Daniele Castanharo – Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Público pela Faculdade Futura. Email: danielecastanharo@gmail.com.
Resumo: O sigilo bancário possui origem antiga. Em nossos ordenamento jurídico, é entendido como um direito fundamental, sendo desdobramento dos direitos à intimidade e ao sigilo de dados. Naturalmente, admite-se sua relativização. As Cortes Superiores apontam as seguintes situações autorizadoras do afastamento do sigilo bancário: (i) o Poder Judiciário pode afastá-lo, dependendo de decisão que observe a conformação entre o direito à privacidade e o interesse público no conhecimento das informações; (ii) os Fiscos podem obter os dados independentemente de autorização judicial, pois há de mera transferência de sigilo, embora para os Fiscos Estaduais e Municipais isso depende de regulamentação; (iii) as informações obtidas pelas autoridades fazendárias podem ser compartilhadas com o Ministério Público, sendo mera prova emprestada; (iv) no caso de operações envolvendo verbas públicas, é possível aos Tribunais de Contas bem como ao Ministério Público a requisição direta de dados bancários, pois incidem os princípios da publicidade e moralidade, sem olvidar o interesse da sociedade em conhecer o destino dos recursos públicos; (v) O poder investigativo conferido pela Constituição às Comissões Parlamentares de Inquérito abrange a possibilidade de quebra de sigilo bancário, havendo fundados indícios de ilícito e que seja indispensável o conhecimento dos dados.
Palavras-chave. Sigilo bancário. Intimidade. Privacidade. Sigilo de dados. Direitos fundamentais.
Abstract: Bank secrecy has ancient origin. In our legal system, it is a fundamental right, being an offshoot of rights to privacy and data confidentiality. Its relativization is admitted. Our Superior Courts point out the following situations that authorize the removal of bank secrecy: (i) Judiciary can remove it, depending on a decision that observes the conformation between the right to privacy and the public interest in the knowledge of information; (ii) Tax Authorities may obtain the data independently of court authorization, as there is a mere transfer of confidentiality, although for State and Municipal Tax Authorities this depends on regulation; (iii) the information obtained by the tax authorities may be shared with the Public Prosecution Service, being borrowed evidence; (iv) for operations involving public funds, it is possible for the Courts of Auditors as well as the Public Prosecution Service to request direct bank data, considering the principles of publicity, morality, and the interest of society in knowing the destination of public resources; (v) the investigative power conferred by the Constitution to the Parliamentary Committees Of Inquiry includes the possibility of breach of bank secrecy, with evidence of illicit grounds and that knowledge of the data is indispensable.
Keywords: Bank Secrecy. Intimacy. Privacy. Data confidentiality. Fundamental rights.
Sumário: Introdução. 1. Sigilo bancário. 2. Sigilo bancário no ordenamento jurídico brasileiro: direito fundamental. 2.1. Relativização do direito ao sigilo bancário. 3. Hipóteses de quebra do sigilo bancário. 3.1. Determinação judicial. 3.2. Administração tributária. 3.2.1. Compartilhamento das informações obtidas pelo Fisco com o Ministério Público. 3.3. Operações financeiras envolvendo verbas públicas. 3.4. Comissões Parlamentares de Inquérito. Conclusão. Referências.
Introdução
A relação de confiança fundamenta os contratos entre cliente e bancos, implicando dever de sigilo, o qual será objeto deste trabalho.
Para tanto, abordar-se-á o que se entende por sigilo bancário com suas conceituações gerais e origem histórica.
A seguir, enfrentar-se-á o tratamento jurídico deste direito no Brasil, onde se encaixam questões sobre sua caracterização ou não como um direito fundamental e caso o seja, sobre sua relativização.
Após, em caráter nitidamente jurisprudencial, serão indicadas as situações a respeito das quais nossas Cortes Superiores já se manifestaram.
Entende-se por sigilo bancário o dever imposto aos bancos de não revelar dados e negócios praticados por seus clientes.
Gilmar Ferreira Mendes (2018, p. 420) assim o define: “obrigação imposta aos bancos e a seus funcionários de discrição, a respeito de negócios, presentes e passados, de pessoas com que lidaram, abrangendo dados sobre a abertura e o fechamento de contas e a sua movimentação”.
Nelson Abrão (2018, p. 60) define-a como “obrigação do banqueiro — a benefício do cliente — de não revelar certos fatos, atos, cifras ou outras informações de que teve conhecimento por ocasião do exercício de sua atividade bancária e notadamente aqueles que concernem a seu cliente, sob pena de sanções muito rigorosas, civis, penais ou disciplinares”.
