Provas ilícitas e o devido processo legal: Uma análise a partir da Lei nº. 11.690/2008

Resumo: Analisa o grau de realização do princípio do devido processo legal, a partir da novel redação emprestada ao artigo 157 do Código Processual Penal brasileiro pela Lei n.º 11.690/2008, referente à matéria de inadmissibilidade, no processo, das provas obtidas ilicitamente.


Palavras-chave: Devido Processo Legal. Direitos e Garantias Fundamentais do Acusado. Provas Ilícitas. Sistema de Inadmissibilidade. Sistema de Nulidade. Imparcialidade.


Sumário: Introdução; 1. Processo Penal como garantia do acusado; 2. A reconstrução dos fatos através da prova e a necessidade de limitações ao Estado; 3. A Lei n.º 11.690/2008 e suas inovações acerca das provas ilícitas; 4. A relação sujeito x objeto e as provas ilícitas (o vetado § 4º); Disposições Finais.


Introdução


Previsto no art. 5º, inciso LIV, o princípio do devido processo legal figura como direito e garantia fundamental àquele que se encontra sob o alvo de um processo judicial ou administrativo. Entender um processo como devido significa dizer que em todos os seus momentos devam ser obedecidas regras e princípios que o torne salutar e o faça atingir seu primordial objetivo de prestação efetiva da tutela jurisdicional. Dentre tais princípios decorrentes do processo devido, encontra-se a vedação constitucional inserta no inciso LVI do mesmo artigo, que diz serem “inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.


Com o fito de aumentar o grau de realização desse valor-princípio, a Lei n.º 11.690, de 10 de junho de 2008, trouxe inovações ao texto legal do Código de Processo Penal, alterando a redação de seu artigo 157 e acrescentando parágrafos ao mesmo, concernente ao tema da inadmissão de provas obtidas ilicitamente para o processo penal, de maneira a tornar uníssono, em âmbito constitucional e infraconstitucional, o discurso sobre a matéria, que já possuía assentos doutrinário e jurisprudencial bem firmados.


Tendo como ponto de partida a trilogia valorativa da citada lei reformadora, qual seja, buscar alterações com o escopo dar maior celeridade, simplicidade e segurança ao processo penal e com isso alcançar a efetiva prestação jurisdicional, verificar-se-á em qual medida a novel redação emprestada ao artigo 157 do Código Processual Penal realizará tais valores, sem, contudo, implicar em possíveis furtos aos direitos e garantias fundamentais do acusado.


Dar-se-á especial importância à vedação imposta pela Presidência da República ao § 4º do mencionado artigo do tabulário processual penalista, uma vez que desconsiderou a figura do juiz da causa como sujeito capaz de sofrer influenciações das provas obtidas ilicitamente e expurgadas do processo.


Ao desenvolvimento, pois.


1 Processo Penal como garantia do acusado


Antes do advento da Carta Política de 1988, o princípio fundamental que norteava o Código Processual Penal brasileiro era o da presunção de culpabilidade do acusado, sendo este apontado como potencial e virtual culpado. Dentro dessa perspectiva, o processo penal apresentava peculiares características de conotação evidentemente autoritárias, onde, na balança entre a tutela da segurança pública e a tutela da liberdade individual, prevalecia a preocupação quase que exclusiva com a primeira, e a busca da verdade real dava azo a práticas autoritárias e abusivas por parte dos poderes públicos.[1]


O caráter rígido que permeava o processo penal foi sofrendo flexibilizações com o passar dos tempos, sendo alteradas inúmeras regras restritivas do direito à liberdade. Com o advento da Constituição Federal de 1988, tais alterações operaram no sentido diametralmente oposto ao que apontava o antigo regime penal-processualista.


Segundo aponta Eugênio Pacelli[2], “enquanto a legislação codificada pautava-se pelo princípio da culpabilidade e da periculosidade do agente, o texto constitucional instituiu um sistema de amplas garantias individuais”. Continua o renomado autor, explicitando a mudança de ares trazida com o novo diploma político: “A mudança foi radical. A nova ordem passou a exigir que o processo não fosse mais conduzido, prioritariamente, como mero veículo da aplicação da lei penal, mas, além e mais que isso, que se transformasse em um instrumento de garantia do indivíduo em face do Estado”.[3]


O processo penal, portanto, passou a ser instrumento em favor do acusado, passando a ser devido, ou seja, deve obediência a uma série de princípios dos quais este (due process of law) é fonte fundamental. Desse modo, o processo penal é uma garantia que, antes de ser meio para a condenação, é meio de defesa efetiva do acusado, pois todos os seus princípios devem ser observados.


