Resumo: A questão do sistema carcerário brasileiro é um problema grave de pleno conhecimento de todos, em especial de nossos governantes. Mas, embora seja do conhecimento de todos está longe de qualquer solução. Por isso nada me surpreendeu quando li os dados referentes à população carcerária brasileira na última catalogação realizada pelo Sistema Integrado de Informação Penitenciária – INFOPEN em dezembro de 2009. É com base nesses dados que fazemos uma analogia entre o sistema carcerário do Brasil no século XXI e os navios negreiros que aqui aportavam no século XVIII.
Palavras-chave: Prisões. Preso. Direito. Execução Penal. Carcerário.
Abstract: The issue of the Brazilian prison system is a serious problem with the knowledge of everyone, especially our leaders. While it is common knowledge is far from any solution. So nothing surprised me when I read the data on the prison population in Brazil last cataloging performed by the Integrated Information Penitentiary – INFOPEN in December 2009. It is based on that data we do an analogy between the prison system in Brazil in the XXI century and the slave ships that docked here in the eighteenth century.
Keywords: Prisons. Arrested. Right. Criminal Enforcement. Prison.
Sumário: 1. Prisões do século XXI: os navios negreiros do século XVIII. Bibliografia.
1. Prisões do século XXI: os navios negreiros do século XVIII
Em sua obra 1808, o jornalista Laurentino Gomes (2007, p. 227) relata as palavras do cônsul inglês James Herderson, que descreveu o desembarque de escravos na cidade do Rio de Janeiro no século XVIII: “Os navios negreiros que chegam ao Brasil apresentam um retrato terrível das misérias humanas. O convés é abarrotado por criaturas, apertadas umas às outras tanto quanto possível. Suas faces melancólicas e seus corpos nus e esquálidos são o suficiente para encher de horror qualquer pessoa não habituada a esse tipo de cena. Muitos deles, enquanto caminham dos navios até os depósitos onde ficarão expostos para venda, mais se parecem com esqueleto ambulantes, em especial as crianças. A pele, que de tão frágil parece ser incapaz de manter os ossos juntos, é coberta por uma doença repulsiva, que os portugueses chamam de sarna”.
Se o mesmo cônsul inglês tivesse a oportunidade de conhecer uma prisão brasileira em pleno século XXI, sem sombra de dúvidas suas palavras não seriam tão diferentes das acima relatadas.
A questão prisional no Brasil é um problema grave de pleno conhecimento de todos, e diga-se, longe de qualquer solução. Por isso nada me surpreendeu quando li os dados referentes à população carcerária brasileira na última catalogação realizada pelo Sistema Integrado de Informação Penitenciária – INFOPEN em dezembro de 2009.
No Brasil há cerca de 473.626 (quatrocentos e setenta e três mil, seiscentos e vinte e seis) presos, dos quais 442.225 (quatrocentos e quarenta e dois mil, duzentos e vinte e cinco) são homens e 31.401 (trinta e um mil, quatrocentos e um) são mulheres. Estes números são referentes apenas aos presos que já foram julgados e condenados por sentença condenatória irrecorrível. Portanto, ficaram de fora desta estatística aqueles detidos que se encontram em carceragens de delegacias superlotadas, muitas vezes ali mesmo aguardando o julgamento ou transferência para uma casa de detenção.
No que tange a quantidade de vagas prisionais, pasmem: no Brasil há nada mais nada menos que 294.684 (duzentos e noventa e quatro mil, seiscentos e noventa e quatro) vagas. Ou seja, há um déficit de 178.942 (cento e setenta e oito mil, novecentos e quarenta e duas) vagas. Fato este que poderia levar o matemático e físico inglês Isaac Newton a rever a sua famosa teoria de que “dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço”. Relembre-se que estes dados não levam em consideração as carceragens das delegacias, diga-se, ainda piores.
No documentário “Justiça” (2004), da diretora Maria Augusta Ramos os presos relatam que “para dormir tem que se fazer revezamento”, ou seja, enquanto alguns dormem outros devem ficar de pé aguardando o seu momento para deitar-se. No mesmo documentário, o ápice do absurdo é ver um preso sendo condenado e desistindo de recorrer da sentença condenatória. Pois, caso ele recorresse teria que ficar mais uns seis meses na carceragem da delegacia. E, isso, ele não queria mais. Preferia ir logo para o presídio onde a situação seria “menos pior” do que ficar na carceragem da delegacia, onde a situação beirava o desumano.
O problema parece estar longe de ser solucionado, visto que, a cada ano que passa o número de presos aumenta. Segundo dados do Sistema Integrado de Informação Penitenciária – INFOPEN, no ano de 2000 o Brasil possuía 222.643 (duzentos e vinte e dois mil, seiscentos e quarenta e três) presos, em 2006 passou para 378.171 (trezentos e setenta e oito mil, cento e setenta e um), e, atualmente (dados referentes a dezembro de 2009) esse número chegou a 442.225 (quatrocentos e quarenta e dois mil, duzentos e vinte e cinco).
Observa-se que nos últimos dez anos o número de presos praticamente dobrou no nosso país. Este problema é obvio, mas ninguém discute. Por conseguinte, é mais fácil discutir os problemas superficiais -, aumento do número de policiais, viaturas, juízes, promotores, modificações legislativas emergenciais e construções de presídios, do que se discutir os problemas de base. Sobre essa perspectiva aduzira Jefffery citado por Antonio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes (2000, p. 340) que “mais policiais, mais penitenciárias, mais juízes podem significar mais encarceramentos, mas não menos crimes”.
Do ponto de vista criminológico, a prevenção e repressão da criminalidade deveriam seguir três vertentes: prevenção primária, prevenção secundária e prevenção terciária.