O mesmo autor (ABRÃO, 2018, p. 60) identifica como fundamento ao sigilo bancário o fato de que “É instintivo à natureza humana o desejo de manter certa discrição no que concerne à posse e disponibilidade dos bens materiais. Quando não for para evitar o aguçamento das pretensões do Fisco, será, pelo menos, para não provocar sentimentos nocivos nos inferiormente dotados de bens”.
Roberto Massao Chinen (2006, p. 27) ainda traça interessante paralelo entre o dever de sigilo imposto ao banqueiro, comparando-o com o mesmo sigilo profissional a que se submetem o advogado, médico, contador etc.
Destaque-se que dados bancários não se confundem com dados fiscais. Os primeiros estão sob a guarda de empresas privadas, salvo instituições financeiras estatais que explorem atividade econômica. Já os dados fiscais, em regra, encontram-se em poder da Receita Federal do Brasil (TAVARES, 2017, p. 551).).
A precisa origem histórica do sigilo bancário é desconhecida, de modo que alguns doutrinadores o situam em tempos imemoriais com raízes na tradição. Pode-se afirmar, porém, que o sigilo surgiu com a própria prática das atividades bancárias, que por sua natureza são discretas. (ABRÃO, 2018).
Sabe-se ainda que operações bancárias precederam até mesmo a moeda, ocorrendo com base no escambo. A primeira referência juridicamente documentada de que se tem conhecimento, é o Código de Hamurabi, que mencionava a possibilidade de um
banqueiro desvendar seus arquivos em caso de conflito com o cliente, o que demonstra, a contrário senso, que, na ausência de litígio, seria vedada a revelação (NIGRI, 2016, p. 30).
Quanto à atividade bancária profissionalizada, há consenso de que surgiu na Grécia. Para Nelson Abrão (2018, p. 59-60):
“Impregnada que fora de profundo misticismo nas suas origens, a atividade bancária, surgida dentro do próprio templo, deveria revestir-se de um caráter sagrado. É por isso que se chega a assemelhar as expressões léxica e ontologicamente: sagrado e segredo. A característica sigilosa da atividade bancária foi cuidadosamente observada na Idade Média, consolidando-se nos tempos modernos não apenas como decorrência de sua natureza, mas também como convenção tácita entre banco e cliente”.
No Brasil, é aceito na doutrina que o sigilo bancário decorre de dois dispositivos constitucionais, quais sejam os direitos fundamentais à privacidade e intimidade (artigo 5º, inciso X), bem à inviolabilidade do sigilo de dados (art. 5º, inciso XII):
“Art. 5º (…)
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
(…)
XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”;
Corrobora Ingo Wolfgang Sarlet (2018, p. 473):
“No caso da Constituição Federal, a proteção do sigilo fiscal e bancário, de acordo com a voz majoritária no direito brasileiro, foi deduzida dos direitos à privacidade e à intimidade, constituindo uma particular manifestação destes”.
Para André Ramos Tavares (2017, p. 551): “O aspecto da comunicação de dados que mais importância assume no contexto atual diz respeito aos dados bancários e aos dados fiscais”.
Todavia, há a quem alega que não existe direito fundamental a sigilo bancário. Isso porque os incisos apontados apenas tangenciam direitos à inviolabilidade, não tratando de forma expressa sobre o sigilo bancário.
Não obstante, o primeiro entendimento – de que se trata de direito fundamental – resta consolidado em nosso ordenamento jurídico (SARLET, 2018, p. 473).
Ademais, o legislador infraconstitucional reforçou o dever de sigilo na Lei Complementar n. 105 de 2001, artigo 1º: “As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados”.
2.1. Relativização do direito ao sigilo bancário
Tratando-se de direito fundamental, sempre há a discussão acerca de seu caráter absoluto ou relativo. Isso porque há aqueles que sustentam que direitos fundamentais são absolutos, não podem ser diminuídos ou relativizados. Gilmar Mendes (2018, p. 210) identifica o fenômeno:
“Tal ideia tem premissa no pressuposto jusnaturalista de que o Estado existe para proteger direitos naturais, como a vida, a liberdade e a propriedade, que, de outro modo, estariam ameaçados. Se é assim, todo poder aparece limitado por esses direitos e nenhum objetivo estatal ou social teria como prevalecer sobre eles. Os direitos fundamentais gozariam de prioridade absoluta sobre qualquer interesse coletivo”.