Nessa esteira, César Dario Mariano da Silva aponta:


“O processo, como o meio pelo qual o Estado exerce a jurisdição, tem de ser pautado pela estrita legalidade. Essa legalidade nada mais é do que a observância aos mandamentos constitucionais e legais que regem tanto o processo civil quanto o penal. É uma garantia das partes, que vêem no Estado o mecanismo para a solução de seus conflitos de interesses. Assim, há necessidade da perfeição do ato judicial para que ele possa produzir seus efeitos, sob pena de ser declarado inválido ou ineficaz”.[4]


As características que passaram a figurar no processo penal, dessa forma, apresentaram conotação amplamente garantista, de um processo construído sob os rigores da lei, da ética (na conduta) e do Direito, cuja observância passou a ser imposta a todos os agentes do Poder Público, de maneira que a verdade, agora judicial, fosse o resultado da atividade probatória licitamente desenvolvida.[5]


Para o momento, todavia, analisam-se, como garantias que devem ser asseguradas no processo penal, apenas a inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente e a imparcialidade do órgão julgador, quando em contato com as referidas provas de procedência ilícita, de acordo com a reformadora Lei Federal n.º 11.690/2008.


Primeiramente, mostrar-se-á em breves linhas como se deu a necessidade de imposição de limitações ao Estado, quando da persecução penal. Em seguida, discorre-se sobre as alterações advindas com a lei reformadora, visando a manifestação legal infraconstitucional a respeito da inadmissibilidade das provas ilicitamente obtidas, para, finalmente, tecer-se alguns comentários acerca da imparcialidade do juiz no tocante à matéria.


2 A reconstrução dos fatos através da prova e a necessidade de limitações ao Estado


Antes de se apontar as inovações trazidas pela Lei n.º 11.690/2008, mister fazer um breve incurso sobre o tema da realização da atividade probatória desenvolvida pelo Estado, quando funcionando em razão da persecutio criminis. Trata-se, simplesmente, da tentativa de busca da verdade para a aplicação do direito ao caso em espécie.


Conforme descreve Eugênio Pacelli[6],


“Ao longo de toda a sua história, o Direito defrontou-se com o tema da construção da verdade, experimentando diversos métodos e formas jurídicas de obtenção da verdade, desde as ordálias e juízo de deus (ou dos deuses), na Idade Média, em que o acusado submetia-se a determinada provação física (ou suplício), de cuja superação, quando vitorioso, se lhe reconhecia a veracidade de sua pretensão, até a introdução da racionalidade nos meios de prova.”


A partir dessa visão racionalista, onde se buscaram meios para a construção da realidade histórica dos fatos (delituosos), é que começaram a surgir limitações impostas ao Estado, no momento da persecução penal. Isto porque ele, o Estado, é o detentor monopolista da atividade jurisdicional e rejeita toda e qualquer forma de solução privada e unilateral dos conflitos, mormente os de natureza penal[7]. Desse modo,


“Para a consecução de tão gigantesca tarefa, são disponibilizados diversos meios ou métodos de prova, com os quais (e mediante os quais) se espera chegar o mais próximo possível da realidade dos fatos investigados, submetidos, porém, a um limite previamente definido na Constituição Federal: o respeito aos direitos e às garantias individuais, dos acusados e de terceiros, protegidos pelo imenso manto da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente.”[8] (grifo do autor).


A Lei n.º 11.690/08, em consonância com a limitação constitucional prevista, acabou por disciplinar a matéria da provas ilícitas no Código Processual Penal. Vejamos suas nuances.


3 A Lei n.º 11.690/2008 e suas inovações acerca das provas ilícitas


O já mencionado princípio da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente encontra previsão expressa em nossa Carta Constitucional, em seu artigo 5º, inc. LVI, e sofreu regulamentação da recente Lei reformadora do Código Processual Penal brasileiro, que alterou o seu artigo 157 e acrescentou parágrafos ao mesmo, passando a ter a seguinte redação:


Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.


