Sabe-se que o poder geral de cautela do magistrado é mais elaborado no campo do direito processual civil e que, em matéria penal, somos muito mais fartos de medidas cautelares contra o cidadão, justificadas em nome da tão proclamada defesa social, do que em prol da liberdade.
Desde as prisões cautelares às buscas e apreensões, passando pelas interceptações telefônicas e pelas medidas inominadas da Lei 11.340/06, o sistema penal é rico de ações restritivas de direitos que reforçam a natureza policialesca do poder público, preocupado mais com a ordem aparente do que verdadeiramente com o cumprimento da Constituição ou das leis, desrespeitadas principalmente por ele próprio.
Se o princípio da legalidade devia limitar tais medidas ao estrito regramento legal, na esfera penitenciária temos a execução penal provisória e a regressão cautelar, entre outras medidas que não estão legalmente previstas e, nesse campo, aumentam o espectro de ilegalidade da situação do preso.
O poder geral de cautela do juiz deriva do inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito), devendo o Judiciário agir para preservar a tutela jurisdicional ameaçada. Se a demora na prestação jurisdicional puder causar a inocuidade da própria tutela que se visa, nasce a possibilidade da atividade cautelar. Portanto, o poder geral de cautela do magistrado é inerente à sua própria função, porque diversas situações práticas não podem ficar à mercê da ausência de previsão legislativa, notadamente quando se trata de garantia de direitos fundamentais.
Pois bem, não há risco maior para a vida de um cidadão do que a perda de sua liberdade, quanto mais sendo esta privada dentro de um sistema cruel e abarrotado de abusos de variadas ordens. O periculum in mora, requisito da medida cautelar, no sistema penitenciário, está consubstanciado na própria reclusão do ser humano.
Não é admissível, então, que o juiz mantenha o preso em regime fechado para aguardar a vinda aos autos de qualquer documento que não esteja presente na data em que a lei prescreve para a progressão de regime. Se qualquer falta disciplinar deve ser comunicada ao juiz da execução, conforme o disposto no art. 153 e no parágrafo único do art. 48, ambos da LEP, havendo a comprovação de que o preso já cumpriu tempo de pena suficiente para ser transferido de regime, e não estando nos autos qualquer comunicação de falta grave, a sua progressão se impõe, ainda que cautelarmente.
O fumus boni iuris e o periculum in mora da medida estarão presentes, aquele resultado do tempo de pena cumprido sem informação de infração disciplinar e este na situação de risco que corre o apenado se mantido em regime mais grave além do período previsto em lei.
Cumprido o tempo de pena necessário para a progressão de regime ou para a concessão de qualquer direito previsto em lei que amenize ou abrevie o tempo de privação de liberdade, deve o magistrado providenciar para que preso seja imediatamente posto na situação menos desfavorável. Diante da obrigação de a direção do estabelecimento penal comunicar qualquer infração disciplinar ao juízo da execução, presume-se sempre de bom comportamento o apenado, portanto perfeitamente viável a antecipação da tutela penal.
Não obstante, não é como tem agido a jurisprudência majoritária, ocorrendo que muitos magistrados têm mesmo determinado que o apenado volte para o regime fechado para que seja realizado exame criminológico[1], este que, pela própria lei (art. 34 do CPB), já deveria ter sido realizado no início do cumprimento da pena. No caso, o que se tem feito é prejudicar o preso pela inoperância, inércia e incúria do próprio Estado.
O uso do poder geral de cautela como forma de garantia da liberdade cerceada irregularmente não deriva somente dos pressupostos genéricos da medida cautelar. No processo penal e no processo de execução penal o resguardo do status libertatis do cidadão é exigência reforçada por outros dispositivos legais.
Os artigos 647 e 648 do CPP, consideram coação ilegal manter alguém preso por mais tempo do que determina a lei, situação passível de concessão de habeas corpus. E o artigo 5º, LXV, da Constituição Federal, de forma ampla determina que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”, indicando que, independentemente de qualquer procedimento, requerimento ou mesmo impetração de habeas corpus, o magistrado deve imediatamente agir para fazer cessar qualquer constrição à liberdade.
