Princípio da dignidade da pessoa humana

Resumo: O presente artigo tem como fim apontar alguns aspectos e reflexões, partindo de diretrizes traçadas pela Constituição Federal de 1988, sobre o princípio da dignidade da pessoa humana: um vetor máximo interpretativo de nossa hermenêutica constitucional. O ser humano como pessoa está em constante processo de relacionamento não apenas consigo, mas também com o ambiente em que vive. Para que exista uma melhor convivência social e encontre-se um eixo próximo da perfeição nessa relação entre a individualidade e sociabilidade está inteiração deve estar pautada na dignidade, respeitando-se os diversos aspectos.


Palavras chave: Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Kant. Valor Constitucional.


Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito de dignidade; 3. Dignidade humana sob o prisma kantiano; 4. A dignidade humana como valor constitucional; 5. A dignidade humana na constituição federal de 1988; 6. Considerações finais. Referências.


1 INTRODUÇÃO


A Constituição Federal de 1988 surge num contexto de busca da defesa e da realização de direitos fundamentais do indivíduo e da coletividade, nas mais diferentes áreas.


Elege a instituição do Estado Democrático, o qual se destina “a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”, assim como o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça social, bem como, seguindo a tendência do constitucionalismo contemporâneo, incorporou, expressamente, ao seu texto, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III) – como valor supremo –, definindo-o como fundamento da República.


Significa dizer que, no âmbito da ponderação de bens ou valores, o princípio da dignidade da pessoa humana justifica, ou até mesmo exige, a restrição de outros bens constitucionalmente protegidos, ainda que representados em normas que contenham direitos fundamentais, de modo a servir como verdadeiro e seguro critério para solução de conflitos.


2 CONCEITO DE DIGNIDADE


A dignidade humana como direito fundamental evoca uma perquirição preliminar: quem são os titulares dos direitos fundamentais?


A resposta deve ser refletida à luz de diferentes documentos jurídicos.


A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada pela Organização das Nações Unidas de 1948, traz em seu artigo 1º o seguinte: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, concluímos que, segundo esse documento, os titulares dos direitos fundamentais são “todos os homens”.


Se comparado o texto ao da nossa Constituição de 1988 que optou por “todos são iguais perante a lei […]”, verifica-se que a diferença se encontra na expressão “todos”. No texto da ONU o significado está entendido como:“… significa cada um e todos os humanos do planeta, os quais haverão que ser considerados em sua condição de seres que já nascem dotados de liberdade e igualdade em dignidade e direitos.”[1]


Mas, o que seria a dignidade humana?


O conceito de dignidade humana não é algo contemporâneo. È tema corriqueiro em debates e pesquisas de largo período.


Segundo a visão dos cristãos, havia outra denominação para auferir a idéia de algo tão subjetivo. Sarlet[2] aponta o conceito de dignidade oriundo da Bíblia Sagrada, que traz em seu corpo a crença em um valor intrínseco ao ser humano, não podendo ser ele transformado em mero objeto ou instrumento. De forma que, a chave-mestra do homem é o seu caráter, “imagem e semelhança de Deus”; tal idéia, trazida na Bíblia, explicaria a origem da dignidade e sua inviolabilidade.[3]


Já em um sentido filosófico e político na antiguidade, a dignidade humana estava atrelada à posição social que ocupava o indivíduo, inclusive considerado o seu grau de reconhecimento por parte da comunidade onde estava integrado.


Portanto, na antiguidade, os primeiros passos de defesa da dignidade e dos direitos do ser humano encontram-se expressos no Código de Hamurabi, da Babilônia e da Assíria e no Código de Manu, na Índia.


Nesse diapasão, entende-se que nesse momento histórico era possível a classificação do indivíduo como sendo mais ou menos digno perante os outros, de acordo com seu status social.


Em contraponto, o pensamento estóico, classificava a dignidade humana como uma qualidade diferenciadora do ser humano com as demais criaturas da terra; esse conceito nos remete à idéia de liberdade do indivíduo, considerando-o como um ser capaz de construir sua própria existência e destino.