§ 1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.


§ 2º Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.


§ 3º Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.


§ 4º O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão. (VETADO)”.


À época, Luiz Flávio Gomes já noticiava alguns dos benefícios mais evidentes trazidos pela alteração legal. Segundo o respeitado jurista, o artigo dava dois passos à frente, o primeiro determinando que as provas ilícitas deveriam ser desentranhadas do processo, e o segundo estando no conceito de provas ilícitas contido no corpo do artigo, qual seja: “as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. Para LFG, a nova regulamentação do art. 157, além de a) coibir práticas infracionais do próprio Estado e assegurar direitos e garantias individuais de todos, acabou por b) fixar parâmetros legais dentro dos quais não mais se poderá alegar nulidade.[9]


A questão de se coibirem práticas abusivas do Estado (primeiro ponto), quando da persecução penal, no que tange à obtenção de provas, já figurava como um discurso de rotina no âmbito jurisprudencial e doutrinário, sempre destacando a tutela das garantias individuais do acusado em face do aparato estatal. Significa dizer que o Estado não poderá a todo custo e de qualquer modo promover a persecução penal, podendo fazê-la somente de acordo com a estrita legalidade, a fim de encontrar a verdade judicial a partir de uma atividade probatória licitamente desenvolvida.


Quanto à fixação de parâmetros legais (segundo ponto), a nova redação dada ao art. 157, caput, do CPP diz serem ilícitas as provas obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. Todavia, pondera César Dario, tal violação não se opera a todo e qualquer tipo de norma ou princípio constitucional, mas apenas naqueles casos em que houver desrespeito a normas ou princípios de direito material relacionados com a proteção das liberdades públicas (colhida mediante tortura, violação do domicílio, sigilo das conversações telefônicas, da correspondência, da intimidade, v.g.).[10]


Luiz Flávio Gomes, complementando o raciocínio exposto, entende que a prova ilícita, além de se enquadrar como aquela obtida mediante ofensa a direito material tocante às liberdades públicas, possui natureza extraprocessual, ou seja, é externa ao processo penal.[11] 


Diferentemente ocorre com a denominada prova ilegítima, que possui natureza processual e não implica em qualquer infração de norma material, mas, tão-somente, em infração de norma processual. Desse modo, a violação de norma de natureza processual não levará à ilicitude da prova (sistema de inadmissibilidade), mas à sua nulidade (sistema de nulidade)[12].


Poder-se-ia tomar, assim, a prova ilegal como gênero, das quais são espécies a prova ilegítima (que atenta contra norma processual) e a prova ilícita (que viola princípio constitucional).[13]


Entender a diferenciação entre os sistemas (inadmissibilidade e nulidade) possibilita realizar a seguinte inferência prática: toda prova ilícita será processualmente ilegítima, mas nem toda prova ilegítima será considerada ilícita, salvo quando a nulidade também caracterizar violação a norma de direito constitucional, relacionada à proteção das liberdades públicas, bem como violação a norma legal, que implique infração a direito material. [14][15]


Para Luiz Flávio Gomes[16],


“o que é decisivo para se descobrir se uma prova é ilícita ou ilegítima é o locus da sua obtenção: dentro ou fora do processo. De qualquer maneira, combinando-se o que diz a CF, art. 5º, inc. LVI (“São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos) com o que ficou assentado no novo art. 157 do CPP (“ilícitas são as provas obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”), se vê que umas e outras (ilícitas ou ilegítimas) passaram a ter um mesmo e único regramento jurídico: são inadmissíveis” (cf. PACHECO, Denílson Feitoza, Direito processual penal, 3. ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2005, p. 812). (grifo nosso).


     A inserção do § 1º, no art. 157, foi a primeira manifestação positivada em nosso ordenamento jurídico a respeito da inadmissibilidade de provas ilícitas por derivação, posição já consolidada pelo Supremo Tribunal Federal, referente à teoria criada pela Suprema Corte norte-americana, denominada fruit of the poisonous tree (frutos da árvore envenenada), onde o defeito da árvore se transmite a seus frutos, ou seja, em sendo a prova obtida ilicitamente, as que dela decorrerem e guardarem nexo de causalidade também assim o serão.


