O precatório de natureza alimentícia recebeu um tratamento diferenciado pela Constituição de 1988. Não foi submetido à inserção na ordem cronológica dando a entender que ele deveria ser pago de imediato assim que transitada em julgado a decisão condenatória da Fazenda (art. 100, caput).
Por exigência de ordem prática, os entes políticos devedores vinham elaborando filas distintas para precatórios alimentícios e não alimentícios, o que veio a ser referendado pelo Supremo Tribunal Federal.
A Emenda n° 30/00, que acrescentou o art. 78 ao ADCT, parcelou os precatórios pendentes de pagamento em até 10 parcelas anuais, deixando de fora os alimentícios por serem privilegiados.
O tiro saiu pela culatra. Todos os entes políticos devedores paralisaram a fila dos precatórios alimentares dando preferência ao pagamento das parcelas anuais, cujo inadimplemento importava em compensação tributária, sem prejuízo do sequestro (§ 2°, do art. 78 do ADCT).
Dentro desse quadro kafkiano sobreveio a Emenda 62/09 que, não só, definiu os débitos de natureza alimentícia, como também prescreveu o pagamento de precatórios alimentícios com preferência sobre todos os demais precatórios (§ 1º, do art. 100). Essa Emenda também conferiu preferência qualificada para credores alimentícios com mais de 60 anos, ou portadores de doença grave (§ 2°, do art. 100 da CF). Limitou, ainda, esse super-privilégio até a quantia equivalente ao triplo do valor da requisição de pequeno valor, o que conduz a procedimentos burocráticos que implicam morosidade e possível discussão motivada pelo rebaixamento do valor da RPV por parte de alguns entes políticos devedores.
Agora tramita no Congresso Nacional a PEC n° 176/12 que determina o pagamento imediato logo após o trânsito em julgado com referência ao idoso ou portador de doença grave. Para complicar, essa proposta, mediante acréscimo do § 1° B, do art. 100 da CF, o privilégio alcança os “créditos de qualquer natureza.”
Ampliou-se o leque de privilegiados sem se preocupar com os recursos financeiros das entidades devedoras. Outrossim, pode-se, antever que será impossível a não expedição de precatório para sua inserção em fila específica.
Como várias decisões podem transitar em julgado ao mesmo tempo, não havendo disponibilidade de caixa para todos para pagamento no mesmo dia, impõe-se a inserção dos precatórios na ordem cronológica para preservar os princípios da moralidade e da impessoalidade. A supressão de precatório representa a repetição de um filme que não deu certo. Até parece que os desacertos são propositais para gerar discussão e morosidade.
Preferível seria a manutenção do critério vigente eliminando-se apenas o teto do valor a ser pago com preferência qualificada. Desde à época da tramitação da PEC nº 12, convolada na EC n° 62/09, já vínhamos criticando esse tipo de privilégio condicionado por gerar discussões judiciais que de fato aconteceram.[1]
Deveria, na verdade, privilegiar todos os precatoristas de natureza alimentícia para compensar vários lustros de discriminação que sofreram por conta da elaboração de preceitos constitucionais inexeqüíveis, ou dúbios e nebulosos. Lembro-me que em São Paulo determinado prefeito, no decorrer dos anos de gestão, pagou apenas 4 precatórios de natureza alimentícia, enquanto as parcelas anuais de precatórios não alimentares eram pagos religiosamente para evitar compensações e sequestros. Lamentavelmente a Suprema Corte, em sede de medida liminar, orientou-se no sentido de que a quebra de ordem de preferência só se dá mediante confronto de credores inseridos na fila de ordem cronológica de natureza alimentícia. Por esse critério peculiar se a fila de precatório alimentar ficar paralisado por um século, por exemplo, enquanto a outra fila de precatório comum estiver evoluindo normalmente, não haverá quebra de preferência.
Felizmente, a Justiça vem, aos poucos, reconhecendo a necessidade de assegurar aos credores por precatórios de natureza alimentícia a fruição em vida dos direitos conquistados às duras penas, impondo ao ente devedor inadimplente de precatório alimentício a indenização por danos morais. Estes não se confundem com as penas pecuniárias por inobservância dos deveres do art. 14, do CPC.