Logo, concluí-se que o conceito de pessoa no sentido subjetivo, com direitos subjetivos ou fundamentais, inclusive dignidade, surge com o cristianismo e vem aperfeiçoada pelos escolásticos.


Na filosofia grega, segundo ensinamentos de Fernando Ferreira dos Santos,[4] o homem era considerado um animal político ou social. Imperava nesse pensamento uma “confusão” na relação entre indivíduo, Estado e a natureza, uma mistura de cidadania e do ser.


Com o intuito de se esclarecer o que realmente vem a ser dignidade Rizzatto Nunes[5] aponta que: “dignidade é um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da história e chega ao início do século XXI repleta de si mesma como um valor supremo, construído pela razão jurídica”.


Assim, nesse contexto verifica-se um dos papéis do Direito, como instrumento pelo qual se controla a “bestialidade” dos atos humanos, ou seja, controlam-se os impulsos que venham a ser prejudiciais à sociedade como um todo.


A dignidade apresenta-se, pois, como uma conquista da razão ético-jurídica. Seu conceito, porém, não é pacífico.


Ingo Wolfgang Sarlet[6] assevera que a dependência do elemento distintivo da razão fundamenta-se justamente na proteção daqueles que, por motivo de doença física ou deficiência mental, surgem como especialmente carecedores de proteção. E finalmente: se atribui como objeto da dignidade aquilo que precede qualquer reconhecimento, subtrai-se dela, na procura da “vida humana pura”, a dimensão social, para adquirir-se, por meio disso, a indisponibilidade da dignidade.”


Há também conceitos que traduzem a dignidade da pessoa humana como sendo o “direito a naturalidade” ou ainda “direito a contingência”, o que traz um enorme desconforto, se formos guiados apenas pela razão e autofinalidade.


Nesse contexto Chaves Camargo[7] afirmando que a


“[…] pessoa humana, pela condição natural de ser, com sua inteligência e possibilidade de exercício de sua liberdade, se destaca na natureza e diferencia do ser irracional. Estas características expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana. Assim, toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser.”


Porém até a dignidade pode ser limitada, ou seja, a dignidade de uma pessoa só será ilimitada enquanto não afetar a dignidade de outrem.


E, diferentemente do que se pensa, não é possível a uma pessoa violar a própria dignidade, pois se trata de uma razão jurídica adquirida com o decorrer da história, cabendo então ao Estado a função de zelar a saúde física e psíquica dos indivíduos.


Rizzatto Nunes considera, ainda, a dignidade da pessoa humana como sendo um supraprincípio constitucional, entendendo que se encontra acima dos demais princípios constitucionais.


Como princípio fundador do Estado Brasileiro (CF art. 1º, III), a dignidade da pessoa humana interessa não só pelo seu caráter principiológico, mas também, no presente estudo, pelo seu relacionamento com os direitos sociais.


3 DIGNIDADE HUMANA SOB O PRISMA KANTIANO


É comum lermos em jornais, revistas e artigos a importância de se preservar a dignidade da “pessoa” humana.


Porém, o que vem a ser a “pessoa”?


Esta é uma questão que há centenas de anos muitos procuraram responder. Porém, até hoje, não há conceito uníssono e que se possa afirmar como correto, mesmo ante larga e profunda reflexão.


Há quem diga que a pessoa é o conjunto do corpo, com a alma, inteligência e vontade.


Na verdade, seria muita pretensão compreender a pessoa apenas em sua estrutura interna.


A filosofia kantiana é responsável por uma importante contribuição a respeito. Nela, por pessoa, entende-se mais que um objeto, ou seja, como valor absoluto e insuscetível de coisificação.


Kant aprofunda o conceito de pessoa a ponto de se encontrar um sujeito tratado como “um fim em si mesmo” e nunca como meio a atingir determinada finalidade.


Enfatiza Cleber Francisco Alves[8] que Kant dá um tratamento especial a dignidade da pessoa humana, tendo em vista que enfoca a dimensão individual da personalidade humana e a sua dimensão comunitária social.