A própria redação do mencionado dispositivo faz a ressalva dos casos em que não há a necessária correlação de causa e efeito entre a prova ilícita e a derivada ou, ainda, quando esta puder ser obtida por uma fonte independente das primeiras. No § 2º, o legislador trouxe o entendimento do que se considera por fonte independente.


A dicção do § 3º, segundo LFG,


“tem por objetivo sepultar, de vez, qualquer possibilidade de consulta a tal prova (ilícita). Se ela foi reconhecida como ilícita, assim declarada por decisão judicial transitada em julgado, não há qualquer razão lógica para sua manutenção no processo. Evita-se, assim, que a parte interessada se sinta tentada a invocá-la e, pior, que as instâncias superiores eventualmente se impressionem com seu teor. Melhor seu desentranhamento e posterior inutilização”.[17]


Feitas essas breves observações acerca das mudanças imprimidas pela Lei 11.690/2008, destina-se tópico próprio para a análise do § 4º do art. 157, do CPP, que foi vetado pelo Presidente da República.


4 A relação sujeito x objeto e as provas ilícitas (o vetado § 4º)


Nas linhas anteriores, falou-se a respeito de como o legislador infraconstitucional tratou a matéria das provas ilícitas no tabulário processual penalista. Há de se notar, contudo, como fez LFG[18], que, durante os sete anos de tramitação pelo Congresso, foram apresentadas dezoito emendas ao PL 4.205/2001 (que resultou na Lei n.º 11.690/2008), restando rejeitadas oito. Dentre as rejeitadas merece a nossa atenção a emenda de nº. 2, pois ela foi uma tentativa do Senado suprimir o parágrafo 4º do art. 157, in verbis


§ 4º O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão”.


Veja-se que a tentativa do legislador foi a de otimização do já mencionado dispositivo-guia constante no inciso LVI, do art. 5º da CF/88, pois a vedação das provas obtidas ilicitamente no processo penal, numa visão constitucional e radicalmente garantista, não levaria em consideração a comunicação realizada única e exclusivamente entre a prova e o processo, ou a prova e as provas derivadas (fruto da árvore envenenada), mas, também, a relação entre o sujeito intérprete e o objeto contaminado de ilicitude.


Sua argumentação se baseava nos seguintes dados, segundo colação de Luiz Flávio Gomes[19]: “O dispositivo […] visa a afastar do julgamento o juiz que tiver sido ‘contaminado’ pelo conhecimento de prova declarada ilícita, de forma a proteger as garantias do acusado e assegurar a imparcialidade do julgador. Ora, o simples fato de impedir que o juiz se valha de provas declaradas inadmissíveis para fundamentar sua decisão não basta para preservar os mencionados princípios norteadores do processo se o magistrado tiver conhecimento de tais provas. Esse mecanismo é insuficiente para garantir que o magistrado não tenha sua convicção – e, portanto, sua decisão – influenciada pelo conhecimento de provas inadmissíveis. Ademais, acredito que o referido dispositivo, com a redação dada por esta Casa, atende melhor a vontade constitucional de impedir que provas ilícitas ou obtidas por meios ilícitos possam contaminar a subjetividade do julgador”.


Desse modo, já que o juiz não fica tolhido pela certeza moral do legislador, poderá atuar livremente, observadas as limitações legais para tanto, formando sua convicção de uma ou de outra forma, desde que o arcabouço probatório assim o permita. Destarte, a prova ilícita, por ventura apresentada pela acusação, não deixará de figurar como elemento da convicção constituída pelo órgão julgador singular, contaminando-o de fato.


Aqui, mostra-se pertinente fazer menção à doutrina de RICOEUR[20] que diz:


“nas ciências do espírito, como já foi monstrado várias vezes, o sujeito e o objeto se implicam mutuamente. O sujeito se dá a si mesmo no conhecimento do objeto. Em contrapartida, é determinado, em sua mais subjetiva disposição, pela tomada que o objeto exerce sobre o sujeito, antes mesmo que este empreenda seu conhecimento”.


Seria, portanto, uma ilusão acreditar que o juiz se mostra impermeável à verdade (percepção de verdade) trazida pela prova ilicitamente obtida. Condenaria, só não fundamentando com base na prova ilícita, vez que o ordenamento legal não concede tal permissivo, mas nas demais provas que assim o permitissem. Tem-se, aqui, materialmente falando, um retorno ao sistema da íntima convicção[21], pautada na certeza moral do juiz.


