Resumo: O presente artigo tem como fim apontar alguns aspectos e reflexões, partindo de diretrizes traçadas pela Constituição Federal de 1988, sobre o princípio da dignidade da pessoa humana: um vetor máximo interpretativo de nossa hermenêutica constitucional. O ser humano como pessoa está em constante processo de relacionamento não apenas consigo, mas também com o ambiente em que vive. Para que exista uma melhor convivência social e encontre-se um eixo próximo da perfeição nessa relação entre a individualidade e sociabilidade está inteiração deve estar pautada na dignidade, respeitando-se os diversos aspectos.
Palavras chave: Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Kant. Valor Constitucional.
Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito de dignidade; 3. Dignidade humana sob o prisma kantiano; 4. A dignidade humana como valor constitucional; 5. A dignidade humana na constituição federal de 1988; 6. Considerações finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 surge num contexto de busca da defesa e da realização de direitos fundamentais do indivíduo e da coletividade, nas mais diferentes áreas.
Elege a instituição do Estado Democrático, o qual se destina “a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”, assim como o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça social, bem como, seguindo a tendência do constitucionalismo contemporâneo, incorporou, expressamente, ao seu texto, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III) – como valor supremo –, definindo-o como fundamento da República.
Significa dizer que, no âmbito da ponderação de bens ou valores, o princípio da dignidade da pessoa humana justifica, ou até mesmo exige, a restrição de outros bens constitucionalmente protegidos, ainda que representados em normas que contenham direitos fundamentais, de modo a servir como verdadeiro e seguro critério para solução de conflitos.
2 CONCEITO DE DIGNIDADE
A dignidade humana como direito fundamental evoca uma perquirição preliminar: quem são os titulares dos direitos fundamentais?
A resposta deve ser refletida à luz de diferentes documentos jurídicos.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada pela Organização das Nações Unidas de 1948, traz em seu artigo 1º o seguinte: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, concluímos que, segundo esse documento, os titulares dos direitos fundamentais são “todos os homens”.
Se comparado o texto ao da nossa Constituição de 1988 que optou por “todos são iguais perante a lei […]”, verifica-se que a diferença se encontra na expressão “todos”. No texto da ONU o significado está entendido como:“… significa cada um e todos os humanos do planeta, os quais haverão que ser considerados em sua condição de seres que já nascem dotados de liberdade e igualdade em dignidade e direitos.”[1]
Mas, o que seria a dignidade humana?
O conceito de dignidade humana não é algo contemporâneo. È tema corriqueiro em debates e pesquisas de largo período.
Segundo a visão dos cristãos, havia outra denominação para auferir a idéia de algo tão subjetivo. Sarlet[2] aponta o conceito de dignidade oriundo da Bíblia Sagrada, que traz em seu corpo a crença em um valor intrínseco ao ser humano, não podendo ser ele transformado em mero objeto ou instrumento. De forma que, a chave-mestra do homem é o seu caráter, “imagem e semelhança de Deus”; tal idéia, trazida na Bíblia, explicaria a origem da dignidade e sua inviolabilidade.[3]
Já em um sentido filosófico e político na antiguidade, a dignidade humana estava atrelada à posição social que ocupava o indivíduo, inclusive considerado o seu grau de reconhecimento por parte da comunidade onde estava integrado.
Portanto, na antiguidade, os primeiros passos de defesa da dignidade e dos direitos do ser humano encontram-se expressos no Código de Hamurabi, da Babilônia e da Assíria e no Código de Manu, na Índia.
Nesse diapasão, entende-se que nesse momento histórico era possível a classificação do indivíduo como sendo mais ou menos digno perante os outros, de acordo com seu status social.
Em contraponto, o pensamento estóico, classificava a dignidade humana como uma qualidade diferenciadora do ser humano com as demais criaturas da terra; esse conceito nos remete à idéia de liberdade do indivíduo, considerando-o como um ser capaz de construir sua própria existência e destino.
Logo, concluí-se que o conceito de pessoa no sentido subjetivo, com direitos subjetivos ou fundamentais, inclusive dignidade, surge com o cristianismo e vem aperfeiçoada pelos escolásticos.