Desta forma:


“[…] diríamos, de seu caráter enigmático, a pessoa humana – na dignidade que lhe é própria – vem sendo colocada como pedra angular, vértice e ponto e ponto de referência do ordenamento jurídico, quer seja no âmbito dos diversos Estados nacionais contemporâneos, quer no âmbito supranacional.”[9]


Numa análise do desenvolvimento intelectual de Immanuel Kant verificamos que o ponto central de seus estudos era o homem, a liberdade e o individualismo.


Por meio do estudo de sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes,[10] percebe-se um a influência de pensamento burguês somado ao empirismo, sensualismo e o racionalismo. Nela observa-se, ainda a existência de condições consideradas como um a priori ao pensamento e da ação moral do homem.


Kant diverge dos tradicionais racionalistas na medida em que estes se valem dessa condição a priori como base para explicar a moral.


Segundo Kant, a metafísica, a existência de uma realidade transcedental, como a existência de Deus e/ou a imortalidade da alma não são as condições a priori.


Ainda nesse liame temos que a causa é, na verdade, uma forma de pensamento e, seu uso correto se dá através da experiência.


No que tange a produção de conhecimento, para Kant é necessário a existência do objeto que desencadeará a ação do pensamento, sendo ele o ponto de partida, o início de todo pensamento. Mas é indispensável a existência de um ser pensante, capaz de sentir e captar essas impressões, que no caso é o homem.


Assim, segundo os racionalistas a certeza matemática e da física está extremamente vinculada a razão e a experiência; em contrapartida Kant reflete sobre a metafísica como sendo um conhecimento especulativo da razão, sendo então uma forma de obter um caminho seguro que não pode ser pela experimentação.


Na Critica da Razão Pura,[11] Kant analisa o método de produção de conhecimento. Apesar de acreditar que somente por meio da razão pura conseguiríamos obter uma sociedade ideal, Kant afirma que a razão é inerente ao homem, é algo a priori.


Logo, a razão seria a organização de conceitos, estabelecendo regras de comportamento aos homens que somente é alcançada por meio da ciência, diferente do empírico, que nada mais é do que a experiência de vida acumulada.


A sensibilidade, portanto, é a capacidade da mente receber passivamente representações diversas do objeto, sendo o entendimento a faculdade de organizar as sensações do objeto. Segundo o filósofo, ambos são extremamente necessários para a elaboração do conhecimento.


Essa capacidade de sensibilidade, ou seja, de obter sensações dos objetos, está no homem a priori, precedendo qualquer experiência, é a chamada intuição pura.


Assim, se retirarmos a sensibilidade, ou seja, tudo que vem da sensação, (cor, textura, etc) só nos restará a intuição pura.


Uma vez que o tempo e o espaço são condições, influências externas do meio na capacidade de captação de sensações do homem, a medida que somos afetados pelo objeto concluímos que não intuímos as coisas tal como são em si mesmas, mas sim do modo como elas nos aparecem.


Para Kant o objeto deve ser necessariamente submetido ao sujeito, pois tem o fenômeno como sendo o resultado da relação do objeto com o sujeito.


Kant, nesse sentido, separa os conceitos a priori e a posteriori, considerando que a priori são os existentes ao homem antes de qualquer experiência, enquanto que o a posteriori os obtidos a partir de abstrações das percepções empíricas.


Percebendo então a necessidade da faculdade da imaginação, que também é afetada pelas condições temporais em que os conceitos (apriori ou a posteriori) serão aplicados sobre os objetos da experiência, a imaginação nada mais é do que o elo entre os conceitos intelectuais e a sensibilidade.


A imaginação é algo que podemos usar livremente enquanto que a razão deve ser desvinculada da intuição, da imaginação, da sensibilidade.


Logo, três para ele seriam as faculdades envolvidas na produção de conhecimento, a sensibilidade (que possibilita que o conhecimento se inicie por meios de intuições), a imaginação (que produz esquemas ou regras de síntese) e o entendimento (que julga), todas inerentes ao homem.


Kant adota a chamada “revolução copernicana”, ou seja, ao invés do sujeito cognoscente girar em torno dos objetos, estes que giram ao redor dele. Nota-se aqui a inversão do centro de preocupações, passando o homem a ser o núcleo de todas as problemáticas.