O sistema da íntima convicção só não se apresentaria de forma legítima e transparente – quando do juiz que tivesse contato com a prova ilicitamente obtida –, pois existem limitações constitucionais (sobretudo em observância ao devido processo legal) que devem ser obrigatoriamente observadas pelo magistrado, a exemplo da motivação das decisões judiciais (art. 93, IX), da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente (art. 5º, LVI), e da ‘virtual’ baliza que demarca o campo probatório constante dos autos de um processo, devendo o magistrado se ater a tal espaço definido processualmente, nunca além dele.


De todo modo, as referidas limitações restam como válvula de escape para a parte que se veja alvo de um julgamento injusto por parte do juízo a quo, pois que


“surge a imperiosa necessidade do julgador em motivar sua decisão, isto é, pode julgar da forma que melhor lhe parecer, acertada ou equivocadamente, desde que fundamente tal decisum, já que o Juiz “deve convencer-se e procurar convencer os outros. Se não persuade qualquer das partes, essa recorre. E se não convence o Tribunal ad quem, esse reforma a sentença ou, mais corretamente, substitui-a por outra” […]. Com isso, ademais, observa, por um lado, o princípio constitucional que exige a motivação das decisões judiciais (art. 93, IX) e, de outra banda, demonstra sua imparcialidade na análise da prova que poderá ser refutada pelas partes”.[22][23] (grifamos em negrito).


Se o referido § 4º tivesse acolhida a sua redação, por projeção de seus efeitos (grosso modo), tornar-se-ia possível a promoção da exceção de suspeição[24] do magistrado ‘contaminado’ pela prova ilicitamente obtida, ou, ainda, a nulidade absoluta[25] do processo que restasse fulminado com sentença por ele proferida. 


Todavia, não obstante a argumentação despendida, o destino que tomou o referido § 4º foi o de sofrer o veto da Presidência da República, fundamentado em contra-argumento proferido pela Advocacia-Geral da União e do Ministério da Justiça, que o entenderam como contrário ao interesse público, nesses termos: “O objetivo primordial da reforma processual penal consubstanciada, dentre outros, no presente projeto de lei, é imprimir celeridade e simplicidade ao desfecho do processo e assegurar a prestação jurisdicional em condições adequadas. O referido dispositivo vai de encontro a tal movimento, uma vez que pode causar transtornos razoáveis ao andamento processual, ao obrigar que o juiz que fez toda a instrução processual deva ser eventualmente substituído por um outro que nem sequer conhece o caso”.[26]


Veja-se que, juntamente ao fato de haver uma válvula de escape, que permite a observância dos direitos e garantias fundamentais do acusado ainda que com a vedação do discutido § 4º, tem-se, também, a observância do princípio da identidade física do juiz, segundo o qual o juiz que tiver realizado a audiência de instrução e julgamento do processo ou seja, realizado toda a instrução processual, a este ficará vinculado, proferindo sentença no mesmo, ressalvadas as hipóteses legais (art. 132, CPC) – lançando-se mão de um diálogo de fontes jurídicas.


Na interação de todos esses princípios, como o da celeridade, simplicidade e identidade física do juiz, bem como a observância das limitações constitucionais e legais pertinentes ao processo penal, face à redação constante do vetado § 4º, tem-se, num juízo de proporcionalidade, que andou bem das pernas o legislador brasileiro ao optar por dar viabilidade àqueles primeiros.


Inegável que o sujeito interpretador se veja condicionado pelo objeto que apreende, contudo, mostrar-se-ia desarrazoada a retirada de um magistrado do processo penal, tão-somente em razão de seu contato com uma prova ilícita. As limitações constitucionais para tanto são previstas, devendo ser observadas, caso contrário, poderá a decisão do juízo a quo ser atacada mediante recurso interposto pela parte que se vir prejudicada.


Disposições Finais


Ante toda a argumentação despendida ao longo do presente trabalho, viu-se que o processo penal, antes de ser um meio para a condenação do acusado, passou a ser uma garantia do cidadão em face da investida estatal, quando da persecução penal, principalmente com o sistema jurídico garantista instaurado pela Carta Política de 1988.