Na filosofia grega, segundo ensinamentos de Fernando Ferreira dos Santos,[4] o homem era considerado um animal político ou social. Imperava nesse pensamento uma “confusão” na relação entre indivíduo, Estado e a natureza, uma mistura de cidadania e do ser.
Com o intuito de se esclarecer o que realmente vem a ser dignidade Rizzatto Nunes[5] aponta que: “dignidade é um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da história e chega ao início do século XXI repleta de si mesma como um valor supremo, construído pela razão jurídica”.
Assim, nesse contexto verifica-se um dos papéis do Direito, como instrumento pelo qual se controla a “bestialidade” dos atos humanos, ou seja, controlam-se os impulsos que venham a ser prejudiciais à sociedade como um todo.
A dignidade apresenta-se, pois, como uma conquista da razão ético-jurídica. Seu conceito, porém, não é pacífico.
Ingo Wolfgang Sarlet[6] assevera que a dependência do elemento distintivo da razão fundamenta-se justamente na proteção daqueles que, por motivo de doença física ou deficiência mental, surgem como especialmente carecedores de proteção. E finalmente: se atribui como objeto da dignidade aquilo que precede qualquer reconhecimento, subtrai-se dela, na procura da “vida humana pura”, a dimensão social, para adquirir-se, por meio disso, a indisponibilidade da dignidade.”
Há também conceitos que traduzem a dignidade da pessoa humana como sendo o “direito a naturalidade” ou ainda “direito a contingência”, o que traz um enorme desconforto, se formos guiados apenas pela razão e autofinalidade.
Nesse contexto Chaves Camargo[7] afirmando que a
“[…] pessoa humana, pela condição natural de ser, com sua inteligência e possibilidade de exercício de sua liberdade, se destaca na natureza e diferencia do ser irracional. Estas características expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana. Assim, toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser.”
Porém até a dignidade pode ser limitada, ou seja, a dignidade de uma pessoa só será ilimitada enquanto não afetar a dignidade de outrem.
E, diferentemente do que se pensa, não é possível a uma pessoa violar a própria dignidade, pois se trata de uma razão jurídica adquirida com o decorrer da história, cabendo então ao Estado a função de zelar a saúde física e psíquica dos indivíduos.
Rizzatto Nunes considera, ainda, a dignidade da pessoa humana como sendo um supraprincípio constitucional, entendendo que se encontra acima dos demais princípios constitucionais.
Como princípio fundador do Estado Brasileiro (CF art. 1º, III), a dignidade da pessoa humana interessa não só pelo seu caráter principiológico, mas também, no presente estudo, pelo seu relacionamento com os direitos sociais.
3 DIGNIDADE HUMANA SOB O PRISMA KANTIANO
É comum lermos em jornais, revistas e artigos a importância de se preservar a dignidade da “pessoa” humana.
Porém, o que vem a ser a “pessoa”?
Esta é uma questão que há centenas de anos muitos procuraram responder. Porém, até hoje, não há conceito uníssono e que se possa afirmar como correto, mesmo ante larga e profunda reflexão.
Há quem diga que a pessoa é o conjunto do corpo, com a alma, inteligência e vontade.
Na verdade, seria muita pretensão compreender a pessoa apenas em sua estrutura interna.
A filosofia kantiana é responsável por uma importante contribuição a respeito. Nela, por pessoa, entende-se mais que um objeto, ou seja, como valor absoluto e insuscetível de coisificação.
Kant aprofunda o conceito de pessoa a ponto de se encontrar um sujeito tratado como “um fim em si mesmo” e nunca como meio a atingir determinada finalidade.
Enfatiza Cleber Francisco Alves[8] que Kant dá um tratamento especial a dignidade da pessoa humana, tendo em vista que enfoca a dimensão individual da personalidade humana e a sua dimensão comunitária social.
Desta forma:
“[…] diríamos, de seu caráter enigmático, a pessoa humana – na dignidade que lhe é própria – vem sendo colocada como pedra angular, vértice e ponto e ponto de referência do ordenamento jurídico, quer seja no âmbito dos diversos Estados nacionais contemporâneos, quer no âmbito supranacional.”[9]
Numa análise do desenvolvimento intelectual de Immanuel Kant verificamos que o ponto central de seus estudos era o homem, a liberdade e o individualismo.
