Direito do Trabalho

Prescrição Intercorrente No Processo Do Trabalho: Uma Análise Crítica Do Entendimento Adotado Pela Reforma Trabalhista

Orlando Augusto Barbosa Pinheiro

RESUMO

O presente trabalho tem o objetivo de analisar a aplicação da prescrição intercorrente no âmbito da Justiça do Trabalho. Objeto de grande conflito doutrinário e jurisprudencial pretérito, tal instituto foi positivado no texto consolidado no ano de 2017, por meio da lei nº 13.467/17, mais conhecida como Reforma Trabalhista. Esta incorporação, contudo, foi objeto de críticas pelos mais diversos sujeitos do processo judiciário do trabalho, tendo em vista as inúmeras controvérsias sobre a sua compatibilidade com este ramo do direito. Diante desta celeuma, analisa-se o instituto da prescrição intercorrente, remetendo à sua origem histórica, conceito, fundamentos jurídicos e diferentes posicionamentos sobre o tema. Também serão abordadas as possíveis consequências do modelo instituído pela Reforma Trabalhista e os efeitos positivos ou negativos da sua aplicação quando confrontada com as características marcantes da execução no processo do trabalho. Para isso, utilizou-se a pesquisa bibliográfica descritiva, de modo a analisar a legislação e a doutrina sobre os temas abordados, bem como pesquisa documental dos dados apresentados pela Justiça do Trabalho sobre os processos de sua alçada. Diante dos dados e argumentos apresentados, conclui-se que a legislação trabalhista brasileira se mostra incapaz de prestigiar, harmoniosamente, os interesses conflitantes das partes da relação de emprego, não havendo institutos que responsabilizem, eficazmente, o patrimônio do devedor do crédito trabalhista diante do leque de possibilidades de fraude à disposição dos executados. Conclui-se, ademais, que a Reforma Trabalhista não trouxe qualquer inovação que possa mitigar tais fatos, sendo necessária uma adaptação da legislação à realidade do processo do trabalho.

Palavras-chave: Prescrição intercorrente. Processo do trabalho. Reforma Trabalhista.

ABSTRACT

The present work has the objective to analyzing the application of intercurrent prescription in the scope of Labor Justice. Object of great doctrinal and jurisprudential conflict in the past, such institute was included in the legal order in the year 2017, through law nº 13.467/17, also known as labor reform. This incorporation, however, has been object of criticism by the most diverse subjects of the judicial labor process, in view of the numerous controversies about its compatibility with this branch of law. Faced with this debte, the institute of intercurrent prescription is analyzed, referring to its historical origin, concept, legal foundations and different positions about the theme. It will also broach the possible consequences of the model instituted by the labor reform and the positive or negative effects of its application when faced with the characteristics of the labor process execution. Thereunto, the descriptive bibliographical research was used, in order to analyze the law and the doctrine on the broached topics, as well as documentary research of the data presented by the Labor Court about the processes under its jurisdiction. Considering the data and arguments presented, it is concluded that the Brazilian labor legislation proves to be incapable to harmoniously honor the conflicting interests of the parties of the employment relationship, and there are no institutes that effectively charge the labor credit debtor’s equity against the bunch of fraud options at the disposal of those executed. It is also concluded that the labor reform did not bring any innovation that could mitigate these facts, and it is necessary to adapt the legislation to the reality of the labor process.

Keywords: Intercurrent prescription. Work process. Labor reform.

 

SUMÁRIO

Introdução 1. A prescrição no ordenamento jurídico brasileiro. 1.1 Breve histórico da Prescrição. 1.2 Histórico da prescrição na Justiça do Trabalho. 1.3 Conceito e Natureza Jurídica da Prescrição. 1.4 Requisitos para aplicação da prescrição. 1.5 Algumas considerações sobre a decadência e sua diferenciação da prescrição. 1.6 Prescrição intercorrente. 2 a prescrição intercorrente na Justiça do Trabalho. 2.1 Interpretação histórico-evolutiva do §1º do art. 884 da CLT. 2.2 Divergência Sumular: Supremo Tribunal Federal x Tribunal Superior do Trabalho. 2.3 A Reforma Trabalhista. 3 os atos atentatórios à dignidade da Justiça e a sua influência sobre a execução trabalhista. 3.1 O princípio da boa-fé processual e os atos atentatórios à dignidade da justiça. 3.2 Fraude à execução e fraude contra credores. 3.3 Desconsideração da personalidade jurídica do executado. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo a análise da prescrição intercorrente, bem como aplicabilidade na Justiça do Trabalho, principalmente durante o processo de execução de sentença. Tal tema é objeto de controvérsias há pelo menos trinta anos, nunca tendo sido positivado na legislação trabalhista até o ano de 2017, quando entrou em vigor a chamada Reforma Trabalhista, aprovada pela Lei nº 13.467/17.

Tal mudança legislativa, todavia, não pacificou o entendimento e a aplicação do instituto da prescrição intercorrente, visto que muitos magistrados entendem que tal alteração vai de encontro aos princípios basilares que norteiam o direito trabalhista.

Faz-se necessário, portanto, fomentar o diálogo entre os diversos entendimentos sobre o tema, a fim de que se chegue à opção mais razoável que possa ser aplicada ao processo trabalhista, de modo a não privilegiar de maneira exagerada qualquer das partes do processo, ao mesmo tempo que seja garantido o máximo de direitos, com a menor exigência de obrigações.

Com o presente trabalho pretende-se abordar as consequências da aplicação da prescrição intercorrente no processo do trabalho nos moldes adotados pela Reforma Trabalhista, bem como analisar as influências desta aplicação em institutos já consagrados, como a fraude à execução e a desconsideração da personalidade jurídica.

A fim de conseguir tal intento, o segundo capítulo do presente trabalho traz o histórico da prescrição no direito brasileiro, e, especificamente, na Justiça do Trabalho no Brasil. Também será abordado o conceito da prescrição, sua natureza jurídica e os requisitos para sua aplicação, além de apresentar conceitos e características da prescrição intercorrente, tanto no direito em geral, como na seara do direito trabalhista.

No capítulo seguinte serão abordadas as controvérsias que cercam a aplicação da prescrição intercorrente na Justiça do Trabalho, discutindo-se a interpretação do art. 844 da CLT, o aparente conflito entre Súmulas do TST e STF e as consequências da inclusão do art. 11-A na CLT, que trata da aplicação da prescrição intercorrente.

Ao seu fim, o presente trabalho analisará a relação entre a aplicação da prescrição intercorrente no processo do trabalho e os diversos atos que podem ser considerados atentatórios à dignidade da Justiça, de modo a examinar a sua influência em processos executórios frustrados por conta da inexistência de bens do empregador executado.

A fim de se concluir os objetivos aqui traçados, será utilizada a metodologia de pesquisa bibliográfica, de modo a se fazer um levantamento da bibliografia existente na doutrina especializada. Haverá, do mesmo modo, a análise de dados disponibilizados pelo Justiça do Trabalho, a fim de demonstrar o impacto das execuções frustradas ante o total de processos trabalhistas existentes.

O presente trabalho se propõe, portanto, a lançar uma luz sobre o assunto aqui trazido, a fim de proporcionar a maior quantidade possível de pontos de vista, pois somente assim é possível trazer o mínimo de harmonia ao assunto.

 

1 A PRESCRIÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O tempo é um fato jurídico de extrema importância nas relações regidas pelo Direito. Sob sua influência podem ser adquiridos, mantidos ou extinguidos direitos, deveres e as próprias relações, razão pela qual a discussão da influência do tempo sempre esteve presente no meio jurídico.

Deste modo, antes de discutir os efeitos da passagem do tempo na esfera do direito trabalhista, é importante que seja trazida aqui a conceituação, as características e o histórico da mais comum forma de extinção de direito ou da sua pretensão: a prescrição, assuntos este que serão tratados pelo presente capítulo.

1.1 Breve histórico da Prescrição

Segundo Venosa (2004), o instituto da prescrição era desconhecido do direito romano, onde vigorava a ideia de perpetuidade das ações. Citando Antônio Luís Câmara Leal, Venosa explica que, posteriormente, os pretores foram investidos pela lei Aebutia do poder de criar ações não previstas no direito honorário, pelo que puderam fixar um prazo para a duração das mesmas, originando, assim, as ações temporários, diferentes das demais ações, que eram perpétuas.

Uma vez estabelecida a temporariedade da ação, tornava-se necessário precedê-la de uma parte introdutória, escrita antes ou no começo da fórmula, na qual o Juiz poderia absolver o réu se estivesse extinto o prazo da ação. A esta parte introdutória dava-se o nome de praescriptio, vocábulo que deriva do verbo praescribere, que significa escrever antes, ou no começo.

Ainda conforme Venosa, com o passar do tempo, o conceito da praescriptio evoluiu de modo a significar extensivamente a matéria contida nesta parte preliminar da fórmula, surgindo, assim, a acepção de extinção da ação pela expiração do seu prazo.

Como lembra Lattanzi (2009) para o direito romano os crimes de maior potencial ofensivo eram considerados imprescritíveis, entendimento ainda presente atualmente em países de tradição consuetudinária, já que a prescrição estava associada à ideia de perdão. A prescrição da condenação, porém, foi reconhecida entre os séculos XVI e XVIII em países como Itália, Alemanha e França, atualmente sendo aceita, praticamente sem exceção, pelos Códigos Penais de todo mundo, inclusive pelo Direito Eclesiástico.

Em relação ao Brasil, de acordo Motta (2008) até a promulgação do Código Civil de 1916, a legislação aplicável às relações jurídicas eram as Ordenações Filipinas, de 1603, que previa o prazo de 30 anos para o ajuizamento das ações que exigissem o cumprimento de obrigações contraídas contratualmente. Ademais, o Código Comercial de 1850 também trazia, em seu art. 448, o prazo prescricional de 1 ano para “ações de salários, soldadas, jornais, ou pagamento de empreitadas contra comerciantes”. Este prazo seria contado “do dia em que os agentes, caixeiros ou operários tiverem saído do serviço do comerciante, ou a obra da empreitada for entregue.”