Assim, se o apenado possui direito ao regime semiaberto ou ao aberto, direito este que se demonstra perfeitamente viável conforme os documentos que constam nos autos, não há como retardar a transferência de regime, sob pena de se estar incorrendo em evidente constrangimento ilegal.
Às regras que colocam o magistrado na posição de guardião da liberdade soma-se outra garantia constitucional: a do inciso LXXVIII, do art. 5º, da CF, que assegura a todos, no âmbito judicial e administrativo, “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. O direito à razoável duração do processo não pode permitir que se mantenha o cidadão preso no regime fechado aguardando realização de exame que por lei, repito, deveria ter sido feito no início da pena.
A garantia da razoável duração do processo foi introduzida no art. 5º da CF pela emenda da Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional nº 45, de 2004), e aos poucos timidamente vai sendo admitida e aplicada no âmbito da execução penal:
“EMENTA: PENAL. EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 112 DA LEI 7.210/84, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 10.792/03. PROGRESSÃO DE REGIME. REQUISITOS SUBJETIVOS. EXAME CRIMINOLÓGICO. DISPENSABILIDADE. EXCEPCIONALIDADE DO CASO CONCRETO. ORDEM CONCEDIDA. I – Nada impede que o magistrado das execuções criminais, facultativamente, requisite o exame criminológico e o utilize como fundamento da decisão que julga o pedido de progressão. II – Paciente que já cumpriu, de há muito, mais de 3/4 da pena. III – Na espécie, a realização do exame criminológico não seria concluída antes do cumprimento integral da pena restritiva de liberdade. IV – Direito à razoável duração dos processos administrativos e judiciais. Art. 5º, LXXVIII, da Constituição. V – Ordem concedida para assegurar a liberdade condicional ao paciente, nos termos que vierem a ser estabelecidos pelo Juízo da Execução” (STF, 1º Turma, HC 93108, Relator p/ Acórdão: Min. Ricardo Lewandowski, j. 25/11/2008).
A decisão acima é exemplo crasso de quanto um preso pode esperar para ver direito seu à liberdade efetivado. A garantia à razoável duração do processo veio tarde, após ter o processo passado por todas as instâncias judiciais possíveis, quando, segundo consta na ementa, o apenado já havia cumprido quase a totalidade da pena. E em situação idêntica estão inúmeros brasileiros que cumprem pena no nosso país, desde a mais longínqua comarca à capital brasileira.
Nada mais fez, o ministro Lewandowski, do que cautelarmente garantir a liberdade de preso que já havia cumprido período de pena excessivo. Tendo sido a medida tomada em habeas corpus, considerou o STF que o retardo na concessão de direito inerente à execução penal era tido como constrangimento ilegal. Por isso que tal decisão poderia e deveria ter sido proferida em primeira instância, em cumprimento ao art. 5º, LXV, da CF, evitando-se que o constrangimento ilegal se prolongasse, como de fato ocorreu, com todas as instâncias judiciais anteriores na posição de autoridades coatoras.
Em situações como as tais, em que para a progressão, ou também para o livramento condicional, falta algum documento, apesar do tempo de pena cumprido indicar a existência do direito subjetivo ao cumprimento da sanção de forma mais branda, deve o juiz da execução penal, aquele que vê o preso como um cidadão de direitos cumprindo uma pena regularmente estabelecida pelo Estado e não como um doente necessitando tratamento, conceder cautelarmente o direito inerente à execução da pena. Posteriormente, com a chegada do documento, ouvidas as partes, decide-se definitivamente o incidente.
Juiz da Vara de Execuções Penais e Coordenador da Escola Superior da Magistratura do Amazonas. Especialista em Direito Penal e Processual Penal, mestrando em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de São Paulo.
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