Sob essa ótica, todo e qualquer processo judicial ou administrativo passou a ser devido, ou seja, em obediência a uma série de princípios e sub-princípios legais, figurando dentre eles a vedação constitucionalmente expressa das provas ilicitamente obtidas, devendo estas ser desentranhadas do processo no qual se deu sua frustrada tentativa de ingresso.


A Lei nº. 11.690/2008 inseriu dispositivo referente à matéria no Código de Processo Penal, alterando o caput do art. 157 e acrescentando parágrafos ao mesmo, positivando entendimento já consolidado pela doutrina e jurisprudência acerca do tema das provas ilicitamente obtidas.


Deu-se especial importância, destinando-se tópico distinto, à vedação imposta ao § 4º, do art. 157, do CPP, trazendo-se à tona os argumentos que envolveram o debate acerca de sua mantença no intento reformista. Viu-se que, não obstante o juiz ser condicionado pela prova ilicitamente obtida, ainda que a mesma desentranhada seja do processo, para que o mesmo se mantenha como juiz da causa, outros valores hão de ser considerados, tais como a economia e celeridade processuais, a identidade física do juiz, bem como o interesse público.


Tem-se, portanto, a ampla observância do devido processo legal, vez que se possibilita a realização de um processo célere, simples e seguro – tal como propôs a lei reformista –, não deixando de ser observadas as garantias inerentes ao indivíduo que se vê alvo de um processo penal que lhe move o Estado. 


 


Referências

BELLO FILHO, Ney de Barros. Sistema constitucional aberto: teoria do conhecimento e da interpretação do espaço constitucional. – Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

DIDIER JR., Fredie. Direito Processual Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 11. ed. Salvador: JusPODIVM, 2009.

GOMES, Luiz Flávio. Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito: novo procedimento do Júri. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

GOMES, Luiz Flávio. Lei n.º 11.690/2008 e provas ilícitas: conceito e inadmissibilidade. Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11466 >

GOMES, Luiz Flávio. O novo regramento das provas ilícitas. Disponível em: <jusbrasil.com.br/noticias/22274/lei_11690_08_o_novo_regramento_das_provas_ilicitas>.

MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas, Bookseller, 1997, v. II.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7. ed. – Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

SILVA, César Dario Mariano da. Provas Ilícitas. Disponível em: <apmp.com.br/juridico/artigos/docs/2008/provas_ilicitas.doc>.


Notas:

[1] Cf. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7. ed. – Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 7.

[2] Idem. Ibidem. p. 7.

[3] Idem. Ibidem. p. 8.

[4] SILVA, César Dario Mariano da. Provas Ilícitas. Disponível em: <apmp.com.br/juridico/artigos/docs/2008/provas_ilicitas.doc>. Acesso em: 05. mai. 2009.

[5] Cf. Oliveira. Ob. cit. p. 8.

[6] Oliveira. Ob. cit. p. 287.

[7] Bem comenta GOMES, Luiz Flávio. Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito: novo procedimento do Júri. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 263-264.: “Inspirado no Iluminismo, no fim do século XVIII, e tendo como marco a célebre obra de BECCARIA, Dos delitos e das penas (1764), operou-se radical alteração na base de todo o Direito Penal. A partir daí, com lastro nas idéias de MONTESQUIEU, o Estado chamou para si a administração da justiça, da qual passou a ter o monopólio exclusivo. Por conta disso, em um sistema que até hoje vigora – basta se ver que o nosso Código Penal considera crime o fazer justiça com as próprias mãos (art. 345) – aquele que tem um direito violado deverá valer-se necessariamente do Estado que, através de um de seus poderes (o Poder Judiciário), comporá o litígio. Raras exceções, como a legítima defesa e o estado de necessidade – em que o ofendido, dada a urgência da situação, não pode buscar a proteção estatal – apenas confirmam a regra geral”.

[8] Oliveira. Ob. cit. p. 288.

[9] GOMES, Luiz Flávio. O novo regramento das provas ilícitas. Disponível em: <jusbrasil.com.br/noticias/22274/lei_11690_08_o_novo_regramento_das_provas_ilicitas> Acesso em: 22. abr. 2009.