Promulgado o Código Civil de 1916, este revogou os citados dispositivos legais, pois passou a regular, no seu art. 177 e seguintes, os prazos prescricionais nas relações jurídicas. Especificamente sobre a relação de trabalho, o CC 1916 prevê, no § 10 de seu art. 178, o prazo prescricional de 5 anos para a propositura de ações pelos “serviçais, operários e jornaleiros” que pretendessem cobrar seus salários. A distinção entre os conceitos de prescrição e decadência, entretanto, eram um tanto confusas no CC 1916,

Atualmente, o Código Civil de 2002, buscando facilitar o estudo dos institutos jurídicos privados, inaugurou um tratamento diferenciado em relação aos conceitos de prescrição, tratados nos artigos 189 a 206, e decadência, nos artigos 207 e 2011. Conforme Tartuce (2016) o atual Código Civil adotou a teoria do doutrinador paraibano Agnelo Amorim Filho, que associa a prescrição às ações relacionadas com direitos subjetivos, próprios das pretensões pessoais.

Sobre o mesmo assunto, Gonçalves (2012) entende que o atual código civil desfaz qualquer dúvida sobre a diferenciação de prescrição e decadência, pois prazos de prescrição são, exclusivamente, os discriminados, de forma taxativa em sua Parte Geral, nos arts. 205 e 206. Já os prazos decadenciais são todos os demais, estabelecidos como complemento de cada artigo, tanto na Parte Geral como na Especial.

1.2 Histórico da prescrição na Justiça do Trabalho

Especificamente na seara trabalhista, o Decreto-lei n. 1.237, de 1939, regulamentado pelo Decreto n. 6.596, instituiu que o prazo prescricional de 2 (dois) anos para a propositura de qualquer reclamação trabalhista, salvo disposição legal em contrário. Este prazo perdurou até o surgimento da CLT, que originalmente trazia o prazo prescricional de 02 (dois) anos para que o trabalhador urbano pleiteasse, por meio de reclamação trabalhista, a reparação de qualquer infração de dispositivos da CLT.

Anos após, a Constituição Federal de 1988 trouxe a prescrição trabalhista ao nível de postulado constitucional. Em seu art. 7º, inciso XXIX, a CF/88 estabelece que é direito do trabalhador a ação quanto a créditos resultantes da relação de trabalho, estipulando o prazo prescricional de 05 (cinco) anos para o trabalhador urbano, até o limite de 02 (dois) anos após a extinção do contrato; e de 2 (dois) anos para o trabalhador rural, contados, também, a partir da extinção do contrato.

Esta diferenciação entre os trabalhadores urbanos e rurais se encerrou com a Emenda Constitucional nº 28, que revogou as alíneas “a” e “b” do citado artigo, equiparando, parar efeitos prescricionais, ambos os tipos de trabalhadores, nos moldes da prescrição admitida anteriormente somente ao trabalhador urbano. Este prazo, no entanto, somente passou a ser prescrito legalmente aos trabalhadores domésticos a partir da Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015. Estes prazos tornaram-se, portanto, aplicáveis à praticamente todas as relações de trabalho.

Deste modo, percebemos que há dois prazos prescricionais a serem aplicados no processo trabalhista.

O primeiro destes configura a prescrição bienal. Esta se dá por conta do limite de dois anos dados ao trabalhador para que intente a ação trabalhista, contados a partir da extinção do contrato de trabalho.

O outro prazo é o da prescrição quinquenal. Esta pode ocorrer tanto durante a vigência do contrato, pois o trabalhador tem cinco anos para ajuizar a reclamação trabalhista a contar da data da lesão do seu direito, isto quando ainda há o vínculo trabalhista; bem como após a extinção do contrato individual de trabalho, já que, ajuizada a reclamatória trabalhista, esta poderá reparar somente as lesões ocorridas nos cinco anos anteriores ao seu ajuizamento.

Conforme ensina Delgado (2016) por algum tempo houve discussões doutrinárias a respeito da aplicação da prescrição quinquenal, existindo a corrente, minoritária, que entendia pela possibilidade de se pleitear as parcelas referentes aos últimos cinco anos anteriores ao término do contrato de trabalho, contanto que a reclamação fosse proposta nos dois anos seguintes à extinção do mesmo. Ou seja, a prescrição quinquenal seria contada a partir do término do contrato, enquanto a bienal deveria ser a contagem do prazo entre a extinção do contrato e a propositura da reclamação.

Tal discussão, porém, atualmente está superada, visto que a Súmula nº 308 do TST pacificou o entendimento de que a prescrição quinquenal é contada a partir do ajuizamento da ação, et verbis:

“Súmula nº 308 do TST

PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL (incorporada a Orientação Jurisprudencial nº 204 da SBDI-1) – Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005

  1. Respeitado o biênio subseqüente à cessação contratual, a prescrição da ação trabalhista concerne às pretensões imediatamente anteriores a cinco anos, contados da data do ajuizamento da reclamação e, não, às anteriores ao qüinqüênio da data da extinção do contrato. (ex-OJ nº 204 da SBDI-1 – inserida em 08.11.2000)
  2. A norma constitucional que ampliou o prazo de prescrição da ação trabalhista para 5 (cinco) anos é de aplicação imediata e não atinge pretensões já alcançadas pela prescrição bienal quando da promulgação da CF/1988. (ex-Súmula nº 308 – Res. 6/1992, DJ 05.11.1992)”

No que tange à prescrição intercorrente, esta sempre foi motivo de grande debate jurídico, havendo, inclusive, um aparente conflito entre a Súmula 327 do STF e 114 do TST, as quais serão abordadas em capítulo subsequente, dada a importância de tais Súmulas e de seus históricos para a presente discussão. Entretanto, a matéria não havia sido legislada no direito trabalhista até a Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, que incluiu na CLT o art. 11-A, tratando deste tipo específico de prescrição. Esta recente alteração também será abordada detalhadamente mais adiante.

1.3 Conceito e Natureza Jurídica da Prescrição

O jurista cearense Clóvis Beviláquia (1927) entende que a prescrição é a perda da ação atribuída a um direito, e de toda a sua capacidade defensiva, e que tal perda se dá em consequência do não da ação correspondente durante determinado espaço de tempo. Este entendimento de que prescrição ataca a ação que defende um direito, tradicionalmente sempre foi defendido pela doutrina.

Entretanto, como ensinam Gagliano e Pamplona Filho (2012), o direito de ação, ou seja, de pedir o provimento jurisdicional do Estado, é sempre público e indisponível, independentemente se o autor detém ou não o direito subjetivo que alega ter, de modo que a ordem pública sempre deverá lhe garantir o direito de ação. Vê-se, portanto, que é incorreto dizer que a prescrição ataca a ação. Daí vem a ideia de que a prescrição atinge a pretensão que surge do direito violado. Esta pretensão, ainda conforme Gagliano e Pamplona Filho, caracteriza-se pelo poder de exigir, coercitivamente, de outrem, o cumprimento de um dever jurídico.

Como ensina Pereira (2017), o conceito de prescrição como extinção da pretensão veio da dogmática alemã, segundo a qual a lei, ao mesmo tempo que reconhece um direito, estabelece que a pretensão (Anspruch) deve ser exigida em um prazo determinado. Deste modo, o sujeito titular do direito não conserva, indefinidamente, a faculdade de intentar um procedimento a fim de defendê-lo.

Vê-se, portanto, que o direito em si pode permanecer indefinidamente, inclusive mantendo sua eficácia. No entanto, a pretensão de reparação do direito violado é totalmente desamparada com o alcance da prescrição, visto o titular deste direito ter se mantido inerte durante o prazo previsto em lei.

O atual Código Civil adotou este entendimento, trazendo de modo bem simples e didático o conceito de prescrição, em seu art. 189, segundo o qual “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.”.

Temos, assim, que do direito violado nasce a pretensão, que é a faculdade de se exigir o cumprimento de um direito infringido, que deverá ser aperfeiçoado dentro do prazo prescricional que a lei prevê, após o qual esta pretensão será extinta pela prescrição. Caso não haja previsão legal da prescrição, tal pretensão será imprescritível.

Poder-se-ia pensar esta limitação da pretensão como uma punição ao credor de um direito que fosse negligente. Entretanto, como leciona Pereira (2017), este argumento não é de boa juridicidade, pois o que deve ser punido é o comportamento contraveniente à ordem, e este não é o caso do credor que se quedou inerte contra seus próprios interesses. Deve-se, portanto, buscar na ordem da segurança jurídica o fundamento do instituto da prescrição. Isto porque a prescrição afasta as incertezas jurídicas e a instabilidade que uma pretensão perpétua traria a sociedade.

Segundo Gagliano e Pamplona Filho (2012), o ordenamento jurídico deve, na medida do possível, prever a disciplina das relações sociais, de modo que todos possam ter a expectativa de saber como se portar para que seus fins sejam atendidos. Por este motivo não é razoável que se estabeleçam relações jurídicas perpétuas, que viriam a obrigar terceiros sem qualquer limitação de tempo, ficando estes à mercê do titular do direito, que se tornaria uma ameaça eterna sobre os sujeitos obrigados.

Deste modo, é com a finalidade de preservação da certeza, da segurança jurídica e da estabilidade social que o direito deve limitar no tempo, fixando prazos exequíveis e equânimes, a exigibilidade de certos direitos subjetivos, razão pela qual foram criados institutos como a prescrição, a decadência e a preclusão.

1.4 Requisitos para aplicação da prescrição

Como consequência do entendimento da prescrição como limitação da pretensão do credor de um direito, pode-se enumerar, de maneira bastante didática, os requisitos para a sua aplicação. De acordo com Mello (2017), são necessárias 4 condições para que se configure a prescrição, quais sejam:

“a) exista um dreito material da parte a uma prestação a ser cumprida, a seu tempo, por meio de ação ou omissão do devedor;

  1. b) ocorra a violação desse direito material por parte do obrigado, configurando o inadimplemento da prestação devida;
  2. c) surja, então, a pretensão, como consequência da violação do direito subjetivo, isto é, nasça o poder de exigir a prestação pelas vias judiciais; e,
  3. d) se verifique a inércia do titular da pretensão em fazê-la exercitar durante o prazo extintivo fixado em lei.”

Tal posicionamento coaduna-se com o que ensina Gonçalves (2012), que, sugerindo uma atualização do ensinamento de Câmara Leal, defende não ser necessária a existência de uma ação exercitável, mas sim uma pretensão, o que se harmoniza com atual Código Civil. De forma mais sucinta que Mello, Gonçalves conclui que os requisitos mínimos para a aplicação da prescrição seriam: a) a violação do direito e, portanto, o nascimento da pretensão; b) a inércia do titular; c) o decurso do tempo fixado em lei.