Kant estabelece o conceito de razão prática. Para ele,  a vontade nada mais é do que a faculdade do homem de escolher só aquilo que a razão reconhece como praticamente necessário.


Kant propõe, dessa forma, uma moral guiada por leis a priori.


O imperativo categórico de Kant, segundo a razão, seria os elementos que esta considera como necessário, um dever.


Nessa seara, Kant estabelece como imperativo categórico, a LIBERDADE do homem. Que para ser realmente livre necessita de condições para exercer esta liberdade, que nada mais são do que os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana, condições estas que devem ser proporcionadas pelo Estado.


Essa essência humana deve ser respeitada, pois é um existir a priori, o que significa não procurar normas no agir humano, na experiência, pois seria submeter um homem a outro homem. Conservando o que caracteriza o ser humano, que o faz dotado de dignidade especial, o apresenta para nunca ser meio para os outros, e sim um fim em si mesmo.


Immanuel Kant[12] aborda a dignidade a partir da autodeterminação ética do ser humano, sendo a autonomia o alicerce da dignidade. Segundo a teoria da autonomia da vontade o ser humano é capaz de autodeterminar-se e agir conforme as regras legais, qualidade encontrada apenas em criaturas racionais. Logo, todo ser racional existe como um fim em si mesmo e não como um meio para a imposição de vontades arbitrárias.


Nesse sentido, “todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim”.[13]


Levando em consideração esse pensamento é que podemos classificar o ser humano em PESSOA.


Ainda nesse sentido, Kant[14] postula:


“No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisas tem um preço, pode por-se em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade […]. Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade?”


Pode-se pois constatar a forma antropocêntrica de encarar a dignidade, uma vez que a filosofia kantiana a torna privilégio dos seres racionais, colocando de imediato o ser humano no centro das transformações e do mundo. Essa questão possibilita o conflito com os valores admitidos pelo direitos de terceira geração, que são os direitos que se assentam sobre a fraternidade. Estes não pertencem ao indivíduo, e nem a coletividade, mas sim ao gênero humano. Compõe-se pelos direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito à propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito à comunicação; em suma, considera, por exemplo, o meio ambiente como sendo uma necessidade para a obtenção da dignidade da pessoa humana.


O homem deve ser entendido como um fim em si mesmo, razão pela qual lhe é atribuído valor absoluto: a dignidade. A respeito, ainda, e de acordo com a terminologia empregada por Miguel Reale,[15] é oportuno destacar três concepções da dignidade da pessoa humana: individualismo, transpersonalismo e personalismo.


Para o individualismo, o homem, cuidando dos seus próprios interesses, indiretamente, protege e realiza os interesses coletivos.


No transpersonalismo é o contrário: deve-se realizar o bem coletivo para salvaguardar os interesses individuais. Inexistindo harmonia entre o bem do indivíduo e o bem do todo, preponderam os valores coletivos.


O personalismo refuta as concepções individualista e coletivista. É um “meio termo”, ou seja, não há de se falar em predomínio do indivíduo ou do todo. Busca-se a solução na compatibilização entre os valores, considerando o que toca ao indivíduo e o que cabe ao todo.


A Constituição brasileira de 1988 elevou o princípio da dignidade da pessoa humana à posição de fundamento da República Federativa do Brasil. Dessa forma, não fez outra coisa senão considerar que o Estado existe em função de todas as pessoas e não estas em função do Estado. Assim, toda ação estatal deve ser avaliada considerando-se cada pessoa como um fim em si mesmo ou como meio para outros objetivos, sob pena de inconstitucional. Procura-se, com isso, compatibilizar valores individuais e coletivos.


4 A DIGNIDADE HUMANA COMO VALOR CONSTITUCIONAL


Segundo Pietro Alarcón de Jesús,[16] a tendência dos ensinamentos constitucionais é no sentido de reconhecer e valorizar o ser humano como a base e o topo do direito.


No período pós Segunda Guerra Mundial o que prevalecia era um ambiente envolto sob a neblina da dignidade da pessoa humana como sendo um valor indispensável para a instauração de um Estado de Direito Democrático promissor.