Nesse sentido, o julgado de 3 de julho de 2012 proferido pela 3ª Câmara de Direito Público do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que em decisão inédita nos autos da apelação de que foi Relator o eminente Desembargador Marrey Uint, condenou o IPESP ao pagamento de danos morais pelo atraso no cumprimento de precatório de natureza alimentícia.
Pela sua importância transcreve-se na íntegra o v. Acórdão:
“Voto nº 15.248
Apelação Cível nº 9112870.20.2009.8.26.0000
Comarca :SÃO PAULO
Apelante(s) :SARAH CERNE e Outros (a.j.)
Apelado(s) :INSTITUTO DE PREVIDÊNCIA DO ESTADO DE
SÃO PAULO – IPESP
Responsabilidade Civil. Indenização por danos morais. Crédito de precatório não pago. Dano material não comprovado. Caráter alimentar da verba. Evidente o dano moral.
Recurso provido.
Trata-se de apelação (fls. 164/169) em face de sentença (fls. 159/161), proferida em ação de reparação de danos materiais e morais, postulando os Autores ressarcimento em decorrência do não pagamento de precatório expedido e incluído na dotação orçamentária de 2003.
A r. sentença julgou improcedente a ação, condenando os Autores ao pagamento das custas e despesas processuais, bem como honorários arbitrados em 10% do valor da causa, ressalvada a condição dos autores de beneficiários de assistência judiciária gratuita.
O recurso foi recebido em seus regulares efeitos às fls. 170.
É o relatório.
No caso em tela, os Autores tiveram reconhecido em 1997 o direito à reversão das quotas-partes dos demais beneficiários dos instituidores da pensão.
O precatório foi expedido e incluído na dotação orçamentaria de 2003. A ordem judicial não tinha sido cumprida até o ajuizamento da ação, em outubro de 2008.
O art. 100 da Constituição Federal estabelece que os precatórios alimentares são prioritários na ordem de pagamento, pois são salários dos quais depende a subsistência do credor. As dívidas deverão ser pagas conforme a ordem cronológica de apresentação, sendo obrigatória a inclusão no orçamento da verba necessária para quitá-los no ano seguinte.
A falta de pagamento dos precatórios não se dá, na maioria das vezes, por conta de insuficiência orçamentária. Trata-se de descaso administrativo e da rotineira prevalência de outros interesses em detrimento do dever de cumprir decisões judiciais e a própria Constituição.
O uso da verba de precatórios alimentares para outras finalidades é ilegal, pois, além de ferir o artigo 100 da Constituição, afronta os princípios da legalidade, e da moralidade, caracterizando improbidade administrativa.
Se o Poder Público destinasse apenas o que gasta desnecessariamente com publicidade para pagar o que deve, já teria sido reduzida consideravelmente a inadimplência dos precatórios.
Os precatórios refletem também as desigualdades do nosso país. Enquanto o governo é sempre célere no pagamento de dívidas de empréstimos com organismos internacionais e nacionais, prima pela morosidade ao quitar seus débitos com os seus cidadãos, que, curiosamente, fazem parte da grande massa que o sustenta pagando impostos.
Neste sentido, pode-se conceituar o ato de improbidade administrativa como sendo todo aquele praticado por agente público, contrário às normas da moral, à lei e aos bons costumes, com visível falta de honradez e de retidão de conduta no modo de agir perante a administração pública direta e indireta.
Não existem na legislação brasileira recursos judiciais efetivos e adequados para garantir o pagamento dos precatórios devidos pelo Estado. Ao não adimplir os débitos referentes aos precatórios expedidos em seu desfavor, dentro do prazo constitucional, o Estado se mostra arbitrário, violador do Estado de Direito e da independência do Poder Judiciário.
Diante do absoluto desprezo do ente público no cumprimento da ordem judicial, não resta dúvida do seu dever de indenizar.