1.5 Algumas considerações sobre a decadência e sua diferenciação da prescrição

Assim como a prescrição, e muito próxima desta, a decadência é mais um efeito do tempo nas relações jurídicas, aliado à inércia do titular de certo direito. Possui, no entanto, diferenças importantes no seu modo de operar e nos seus fundamentos.

Sobre esta diferenciação, Pereira (2017) ensina que

“(…) a decadência é a perda do direito potestativo pela falta de exercício em tempo prefixado, enquanto a prescrição extingue a pretensão um direito subjetivo que não tinha prazo para ser exercido, mas que veio a encontrar mais tarde um obstáculo com a criação de uma situação contrária, oriunda da inatividade do sujeito”

Mesmo posicionamento tem os autores Farias e Rosenvald (2011), segundo os quais “a decadência é a perda do próprio direito (potestativo) pelo seu não exercício em determinado prazo, quando a lei estabelecer lapso temporal para tanto”. O redator da Parte Geral do atual Código Civil, José Carlos Moreira Alves, adota o mesmo entendimento de que a decadência ocorre quando um direito potestativo não é exercido dentro do prazo para exercê-lo, tanto extrajudicialmente como judicialmente, provocando a decadência deste direito.

Tais direitos potestativos, convém anotar, são aqueles aos quais não se opõe um dever de outrem, mas sim uma sujeição de alguém. Ainda segundo Farias e Rosenvald, os direitos potestativos inadmitem violação, pois são exercidos através de mera manifestação de vontade do titular, independendo da submissão de terceiros, não trazendo, por conseguinte, quaisquer pretensões, que são típicas dos direitos subjetivos.

Vimos, assim, que os efeitos da decadência recaem diretamente sobre o direito que não foi exercido no prazo estabelecido, o que atinge indiretamente a ação pela qual tal direito seria exercido.

Em relação aos prazos, uma grande diferença também pode ser apontada entres prescrição e decadência: nesta, o prazo inicia-se no momento do surgimento do direito. Naquela, o prazo é desencadeado somente quando há a violação do direito.

Outra notável diferença entre os dois institutos está na possibilidade de interrupção ou suspensão dos prazos. Sobre o assunto, Diniz (2007), ensina que:

“A decadência, teoricamente, corre contra todos, não admitindo sua suspensão ou interrupção em favor daqueles contra os quais não corre a prescrição, com exceção do caso do art. 198, I, do CC (CC, arts. 207 e 208, in fine) e do art. 26, § 2º, da Lei n. 8.078/90: só pode ser obstada a sua consumação pelo exercício efetivo do direito ou da ação, quando esta constituir o meio pelo qual deve ser exercido o direito; a prescrição pode ser suspensa, impedida ou interrompida pelas causas previstas em lei.”

Por último, convém lembrar que o prazo decadencial pode ser estabelecido pela lei (quando não poderá ser aumentado ou diminuído entre as partes), ou poderá, ainda, ser estipulado entre as próprias partes, situação em que estas poderão modificar os prazos, conforme seus entendimentos. Já em relação ao prazo prescricional, este só existe quando fundamentado em lei, razão pela qual nunca poderá ser convencionado ou alterado pelas partes.

1.6 Prescrição intercorrente

A prescrição intercorrente é aquela que ocorre no curso do processo judicial. Segundo Rizzardo (2015), este tipo de prescrição prejudica à parte por conta da sua inércia na promoção do regular andamento do processo. Ainda conforme o autor, tal situação ocorre, geralmente, quando o processo fica paralisado sem que a parte, titular de um direito e que busca a sua efetivação, tome as providências necessárias para o prosseguimento regular da ação.

A prescrição intercorrente foi admitida implicitamente pelo Código Civil de 2002, que no parágrafo único do artigo 202 dispõe que “A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper. ”

Como já tratado acima, existindo a inércia do titular de um direito em sua consecução, ocorre, naturalmente, o perecimento deste direito. No entanto, mesmo que haja o impulso inicial da parte que busca a satisfação de um direito, verificando-se a omissão do autor em qualquer momento, volta a correr o prazo prescricional, que, desta feita, torna-se intercorrente. Isto se dá por conta do desinteresse da parte em cumprir as atribuições que lhe são próprias. Assim, caso esta desídia leve o feito a permanecer paralisado pelo período de tempo correspondente ao prazo previsto para a pretensão do direito, a prescrição é consumada. Tem-se, assim, que o prazo a ser considerado para a aplicação da prescrição intercorrente coincidirá, caso não haja lei específica sobre o assunto, com o prazo prescricional para o ajuizamento da ação.

De acordo com o Novo CPC, que disciplina o assunto em seu artigo 921, antes que a prescrição intercorrente seja aplicada em um processo em execução em que o executado não possui bens, é possível suspender o processo pelo período de 1 ano, período de tempo no qual o prazo prescricional ficará suspenso. Decorrido este prazo sem que seja localizado o executado ou encontrados bens, o juiz deverá ordenar o arquivamento dos autos, que poderão ser desarquivados caso sejam encontrados bens, e começará a correr o prazo de prescrição intercorrente. Findo o prazo prescricional, e ouvidas as partes no prazo de 15 dias, o juiz poderá reconhecer a prescrição intercorrente, extinguindo o processo.

Percebe-se, portanto, que o reconhecimento da prescrição intercorrente não está vinculado somente ao seu elemento temporal. Também é necessário que se verifique a inércia da parte autora em adotar as providências necessárias ao deslinde do processo. Por conseguinte, não se reconhecendo na parte tal comportamento inerte, não é possível a aplicação deste instituto.

Em matéria trabalhista, o instituto da prescrição intercorrente sempre foi assunto bastante controverso, existindo diversos julgados com posicionamentos contrários, e até mesmo Súmulas divergentes, pois o TST entende que esta prescrição é inaplicável na Justiça do Trabalho (Súmula 114 do TST), e o STF a entende como compatível com o direito trabalhista (Súmula 327 do STF). Tal discórdia pode ser resolvida com a vigência da lei nº 13.467, de 2017, que incluiu o art. 11-A na CLT, que passou a admitir, expressamente, a apli cação da prescrição intercorrente na execução trabalhista, a ser declarada após o prazo de 2 (dois) anos contados a partir da data em que o requerente deixar de cumprir alguma determinação judicial no curso da execução.

Há, entretanto, quem critique a utilização da prescrição intercorrente, mesmo no âmbito do direito civil. Tartuce (2016), por exemplo, salienta que nunca concordou com a utilização deste tipo de prescrição na esfera privada, pois entende que ela poderia ser injusta, principalmente quando se leva em consideração a morosidade do nosso Poder Judiciário. Isto porque, com a prescrição intercorrente, o devedor que se esconde consegue alcançar a extinção da pretensão que lhe é cobrada, de modo que esta prescrição poderia prestigiar a má-fé do mesmo.

O mesmo autor entende, ainda, que o instituto da prescrição intercorrente poderia ser admitido em um contexto de justiça cível célere, quando a sua aplicação ocorreria tão somente nos casos de real inércia da parte, e não por uma possível morosidade da Justiça.

Tal preocupação deve ser premente, principalmente no âmbito da Justiça do Trabalho, tendo em vista as suas peculiaridades, seus princípios específicos, e a grande informalidade que permeia as relações trabalhistas no nosso país. Tal assunto, porém, será tratado detalhadamente em um capítulo posterior.

 

2 A PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE NA JUSTIÇA DO TRABALHO

Como visto anteriormente, a prescrição intercorrente sempre foi alvo de grande discussão quando aplicada na Justiça do Trabalho. Neste capítulo serão detalhadas as características deste tipo de prescrição nesta justiça especializada, explicitando seu histórico e suas peculiaridades. Também serão abordadas as recentes alterações da legislação trabalhista trazidas pela Lei nº 13.467/17

2.1 Interpretação histórico-evolutiva do §1º do art. 884 da CLT

Um dos argumentos utilizado para defender a possibilidade da utilização da prescrição intercorrente na Justiça do Trabalho é a existência do §1º do artigo 884 da CLT. Tal artigo disciplina os embargos à execução, e, em seu §1º lista as matérias possíveis de serem discutidas por meio destes embargos, quais sejam, “as alegações de cumprimento da decisão ou do acordo, quitação ou prescrição da dívida”.

Logicamente, a única prescrição a ser arguida em sede de execução haveria de ser a intercorrente, o que, por conseguinte, comprovaria a admissão desta modalidade de prescrição pela própria CLT.

É necessário, entretanto, se utilizar de ma interpretação histórico-evolutiva para compreender tal artigo.

Conforme Cassar (2008), a regra contida no citado artigo foi prevista, inicialmente, no Decreto-Lei nº 39/37. Quando da edição de tal norma, a Justiça do Trabalho ainda era administrativa, um mero prolongamento do Ministério do Trabalho, sendo, portanto, parte do Executivo. Suas decisões, por serem administrativas, não possuíam poder de execução. Ainda segundo Cassar, o credor de tal decisão de ordem administrativa da dita “Justiça do Trabalho” deveria cobrar, judicialmente, a respectiva dívida junto à justiça competente. Caso houvesse a demora do credor em buscar o cumprimento de tais decisões junto ao juiz cível competente, poderia haver a prescrição, a ser alegada em fase de execução.

Convém aqui transcrever os primeiros artigos do Decreto-Lei nº 39/37, in verbis:

“Art. 1º Os conflitos oriundos das relações entre empregadores e empregados, enquanto não for regulada em lei a Justiça do Trabalho, de que cogita o art. 139 da Constituição, serão conhecidos e julgados pelas Comissões Mixtas de Conciliação e pelas Juntas de Conciliação e Julgamento nos têrmos dos decretos ns. 21.396, de 12 de maio de 1932, e 22.132, de 25 de novembro de 1932.

Art. 2º O cumprimento dos julgados das Comissões Mixtas de Conciliação e das Juntas de Conciliação e Julgamento far-se-á perante o Juiz civel competente da localidade em que tenha sede a Comissão ou Junta, segundo o rito processual estabelecido para a execução de sentença, não sendo admitidas outras defesas sinão as referentes a nulidades, pagamento, ou prescrição da dívida, e correndo o processo independente de custas, pagas afinal pelo vencido.