Por meio do estudo de sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes,[10] percebe-se um a influência de pensamento burguês somado ao empirismo, sensualismo e o racionalismo. Nela observa-se, ainda a existência de condições consideradas como um a priori ao pensamento e da ação moral do homem.
Kant diverge dos tradicionais racionalistas na medida em que estes se valem dessa condição a priori como base para explicar a moral.
Segundo Kant, a metafísica, a existência de uma realidade transcedental, como a existência de Deus e/ou a imortalidade da alma não são as condições a priori.
Ainda nesse liame temos que a causa é, na verdade, uma forma de pensamento e, seu uso correto se dá através da experiência.
No que tange a produção de conhecimento, para Kant é necessário a existência do objeto que desencadeará a ação do pensamento, sendo ele o ponto de partida, o início de todo pensamento. Mas é indispensável a existência de um ser pensante, capaz de sentir e captar essas impressões, que no caso é o homem.
Assim, segundo os racionalistas a certeza matemática e da física está extremamente vinculada a razão e a experiência; em contrapartida Kant reflete sobre a metafísica como sendo um conhecimento especulativo da razão, sendo então uma forma de obter um caminho seguro que não pode ser pela experimentação.
Na Critica da Razão Pura,[11] Kant analisa o método de produção de conhecimento. Apesar de acreditar que somente por meio da razão pura conseguiríamos obter uma sociedade ideal, Kant afirma que a razão é inerente ao homem, é algo a priori.
Logo, a razão seria a organização de conceitos, estabelecendo regras de comportamento aos homens que somente é alcançada por meio da ciência, diferente do empírico, que nada mais é do que a experiência de vida acumulada.
A sensibilidade, portanto, é a capacidade da mente receber passivamente representações diversas do objeto, sendo o entendimento a faculdade de organizar as sensações do objeto. Segundo o filósofo, ambos são extremamente necessários para a elaboração do conhecimento.
Essa capacidade de sensibilidade, ou seja, de obter sensações dos objetos, está no homem a priori, precedendo qualquer experiência, é a chamada intuição pura.
Assim, se retirarmos a sensibilidade, ou seja, tudo que vem da sensação, (cor, textura, etc) só nos restará a intuição pura.
Uma vez que o tempo e o espaço são condições, influências externas do meio na capacidade de captação de sensações do homem, a medida que somos afetados pelo objeto concluímos que não intuímos as coisas tal como são em si mesmas, mas sim do modo como elas nos aparecem.
Para Kant o objeto deve ser necessariamente submetido ao sujeito, pois tem o fenômeno como sendo o resultado da relação do objeto com o sujeito.
Kant, nesse sentido, separa os conceitos a priori e a posteriori, considerando que a priori são os existentes ao homem antes de qualquer experiência, enquanto que o a posteriori os obtidos a partir de abstrações das percepções empíricas.
Percebendo então a necessidade da faculdade da imaginação, que também é afetada pelas condições temporais em que os conceitos (apriori ou a posteriori) serão aplicados sobre os objetos da experiência, a imaginação nada mais é do que o elo entre os conceitos intelectuais e a sensibilidade.
A imaginação é algo que podemos usar livremente enquanto que a razão deve ser desvinculada da intuição, da imaginação, da sensibilidade.
Logo, três para ele seriam as faculdades envolvidas na produção de conhecimento, a sensibilidade (que possibilita que o conhecimento se inicie por meios de intuições), a imaginação (que produz esquemas ou regras de síntese) e o entendimento (que julga), todas inerentes ao homem.
Kant adota a chamada “revolução copernicana”, ou seja, ao invés do sujeito cognoscente girar em torno dos objetos, estes que giram ao redor dele. Nota-se aqui a inversão do centro de preocupações, passando o homem a ser o núcleo de todas as problemáticas.
Kant estabelece o conceito de razão prática. Para ele, a vontade nada mais é do que a faculdade do homem de escolher só aquilo que a razão reconhece como praticamente necessário.
Kant propõe, dessa forma, uma moral guiada por leis a priori.
