Resumo: O presente artigo é uma reflexão filosófica-jurídica embasada em idéias dos filósofos Sartre, Karl Marx e Aranha e Martins, e da jurista Maria Helena Diniz. Enfoca a temática da Saúde, particularmente do emprego médico e suas peculiaridades, tal a conceituada prática de pulverização de empregos. Apresenta um debate filosófico e jurídico frente à necessidade de registro eletrônico de ponto, prioritariamente para os serviços médicos, apresentando as conjecturas envolvidas nesse tema polêmico, que tem como escopo individual o convite a uma auto-reflexão do médico e como objetivo coletivo a melhoria da qualidade de saúde oferecida a população.
Palavras-chave: Direito do Trabalho. Filosofia do Direito. Emprego médico.
O trabalho pode ser considerado uma condição de liberdade, no entanto, em determinadas circunstâncias pode levar a uma alienação e desumanização. Por seu turno, para as filósofas Aranha & Martins (2000), “por ser uma atividade relacional, o trabalho, além de desenvolver habilidades, permite que a convivência não só facilite a aprendizagem e o aperfeiçoamento dos instrumentos, mas também enriqueça a afetividade resultante do relacionamento humano: experimentando emoções de expectativa, desejo, prazer, medo, inveja, o homem aprende a conhecer a natureza, as pessoas e a si mesmo.”
Insta observar que, hodiernamente, o sistema amplamente conhecido de trabalho médico se dá pela pulverização de empregos. Pulverizar, que de acordo com o dicionário Aurélio, é “difundir em gotas tenuíssimas.” Assim, conceituo como a pulverização de empregos a prática de dividir-se em um número excessivo de empregos a força de trabalho, não tendo a capacidade física e/ou mental de dedicar-se integralmente ao melhor de si a cada um deles. Observamos que a pulverização de empregos pelo médico é fato cotidiano, diversos assumem como funcionários públicos funções em diversos hospitais, postos de saúde com vínculo no Programa Saúde da Família – PSF, algumas vezes em cidades que não são moradores. Médicos, contratos pelo serviço público seja na esfera municipal, estadual ou federal; antes de tudo são servidores públicos e precisam contemplar as exigências as quais estão previstas para todos; sendo incabível, do ponto de vista, ético e moral, possuir mordomias.
De antemão, cumpre aludir que o corporativismo é compreendido como a defesa dos interesses ou privilégios de um setor organizado da sociedade, em detrimento do interesse público. A meu ver, como avesso a esta prática proponho uma solução imediata para a melhoria da qualidade do atendimento médico servido a população; que consiste no respeito à portaria n°1.510, de 21 de agosto de 2009, do Ministério do Trabalho e Emprego, em que disciplina o sistema de registro eletrônico de ponto. Esse sistema deve ser instalado em todos os hospitais, postos de saúde do PSF e demais serviços públicos de saúde, que compreende ser um aparelho em que o registro da chegada e da saída do profissional é feito por sua própria impressão digital, não permitindo assim, qualquer questionamento de fraude. Com esse sistema em uso é possível verificar quantas horas por semana o médico trabalhou, e caso, não cumpra a carga horária do contrato tem reduzido seus vencimentos, recebendo somente pelo que trabalhou. Essa via, além de punição por uma irresponsabilidade provinda de funcionário público, ocasiona um incentivo à redução do absenteísmo; e consequentemente, leva ao médico adaptar-se dentro de seus diversos empregos a escolher um ou dois que considera mais importante, pedindo demissão dos demais; garantindo vagas a outros médicos que queiram cumprir integralmente a carga horária ora proposta no edital e contrato de emprego. Cabe dizer que o fim da Medicina é dar saúde para os pacientes; o dinheiro não é seu fim; somente uma compensação pelo justo trabalho realizado.
Convém asseverar que, esse sistema irá contribuir astronomicamente para aperfeiçoar a qualidade dos serviços médicos oferecidos a população, necessitando da participação dos gestores públicos e do órgão que garante a defesa dos direitos individuais e indisponíveis, que é o Ministério Público, além de ser essencial a participação do Poder Judiciário, do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério da Saúde; como também a colaboração por parte das associações médicas em respeitar as normas.
Oportunamente, o filósofo Jean-Paul Sartre, um filósofo fenomenologista afirmou que: “O importante não é o que fazem do homem, mas o que ele faz do que fizeram dele”. Para Aranha & Martins (2000), “a fenomenologia critica a filosofia tradicional por desenvolver uma metafísica cuja noção de ser é vazia e abstrata, voltada para a explicação. Ao contrário, a fenomenologia tem como preocupação central a discrição da realidade, colocando como ponto de partida de reflexão o próprio homem, no esforço de encontrar o que realmente é dado na experiência, e descrevendo ‘o que se passa’ efetivamente do ponto de vista daquele que vive determinada situação concreta. Nesse sentido a fenomenologia é uma filosofia da vivência”.
Nesse interposto, a fenomenologia que é a filosofia que fornece conceitos para uma reflexão existencialista dialoga a respeito da má fé: “[…] o homem, ao experimentar a liberdade, e ao sentir-se como um vazio, vive a angústia da escolha. Muitas pessoas, não suportam essa angústia, fogem dela, aninhando-se na má fé. A má fé é a atitude característica do homem que finge escolher, sem na verdade escolher. Imagina que seu destino está traçado, que os valores são dados; aceitando as verdades exteriores, “‘mente’” para si mesmo, simulando ser ele próprio o autor dos próprios atos já que aceitou sem críticas os valores dados. Não se trata propriamente de uma mentira, pois esta supõe os outros para quem mentimos, enquanto a má fé se caracteriza pelo fato de o indivíduo dissimular para si mesmo com o objetivo de evitar fazer uma escolha da qual possa se responsabilizar. O homem que recusa a si mesmo aquilo que fundamentalmente o caracteriza como homem, ou seja, a liberdade, torna-se “‘safado’”, “‘sujo’”, pois nesse processo recusa a dimensão do ‘“para-si”’ e torna-se “‘em-si’”, semelhante às coisas. Perde a transcendência e reduz-se à facticidade. Sartre chama tal comportamento de espírito de seriedade. O homem sério é aquele que recusa a liberdade para viver o conformismo e a ‘“respeitabilidade”’ da ordem estabelecida pela tradição. Esse processo é exemplificado no conto A infância de um chefe.” (Ibid.)
