto, percebemos que no atual estágio do Estado Moderno, onde a era do laissez faire, laissez passer já foi superada, e hoje há necessidade de intervenção estatal para garantir a efetiva promoção dos interesses públicos, adquire o Município uma função pública de destaque. Tem portanto, o poder e o dever de garantir a efetivação da função social da propriedade não só limitando e condicionando o exercício do direito individual mas atuando também como propulsor do desenvolvimento adequado do ordenamento urbano, de acordo com os princípios constitucionais vigentes, notadamente dignidade da pessoa humana e igualdade material, além do direito ao meio ambiente equilibrado, conciliando-os com o efetivo desenvolvimento econômico de seu território. Para tanto, deve incentivar a participação popular de forma democrática, tanto na elaboração dos atos normativos limitadores, notadamente o Plano Diretor Municipal, quanto na fiscalização dos atos públicos no que diz respeito aos efeitos práticos de tais normas, tanto os de cunho preventivo quanto os de cunho repressivo, buscando assim atingir de forma eficaz, efetiva e legítima os interesses públicos almejados.
Acadêmica do Curso de Direito – UFRN
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