Especificamente em relação ao direito de sigilo bancário, Lênio Luiz Streck e Scarance Fernandes entendem que os dados estão protegidos por sigilo absoluto (TAVARES, 2017). Porém é posição nitidamente minoritária.
Isso porque a todo momento os diversos direitos fundamentais se colidem, de modo que atribuir caráter absoluto aos direitos fundamentais criaria crise jurisdicional insolucionável.
Assim, especificamente em relação ao direito ao sigilo bancário, Nelson Abrão (2018, p. 61) percebe alguns motivos que historicamente conduzem à relativização do sigilo bancário: (i) segurança do Estado, que muitas vezes depende do conhecimento de informações; (ii) o crime organizado, que se estrutura nos mais diversos países e toma proporções internacionais, sendo a quebra de sigilo imprescindível ao seu combate; (iii) elevados gastos de campanhas eleitorais, questão de interesse público cuja fiscalização se facilita com a quebra de sigilo.
Gilmar Mendes (2018, p. 420), por sua vez, aponta que havendo colisão entre o direito à intimidade individual e o interesse coletivo a respeito de informações relevantes, há de se operar a quebra de sigilo.
Assim, pode-se afirmar com tranquilidade que nosso ordenamento jurídico admite, excecionalmente, a quebra do sigilo bancário.
Corrobora tal conclusão Leandro Paulsen (2019, p. 409):
“Na quase totalidade dos países ocidentais, existe a possibilidade de acesso às movimentações bancárias sempre que tal seja importante para a apuração de crimes e fraudes tributárias em geral. No Brasil, não é diferente. A possibilidade de quebra depende da análise do caso concreto, considerando-se as suas circunstâncias específicas e o princípio da proporcionalidade”.
Todavia, deve-se atentar aos limites que serão estudados a seguir, sob pena de se configurar responsabilização. Nesse sentido, Anis Kfouri Jr. (2018, p. 313-314):
“As informações requisitadas e acessadas pelas autoridades administrativas não podem ser divulgadas a terceiros, cabendo responsabilização funcional e criminal em caso de descumprimento, conforme estabelece o art. 198 do CTN, com a redação dada pela Lei Complementar n. 104/2001”.
A Lei 4595/64, artigo 38, tratava de hipóteses de quebra de sigilo, trazendo por exemplo a determinação judicial.
Todavia, tal disposição foi revogada pela Lei Complementar 105 de 2001, que agora regulamenta o assunto em seu artigo 6º.
Ademais, há ampla jurisprudência a respeito do assunto, sendo tema recorrente nos Tribunais Superiores.
Analisa-se, a seguir, cada uma das hipóteses em que se admitem o afastamento do sigilo bancário.
3.1. Determinação judicial
O artigo 3º da Lei Complementar 105 de 2001 assim dispõe:
“Art. 3º Serão prestadas pelo Banco Central do Brasil, pela Comissão de Valores Mobiliários e pelas instituições financeiras as informações ordenadas pelo Poder Judiciário, preservado o seu caráter sigiloso mediante acesso restrito às partes, que delas não poderão servir-se para fins estranhos à lide.” (grifo nosso).
André Ramos Tavares (2017, p. 551) observa que “com autorização judicial, e amparada em suficiente motivação, a quebra do sigilo dos dados é sempre admissível”.
Assim, nota-se que a primeira hipótese é a regra geral de que só o Judiciário pode afastar o sigilo bancário e fiscal, haja vista tratar-se de violação a direito fundamental.
Nesse caso, há de se proceder em observância ao princípio da razoabilidade, em exercício de conformação entre o direito à privacidade e o interesse público no conhecimento das informações. Assim já decidiu o STF (1999), no Recurso Extraordinário n. 219780-5/PE:
“Se é certo que o sigilo bancário, que é espécie de direito à privacidade, que a Constituição protege – art. 5º, X – não é um direito absoluto, que deve ceder diante do interesse público, do interesse social e do interesse da Justiça, certo é, também, que ele há de ceder na forma e com observância de procedimento estabelecido em lei e com respeito ao princípio da razoabilidade”.
A propósito, até mesmo o condutas do Judiciário podem configurar afastamento indevido do sigilo bancário, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 1.285.437/MS.