O imperativo categórico de Kant, segundo a razão, seria os elementos que esta considera como necessário, um dever.
Nessa seara, Kant estabelece como imperativo categórico, a LIBERDADE do homem. Que para ser realmente livre necessita de condições para exercer esta liberdade, que nada mais são do que os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana, condições estas que devem ser proporcionadas pelo Estado.
Essa essência humana deve ser respeitada, pois é um existir a priori, o que significa não procurar normas no agir humano, na experiência, pois seria submeter um homem a outro homem. Conservando o que caracteriza o ser humano, que o faz dotado de dignidade especial, o apresenta para nunca ser meio para os outros, e sim um fim em si mesmo.
Immanuel Kant[12] aborda a dignidade a partir da autodeterminação ética do ser humano, sendo a autonomia o alicerce da dignidade. Segundo a teoria da autonomia da vontade o ser humano é capaz de autodeterminar-se e agir conforme as regras legais, qualidade encontrada apenas em criaturas racionais. Logo, todo ser racional existe como um fim em si mesmo e não como um meio para a imposição de vontades arbitrárias.
Nesse sentido, “todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim”.[13]
Levando em consideração esse pensamento é que podemos classificar o ser humano em PESSOA.
Ainda nesse sentido, Kant[14] postula:
“No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisas tem um preço, pode por-se em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade […]. Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade?”
Pode-se pois constatar a forma antropocêntrica de encarar a dignidade, uma vez que a filosofia kantiana a torna privilégio dos seres racionais, colocando de imediato o ser humano no centro das transformações e do mundo. Essa questão possibilita o conflito com os valores admitidos pelo direitos de terceira geração, que são os direitos que se assentam sobre a fraternidade. Estes não pertencem ao indivíduo, e nem a coletividade, mas sim ao gênero humano. Compõe-se pelos direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito à propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito à comunicação; em suma, considera, por exemplo, o meio ambiente como sendo uma necessidade para a obtenção da dignidade da pessoa humana.
O homem deve ser entendido como um fim em si mesmo, razão pela qual lhe é atribuído valor absoluto: a dignidade. A respeito, ainda, e de acordo com a terminologia empregada por Miguel Reale,[15] é oportuno destacar três concepções da dignidade da pessoa humana: individualismo, transpersonalismo e personalismo.
Para o individualismo, o homem, cuidando dos seus próprios interesses, indiretamente, protege e realiza os interesses coletivos.
No transpersonalismo é o contrário: deve-se realizar o bem coletivo para salvaguardar os interesses individuais. Inexistindo harmonia entre o bem do indivíduo e o bem do todo, preponderam os valores coletivos.
O personalismo refuta as concepções individualista e coletivista. É um “meio termo”, ou seja, não há de se falar em predomínio do indivíduo ou do todo. Busca-se a solução na compatibilização entre os valores, considerando o que toca ao indivíduo e o que cabe ao todo.
A Constituição brasileira de 1988 elevou o princípio da dignidade da pessoa humana à posição de fundamento da República Federativa do Brasil. Dessa forma, não fez outra coisa senão considerar que o Estado existe em função de todas as pessoas e não estas em função do Estado. Assim, toda ação estatal deve ser avaliada considerando-se cada pessoa como um fim em si mesmo ou como meio para outros objetivos, sob pena de inconstitucional. Procura-se, com isso, compatibilizar valores individuais e coletivos.
4 A DIGNIDADE HUMANA COMO VALOR CONSTITUCIONAL
Segundo Pietro Alarcón de Jesús,[16] a tendência dos ensinamentos constitucionais é no sentido de reconhecer e valorizar o ser humano como a base e o topo do direito.
No período pós Segunda Guerra Mundial o que prevalecia era um ambiente envolto sob a neblina da dignidade da pessoa humana como sendo um valor indispensável para a instauração de um Estado de Direito Democrático promissor.
Nesse sentido a Constituição Italiana de 1947 consagrou o princípio da dignidade da pessoa humana em seu artigo 3º, com a seguinte expressão: “todos cidadãos tem a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
E, em 1949 a Assembléia das Nações Unidas consagrou expressamente as palavras: “A dignidade do homem é intangível. Os poderes públicos estão obrigados a respeitá-la e protegê-la”.