(…)”

Desde 1946, entretanto, a Justiça do Trabalho passou a integrar o Poder Judiciário, o que conferiu às suas decisões o poder coercitivo necessário para as devidas execuções, que se tornaram um mero prosseguimento do processo de conhecimento. Desde então, de acordo com o entendimento de Cassar, a prescrição a que se refere o artigo 884, §1º não mais existe, razão pela qual dever-se-ia desprezar a menção à prescrição neste artigo, excetuando-se a prescrição dos títulos executivos extrajudiciais, por se tratar de um processo de execução autônomo.

Ainda que não se concorde com a interpretação histórico-evolutiva sugerida por Cassar, há outros entendimentos que harmonizam a existência do citado §1º do artigo 884 da CLT com a inaplicabilidade da prescrição intercorrente na Justiça do Trabalho.

Este é o posicionamento de Delgado (2016), para quem a prescrição a ser arguida nos embargos à execução é aquela que se dá pela omissão do exequente que deixa de praticar algum ato que torne fisicamente possível a continuidade do processo. A prática de tal ato, de exclusiva competência do exequente, não poderia ser suprida, de ofício, pelo juiz. Um exemplo seria a inviabilidade do início da execução por falta de liquidação de sentença quando derivada da omissão do credor. Tal situação poderia ser arguida na forma do §1º do artigo 884 da CLT, podendo ser acatada pelo juiz executor.

Vê-se, portanto, que, quer se considere ou não o citado parágrafo que trata de embargos à execução, não há, em tal texto, a aceitação irrestrita da prescrição intercorrente pela Justiça do Trabalho.

2.2 Divergência Sumular: Supremo Tribunal Federal x Tribunal Superior do Trabalho

A divergência de opiniões sobre a aplicação da prescrição intercorrente na Justiça do Trabalho não se restringe, entretanto, somente à doutrina. Existem até mesmo Súmulas de tribunais superiores que aparentemente divergem entre si sobre o tema. Este é o caso da Súmula nº 327 do STF e da Súmula nº 114 do TST.

Em dezembro de 1963, época em que o Supremo Tribunal Federal podia apreciar em Recurso Extraordinário as decisões ou interpretações de outros Tribunais que violassem qualquer lei federal, além da própria Constituição, foi editada a Súmula 327 do STF, que compreende a simples frase “O direito trabalhista admite a prescrição intercorrente. ”

Segundo Schiavi (2010), a Súmula 327 do STF traz como fundamento o §1º do art. 884 da CLT, já que, conforme o seu entendimento, a prescrição prevista em tal artigo só pode ser a intercorrente.

Para a formulação de tal Súmula, entretanto, o STF apontou como referência legislativa os arts.  11, 765 e 791 da Consolidação das Leis do Trabalho. Percebe-se, portanto, que tal posicionamento foi baseado em dispositivos que tratam da prescrição bienal, da liberdade do Juízo na direção do processo e do jus postulandi na Justiça do Trabalho.

Deste modo, apesar de grande parte da jurisprudência, além de inúmeros doutrinadores, apontarem o § 1º do art. 884 da CLT como fundamento para a formulação da Súmula nº 327 do STF, bem como justificativa para a aceitação da prescrição intercorrente na Justiça do Trabalho, na verdade tal artigo não foi sequer mencionado como referência na edição da referida Súmula. Ademais, é forçoso admitir que, caso o art. 884 realmente previsse a prescrição intercorrente, este artigo seria usado como justificativa para a formulação da Súmula em comento, ou, no mínimo, haveria de ser citada em algum dos precedentes colacionados para a sua edição, visto já ser vigente à época.

Na verdade, a análise dos julgados que serviram de precedentes à Súmula nº 327 traz o entendimento de que a prescrição ali prevista ocorre quando, por exclusiva omissão do exequente, este deixa de praticar algum ato do qual a execução dependa, tornando impossível o seu prosseguimento.  Ou seja, em situações em que o impulso oficial é incapaz de sanar tal omissão, como é o caso, já citado aqui, da apresentação do cálculo de liquidação de sentença, a ser feito pela parte.

Esta discussão, entretanto, não mais se dará no âmbito do Supremo Tribunal Federal, visto que este não tem conhecido de recursos extraordinários que tratem de análise de decisões que pronunciaram a prescrição intercorrente nas relações de trabalho, pois tal assunto trata de matéria infraconstitucional não sendo, portanto, de sua alçada.

Deste modo, o assunto da prescrição intercorrente deverá ser discutido perante a Justiça do Trabalho, que tem como jurisprudência norteadora a Súmula nº 114 do Tribunal Superior do Trabalho, cujo texto diz, de maneira sucinta, que “É inaplicável na Justiça do Trabalho a prescrição intercorrente. ”

Esta Súmula do TST foi aprovada em Sessão Plenária Ordinária em 22 de outubro de 1980, ou seja, quase dezessete anos após a Súmula nº 327 do STF versar sobre a prescrição intercorrente aplicada à Justiça do Trabalho. Atualmente, mesmo após 28 anos da sua edição, o TST mantém a Súmula nº 114 inalterada, apesar de diversas outras Súmulas passarem por renovações ou cancelamentos durante estas quase três décadas.

Diferentemente da Súmula do STF, os precedentes que levaram à edição da Súmula nº 114 do TST mostram uma coesão absoluta quando se trata da justificativa para a não aplicação da prescrição intercorrente no âmbito da Justiça do Trabalho. Esta justificativa pode ser condensada no seguinte trecho retirado do voto do Ilmo. Min. Orlando Coutinho nos Embargos em Recurso de Revista nº 1831/1974:

“No processo civil, a extinção do processo, pela paralisação do feito pela negligência das partes, só tem lugar se o inerte, intimado pessoalmente, não supre a falta em 48 (quarenta e oito horas) (arts 267, II e parágrafo 1º do CPC).

No trabalhista, quem responde pela celeridade processual é o próprio Juiz ou Tribunal que conhece a causa (Russomano), como dispõe o artigo 765 da CLT, não revogado pelo artigo 4º da Lei 5.584/70, que apenas reforçou o entendimento. Tem o Juiz a iniciativa da condução do processo, uma vez formulada a reclamação. Não se pode responsabilizar o titular do direito por “uma inércia que não lhe pode ser imputada” (Câmara Leal).”

Como visto no excerto acima, a justificativa utilizada na edição da Súmula do TST para a não aplicação da prescrição intercorrente na Justiça do Trabalho se resume no entendimento de que recai sobre o juízo a responsabilidade do impulso de ofício na execução trabalhista e da iniciativa de condução do processo.

A fundamentação para este posicionamento, entretanto, não é plenamente aventada nos referidos precedentes. Quando muito, é feita menção ao art. 765 da CLT, que dispõe:

“Art. 765 – Os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas.”

Como se vê, o artigo transcrito acima não disciplina, textualmente, o deslocamento da responsabilidade do impulso processual, de modo a isentar a parte interessada e obrigar o juízo. Antes, tal artigo apenas propicia ampla liberdade ao juízo, de modo que este possa, obrigatoriamente, velar pelo rápido andamento do processo. Tal obrigação, apesar de dar grande importância ao impulso oficial no processo trabalhista, não parece justificar a alegada regra de que somente sobre o juízo recai a responsabilidade integral da condução do processo.

Na verdade, há nos precedentes da Súmula nº 114 um uso quase axiomático da ideia da inaplicabilidade da prescrição intercorrente na Justiça do Trabalho, não havendo maiores preocupações em agregar outras justificativas e argumentos sobre o assunto, aceitando-se, tão somente, a alegada obrigação do impulso de ofício, isentando a parte interessada de qualquer responsabilidade pela sua desídia.

Vê-se, portanto, que apesar da antiguidade e amplo uso da citada Súmula nº 114, a justificativa para a sua edição não apresenta um suporte legal robusto o suficiente para a sua utilização irrestrita. Afinal, atualmente todas as decisões do Poder Judiciário devem ser fundamentadas, sob pena de nulidade. Não parece razoável, portanto, que uma Súmula siga em vigor sem esta fundamentação, enquanto dá guarida à inúmeras decisões. Mesmo que tal Súmula não seja vinculante, não faz sentido uma norma fundamentar decisões, sem que possua, ela mesma, uma fundamentação bem alicerçada, agindo, na verdade, como uma justificativa em si mesmo.

Caso tal Súmula permaneça sendo aplicada indiscriminadamente, várias situações de insegurança jurídica poderão ser criadas, bem como aberrações incompatíveis com a Justiça, como uma lide que manter-se-ia perpetuamente, independentemente de culpa da parte que se quedou inerte de maneira desidiosa.

Como exposto acima, há uma aparente contradição entre as Súmulas editadas pelo STF e pelo TST. Com o passar dos anos, porém, houve o entendimento de que as duas Súmulas poderiam ser interpretadas de maneira conjugada, sem que haja o conflito aparente.

Como já citado anteriormente, Delgado (2011) entende que essa harmonização das duas Súmulas é possível no caso “da omissão reiterada do exequente no processo, em que ele abandona, de fato, a execução, por um prazo superior a dois anos, deixando de praticar, por exclusiva omissão sua, atos que tornem fisicamente possível a continuidade do processo”.

Seguindo este posicionamento, a incidência da prescrição intercorrente deveria ser analisada caso a caso, sendo necessário identificar o responsável pela inércia do processo. Em se tratando de situações em que o impulso do processual dependa de algum ato do juiz do trabalho, não haveria de se falar em prescrição, aplicando-se, portanto, a Súmula nº 114 do TST. Já em caso de o impulso processual ser totalmente dependente da parte, da sua inércia decorreria a prescrição, sendo aplicada, então, a Súmula nº 327 do STF.

Delgado ressalta, porém, que quando a ausência de atos executórios derivar da falta de bens do executado tal situação não ensejaria a decretação da prescrição intercorrente. Isto por que, nestes casos, a inércia processual não poderá ser imputada ao exequente. Em tal situação, dever-se-ia aplicar a alternativa prevista no art. 40, §§ 2º e 3º da Lei nº 6.830/80, que é aplicável ao processo do trabalho por força do art. 889 da CLT.

A despeito da importância deste posicionamento, nota-se que o mesmo foi engendrado a fim de compatibilizar duas orientações jurisprudenciais que, quando analisadas nas suas fundamentações, se mostram totalmente opostas. Tal compatibilização de modo algum é orgânica ou harmoniosa, visto que são fundamentadas em entendimentos diametralmente opostos da mesma norma.