No caso, decisão proferida em Ação Civil Pública determinou que o banco Itaú apresentasse relação dos correntistas que seriam beneficiários da decisão que determinou ao banco o pagamento das diferenças de correção aplicadas às cadernetas de poupança em razão dos planos econômicos Bresser (junho/1987) e Verão (janeiro/1989), sendo que tal lista ficaria disponível para consulta pública em cartório, bem como determinou que se convocasse os beneficiários pelas mídias disponíveis.
O Itaú, dentre outros argumentos, arguiu que a decisão violaria o direito ao sigilo bancário. E o STJ deu provimento.
Entendeu que o contrato bancário se funda em relação de confiança entre banco e cliente, com a garantia de sigilo do artigo 1º da LC 105/2001. Só excepcionalmente admite-se a quebra do sigilo, o que entendeu a Corte Cidadã não ser o caso dos autos, visto que ação em defesa dos consumidores, que pode ser proposta inclusive sem anuência do beneficiário.
A solução adotada foi que a relação de beneficiários ficasse disponível em cartório em segredo de justiça, sendo que convocação dos interessados deveria ser genérica a chamar todos os poupadores do Estado que mantinham cadernetas de poupança no banco requerido. Ao manifestarem-se os interessados, o juízo deverá confrontá-los com as planilhas apresentadas e, se for o caso, seguir com a execução individual.
3.2. Administração tributária
Disciplina o artigo 6º da Lei Complementar 105/2011, que
“Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária”.
Estabeleceu, portanto, a possibilidade de afastar o sigilo bancário em favor do Fisco de todos os entes políticos, devendo a instituição bancária prestar as informações requisitadas na forma da lei.
O tema foi enfrentado recentemente pelo STF em dois casos (i) julgamento conjunto das ADIs 2390, 2859, 2386 e 2397; (ii) RE 601.314/SP.
No caso das ADIs, alegou-se inconstitucionalidade, por possível violação dos artigos 5º, incisos X (inviolabilidade da vida privada e da intimidade), XII (inviolabilidade do sigilo de dados), XXXV (inafastabilidade da jurisdição) e LIV (princípio do devido processo legal) e 145, § 1º, todos da Constituição Federal.
Entendeu, todavia, a Corte, nos termos do voto do relator Min. Dias Toffoli, que não há violação às normas constitucionais.
Isso porque, consoante parágrafo único do artigo 6º, as informações serão conservados em sigilo, ensejando inclusive responsabilização cível e criminal a divulgação e informações sigilosas fora das hipóteses da lei, conforme artigos 10 e 11 da lei.
O que ocorre, portanto, não é quebra de sigilo, mas mera transferência de sigilo bancário ao sigilo fiscal. As informações antes protegidas pelo banco, passarão a ser protegidas pelo Fisco.
Até porque o artigo 145, §1º da CF, autoriza o Fisco a identificar o patrimônio, rendimentos e atividades econômicas do contribuinte. A exemplo, os cidadãos já declaram a maior parte de seus bens à Receita Federal do Brasil (declaração do imposto de renda), de modo a inexistir razão para impedir o acesso ao conjunto menor de bens.
Ademais, a lei estabelece rigorosos requisitos para que o Fisco requisite as informações, que está condicionada à existência de processo administrativo em curso, atraindo as garantidas da Lei 9.784, ou seja, dever de observância dos princípios da motivação, finalidade, proporcionalidade e interesse público.
Por fim, não só inexiste violação a direito fundamental, como há em verdade confluência entre os deveres do contribuinte de pagar tributos e o dever do fisco de bem tributar e fiscalizar, características de um Estado Social como é o caso do Brasil.
Fez-se importante ressalva em relação aos Fiscos Estaduais e Municipais. Assim como o artigo 6º possui regulamentação para o âmbito federal, por meio do Decreto 3.724/2001, para que o direito ao compartilhamento de dados estenda-se aos fiscos dos Estados e Municípios, exige-se igualmente regulamentação por parte do ente respectivo.
Desse modo, assim restou ementado o acórdão, no que importa a esta obra:
“1. Julgamento conjunto das ADI nº 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859, que têm como núcleo comum de impugnação normas relativas ao fornecimento, pelas instituições financeiras, de informações bancárias de contribuintes à administração tributária.
(…)
(…)
(…)
preconizada pela Lei nº 9.784/99, e o sigilo dos seus dados bancários”.