Nesse sentido a Constituição Italiana de 1947 consagrou o princípio da dignidade da pessoa humana em seu artigo 3º, com a seguinte expressão: “todos cidadãos tem a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.


E, em 1949 a Assembléia das Nações Unidas consagrou expressamente as palavras: “A dignidade do homem é intangível. Os poderes públicos estão obrigados  a respeitá-la  e protegê-la”.


Em 1976, a Constituição da República Portuguesa expressou: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.


Nessa mesma linha a Constituição Espanhola estabeleceu que: “(…) A Dignidade da Pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos dos outros são fundamentos da ordem política e da paz social”.


A Constituição da Alemanha Ocidental do pós-guerra possui, segundo tradução de Nelson Nery Junior, em seu artigo inicial feita por Rizzatto Nunes[17] a seguinte afirmação: “A dignidade humana é intangível. Respeitá-la, e protegê-la é obrigação de todo o poder público”.


Devido à experiência nazista vivida na Alemanha, foi possível verificar a importância e a conscientização de preservar a dignidade da pessoa humana, deixando clara a responsabilidade Estatal, tanto no âmbito interno como no âmbito externo, de garantir aos indivíduos esse direito.


Na França, apesar de não se encontrar de forma explícita e expressa na constituição de 1958, o princípio da dignidade da pessoa humana é utilizado por hermenêutica através do Conselho Constitucional.


Nas constituições européias a dignidade da pessoa humana está presente e sendo consagrada a cada dia.


Dessa forma, a Constituição de 1990 da Croácia traz este princípio em seu artigo 25º, a da Bulgária de 1991 e da República Tcheca de 1992 em seus preâmbulos, a da Romênia, Letônia em seu artigo 1º, já a da Eslovênia, Lituânia e Rússia em seu artigo 21º e por fim a da República da Estônia de 1992 em seu artigo 10°.


No que tange aos países latinoamericanos, a Constituição da Colômbia no artigo 42º afirma o direito a dignidade da família como sendo inviolável.


A dignidade, como espécie de principio fundamental, serve de base para todos os demais princípios e normas constitucionais, inclusive as normas infraconstitucionais.


Sendo assim, não há como se falar em desconsideração da dignidade da pessoa humana em nenhuma forma de interpretação, aplicação e/ou criação de normas jurídicas, pois, se trata de um supraprincípio constitucional.


No Brasil, com base em Cleber Francisco Alves[18] a Constituição do Império de 1824 já representou um papel ativo no que se refere a alguns direitos fundamentais como a liberdade, a segurança individual e a propriedade. E, nesse sentido ratificava os princípios da igualdade e da legalidade, ou seja, estabelecia que nenhuma lei seria imposta sem utilidade pública e acarretaria recompensa ou castigo de forma proporcional à aquele que merecesse, incluindo  a abolição de privilégios.


Porém não havia ainda menção expressa a dignidade da pessoa humana nas primeiras cartas constitucionais brasileiras, o que veio a ser expresso pela primeira vez na Constituição brasileira de 1934, no seguinte contexto do artigo 115º: ”a todos existência digna”.


A partir deste momento se tornou imprescindível, mesmo que indiretamente, a abordagem constitucional da dignidade da pessoa humana.


5 A DIGNIDADE HUMANA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988


A Carta de 1988 apresenta como característica a clareza no que se refere à importância da dignidade humana, em conseqüência de todo o contexto histórico já relatado.


Nesse sentido, como pano de fundo, a Constituição Federal do Brasil de 1988 foi elaborada num cenário de pós-ditadura e de abertura política, aliados ao profundo sentimento da necessidade de solidariedade entre os povos.


Assim, nota-se a expressão de uma nova era das garantias individuais, resultado de lutas e abusos no árduo caminho do reconhecimento dessas liberdades, até se alcançar a promulgação desse texto.


Em conformidade com o capítulo I deste trabalho, pode-se afirmar que esta é a Constituição mais democrática que o Brasil já teve, tendo em seu corpo blocos de direitos sociais, individuais e coletivos, tanto no sentido de princípios como comandos.