Esta, portanto, é a situação das orientações dos principais tribunais superiores que já trataram do assunto da prescrição intercorrente na Justiça do Trabalho. Tanto STF como TST mantêm em vigor as Súmulas que tratam do assunto, mesmo que estas apresentem defeitos, tanto de fundamentação como na sua aplicação.

É flagrante que se faz necessária uma reforma profunda na legislação trabalhista, a fim de que, dentre outros pontos, se encerre o dissenso entre os dois tribunais. Tal reforma deve contemplar e harmonizar tanto os argumentos dos trabalhadores – hipossuficientes e lesados em seus direitos -, como dos empregadores – que muitas vezes estão condenados a uma eterna disputa, mesmo sem possuir qualquer bem que satisfaça a execução.

Este é, portanto, o cenário de fundo para as recentes mudanças efetuadas na Consolidação das Leis do Trabalho por meio da Lei nº 13.467/17, que alterou significativamente diversos pontos da legislação trabalhista, inclusive no que se refere à prescrição e à execução de ofício. Este é o assunto que abordaremos a seguir.

 

2.3 A Reforma Trabalhista

Instituída pelo Decreto-Lei nº 5.452 e sancionada em 1º de maio de 1943 pelo então presidente Getúlio Vargas, a Consolidação das Leis do Trabalho foi editada, segundo Martins (2012), como uma compilação de normas esparsas que já existiam no período anterior à 1943 e que tratavam tanto de direito individual, coletivo e tutelar do trabalho, bem como normas de processo do trabalho, além de trazer regras sobre fiscalização, segurança e medicina do trabalho. Houve, entretanto, a adição de inovações no âmbito trabalhista, o que, de acordo com Nascimento (2011) aproximou a CLT de um verdadeiro código, e não somente de uma compilação.

Nos últimos anos, porém, a CLT foi alvo de muitas críticas, sendo taxada de ultrapassada, e acusada de engessar o mercado de trabalho com seu viés exageradamente garantista e “pró-trabalhador”. Não obstante estas críticas, a principal lei trabalhista já passou por mais de 500 alterações desde que foi sancionada, conforme os dados desta norma disponibilizados pelo sítio da Câmara dos Deputados. Parte destas alterações foi feita, inclusive na própria constituição de 1988.

Uma das maiores e mais recentes destas mudanças foi trazida pela Lei nº 13.467/17, que instituiu o que ficou conhecido como “Reforma Trabalhista”. Encaminhada ao Congresso prevendo mudanças em sete artigos da lei trabalhista e somente para dispor “sobre eleições de representantes dos trabalhadores no local de trabalho e sobre trabalho temporário”, o projeto de lei que originou a Reforma Trabalhista teve aprovado um substitutivo que modificou 104 artigos da CLT, sob a justificativa de “de adequar a legislação às novas relações de trabalho”

Não obstante as inúmeras alterações trazidas pela Lei nº 13.467/17, que afetaram profundamente os direitos trabalhistas e a Justiça do Trabalho, o projeto de lei que a originou tramitou em caráter de urgência no Congresso Nacional, passando por pouquíssimas discussões, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal.

Tal foi o déficit de debates, que entre o despacho inicial para a tramitação do projeto de lei na Câmara dos Deputados, em 3 de fevereiro de 2016, e a sua aprovação pelo senado, em 10 de julho, pouco mais de 5 meses se passaram. Durante este período, diversas autoridades manifestaram seus entendimentos contrários às mudanças propostas, sempre em audiências públicas esvaziadas pelos políticos que apoiavam a reforma. Políticos estes que, em votação, desconsideraram as opiniões contrárias à aprovação do projeto de lei, sob o argumento, precipuamente falacioso, de que o excesso de proteção social e trabalhista da CLT, encarece os custos da atividade empresária no Brasil e levando os agentes econômicos a despedir mais trabalhadores.

De acordo com Ronaldo Curado Fleury, atual procurador geral do trabaho, no prefácio ao livro de Krein, Gimenez e Santos (2018), as características da tramitação do Projeto de Lei que culminou na Reforma Trabalhista comprometem a legitimidade da Lei nº 13.467/17, tanto pelo seu açodamento como por ter sido baseada em informações distorcidas e premissas equivocadas, além do grande retrocesso social que esta lei trouxe aos trabalhadores.

No que se relaciona com o assunto proposto pelo presente trabalho, a Reforma Trabalhista trouxe grandes mudanças relacionadas à prescrição a ser arguida na fase de execução trabalhista. Deste modo, foi introduzido na CLT o artigo nº 11-A, que adotou a possibilidade da prescrição intercorrente no processo do trabalho. De acordo com tal artigo:

“Art. 11-A.  Ocorre a prescrição intercorrente no processo do trabalho no prazo de dois anos.

  • 1o A fluência do prazo prescricional intercorrente inicia-se quando o exequente deixa de cumprir determinação judicial no curso da execução.
  • 2o A declaração da prescrição intercorrente pode ser requerida ou declarada de ofício em qualquer grau de jurisdição.”

Percebe-se que o texto introduzido na CLT pela Reforma Trabalhista admitiu a prescrição intercorrente no curso da execução trabalhista, bastando para tal que o exequente deixe de cumprir, por dois anos, alguma determinação judicial em seu no curso da mesma. Ademais, trouxe a possibilidade, antes discutível, da declaração de ofício pelo juízo, em qualquer grau de jurisdição.

Tal artigo, entretanto, parece carecer de discussão doutrinária a fim de que possa ser utilizado de acordo com os princípios do direito do trabalho, bem como determinar a necessária delimitação de quais “determinações judiciais” levariam à aplicação deste tipo de prescrição, algo que o texto da emenda não procurou esclarecer, além de não passar por qualquer discussão legislativa.

Afinal, não parece justo ou adequado ao processo do trabalho que qualquer despacho exarado nos autos, mesmo que genéricos e sem ligação direta com o objeto da execução, tenha o condão de disparar o prazo prescricional, caso o exequente não o atenda. Isto, entretanto, poderá ocorrer caso o artigo 11-A da CLT seja aplicado indiscriminadamente na execução trabalhista.

Um agravante à esta situação é a alteração do art. 878 da CLT, que anteriormente permitia a que a execução fosse “promovida por qualquer interessado, ou ex officio pelo próprio Juiz ou Presidente ou Tribunal competente”, mas que após a Reforma Trabalhista diminuiu drasticamente a possibilidade de o juiz dar andamento à execução sem ser instigado pelas partes, nos seguintes termos:

“Art. 878.  A execução será promovida pelas partes, permitida a execução de ofício pelo juiz ou pelo Presidente do Tribunal apenas nos casos em que as partes não estiverem representadas por advogado.”

Deste modo, a obrigação de promover a execução passou a recair exclusivamente sobre as partes do processo, exceto na situação do jus postulandi, única situação que autoriza o juízo a agir de ofício.

Combinando ambos os artigos transcritos acima, é possível antever situações em que a parte exequente, que normalmente é o trabalhador hipossuficiente, venha a ser grandemente prejudicada, e veja a sua pretensão ser ferida de morte, apesar das obrigações da parte executada, e apesar de o juízo ter várias ferramentas que poderiam satisfazer a execução, como por exemplo as ferramentas eletrônicas que acessam informações patrimoniais da parte, ou seja, o BACENJUD, INFOJUD e RENAJUD.

Tais sistemas se tornaram importantes ferramentas para o judiciário brasileiro, trazendo celeridade e agilidade à execução, visto que consultam diretamente bancos de dados públicos a fim de localizar declarações de renda, veículos automotores e valores em instituições financeiras, além de possibilitar a efetivação, praticamente on-line, das decisões judiciais que determinarem a restrição dos veículos encontrados e o bloqueio de numerários de contas de depósito do executado.

Com a retirada do poder de execução de ofício e a imposição ao juiz do dever/poder de declarar a prescrição, é fácil de vislumbrar a possibilidade de uma execução trabalhista se encerrar sem que se tenha efetuado as pesquisas nos sistemas mencionados, caso o patrono da parte exequente não o solicite no prazo de dois anos após o início da execução.

Apesar de poder ser um caso de desídia do exequente ou do seu defensor, não parece justo ou mesmo moralmente aceitável que o juízo, mesmo tendo em vista o já consagrado princípio da proteção do trabalhador hipossuficiente, que deve permear todo o processo do trabalho, venha a punir esta parte hipossuficiente ainda que tenha em seu alcance os meios que possibilitem a execução do título judicial. Percebe-se, portanto, que isto beneficiaria sobremaneira aquele que originou todo o dissídio, que adveio da já reconhecida ilegalidade do executado, que não adimpliu suas obrigações trabalhistas nem indicou bens para saciar a sentença judicial.

Em tal situação, o juiz se veria de mãos atadas, sem poder tomar nenhum ato que favoreça o trabalhador, mas com o dever de encerrar o processo, em flagrante benefício ao executado.

Tal situação poderia vir a ser amenizada caso o projeto de lei 6.787/2016 não tivesse sido aprovado de maneira apressada, de forma a calar todas as opiniões contrárias à sua aprovação. Isto porque, em meio à diversas emendas propostas ao projeto enquanto este tramitava na Câmara dos Deputados, há uma que propõe uma alternativa à adoção da prescrição intercorrente de forma irrestrita.

É a Emenda de Plenário nº 21, proposta pelo deputado Izalci Lucas, do PSDB/DF, que propunha acrescentar o § 3º ao artigo 11-A, a fim de prever que em casos de falta de bens do executado aplicar-se-ia o disposto nos §§ 1 e 4 do art. 921 do CPC, a fim de suspender o processo por um ano, prazo em que não correria a prescrição, que se iniciaria após este lapso temporal, caso o exequente não se desincumba de dar prosseguimento ao feito.

Tal texto, apesar de talvez não ter a melhor redação possível ao exequente, poderia diminuir a possibilidade de prejuízo ao trabalhador, pois acrescentaria um período maior durante o qual poderia tentar encontrar bens a serem penhorados.

Esta emenda, como todas as outras emendas propostas, foi retirada ou rejeitada, não tendo nem mesmo a sua votação mencionada no sítio da Câmara dos Deputados.

Assim, parece que os nobres deputados e senadores que aprovaram o mencionado projeto de lei não conhecem as características fáticas de um processo de execução trabalhista, onde é extremamente comum que o devedor se esquive de todos os modos possíveis para não pagar o crédito trabalhista, chegando a fechar a empresa após a demissão de todos os empregados, e transferir todos os seus bens para outras pessoas, se servindo dos conhecidos “laranjas” para continuar o seu empreendimento comercial.