A prevenção primária é aquela que vai à raiz do problema, atingindo todos os cidadãos, quando o Estado promove educação, trabalho, renda, moradia, saúde etc., enfim, investimentos sociais. Acontece que, atuam a médio e longo prazo. Já a secundária é aquela que atua de forma intermediária, atingindo parcela dos cidadãos, quando, por exemplo, criam-se dificuldades pontuais para a prática delituosa (blitz policiais, pacificação de determinadas comunidades etc.), aqui, os resultados são vistos a curto e médio prazo. Por fim, a prevenção terciária atua de forma específica na pessoa do condenado, assim, evita-se que aquele que já cometeu o crime venha a cometer novos delitos quando sair da prisão, ou seja, busca a ressocialização e a reeducação do condenado.
Você pode se perguntar: já que a prevenção primária é a que se pode colher os melhores frutos para a sociedade, por que não é aplicável? A resposta é simples. Esta modalidade de prevenção leva tempo para se ter os primeiros resultados e, politicamente, não vale a pena, pois a eleição é de quatro em quatro anos e as respostas para a sociedade devem ser “imediatas”, ainda que venham a custar mais caro no futuro. Por isso, é melhor ficar na análise dos problemas superficiais e criar uma falsa sensação de segurança imediata do que se construir uma sólida sensação de segurança em longo prazo.
É notório que a superlotação do sistema carcerário brasileiro, obsta a aplicação efetiva da Lei de Execuções Penais – LEP, como, por exemplo, a ressocialização e reeducação dos condenados. Em uma análise mais profunda, podemos dizer que o sistema prisional brasileiro segue uma trilogia condenatória. Primeiro, condena o preso pelo crime que ele cometeu. Segundo, devido à ingerência estatal nos presídios, os presos que lá chegam são submetidos a todo tipo de tratamento desumano e degradante por organizações criminosas. Um exemplo desse segundo aspecto é o valor que os presos são obrigados a pagar para a manutenção da organização, inclusive, após a saída da prisão (se mantém o dever eterno de fazer essa contribuição).
Ou seja, o preso entrou no presídio para ser ressocializado, mas devido à falta de controle interno por parte do Estado, estará condenado à eternamente manter vínculo com determinada organização criminosa, mesmo que não queira, pois, caso contrário pagará com a própria vida. Por fim, em terceiro lugar, mesmo após o cumprimento de sua pena, ainda que tenha conseguido se ressocializar nesse sistema cruel, não será aceito pela sociedade devido ao fato de ser tachado com “ex-criminoso”. Assim, segundo Vera Malaguti (2003, p. 50) a prisão “converte-se em um local de constituição de um saber que regula a administração penitenciária e que transforma o infrator condenado e delinqüente”.
No mesmo diapasão Michel Foucault (2008, p. 221) aduz que “As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta (…) a prisão, conseqüentemente, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinqüentes perigosos”.
Esse é só mais um reflexo das mazelas da nossa sociedade que passa despercebida em nosso dia a dia. Afinal, quando se trata de presos está se tratando de excluídos. É neste contexto que Jock Young (2002, p. 167) relata o processo de demonização do preso, em especial pelos meios de comunicação de massa, onde tal processo permitiria “a perpetuação da atrocidade”, diga-se, o desrespeito perene aos direitos humanos.
E no sistema penal – em especial no prisional, esse processo de demonização encontra terreno fértil, conforme afirma o penalista Eugênio Raúl Zaffaroni (2007, p. 11) que excluídos são não-pessoas (inimigos que deveriam ser extirpados da sociedade), entes perigosos ou daninhos “e, por conseguinte, a eles é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, isto é, das garantias que hoje o direito internacional dos direito humanos estabelece universal e regionalmente”.
Mas, quais seriam esses direitos humanos básicos estabelecidos de forma universal a todos os presos? A resposta pode ser encontrada na Lei de Execuções Penais – Lei nº. 7.210/1984, onde deve haver assistência material (fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas), assistência à saúde (atendimento médico, farmacêutico e odontológico); assistência jurídica (acompanhamento de advogado); assistência educacional (formação escolar e profissional); assistência social (formas de preparação para o retorno a sociedade) e, assistência religiosa (liberdade de culto dentro das prisões).
Talvez, a falta de tais direitos pode ser respondida, pelo pensamento de George Rusche e Otto Kirchheimer (2004, p. 153) onde “o limite mais alto para as despesas com os prisioneiros era, portanto, determinado pela necessidade de manter o seu padrão de vida abaixo das classes subalternas da população livre”.
Alguns meses atrás assisti uma reportagem em determinada emissora de televisão, falando da falta de aplicabilidade da Lei de Violência e Doméstica e Familiar Contra a Mulher – lei nº. 11.340 de agosto de 2006, ou seja, passados menos de quatro anos já estão discutindo sua aplicação. Acontece que a lei de execução penal é de 11 de julho de 1984, já tendo completado vinte e seis anos, e até hoje ninguém parou para discutir o seu não-uso.
De todo exposto, quando se fala em escravidão muitas pessoas fazem um breve retrospecto e lembram-se dos absurdos que os negros africanos foram submetidos durante vários anos em nosso país. Daqui, quem sabe, há alguns séculos os nossos descendentes olhem para trás e veja os absurdos que nós praticávamos no nosso sistema prisional sem nos dar conta de que os absurdos eram absurdos.
Advogado. Especialista em Direito do Estado. Professor de Direito Penal e Legislação Penal Especial das Faculdades 2 de Julho. Professor de Ética, Direitos Humanos e Cidadania do Curso de Formação de Oficiais do Estado da Bahia.
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