Nesse panorama, atuando como personagem do meio médico, vejo que já os estudantes de medicina e os médicos recém-formados, de má fé fogem do processo de escolha, fingindo estarem escolhendo trabalhar demais, em mais de quatro, cinco empregos; na verdade acreditam estarem se passando de respeitosos, de sérios, de que não fogem a serviço; mas na verdade, estão recusando a própria liberdade como seres humanos; pois ao ilusoriamente escolherem apenas seguir esse modelo da pulverização de empregos, tendo como base seus próprios professores e colegas de profissão, estão fugindo da responsabilidade das escolhas; pois para sua visão de má fé, se quem está na sua frente profissionalmente faz assim, outrossim, cabe a eles fazerem; pois se não forem bem sucedidos, não será só ele quem irá se dar mal, mais uma visão própria dos outros; uma escolha que não foi sua. Então, proponho a responsabilidade por suas próprias escolhas, fugir do convencionalismo de querer seguir um caminho trilhado por outros, assim criando seus próprios baseado em suas próprias verdades e não em uma suposta verdade que não tem alicerce. Por exemplo, que faça ou não residência médica quem assim queira, não entrar no piloto automático e deixar-se levar pela opinião dos outros do que acham certo fazer depois de formado, pelo receio de sair do espírito de seriedade, proposto por Sartre. Ainda, aceitar a pulverização de empregos por parte do médico é agir de má fé, em um conceito fenomenologista. Considero que o jovem médico tenha a dignidade de aceitar para si o trabalho justo que liberta, não o que aliena. Na visão de Karl Marx, em O Capital, a alienação ocorre quando o trabalhador oferece sua força de trabalho e este produto resultado do seu trabalho não mais lhe pertence e adquire existência independente dele. Nessa visão marxista, consiste em dizer que o trabalhador alienado nem concebe mais o que vai executar, devido ao aceleramento em que se encontra, não obedecendo ao ritmo natural do corpo; esse processo Marx chama de fetichismo da mercadoria. Adaptando-se ao contexto da situação, seria um momento em que nem o médico conscientemente reconheceria o próprio atendimento, haja vista a necessidade de finalizar uma consulta para partir para outro local de trabalho, em um processo que tem como conseqüência a desumanização. Assim, é humano trabalhar em um número de empregos que seja capaz de dar o melhor de si para atender a população; ao invés de acumular mais de quatro, cinco empregos e atender sem eficiência em diversos lugares; contribuindo para a revolta da população com o erro médico.
Nesse contexto, segundo a professora Doutora em Direito Maria Helena Diniz (2009, p. 667), “o insucesso médico não tem sido tolerado, em razão dos seguintes fatores concorrentes: a) utilização da tecnologia, que trouxe enorme desenvolvimento à ciência médica; b) massificação da medicina, que fez com que a relação médico-paciente tornasse impessoal […]; f) a pressa do atendimento médico, principalmente em postos do INSS e naqueles dependentes do Poder Público, para diminuir a enorme fila de espera; g) a crise do atendimento médico pela despersonalização, pois o paciente nem sequer conhece o médico que irá atendê-lo, pelas péssimas condições de trabalho, pela deficiência de equipamentos e escassez de remédios; […] h) a especialização, que transforma o médico num técnico altamente adestrado; […] k) o mercantilismo desenfreado, que se dá por ato de médico especializado ou por empresa médica comprometida com o lucro […].”
Em síntese, verifica-se que é um remédio para contribuir com o fim da pulverização de empregos pelo médico o registro eletrônico de ponto, por via de fiscalizar a carga horária do médico; isso vindo para contribuir com a própria saúde física e/mental do médico, além de, obviamente, melhorar demasiadamente o serviço a população; deixando-a mais satisfeita; dando a possibilidade de sentirem-se como pessoas humanas. No meu ver, o importante é o médico em um exercício de reflexão pessoal e solitária verificar que é melhor para si mesmo essa prática, como indivíduo, vivendo melhor; e como ser social, contribuindo melhor para a população. E cabe, aos órgãos responsáveis e os pacientes fiscalizarem o serviço; e denunciar sempre que prejudicadas.
Médico do Trabalho Advogado e Professor. Doutor em Direito com distinção Magna cum Laude pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Mestre em Direito com distinção acadêmica Magna cum Laude pela PUC Minas. Detentor do Título de Especialista em Medicina do Trabalho da Associação Médica Brasileira – AMB. Especialista em Medicina do Trabalho pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário – PUC Minas. Especialista em Direito Civil – PUC Minas. Especialista em Direito Médico – Universidade de Araraquara. Coordenador dos livros “Temas Contemporneos de Direito Público e Privado” Editora DPlácido; “Fluxo de Direito e Processo do Trabalho” Editora CRV; “Ciência Trabalhista em Transformação” Editora CRV; e “Direitos das Pessoas com Deficiência e Afirmação Jurídica” Editora CRV. É autor do livro “Direitos Fundamentais do Trabalho” Editora LTr
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