[10] SILVA, César Dario Mariano da. Provas Ilícitas. Disponível em: <apmp.com.br/juridico/artigos/docs/2008/provas_ilicitas.doc>. Acesso em: 05. mai. 2009.

[11] GOMES, Luiz Flávio. Lei n.º 11.690/2008 e provas ilícitas: conceito e inadmissibilidade. Disponível em: <jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11466> Acesso em: 13. mai. 2009.

[12] Dispõe o CPP:

Art. 563.  Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa.

Art. 564.  A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: IV – por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato.

[13] GOMES, Luiz Flávio. Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito: novo procedimento do Júri. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 281.

[14] Cf. SILVA, César Dario Mariano. Ob. cit..

[15] “De se observar que algumas provas são, a um só tempo, ilegítimas e ilícitas, como por exemplo a violação de sigilo profissional, que atenta contra o direito material, já que obtida ilegalmente, e contra o direito processual, pois vedada sua produção ante os termos do art. 207 do CPP.” GOMES, Luiz Flávio. Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito: novo procedimento do Júri. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 282.

[16] GOMES, Luiz Flávio. Lei n.º 11.690/2008 e provas ilícitas: conceito e inadmissibilidade. Disponível em: <jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11466> Acesso em: 13. mai. 2009.

[17] GOMES, Luiz Flávio. Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito: novo procedimento do Júri. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 288.

[18] GOMES, Luiz Flávio. O novo regramento das provas ilícitas. Disponível em: <jusbrasil.com.br/noticias/22274/lei_11690_08_o_novo_regramento_das_provas_ilicitas> Acesso em: 22. abr. 2009.

[19] Idem. Ibidem.

[20] RICOEUR apud BELLO FILHO, Ney de Barros. Sistema constitucional aberto: teoria do conhecimento e da interpretação do espaço constitucional. – Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 82-83.

[21] Nesse sistema, hoje deixado de lado, podia o juiz, nas palavras de JOSÉ FREDERICO MARQUES, “decidir com a prova dos autos, sem a prova dos autos e contra a prova dos autos” (Elementos de direito processual penal, Campinas, Bookseller, 1997, v. II, p. 275).

[22] GOMES, Luiz Flávio. Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito: novo procedimento do Júri. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 268-269. Ainda, em comento à presente citação, mister enfatizar a razão pela qual fora instituído o já comentado § 3º, do art 157, do CPP, cuja redação se fez no sentido de inutilizar a prova declarada ilícita por decisão transitada em julgado, pois, evita-se, assim, que a parte interessada se sinta tentada a invocá-la e, pior, que as instâncias superiores eventualmente se impressionem com seu teor, contaminando-as igualmente.

[23] No mesmo sentido, Oliveira. Ob. cit. p. 296, quando diz: “A liberdade quanto ao convencimento não dispensa, porém, a sua fundamentação, ou a sua explicitação. É dizer: embora livre para formar o seu convencimento, o juiz deverá declinar as razões que o levaram a optar por tal ou qual prova, fazendo-o com base em argumentação racional, para que as partes, eventualmente insatisfeitas, possam confrontar a decisão nas mesmas bases argumentativas.

[24] Segundo Oliveira. Ob. cit. p. 265, “Em todas as situações (legais), a razão da suspeição decorrerá de fato, evento, circunstâncias e convicções pessoais cuja origem esteja fora do processo judicial em que se questiona a imparcialidade do juiz”. Nesse caso, surgiria uma nova hipótese de suspeição, onde um fato externo (a prova ilícita e desentranhada) contaminaria a imparcialidade do órgão julgador, sendo este passível de ter a exceção contra si investida.

[25] Segundo DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 11. ed. Salvador: JusPODIVM, 2009. p. 124.: “O desrespeito à regra implica nulidade absoluta, pois fere norma que impõe regra cogente de competência”. Se viesse a ser levado a cabo o referido § 4º, sofreria a irradiação dos efeitos decorrentes de tal regra.

[26] Cf. GOMES, Luiz Flávio. O novo regramento das provas ilícitas. Disponível em: <jusbrasil.com.br/noticias/22274/lei_11690_08_o_novo_regramento_das_provas_ilicitas> Acesso em: 22. abr. 2009.

Informações Sobre o Autor

Stephano Pereira Serejo

Acadêmico de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco


Equipe Âmbito Jurídico

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