Oportuna a doutrina de Kiyoshi Harada, ao afirmar que: “a responsabilidade civil do Estado, por atos comissivos ou omissivos de seus agentes, é de natureza objetiva, isto é, prescinde da comprovação de culpa. Neste particular, houve uma evolução da responsabilidade civilística, que não prescinde da culpa subjetiva do agente, para a responsabilidade pública, isto é, responsabilidade objetiva. Esta teoria é a única compatível com a posição do Poder Público ante os seus súditos, pois, o Estado dispõe de uma força infinitamente maior que o particular.” (Kiyoshi Harada, “Responsabilidade Civil do Estado”, in Jus Navigandi, n. 41, mai. 2000).
Para o Professor Yussef Said Cahali, dano moral "é a privação ou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz, a tranqüilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade individual, a integridade física, a honra e os demais sagrados afetos, classificando-se desse modo, em dano que afeta a parte social do patrimônio moral (honra, reputação, etc.) e dano que molesta a parte afetiva do patrimônio moral (dor, tristeza, saudade, etc.), dano moral que provoca direta ou indiretamente dano patrimonial (cicatriz deformante, etc.) e dano moral puro (dor, tristeza,etc.)" (Cahali, Yussef Said. Dano Moral, Editora Revista dos Tribunais, SP, 1998, 2ª edição, pág. 20).
Segundo Maria Helena Diniz, "Dano moral vem a ser a lesão de interesses não patrimoniais de pessoa física ou jurídica, provocada pelo fato lesivo" (Curso de Direito Civil Brasileiro, Editora Saraiva, SP, 1998, p. 81).
O dever de indenizar do Poder Público provém do mau gerenciamento da máquina estatal, contido nos atos e omissões dos agentes públicos que trazem consequências aos administrados.
Os danos indenizáveis são: 1) os materiais, considerados a diminuição ou prejuízo patrimonial; 2) os danos morais, considerados os prejuízos à dignidade da pessoa humana, no íntimo da pessoa, pelo tratamento humilhante que dá a seus credores confiscando-lhes o patrimônio.
Assim, no caso presente, cabe indenizar a angústia e o sofrimento de se verem os Autores, injustificadamente, privados de seus créditos em razão de coisa julgada, face à inadimplência do Poder Público em honrar sua obrigação.
A indenização por dano moral, em verdade, visa coibir a repetição do ato reprovável que deu azo à ação ou omissão não se mostrando um meio de enriquecimento por parte da ofendida.
E assim, atendendo à peculiaridade do caso e à finalidade da prestação jurisdicional, que deve assegurar a adoção de critérios de razoabilidade e proporcionalidade, o valor da indenização merece ser fixado em R$5.000,00 (cinco mil reais).
Quanto aos danos materiais pretendidos na inicial, tenho que não restaram provados, sendo sabido que o dano material é questão de fato e como tal deve restar cabalmente provado nos autos.
Aos Apelantes cabia o ônus de provar os fatos constitutivos do seu direito, artigo 333, inciso I, do CPC.
Não tendo ela provado sua alegação, impossível é a condenação da Apelada no pagamento dos danos materiais.
Daí o porquê, dá-se provimento ao recurso para condenar-se a Ré a pagar aos Autores a importância de R$5.000,00 (cinco mil reais) a título de danos morais, acrescidos de juros de mora e correção monetária a partir da citação, além das custas processuais e honorários advocatícios de incidentes sobre o valor da condenação atualizado. MARREY UINT, Relator”
Somente no Estado de São Paulo existem mais de 200.000 credores por precatório de natureza alimentícia, dos quais mais de 50.000 já morreram na fila dos precatórios, razão pela qual o Brasil está sendo julgado pelo Tribunal de Direitos Humanos da OEA.
Espera-se que esse importantíssimo precedente judiciário inaugurado recentemente pela 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, inspire a tomada de decisões no mesmo sentido por todos os tribunais do País, a fim de fazer com que os governantes cumpram as leis e a Constituição Federal e respeitem a independência do Poder Judiciário. Até então todas as decisões de que tomamos conhecimento eram contrárias à tese da indenização por danos morais, porque o simples atraso no pagamento de precatórios, no dizer dessas decisões, não implica sofrimento decorrente de vexame ou humilhação que foge à normalidade. É de se ressaltar que o sofrimento é um sentimento que se infere do conjunto dos fatos narrados e comprovados, não sendo razoável exigir-se a prova do sofrimento que nem é passível de mensuração.
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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