Analisando a estrutura da Constituição de 1988, Benizete Ramos de Medeiros,[19] se valendo dos ensinamentos de Ana Paula de Barcellos, classifica a dignidade da pessoa humana dentro do sistema constitucional em níveis, normas, princípios e subprincípios, e regras.


Em nível I, no seu preâmbulo, a Constituição faz menção ao Estado Democrático de Direito como forma de garantir os exercícios dos direitos sociais e individuais.


Em seqüencia, no artigo 1º, incs. I e II e no artigo 170, caput, verifica-se a incumbência da ordem econômica em assegurar a todos uma existência digna.


No artigo 226, §7º, foi dado  ênfase a família, como forma de garantir a dignidade da pessoa humana.


Em nível II, o artigo 3º, inc.III e o artigo 23, inc.X, apresentado como “dos objetivos fundamentais”, é o responsável pela afirmação da “exterminação da pobreza e das desigualdades sociais”.


No nível III, a Carta Magna traz, em seu artigo 6º o mínimo que cada indivíduo necessita: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.


Destarte, todos os direitos sociais acima citados estão intimamente ligados a dignidade da pessoa humana


Entretanto, na prática, o Estado não tem conseguido garantir esse “mínimo constitucional”, o que, aliado a ignorância do povo quanto aos seus direitos ou de como exercê-los, tem como resultado a falta de aplicabilidade da vontade do legislador constituinte.


Esse fato também pode ser visto no que tange a saúde, onde pessoas enfermas são desrespeitadas todos os dias nos hospitais e postos de saúde.


Assim, proporcional é a matemática da dignidade, quanto maior a qualidade da dignidade, maior é a dificuldade de garanti-la, não apenas por parte do Estado, mas também por parte dos cidadãos que convivem entre si, podendo entre eles um violar a dignidade do outro.


Ao se ter na dignidade a bússola orientadora dos direitos perdidos e ineficazes, não se tem, todavia, garantia de que o navio pródigo consiga chegar lá.


A Constituição aborda, também, a dignidade da pessoa humana em seu duplo significado, ora como princípio fundamental, ora como princípio geral.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Kant, o principal teórico na construção do princípio da dignidade da pessoa humana, parte da premissa de que nenhuma pessoa é passível de valoração, pois, sendo detentora de racionalidade gera a possibilidade de autoafirmação, ou seja, a liberdade em seu sentido amplo.


Dessa metafísica, dessa transcendentalidade do homem é que surge a dignidade e a liberdade, que nada mais são do que valores respaldantes de todo o ordenamento jurídico.


Os direitos fundamentais evoluíram com grande intensidade no sentido de proteger o indivíduo em sua dignidade, porém, se faz necessário ampliar o conceito desses valores e promover a emancipação da sociedade, mais um passo da raça humana no sentido de distribuir de forma equânime o que, pelo trabalho de todos, foi e é conquistado.


Ante a uma sociedade cuja desigualdade ainda é a marca; ante a um contexto de vida onde o capitalismo e outras ideologias alimentam o individualismo; ante aos reclamos da atualidade, em que valores e vidas são constantemente depredados, pondo em risco o próprio planeta, só resta a esperança de um projeto mais solidário para a raça humana.


Assim, propomos a reflexão a respeito do mundo, do estado de nossa humanidade, de que o mundo pode ser imaginado a partir da possibilidade de admitir o outro não como um alguém além de nós, mas o outro enquanto um “alguém em nós”.


A ação humana é capaz de orientar os caminhos da história e da existência individual e coletiva. Uma condição fundamental do ser humano é sua estrutura comunicativa e justamente por essa razão deve estar em constante processo de socialização.


Cabe aos operadores do Direito esse papel de transformação, utilizando a DIGINIDADE DA PESSOA HUMANA como HERMENÊUTICA, a partir da Constituição Federal, sempre objetivando a ampliação do princípio da solidariedade humana para além das fronteiras das palavras, reconhecendo que a civilização só evoluiu e evoluirá quando todos, juntos, pudermos assumir um projeto de vida que leve em consideração nossa essência: seres sociais que somos, a caminho de um mundo sempre melhor e todos em busca do maior direito de todos: O DIREITO À FELICIDADE.