Estes fatos comuns à Justiça do Trabalho deveriam ser sopesados em qualquer tentativa de reformulação da legislação trabalhista, visto se tratar do último recurso do trabalhador que muitas vezes teve seus direitos espoliados, e que se vê desamparado após dedicar anos de esforço ao seu empregador.

Na verdade, a Reforma Trabalhista parece ter invertido o espírito da CLT. Agora, parece haver uma presunção de que o trabalhador age de má-fé, não sendo mais, portanto, a parte vulnerável a ser protegida.

Vimos, assim, que esta é uma das principais características da Reforma Trabalhista: transformar a CLT, antes escrita em prol do trabalhador, em uma legislação que muito beneficia os empregadores em total detrimento dos direitos da parte mais fraca da relação trabalhista. Ou seja, ao invés de equalizar direitos e limitar exageros, a reforma criou novos excessos, desta feita totalmente benéficos àqueles que recebem os lucros advindos do trabalho alheio e se aproveitam das brechas na lei para lucrar ainda mais. Os mesmos empregadores que têm as condições e a obrigação de se adequar às normas, parecem agora levar ainda mais vantagem sobre aqueles cujo papel é se subordinar aos patrões, aceitar suas exigências e suportar os desmandos do empregador, agora revestidos de legalidade.

Há, portanto, a necessidade premente que se discuta a viabilidade, aplicabilidade e constitucionalidade da Reforma Trabalhista, incluindo nessa discussão uma alternativa mais justa à redação dada ao art. 11-A, de modo a harmonizar os interessas de empregadores e trabalhadores, sem privilegiar ou desfavorecer quaisquer das partes.

 

3 OS ATOS ATENTATÓRIOS À DIGNIDADE DA JUSTIÇA E A SUA INFLUÊNCIA SOBRE A EXECUÇÃO TRABALHISTA

O presente capítulo tratará da influência que os atos atentatórios à dignidade da justiça podem exercer sobre a execução trabalhista. Tais atos interferem diretamente na possibilidade da efetiva satisfação do crédito exequendo em tempo hábil, razão pela qual mostra-se necessária a discussão sobre as suas consequências à execução trabalhista diante do tempo exíguo que o exequente dispõe antes que a prescrição intercorrente alcance a sua pretensão.

3.1 O princípio da boa-fé processual e os atos atentatórios à dignidade da justiça

Ao longo de um processo judicial é esperado que todos os sujeitos participantes atuem de maneira proba e leal, sendo um dever de todos não proceder com má-fé. Tal obrigação está consignada no CPC, que, em seu art. 5º, impõe a todos que participarem do processo o dever de comportar-se de acordo com a boa-fé.

Tal princípio, trazido de forma expressa pela legislação, trata-se de uma cláusula geral processual, o que, conforme ensina Didier Junior et al. (2017), é a opção mais correta, visto que, diante das infinitas situações que podem surgir durante o processo, a enumeração exaustiva das hipóteses de comportamento desleal tornaria a lei ineficaz. Havendo, entretanto, uma norma geral a impor o comportamento de acordo com a boa-fé, torna-se desnecessária a enumeração das condutas desleais.

Conforme Bezerra Leite (2017), o pricípio da boa-fé processual impõe a qualquer indivíduo que participe de algum ato processual, seja parte, advogado, testemunha, auxiliar ou magistrado, um padrão de comportamento pautado pela honestidade e confiança, além de exigir um estado geral de urbanidade e cortesia recíprocas, e não há qualquer incompatibilidade deste princípio com o processo do trabalho, visto haver lacuna normativa na CLT, razão pela qual o art. 5 do CPC deve ser aplicado de forma subsidiária.

De modo a reforçar a aplicabilidade do princípio da boa-fé processual, o CPC traz em seu texto a figura do ato atentatório à dignidade da justiça. Apesar do citado código não apresentar a definição destes atos, entende-se que são aqueles atos que podem reduzir a respeitabilidade do sistema judiciário por se tratarem de comportamentos, omissivos ou comissivos, que retardam, atrapalham ou tentam fraudar a prestação jurisdicional, não prestando o devido respeito às decisões do Judiciário.

São exemplos de atos atentatórios à dignidade da justiça a não observância do disposto nos incisos IV e VI do art. 77 do CPC, que determinam ser dever das partes cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, não criando embaraços à sua efetivação e não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso. O juiz deverá impor aos que infringirem tais dispositivos multa de até vinte por cento do valor da causa, seguindo o disposto no § 2º do mesmo artigo.

Como desdobramento do princípio da boa-fé processual e do que determina o já citado art. 77 do CPC, este mesmo código traz, no artigo 774, alguns comportamentos específicos que são considerados atentatórios à dignidade da justiça durante a execução. Deste modo, temo que:

“Art. 774.  Considera-se atentatória à dignidade da justiça a conduta comissiva ou omissiva do executado que:

I – frauda a execução;

II – se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos;

III – dificulta ou embaraça a realização da penhora;

IV – resiste injustificadamente às ordens judiciais;

V – intimado, não indica ao juiz quais são e onde estão os bens sujeitos à penhora e os respectivos valores, nem exibe prova de sua propriedade e, se for o caso, certidão negativa de ônus.

Parágrafo único.  Nos casos previstos neste artigo, o juiz fixará multa em montante não superior a vinte por cento do valor atualizado do débito em execução, a qual será revertida em proveito do exequente, exigível nos próprios autos do rocesso, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material.”

Igualmente ao já previsto no art. 77, no caso de o executar praticar as condutas trazidas pelo art. 774 o juiz deverá fixar multa de até vinte por cento do valor da causa. Nesta caso, porém, tais valores serão revertidos ao exequente, e sua execução se dará nos mesmo autos do processo.

Apesar de claramente não exaustiva, a lista do art. 774 é de suma importância para a efetivação do direito já reconhecido na fase de conhecimento. Isto porque, conforme observa Didier Junior (2017), a execução se mostra um terreno fértil para praticas contrárias ao princípio da boa-fé, razão pela qual existem sistemas rigorosos de combate a fraudes que possam ocorrer durante esta fase do processo, como a fraude à execução e a fraude contra credores. Ainda segundo Didier Junior, entretanto, a proteção à boa-fé na execução não deve ser feita somente aplicando-se tais institutos, visto que a boa-fé processual, sendo uma cláusula geral, permite que se identifiquem na execução os atos ilícios atípicos, como o abuso de direito, o desvio de poder e a fraude à lei.

Especificamente na Justiça do Trabalho, o trânsito em julgado de uma sentença favorável ao trabalhador muitas vezes marca o início de uma batalha inglória, cuja característica principal é a impossibilidade de encontrar bens pertencentes ao executado que possam satisfazer o crédito exequendo. Isso se dá, em grande parte das vezes, por conta de artifícios utilizados pelos executados, a fim de esconder os ativos de sua empresa, bem como os seus próprios bens, de modo a frustrar a execução.

Esta situação tornou-se característica na execução trabalhista, influenciando até mesmo nos números apresentados no Relatório Reral da Justiça do Trabalho, realizado pela Coordenadoria de Estatística e Pesquisa do Tribunal Superior do Trabalho, e que reúne os dados estatísticos referentes aos processos que tramitaram nos três graus de jurisdição deste ramo da Justiça nos seus respectivos anos base. Analisando os relatórios dos últimos anos percebe-se um crescimento alarmante das execuções frustradas. Apesar de não haver números explícitos sobre o arquivamento de processos pela prescrição intercorrente, nota-se um aumento anual dos processos enviados ao arquivo provisório das varas, ou seja, dos processos em que não foram encontrados bens do executado, e ficarão no arquivo provisório aguardando que o exequente informe ao juízo bens possíveis de penhora. Não se pode dizer, entretanto, que tal crescimento se dá somente pelo aumento natural das demandas trabalhistas.

Com efeito, os números trazidos pelos relatórios da Justiça do Trabalho dos últimos 3 (três) anos mostram que de 2015 a 2016 houve aumento de aproximadamente 15% nas execuções iniciadas anualmente (de 629.430 processos em 2015 para 724.491 processos em 2016). Neste mesmo período, entretanto, houve aumento de aproximadamente 32% no número de processos enviados ao arquivo provisório (de 601.339 processos para 795.386 em 2016).

Esta tendência se repetiu no ano seguinte. De 2016 para 2017 houve o aumento de 16% nas execuções iniciadas, enquanto o número de processos no arquivo provisório em 2017 foi aproximadamente 34% maior que no ano anterior.

Outra análise que pode ser feita do Relatório Geral da Justiça do Trabalho é sobre a efetividade da execução dos processos trabalhistas. Em 2017, por exemplo, se encerraram 671.912 processos de execução. Entretanto, o total de processos a executar chega ao total de 3.355.378, aí inclusos os processos com a execução pendente e em arquivo provisório do ano anterior, além das execuções iniciadas no próprio ano de 2017. Ou seja, a relação entre as execuções encerradas e o total a executar é de somente 20%.

Percebe-se, portanto, que a execução na Justiça do Trabalho cada vez mais se torna um ambiente infrutífero, onde a grande maioria dos créditos reconhecidos na fase de cognição, mesmo tendo a inegável natureza alimentar, estão fadados a se tornarem uma expectativa frustrada.

Como já argumentado anteriormente, a Reforma Trabalhista instituída pela lei nº 13.467/17 não apresentou nenhuma mudança que venha a beneficiar o exequente que se vê diante da situação de ter reconhecido seu direito, mas não possuir nenhuma expectativa de receber os frutos deste reconhecimento, mesmo isto seja consequência de atos do executado que são manifestamente atentatórios à dignidade da justiça. Deste modo, a única opção do exequente é se valer dos institutos já consagrados pelo direito processual, a fim de identificar os ilícitos praticados pela parte contrária, a fim de que possam ser punidos e contornados. Tais institutos serão detalhados a seguir.

3.2 Fraude à execução e fraude contra credores

Conforme a definição de Pereira (2017) pode ser considerada fraude a manobra realizada com a intenção de prejudicar um terceiro.

No caso da fraude contra credores, se trata de um instituto do direito civil, sendo considerada um vício de ordem social do negócio jurídico. Como leciona Montenegro Filho (2018), a fraude contra credores “consiste na transferência do patrimônio do devedor ao terceiro ou na oneração desse patrimônio antes do aperfeiçoamento da citação na ação de conhecimento ou na ação de execução”

Por sua vez, os baianos Gagliano e Pamplona Filho (2012) acrescentam que a fraude contra credores também pode ocorrer no caso de remissão de dívidas, e que para ser caracterizada a insolvência do devedor não necessariamente precisa estar instalada, mas que esta seja iminente.