Em 1976, a Constituição da República Portuguesa expressou: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.
Nessa mesma linha a Constituição Espanhola estabeleceu que: “(…) A Dignidade da Pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos dos outros são fundamentos da ordem política e da paz social”.
A Constituição da Alemanha Ocidental do pós-guerra possui, segundo tradução de Nelson Nery Junior, em seu artigo inicial feita por Rizzatto Nunes[17] a seguinte afirmação: “A dignidade humana é intangível. Respeitá-la, e protegê-la é obrigação de todo o poder público”.
Devido à experiência nazista vivida na Alemanha, foi possível verificar a importância e a conscientização de preservar a dignidade da pessoa humana, deixando clara a responsabilidade Estatal, tanto no âmbito interno como no âmbito externo, de garantir aos indivíduos esse direito.
Na França, apesar de não se encontrar de forma explícita e expressa na constituição de 1958, o princípio da dignidade da pessoa humana é utilizado por hermenêutica através do Conselho Constitucional.
Nas constituições européias a dignidade da pessoa humana está presente e sendo consagrada a cada dia.
Dessa forma, a Constituição de 1990 da Croácia traz este princípio em seu artigo 25º, a da Bulgária de 1991 e da República Tcheca de 1992 em seus preâmbulos, a da Romênia, Letônia em seu artigo 1º, já a da Eslovênia, Lituânia e Rússia em seu artigo 21º e por fim a da República da Estônia de 1992 em seu artigo 10°.
No que tange aos países latinoamericanos, a Constituição da Colômbia no artigo 42º afirma o direito a dignidade da família como sendo inviolável.
A dignidade, como espécie de principio fundamental, serve de base para todos os demais princípios e normas constitucionais, inclusive as normas infraconstitucionais.
Sendo assim, não há como se falar em desconsideração da dignidade da pessoa humana em nenhuma forma de interpretação, aplicação e/ou criação de normas jurídicas, pois, se trata de um supraprincípio constitucional.
No Brasil, com base em Cleber Francisco Alves[18] a Constituição do Império de 1824 já representou um papel ativo no que se refere a alguns direitos fundamentais como a liberdade, a segurança individual e a propriedade. E, nesse sentido ratificava os princípios da igualdade e da legalidade, ou seja, estabelecia que nenhuma lei seria imposta sem utilidade pública e acarretaria recompensa ou castigo de forma proporcional à aquele que merecesse, incluindo a abolição de privilégios.
Porém não havia ainda menção expressa a dignidade da pessoa humana nas primeiras cartas constitucionais brasileiras, o que veio a ser expresso pela primeira vez na Constituição brasileira de 1934, no seguinte contexto do artigo 115º: ”a todos existência digna”.
A partir deste momento se tornou imprescindível, mesmo que indiretamente, a abordagem constitucional da dignidade da pessoa humana.
5 A DIGNIDADE HUMANA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A Carta de 1988 apresenta como característica a clareza no que se refere à importância da dignidade humana, em conseqüência de todo o contexto histórico já relatado.
Nesse sentido, como pano de fundo, a Constituição Federal do Brasil de 1988 foi elaborada num cenário de pós-ditadura e de abertura política, aliados ao profundo sentimento da necessidade de solidariedade entre os povos.
Assim, nota-se a expressão de uma nova era das garantias individuais, resultado de lutas e abusos no árduo caminho do reconhecimento dessas liberdades, até se alcançar a promulgação desse texto.
Em conformidade com o capítulo I deste trabalho, pode-se afirmar que esta é a Constituição mais democrática que o Brasil já teve, tendo em seu corpo blocos de direitos sociais, individuais e coletivos, tanto no sentido de princípios como comandos.
Analisando a estrutura da Constituição de 1988, Benizete Ramos de Medeiros,[19] se valendo dos ensinamentos de Ana Paula de Barcellos, classifica a dignidade da pessoa humana dentro do sistema constitucional em níveis, normas, princípios e subprincípios, e regras.
Em nível I, no seu preâmbulo, a Constituição faz menção ao Estado Democrático de Direito como forma de garantir os exercícios dos direitos sociais e individuais.
