Discussão atual das mais acirradas centra suas energias em definir o exato momento em que ocorre o efetivo recebimento da denúncia ou queixa no processo penal, e isso em razão das disposições trazidas com a Lei n. 11.719/2008.
Segundo pensamos, oferecida a denúncia ou queixa, caberá ao juiz proceder à análise da inicial acusatória sob o aspecto formal e verificar os elementos de prova que a instruem, e, sendo caso, rejeitá-la liminarmente, a teor do disposto no art. 395 do CPP, assim procedendo quando for manifestamente inepta; faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal, ou faltar justa causa para o exercício da ação penal. Para ser viável, é imprescindível que a inicial acusatória esteja formalmente em ordem e substancialmente autorizada.
Não identificando qualquer das causas justificadoras da rejeição liminar e, portanto, entendendo viável a acusação, o juiz deverá proferir despacho de recebimento da peça acusatória e ordenar a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.
Apesar da redação do art. 399 do CPP[1], que também fala em recebimento da denúncia ou queixa, não há falar em mero juízo preliminar de admissibilidade da acusação por ocasião do art. 396, caput, do CPP.
A lei é clara ao determinar o efetivo recebimento da denúncia já por ocasião do art. 396 ( … o juiz, se não a rejeitar liminarmente, “recebê-la-á” …), e o curso do procedimento com a citação do acusado de molde a permitir que o processo tenha completada sua formação, como explicita o art. 363 do CPP, havendo harmonia entre estes dispositivos.
Para que se tenha por completa a formação do processo é imprescindível se estabeleça a relação triangular que envolve a acusação (oferecimento da peça acusatória), o juiz (recebimento formal da acusação) e o réu (citação válida). Entender que o recebimento da denúncia só ocorre por ocasião do art. 399 do CPP acarreta negar vigência ao art. 363 do mesmo Codex, e também vigência parcial ao art. 396.
A técnica jurídica está explícita. A lei fala em rejeição da denúncia ou queixa e absolvição sumária, tendo entre elas o recebimento e a citação. Rejeição, como é óbvio, antes do recebimento da inicial acusatória. Absolvição sumária, como também é reluzente, após a efetiva instauração da ação penal, pressupondo recebimento formal da acusação e citação; estando completa a formação do processo, como diz o art. 363 do CPP.
O art. 406 do CPP, com a redação da Lei n. 11.689/2008[2], bem indica a opção do legislador no sentido de determinar o efetivo recebimento da inicial acusatória antes de mandar citar o acusado para apresentação de resposta escrita.
Não se seguiu, por aqui, a opção antes exposta no art. 81 da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais); no art. 38 da Lei n. 10.409/2002 (anterior Lei de Drogas, já revogada), e no art. 55 da Lei n. 11.343/2006 (atual Lei de Drogas), no sentido de permitir resposta à acusação precedente ao recebimento da peça inaugural.
Necessário observar, ainda, que o art. 397 do CPP estabelece hipóteses em que o juiz, analisando o conteúdo da resposta escrita, poderá/deverá decretar a absolvição sumária do acusado, e é sem lógica pensar possa ser proferida sentença absolutória sem que exista processo efetivamente instaurado, e se é certo que processo instaurado pressupõe inicial acusatória formalmente recebida, resulta inviável pretender que o recebimento efetivo só ocorra por ocasião do art. 399 do CPP, cuja redação remete ao passado (“recebida”).
Recebida a denúncia ou queixa, e não tendo ocorrido absolvição sumária, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente.
Não há qualquer dúvida que o legislador deveria ter pautado por melhor técnica na redação dos arts. 366 e 399 do CPP. Os lamentáveis e evitáveis equívocos a que se tem prestado em matéria penal e processual penal são recorrentes, infelizmente, e bastante sintomáticos.
No sentido de que a inicial acusatória deve ser recebida já por ocasião do art. 396, caput, do CPP, conferir: Eugênio Pacelli de Oliveira, Curso de Processo Penal, 10ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2008, p. 640; Guilherme de Souza Nucci, Código de Processo Penal comentado, 8ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008, p. 715; Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008, p. 338; Rômulo de Andrade Moreira, A reforma do Código de Processo Penal – Procedimentos, Revista Jurídica n. 370, p. 117.
Em sentido contrário Geraldo Prado[3] assim leciona: “(…) oferecida a denúncia ou queixa e se não houver imediata rejeição, por aplicação do disposto no artigo 395 do Código de Processo Penal, o juiz determinará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, em dez dias. Somente depois disso é que o juiz poderá receber a inicial (artigo 399), caso não a rejeite à luz dos novos argumentos ou não absolva o acusado com fundamento em alguma das causas previstas no artigo 397 do mesmo estatuto.
“Sob o ângulo prático esta interpretação/aplicação restitui as coisas aos seus devidos lugares e conforma a atividade da legislação ordinária a critérios constitucionais.
“E, não menos importante, permite que a Reserva de Código opere em uma dupla dimensão garantista: reforçando a idéia do Código como ‘instrumento de acesso e interação com uma determinada realidade’[4]; e fundando a necessária racionalidade a possibilitar que a norma processual prevista no artigo 394, § 4º, do Código de Processo Penal cumpra a exigência constitucional de validade do sistema[5]”.
Nessa mesma linha de pensamento, conferir: Cezar Roberto Bitencourt e Jose Fernando Gonzales, O recebimento da denúncia segundo a Lei 11.719/08. Disponível na Internet: http://www.conjur.com.br.
Antonio Scarance Fernandes e Mariângela Lopes[6] denominam o primeiro despacho (art. 396, caput) como “recebimento preliminar”, e concluem que o recebimento efetivo, sendo caso, somente se dará após o oferecimento da resposta escrita.
As posições doutrinárias estão postas claramente, e todas fundadas em fortes argumentos que reclamam cuidadosa reflexão.
As conseqüências práticas de se adotar uma ou outra não se limitam ao debate ideológico ou acadêmico.
Resta aguardar para ver o entendimento que, enfim, prevalecerá na Suprema Corte.
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).
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