 


Referências:

ALARCÓN. Pietro de Jesús Lora. Patrimônio Genético Humano: e Sua Proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método, 2004.

ALVES, Cleber Francisco. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: o Enfoque da Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

CAMARGO, A. L. Chaves. Culpabilidade e Reprovação Penal. São Paulo: Sugestões Literárias, 1994.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2006. Coleção A Obra-Prima de Cada Autor.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2006. Coleção A Obra-Prima de Cada Autor, 2006.

MEDEIROS, Benizete Ramos. Trabalho com Dignidade: Educação e Qualificação é Um Caminho? São Paulo: LTR, 2008.

NUNES, Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: doutrina e jurisprudência. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Vida Digna: Direito, Ética e Ciência. In: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. (coord.). O Direito à Vida Digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004.

SARLET, Ingo Wolfgand. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

SARLET, Ingo Wolfgand. Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito Constitucional. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2005.

SANTOS, Fernando Ferreira. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: Uma Análise do Inciso III, do Art. 1º, da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Celso Bastos Editor, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999.


Notas:

[1]    ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Vida Digna: Direito, Ética e Ciência. In: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes (coord.). O Direito à Vida Digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 17.

[2] Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 29-37.

[3] ALVES, Cleber Francisco. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: o Enfoque da Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 18.

[4] Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: Uma Análise do Inciso III, do Art. 1º, da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Celso Bastos Editor, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 19-20.

[5] O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: Doutrina e Jurisprudência. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 49.

[6] Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito Constitucional. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2005, p. 45-46.

[7] Culpabilidade e Reprovação Penal. São Paulo: Sugestões Literárias, 1994, p. 27-28.

[8] ALVES, Cleber Francisco. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: O Enfoque da Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 1-9.

[9] Ibidem, mesma página

[10] Tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 86-87. Coleção A Obra-Prima de Cada Autor.

[11] Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 70. Coleção A Obra-Prima de Cada Autor.

[12] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2006. Coleção A Obra-Prima de Cada Autor, 2006, p. 134 e 141.

[13] SARLET, Ingo Wolfgand. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 32-33.

[14] Apud ibidem, p. 33.

[15] Filosofia do Direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 277.

[16] Patrimônio Genético Humano: e Sua Proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método, 2004, p. 244-256.

[17] NUNES, Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: doutrina e jurisprudência. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 48.

[18] ALVES, Cleber Francisco. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: O Enfoque da Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 125-126.

[19] Trabalho com Dignidade: Educação e Qualificação é Um Caminho? São Paulo: LTR, 2008, p. 28-41.

Informações Sobre os Autores

Cibele Kumagai

Bacharel em direito pela Universidade Eurípedes de Marília (UNIVEM). Pós-graduada em Direito do Estado-Tributário pela Universidade Estadual de Londrina-UEL. Mestranda em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino (Bauru-SP). Advogada.

Taís Nader Marta

Mestre em Direito Constitucional. Advogada. Professora de Graduação em Direito e de Cursos de Pós Graduação


Equipe Âmbito Jurídico

Recent Posts

Prejuízos causados por terceiros em acidentes de trânsito

Acidentes de trânsito podem resultar em diversos tipos de prejuízos, desde danos materiais até traumas…

3 dias ago

Regularize seu veículo: bloqueios de óbitos e suas implicações jurídicas

Bloqueios de óbitos em veículos são uma medida administrativa aplicada quando o proprietário de um…

3 dias ago

Os processos envolvidos em acidentes de trânsito: uma análise jurídica completa

Acidentes de trânsito são situações que podem gerar consequências graves para os envolvidos, tanto no…

3 dias ago

Regularize seu veículo: tudo sobre o RENAJUD

O Registro Nacional de Veículos Automotores Judicial (RENAJUD) é um sistema eletrônico que conecta o…

3 dias ago

Regularize seu veículo: como realizar baixas de restrições administrativas

Manter o veículo em conformidade com as exigências legais é essencial para garantir a sua…

3 dias ago

Bloqueios veiculares

Os bloqueios veiculares são medidas administrativas ou judiciais aplicadas a veículos para restringir ou impedir…

3 dias ago