Já em relação ao Recurso Extraordinário 601314, igualmente foi questionada a constitucionalidade do artigo 6º da LC 105/2011.
O Ministro relator Edson Fachin identificou também que se trata de litígio entre direito ao sigilo bancário e o dever de pagar tributos.
Apontou-se que o Brasil, desde 2009, vem assumindo compromissos internacionais junto à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) no tocante à compartilhamento de informações bancárias, visando à mitigação do segredo bancário
Ademais, analisou-se que o artigo 6º da LC 105/01 (objeto da ação) está em consonância com a Constituição, ao estabelecer requisitos objetivos para a requisição de informações (processo administrativo em curso e seja indispensável), tratando-se de mero traslado do deve de sigilo da esfera bancária para a fiscal e, caso haja sua violação, ensejará a responsabilização cível, administrativa e penal, incidindo o artigo 198 do CTN.
Fixou-se, por fim, a seguinte tese de repercussão geral:
“O art. 6º da Lei Complementar 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal” (STF, 2016).
Assim, atualmente, o afastamento do sigilo bancário em favor do Fisco independe de autorização judicial, com ressalva à Administração Tributária Estadual e Municipal, condicionados à regulamentação do artigo 6º da LC 105/01.
3.2.1. Compartilhamento das informações obtidas pelo Fisco com o Ministério Público
Recentemente o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 1.055.941, enfrentou desdobramento da decisão de que o Fisco pode obter informações bancárias sem necessidade de autorização judicial.
O tema envolve o compartilhamento dessas informações com o Ministério Público, visando à utilização em ações penais.
Nesse ponto, o artigo 83 da Lei 9.430/96 determina que a Receita Federal encaminhe Representação Fiscal para Fins Penais após a constituição do débito tributário, consonância com a súmula vinculante 24, que exige a constituição do crédito tributário para tipificação de crime tributário.
No caso, sustentou-se a ilicitude da prova obtida, vez que houve obtenção de extratos bancários sem autorização judicial, representando quebra indevida do sigilo bancário.
O STF, todavia, entendeu pela possibilidade de compartilhamento de dados.
Isso porque, como já decidido nos casos expostos no tópico anterior, a garantia de sigilo não é absoluta.
Desse modo, realçou–se que a Receita Federal do Brasil, em um primeiro momento (artigo 5º da LC 105) tem acesso apenas a dados genéricos, isto é, créditos, débitos, patrimônio total, renda total, e quanto foi a movimentação financeira total por ano. Se constatados indícios de irregularidade, deverá a RFB instaurar processo administrativo fiscal, e só então poderá requerer informações específicas sobre o contribuinte.
Vê-se, portanto, rígidos requisitos, um grande filtro que se divide em dois estágios, para que os dados específicos do contribuinte, até então protegidos pelo sigilo bancário, possam ser compartilhados com os órgãos parciais de persecução penal.
Ora, os dados foram obtidos de forma lícita. Assim, deve caber o compartilhamento com o titular da ação penal. Trata-se de verdadeira prova emprestada.
Portanto, a RFB poderá encaminhar a integralidade do procedimento.
Ademais, o Pleno abordou o compartilhamento de relatórios de inteligência financeira advindos da Unidade de Inteligência Financeira (UIF).
UIF é o antigo COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), conforme transformação promovida pela Medida Provisória 893/2019. Trata-se de órgão de inteligência responsável por receber comunicações de possíveis ilícitos e, após análise, caso entenda que realmente se trata de possível prática delituosa, realiza comunicação às autoridades competentes. Assim disciplina o artigo 11 da Lei 9613/98 (lavagem de dinheiro).
E o mesmo entendimento em relação às informações advindas da RFB valem para o presente caso. As informações terão natureza de peças de informação, não tendo o Pleno fixado se as informações são prova ou apenas meios de obtenção de futuras provas.
Destarte, foram fixadas as seguintes teses:
“1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.”
3.3. Operações financeiras envolvendo verbas públicas
Em relação a recursos públicos, entende-se que não está tutelado pelo direito à privacidade e intimidade, mas orienta-se em verdade pelos princípios da publicidade e moralidade.
E mesmo que se alegue a intimidade de terceiros que realizam operações com entes públicos, tal direito há de ser relativizado quando há interesse da sociedade em conhecer o destino dos recursos públicos.
Destaque-se nesse ponto decisões relativas a dois atores que possuem legitimidade para requisitar dados bancários diretamente das instituições financeiras, quais sejam o Ministério Público e o Tribunal de Contas.