Sobre os pressupostos necessários para a sua caracterização, há consenso doutrinário no sentido de serem dois estes elementos. O primeiro e trata do eventus damni, ou seja, o real prejuízo do credor. Deste modo, o ato para somente será considerado uma fraude contra o credor se a sua realização realmente comprometer o pagamento da dívida, levando o devedor ao estado de insolvência.

O segundo elemento, este subjetivo, trata-se do consilium fraudis, que, conforme Schiavi, é o conluio entre o devedor e o terceiro que foi beneficiado pelo ato, a fim de prejudicar o credor.

Didier Junior, pontua, entretanto, que há ocasiões em que o elemento subjetivo do consilium fraudis é presumido. Tal ocorre quando o ato fraudulento foi gratuito, presumindo-se, portanto, a fraude e a má-fé. Se a transação, ao contrário, foi onerosa, o credor deverá se desincumbir do ônus de provar que o devedor tinha ciência de que produzia o dano e que o adquirente sabia da condição de insolvência a que esta alienação conduziria.

Para se chegar à anulação do ato praticado em fraude contra credores, o credor deverá necessariamente ajuizar uma ação revocatória, chamada de ação pauliana, que será proposta contra o devedor, em litisconsórcio passivo necessário com o terceiro beneficiado pelo negócio fraudulento, buscando a anulação de tal negócio por conta de vício social. Tendo sido julgada procedente a ação, o bem retornará ao patrimônio do alienante, beneficiando todos os credores do mesmo.

Já a fraude à execução se mostra como uma faceta da fraude contra credores, pois, conforme Didier Junior (2017), ambas advêm do mesmo princípio de limitação da disponibilidade dos bens do devedor. Segundo o mesmo autor, a primeira trata-se, porém, de instituto típico do direito processual, que causa dano não somente ao credor, mas também à própria atividade jurisdicional.

Como já citado neste trabalho, a fraude à execução está listada no rol do art. 774 do CPC como um ato atentatório à dignidade da justiça, visto se tratar de um comportamento em que o próprio estado também é prejudicado, não somente o credor, razão pela qual é considerada mais grave que a fraude contra credores.

Neste caso específico, o CPC disciplinou no art. 792 e seus parágrafos, o que deve ser considerado fraude à execução, bem como as consequências do seu reconhecimento, in verbis:

“Art. 792.  A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:

I – quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;

II – quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;

III – quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;

IV – quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;

V – nos demais casos expressos em lei.

  • 1º A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente.
  • 2º No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.
  • 3º Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.
  • 4º Antes de declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro adquirente, que, se quiser, poderá opor embargos de terceiro, no prazo de 15 (quinze) dias.”

Percebe-se que a fraude à execução é caracterizada quando o devedor aliena ou onera seus bens de modo a se tornar insolvente, enquanto existe contra si uma demanda judicial. Sendo reconhecida a fraude, o ato praticado continua válido, não sendo, porém, oponível ao credor prejudicado, de modo que passa a ser ineficaz perante a ação de execução. Tal entendimento, como lembra Neves (2016), é ponto pacífico para a doutrina.

Diferentemente da fraude contra credores, a fraude à execução não necessita de uma ação autônoma, como a pauliana, para ser reconhecida, visto ser aceito de maneira unânime que a alienação ocorrida em fraude durante o processo pode ser declarada ineficaz no próprio processo mediante requerimento da parte lesada. Este é o ensinamento, por exemplo, de Tartuce (2017) e Schiavi (2010).

De acordo com Abelha (2015) são três os requisitos para que se reconheça a fraude à execução. O primeiro seria a existência de uma demanda judicial condenatória ou executória, que existira a partir do momento em que o réu é citado, pois este é o momento em que se inicia a relação jurídica do processo. Cumpre-nos citar, no entanto, que em relação à Justiça do Trabalho há autores, como Schiavi (2010) que entende que já existirá a demanda pendente no momento da propositura da ação, visto nesta Justiça especializada não haver o despacho de recebimento da exordial, sendo do Diretor de Secretaria o ato da notificação inicial.

Ainda conforme Abelha, o segundo requisito para haver fraude à execução é insolvência do devedor, o que significa que o seu ativo deve ser menor que o seu passivo, sendo insuficiente para garantir a execução.

Já o terceiro pressuposto, seria a existência de má-fé por parte do terceiro que adquiriu o bem alienado. Há situações, entretanto em que a má-fé é presumida (quando há averbação da pendência do processo nos registros públicos do bem). Há, ainda, situações em que o terceiro deverá comprovar sua boa-fé, quando não há registros públicos referentes ao bem alienado, cabendo ao comprador demonstrar que tomou as cautelas mínimas quando o adquiriu. E, por fim, há a situação em que se presume a boa-fé do terceiro, que ocorre quando o credor tinha o dever de averbar a pendência do processo nos registros públicos e não o fez.

Outra situação explicada por Abelha é a hipótese trazida pelo inciso IV do art. 792 do CPC, conforme transcrito acima, admitindo ser a possibilidade mais complexa, pois admite a possibilidade de ser reconhecida a fraude à execução em um momento em que, apesar de existir a ação condenatória em curso, não seria possível o credor realizar nenhum tipo de registro sobre o bem a fim de publicizar a existência da demanda.

Em tais casos, segundo o mesmo autor,

“(…)deve o juízo sopesar as circunstâncias da causa, analisando em que condições o terceiro adquiriu o bem, subtraindo do patrimônio do réu/devedor, ou seja, se tomou todas as cautelas e medidas normais, se foi diligente, se buscou informações acerca do alienante, se foi assistido por um corretor etc. Só depois da análise desse contexto é que deve reconhecer a fraude, declarando ineficaz a alienação em relação ao credor ou rejeitando o incidente e mantendo o bem sob titularidade do terceiro.”

Em relação aos processos trabalhista, percebe-se que, salvo em casos de grandes empresas que possuem imóveis ou veículos próprios, a penhora para garantia da execução ocorre sobre bens de pequena monta, como mobiliário e equipamentos da atividade empresária, que não possuem qualquer tipo de registro público.

Em muitos casos isto ocorre, como já explicado no tópico anterior, por conta de artifícios largamente utilizados pelas empresas para ocultar seu patrimônio a fim de frustrar as execuções que correm contra a mesma na Justiça do Trabalho. Deste modo, é bastante comum que uma empresa que aparenta possui imóvel próprio e movimentação bancária constante na verdade nada possua registrado em seu nome, quedando-se infrutíferas as pesquisas realizadas pelos sistemas bacenjud, renajud e infojud, restando como alternativa para a execução somente a penhora dos bens que equipam o estabelecimento comercial. Tais bens, por sua vez, acabam por serem leiloados por valores insuficientes para garantir a condenação imposta ao executado.

Como leciona Saraiva (2011), vários são os artifícios utilizados pelos executados para impedir a efetividade das execuções trabalhistas, sendo os mais comuns o desvio dos bens da empresa para o patrimônio dos sócios e a utilização de sócios “laranjas”.  Especificamente nestes dois casos, o patrimônio utilizado durante a atividade empresária e que poderia ser penhorado para a efetivação da execução (como imóveis, contas bancárias, veículos, ou equipamentos especializados), na verdade nunca fez parte do patrimônio oficial da executada, visto pertencerem ou aos sócios da empresa, ou a um terceiro, um sócio de fato que se utilizou de um “testa de ferro” para registrar a empresa que, na verdade, deveria lhe pertencer.

Deste modo, tanto o instituto da fraude à execução como o da fraude contra credores não são capazes de alcançar os fatos ocorridos neste tipo de execução frustrada, pois para serem caracterizados deverá ocorrer, necessariamente, a transferência do patrimônio do devedor para um terceiro. Uma vez que o devedor nunca possuiu, oficialmente, tal patrimônio, e nunca houve a real transferência dos bens, não é possível enquadrar tais características em nenhum dos dois institutos citados.

Como consequência, torna-se extremamente fácil aos empresários cujas empresas estão sendo executadas em processos trabalhistas encerrarem as atividades de tais empresas, e transferirem seus empreendimentos para novas empresas, se utilizando dos mesmos bens móveis, imóveis e insumos, que nunca pertenceram formalmente à empresa anterior, nem irão pertencer formalmente à nova empresa.

Tais características sofrem uma grande influência do curto prazo da prescrição intercorrente instituído pela Reforma Trabalhista, como será abordado no próximo tópico, que tratará da teoria que, possivelmente, poderia amenizar os efeitos da ocultação de patrimônio característicos do processo de execução trabalhista.

3.3 Desconsideração da personalidade jurídica do executado

Segundo Coelho (2012), “a pessoa jurídica é uma técnica de separação patrimonial em que se atribui personalidade própria ao patrimônio segregado”, sendo sujeito não humano de direitos personificados, e tendo aptidão para ser titular tanto de direitos como de obrigações.

Como consequência desta definição, Coelho lembra que as pessoas jurídicas não podem ser confundidas com as pessoas que a integram, pois a pessoa jurídica e cada um de seus membros são sujeitos distintos e autônomos. Este é o princípio da autonomia, e, em razão deste princípio, a própria pessoa jurídica é parte em todos os negócios jurídicos que lhe dizem respeito, até mesmo processos judiciais.

Tal autonomia da pessoa jurídica, todavia, não deve servir para a prática de ilícitos, fraudes ou abuso de direito, como bem ensina Cassar (2008), que completa afirmando que o véu societário da personalidade jurídica não pode afastar a responsabilidade daquele sócio que a utilizou indevidamente e a desviou da sua finalidade.

Por esta razão, ainda conforme Cassar, a pessoa jurídica não poderá mais servir como meio de proteção da separação patrimonial entre esta e os seus sócios nos casos em que a personalidade jurídica foi utilizada como meio para se obter vantagens indevidas em detrimento de terceiros e não possuir patrimônio que baste para responder pelos prejuízos causados.

Sob tal ótica, o Código Civil trouxe, em seu art. 50, a possibilidade de a personalidade jurídica de uma empresa ser desconsiderada em certos casos. Esta é a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou disregard of legal entity. Segundo o citado artigo:

“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”

Já o CPC regula o procedimento a ser tomado no caso de pedido de desconsideração da personalidade jurídica. Em um capítulo específico, assim disciplina o CPC:

“Art. 133.  O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.