Em seqüencia, no artigo 1º, incs. I e II e no artigo 170, caput, verifica-se a incumbência da ordem econômica em assegurar a todos uma existência digna.
No artigo 226, §7º, foi dado ênfase a família, como forma de garantir a dignidade da pessoa humana.
Em nível II, o artigo 3º, inc.III e o artigo 23, inc.X, apresentado como “dos objetivos fundamentais”, é o responsável pela afirmação da “exterminação da pobreza e das desigualdades sociais”.
No nível III, a Carta Magna traz, em seu artigo 6º o mínimo que cada indivíduo necessita: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.
Destarte, todos os direitos sociais acima citados estão intimamente ligados a dignidade da pessoa humana
Entretanto, na prática, o Estado não tem conseguido garantir esse “mínimo constitucional”, o que, aliado a ignorância do povo quanto aos seus direitos ou de como exercê-los, tem como resultado a falta de aplicabilidade da vontade do legislador constituinte.
Esse fato também pode ser visto no que tange a saúde, onde pessoas enfermas são desrespeitadas todos os dias nos hospitais e postos de saúde.
Assim, proporcional é a matemática da dignidade, quanto maior a qualidade da dignidade, maior é a dificuldade de garanti-la, não apenas por parte do Estado, mas também por parte dos cidadãos que convivem entre si, podendo entre eles um violar a dignidade do outro.
Ao se ter na dignidade a bússola orientadora dos direitos perdidos e ineficazes, não se tem, todavia, garantia de que o navio pródigo consiga chegar lá.
A Constituição aborda, também, a dignidade da pessoa humana em seu duplo significado, ora como princípio fundamental, ora como princípio geral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Kant, o principal teórico na construção do princípio da dignidade da pessoa humana, parte da premissa de que nenhuma pessoa é passível de valoração, pois, sendo detentora de racionalidade gera a possibilidade de autoafirmação, ou seja, a liberdade em seu sentido amplo.
Dessa metafísica, dessa transcendentalidade do homem é que surge a dignidade e a liberdade, que nada mais são do que valores respaldantes de todo o ordenamento jurídico.
Os direitos fundamentais evoluíram com grande intensidade no sentido de proteger o indivíduo em sua dignidade, porém, se faz necessário ampliar o conceito desses valores e promover a emancipação da sociedade, mais um passo da raça humana no sentido de distribuir de forma equânime o que, pelo trabalho de todos, foi e é conquistado.
Ante a uma sociedade cuja desigualdade ainda é a marca; ante a um contexto de vida onde o capitalismo e outras ideologias alimentam o individualismo; ante aos reclamos da atualidade, em que valores e vidas são constantemente depredados, pondo em risco o próprio planeta, só resta a esperança de um projeto mais solidário para a raça humana.
Assim, propomos a reflexão a respeito do mundo, do estado de nossa humanidade, de que o mundo pode ser imaginado a partir da possibilidade de admitir o outro não como um alguém além de nós, mas o outro enquanto um “alguém em nós”.
A ação humana é capaz de orientar os caminhos da história e da existência individual e coletiva. Uma condição fundamental do ser humano é sua estrutura comunicativa e justamente por essa razão deve estar em constante processo de socialização.
Cabe aos operadores do Direito esse papel de transformação, utilizando a DIGINIDADE DA PESSOA HUMANA como HERMENÊUTICA, a partir da Constituição Federal, sempre objetivando a ampliação do princípio da solidariedade humana para além das fronteiras das palavras, reconhecendo que a civilização só evoluiu e evoluirá quando todos, juntos, pudermos assumir um projeto de vida que leve em consideração nossa essência: seres sociais que somos, a caminho de um mundo sempre melhor e todos em busca do maior direito de todos: O DIREITO À FELICIDADE.
Bacharel em direito pela Universidade Eurípedes de Marília (UNIVEM). Pós-graduada em Direito do Estado-Tributário pela Universidade Estadual de Londrina-UEL. Mestranda em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino (Bauru-SP). Advogada.
Mestre em Direito Constitucional. Advogada. Professora de Graduação em Direito e de Cursos de Pós Graduação
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