Em relação ao Tribunal de Contas, o STF manifestou-se no Mandado de Segurança n. 33.340, impetrado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) contra decisão do TCU que determinou a remessa de documentos relativos a operações realizadas entre o BNDES e o grupo JBS/Friboi, a fim de aferir, a legalidade das operações.
Para o Pleno, o controle de verbas públicas é essencial ao Estado de Direito, que tem como pressupostos transparência e responsabilidade, sendo prerrogativa do TCU o acesso a operações que envolvam o erário, não havendo se falar em direito à privacidade quando está em jogo os princípios da publicidade e moralidade.
Até porque é atribuição do Poder Legislativo, com auxílio do TCU, o controle externo da administração.
Ressalta-se, todavia, que só se aplica a recursos públicos, não estando o TCU, em outras hipóteses, autorizado a quebrar o sigilo bancário.
A mesma lógica, por óbvio, aplica-se no caso dos demais Tribunais de Contas, conforme, já decidiu o STF em relação ao Tribunal de Contas do Estado do Ceará na ADI 2361.
Já no tocante ao Ministério Público, o tema foi debatido primeiramente pelo Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus 308.493/CE, cuja decisão foi atacada pelo Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 133118, STF.
No caso, o paciente era Prefeito do Município de Potengi/CE, o qual fora denunciado pelo MP pela prática de crimes, tendo alegado a ilicitude das provas, pois obtidas diretamente pelo Parquet, que requisitou diretamente ao Banco do Brasil local sem autorização judicial, havendo quebra do sigilo bancário.
De maneira equivalente ao decidido em relação ao TCU no MS 33.340, que inclusive foi citado como precedente, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que não devem incidir os princípios da publicidade e da moralidade, em detrimento da intimidade e privacidade.
Em sede recursal, não houve modificação de entendimento. Mesmo insistindo o paciente de que na verdade se trata da intimidade de particulares, terceiros, que não o Poder Público, reiterou o Supremo que, nesses casos, o direito fundamental a intimidade deve ser relativizado.
Ora, o STF já havia reconhecido ao MP o direito de requisitar informações bancárias relativas a empréstimos subsidiados pelo Tesouro Nacional, em razão da publicidade inerente a operações que envolvem dinheiro público (MS 21729/DF).
Entendeu-se, por tanto, que tal direito de requisição de informações bancárias de titularidade pública compreende, “por extensão, o acesso aos registros das operações bancárias realizadas por particulares a partir das verbas públicas creditadas naquela conta”, sob pena de esvaziar-se a finalidade do princípio da publicidade, que é “permitir o controle da atuação do administrador público e do emprego de verbas públicas” (STF, 2017).
Desse modo, ainda que se trata de operações envolvendo particulares, caso esteja em jogo dinheiro público, o Ministério Público e o Tribunal de Contas.
3.4. Comissões Parlamentares de Inquérito
As Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) estão encontram previsão constitucional no §3º do artigo 58:
“As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores” (grifo nosso).
Vê-se que a redação constitucional confere à CPI poderes de investigação próprios das autoridades judiciais.
A possibilidade de CPIs requisitarem informações bancárias independentemente de autorização judicial foi atacada no MS 23452.
Em um primeiro ponto, mostrou-se que não há ofensa ao princípio da separação de poderes, pois se trata do exercício do dever de freios e contrapesos inerente à separação dos poderes.
Ademais, apontou-se que os poderes das CPIs, embora amplos, não são absolutos, pois não estão acima da Constituição. E a própria CF determina que os poderes são de investigação, ou seja, a indagação probatória, excluindo-se outros de competência do Judiciário, inclusive os decorrentes do poder geral de cautela, como o poder de decretar a indisponibilidade de bens, punir delitos, decretar prisão salvo flagrante.
Todavia, a quebra do sigilo bancário é poder inerente à competência investigatória das CPIs, posto que deriva dos poderes de investigação conferidos pela CF. Todavia, tal afastamento de sigilo deve pautar-se em indícios concretos da possível prática delitiva, com a necessidade do afastamento do sigilo.
E evidentemente, como todo ato lesivo a direito, está sujeito a posterior controle jurisdicional (inafastabilidade da jurisdição).