  • 1o O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
  • 2o Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Art. 134.  O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

  • 1o A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.
  • 2o Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.
  • 3o A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2o.
  • 4o O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.

Art. 135.  Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.

Art. 136.  Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.

Parágrafo único.  Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno.

Art. 137.  Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.”

A aplicação de tal teoria, entretanto, não suprime a personalidade jurídica, mas torna a autonomia patrimonial da mesma temporariamente ineficaz, buscando nos sócios a possibilidade da solvência das dívidas cujo titular é a empresa, e autorizando que as suas obrigações recaiam sobre os próprios sócios. Como visto acima, porém, o Código Civil determina que isto somente ocorrerá nos casos em que for comprovado a fraude à lei ou o abuso do direito.

Esta teoria também é aplicada no direito do consumidor. O art 28 do Código de Defesa do Consumidor admite a desconsideração da personalidade jurídica quando houver, em detrimento do consumidor, abuso ou excesso de poder, infração da lei, ato ilícito, violação do contrato social, falência, estado de insolvência, e encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. Por fim, também se admite a desconsideração quando a personalidade da pessoa jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos consumidores.

Percebe-se, portanto, que a legislação consumerista é bem mais ampla, admitindo a desconsideração até mesmo quando não há fraude, bastando, por exemplo, a insolvência da empresa. Isto se dá, principalmente, por conta do caráter protecionista que este ramo do direito dispensa à parte hipossuficiente da relação de consumo, ou seja, ao consumidor.

Já na seara trabalhista, esta teoria também tem sido aplicada de maneira mais ampla. Apesar de a CLT se omitir sobre o assunto, esta mesma lei determina, em seu art. 8, que o direito comum será fonte subsidiária do Direito de Trabalho, razão pela qual é aceita a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica nos mesmo moldes do permitido pelo Código de Defesa do Consumidor.

Como lembra Cassar, o direito consumerista tem feições protecionista semelhantes às encontradas no direito do trabalho, visto o trabalhador ser parte flagrantemente hipossuficiente em relação ao empregador. Ademais, a aplicação do disposto no art. 28 CDC não é incompatível com os princípios do direito trabalhista, o que autoriza a sua utilização, diante da omissão da CLT. Como último argumento, cabe aqui trazer o ensinamento de Barros (2010), que defende que o não pagamento dos créditos trabalhistas devidos ao empregado, e já reconhecido em sentença, constitui infração à lei, o que se adequa ao caput do art. 28 do CDC, que deve ser aplicado por analogia, o que admitiria, portanto, a desconsideração.

Segundo Saraiva (2011) este entendimento é comumente aplicado pelo TST, que tem aceitado a desconsideração da personalidade jurídica em todos os casos em que se verifique que o patrimônio da empresa é insuficiente para honrar suas dívidas trabalhistas, independentemente de comprovação de alguma fraude, desvio de finalidade, simulação ou confusão patrimonial.

A instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica suspende o processo até a resolução do incidente, quando, em caso de acolhimento do pedido, os bens dos sócios da empresa responderão subsidiariamente pela execução dirigida à empresa.

Pode-se perceber, deste modo, que o direito processual trabalhista poderia ter na teoria da desconsideração da personalidade jurídica uma poderosa aliada na árdua tarefa de efetivamente disponibilizar ao exequente os valores advindos da relação de trabalho que já foram reconhecidos no processo de conhecimento.

Poder-se-ia, até mesmo, utilizar-se da desconsideração inversa da personalidade jurídica, também admitida pelo CPC, e que teria o condão de alcançar o patrimônio de empresas diversas à executada, cujos bens se confundam com o sócio executado.

Como já dito anteriormente, porém, a execução é terreno fértil para práticas contrárias à boa-fé, no qual os executados mais criativos lançam constantemente as suas sementes de fraudes.

Nos últimos anos, com o avanço da utilização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, os empresários mais inclinados à atos de má-fé perceberam que não poderiam mais se utilizar da autonomia do patrimônio da empresa em relação ao seu próprio para ocultarem os bens utilizados na atividade empresária, pois qualquer bem penhorável que possuísse poderia ser utilizado para o pagamento de dívidas trabalhistas.

No mesmo período, entretanto, passou a ser cada vez mais aceita a utilização da prescrição intercorrente no processo trabalhista. Mesmo sem estar legalmente prevista antes da Reforma Trabalhista, este tipo de prescrição passou a ser amplamente aceita por varas do trabalho, que, sobrecarregadas de processos frustrados de execução, viram neste instituto a possibilidade de desafogar as secretarias, concentrando os esforços dos servidores em processos mais recentes e com melhores chances de uma execução bem-sucedida.

Diversas varas do trabalho passaram, portanto, a aplicar o artigo 40 da lei de execuções fiscais, de modo a suspender por um ano os processos de execução onde não foram encontrados bens do devedor, para, depois, utilizar o prazo de cinco anos para a aplicação da prescrição intercorrente.

Diante da convergência da utilização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e da aplicação da prescrição intercorrente, passou a ser praxe entre devedores trabalhistas costumeiros manter seus bens, tanto pessoais como profissionais, registrados em nome de terceiros, a fim de não serem alcançados pelas execuções da Justiça do Trabalho, nem mesmo no caso de a personalidade jurídica de suas empresas serem desconsideradas.

Do mesmo modo, caso se tornasse inviável a continuidade da atividade empresária pela empresa executada, bastaria abrir novo CNPJ, em nome de um terceiro, ou até mesmo de um empregado, para continuar suas atividades sem a possibilidade de ter seus bens alcançados pela execução. E mesmo que não fosse possível a constituição de nova empresa, o empresário poderia passar cinco anos sem registrar qualquer bem em seu nome, com a certeza de que ao fim deste período os seus processos trabalhistas seriam extintos, abrindo caminho para um novo empreendimento que de nenhum modo seria afetado pelas dívidas trabalhistas da sua empresa anterior.

Como já discutido anteriormente, a lei que instituiu a Reforma Trabalhista determinou que a prescrição intercorrente deverá ser reconhecida no prazo de dois anos após o exequente deixar de cumprir alguma determinação judicial no curso da execução.

Percebe-se, por conseguinte, que artifícios como a confusão do patrimônio da empresa e dos sócios; a ocultação de patrimônio; e a utilização de “laranjas” parecem ter se tornado ainda mais atrativos às empresas após a Reforma Trabalhista e, mais especificamente, após a inclusão do art. 11-A à CLT, que trata da prescrição intercorrente.

Isto porque, com a determinação do reconhecimento da prescrição intercorrente após somente dois anos do último ato do exequente, o empresário somente poderá se abster de registrar qualquer bem em seu nome apenas pelo prazo de pouco mais de dois anos, levando em consideração a tramitação do processo de conhecimento, a execução frustrada e o período necessário para o reconhecimento da prescrição. Agindo assim, qualquer execução trabalhista perpetrada contra sua empresa ou contra si próprio estará fadada ao fracasso, independentemente de qualquer esforço do exequente ou do magistrado.

Percebe-se, desta forma, que a mudança trazida pela introdução do artigo 11-A à CLT não proporcionou, de modo algum, melhores condições à execução trabalhista. Na verdade, a sua introdução na legislação trabalhista parece ter sido feita sem o devido conhecimento das características e especificidades deste ramo autônomo do direito e sem a necessária discussão a fim de melhor adaptar o dispositivo às necessidades do judiciário e dos trabalhadores. Não houve, portanto, a equalização de interesses ou o nivelamento de direitos. Mas houve sim, pelo que aqui se expôs, a ampliação de direitos e garantias de somente uma das partes da relação trabalhista, não somente facilitando a esquiva de seus deveres, mas até mais incentivando a conservação de atos fraudulentos e que claramente atentam contra à dignidade tanto da justiça como do trabalhador.

 

CONCLUSÃO

Os temas relacionados à aplicação da prescrição intercorrente no processo trabalhista ainda carecem de uma discussão e consenso doutrinário e jurisprudencial, apesar da recente alteração da legislação trabalhista que reconheceu a sua utilização.

Pode-se afirmar, inclusive, que tal querela é premente, principalmente por conta da introdução do art. 11-A à CLT, visto que tal modificação legislativa não foi precedida do necessário debate que poderia harmonizar os interesses conflitantes de empregados e empregadores.

Tal urgência se faz presente até mesmo quando se consideram as justificativas trazidas pela jurisprudência para embasar a possibilidade ou impossibilidade da utilização da prescrição intercorrente na Justiça do Trabalho, visto que as fundamentações legais para ambos posicionamentos se mostram frágeis e inconstantes, mesmo quando utilizados para alicerçar Súmulas do STF e do TST que tratam do assunto.

Pode-se sustentar, todavia, que, de modo a aceitar a impossibilidade jurídica da existência de uma lide perpétua, é imperiosa a aceitação da utilização da prescrição intercorrente na Justiça do Trabalho, de maneira exclusiva, porém, em situação em que a parte exequente se quedou inerte diante da necessidade de algum ato de sua responsabilidade exclusiva, de modo que a ausência deste ato impossibilite o avanço da execução.

Neste sentido, os outros institutos aplicáveis ao processo do trabalho no intuito de responsabilizar patrimonialmente o devedor do crédito trabalhista também se mostram ineficientes ao que se propõem, principalmente diante do grande leque de possibilidades de fraudes que estão à disposição dos empresários que tentam garantir a ineficácia de execuções existentes contra suas empresas.

A promissora possibilidade de aumentar o alcance e a eficácia da execução trabalhista por meio da utilização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, teve seu alcance limitado sobremaneira, por conta da facilidade proporcionada pelo pequeno interregno de tempo necessário para a prescrição alcance a pretensão dos seus credores trabalhistas.

Por fim, ressalta-se que a legislação trabalhista brasileira se mantém incapaz de conciliar os interesses da livre iniciativa com os valores salutares do trabalho, conforme almeja a previsão do art. 1º, IV da Constituição Federal de 1988. Neste cenário, permanece premente a necessidade de atualizar a legislação às novas conjunturas das relações de trabalho, bem como adaptá-la à realidade do mundo atual, garantindo também que as empresas cumpram a sua função social de proporcionar empregos dignos e aprimorar a efetivação dos valores inerentes às condições decentes de trabalho.

 

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