Complementa Luís Roberto Barroso (2018, p. 277):
“No tocante às comissões parlamentares de inquérito, o sentido da cláusula constitucional “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” foi progressivamente fixada pelo STF. Ao definir o limite das competências das CPIs, o Tribunal admitiu a possibilidade de elas ordenarem, sem intermediação judicial, a quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico (para fins de obtenção de dados e de registros, não de interceptação), desde que exista causa provável (i.e., indícios suficientes) e motivação prévia. Deverão, por outro lado, respeitar o direito à não incriminação e não podem exercer competências decisórias de cunho materialmente jurisdicional, como decretação da indisponibilidade de bens ou prisão”.
Ademais, com a transmissão das informações, transfere-se também o dever de confidencialidade, não podendo a CPI conferir publicidade às informações, sob pena de responsabilização cível, criminal e administrativa. Salvo caso, em posterior comunicações ao MP ou órgãos públicos, seja imprescindível que as informações sigilosas sejam junto encaminhadas.
Apenas a título de curiosidade, no caso concreto, o STF reconheceu a ilegalidade da quebra de sigilo pela CPI, posto que sem fundamentação.
Confira-se, por fim, julgado do Supremo Tribunal Federal, MS 25940 (2018), a respeito de violação do sigilo bancário por parte de CPI que, após obter regularmente acesso a dados bancários, divulgou-os na página do Senado Federal na internet, o que o STF entendeu por ilegal:
“SIGILO – DADOS – BANCÁRIO – TELEFÔNICO – FISCAL – DIVULGAÇÃO – SÍTIO NA INTERNET – IMPROPRIEDADE. Os dados obtidos por meio da quebra dos sigilos bancário, telefônico e fiscal devem ser mantidos sob reserva, inviabilizado o conhecimento público”.
Portanto, embora a CPI possa afastar o sigilo bancário, não pode extrapolar os limites fixados, sob pena de abuso de se configurar direito.
Conclusão
Viu-se que diversas são as hipóteses que autorizam a quebra de sigilo bancário.
Todavia, tratando-se de direito fundamental, depreende-se que a relativização, nesse caso o afastamento, deve ser sempre realizada nos estritos limites autorizados pela lei ou jurisprudência.
E caso o responsável pela guarda do sigilo extrapole esses limites, haverá, sempre, de ser responsabilizado nas esferas cível (responsabilidade civil no caso de dano ou abuso de direito, CC artigos 186 e seguintes, bem como 927 e seguintes); administrativa (CTN artigo 198) e penal (LC 105/2001 artigo 10).
Não obstante, tendo em vista a eficiência para a persecução de ilícitos gerado pelo intercâmbio de informações bancárias, o que demonstrou está em consonância com os deveres internacionais assumidos pelo Brasil no tocante ao combate a crimes financeiros (a exemplo do GAFI, Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo).
Assim, parece que se encaminha bem a jurisprudência do Supremo ao ampliar, de forma controlada, o acesso a informações bancárias.
Referências
ABRÃO, Nelson. Direito bancário.17. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 7. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
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_______. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1285437. Relator Min. Moura Ribeiro, 3ª Turma. Decisão 23/05/2017, Publicada no DJ 02/06/2017.
_______. Supremo Tribunal Federal. ADI 2361, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 24/09/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-209 DIVULG 22-10-2014 PUBLIC 23-10-2014.
_______. Supremo Tribunal Federal. ADI 2390. Relator: Min. Dias Toffoli. Decisão 24/02/2016. Publicada no DJ n. 225 divulgado em 20/10/2016.
_______. Supremo Tribunal Federal. MS 21729, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. NÉRI DA SILVEIRA, Tribunal Pleno, julgado em 05/10/1995, DJ 19-10-2001.
_______. Supremo Tribunal Federal. MS 23452, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 16/09/1999, DJ 12-05-2000.
_______. Supremo Tribunal Federal. MS 33340, Relator(a): Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 26/05/2015, Processo Eletrônico DJe-151 Divulg 31-07-2015 Public 03-08-2015)
_______. Supremo Tribunal Federal. RE 1055941. Relator: Min. Dias Toffoli. Decisão 28/11/2019. Ata de julgamento divulgada em 03/12/2019.
_______. Supremo Tribunal Federal. RE 219780. Relator: Min. Carlos Velloso. Decisão 13/04/1999, Publicada no DJ em 10/09/99.
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_______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 888815/RS, rel. Min. Luís Roberto Barroso. Redator do acórdão Min. Alexandre de Moraes. Julgamento 12/09/2018. Decisão publicada no DJe n. 55, de 21/03/2019.
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