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Renúncia ao contrato social na obra do Marquês de Sade: Política e direito na visão de um libertino

Resumo: O artigo pretende oferecer, por meio da análise da obra La philosophie dans le boudoir, alguns aspectos do modelo jurídico e institucional proposto pelo Marquês de Sade para a nascente República Francesa. O confronto da obra do Marquês com a atualidade revela perturbadoras similaridades com o direito moderno. Ao desmascarar o individualismo e a racionalidade iluminista, em especial a noção de contrato social, Sade revela e relega para as futuras gerações o aspecto perverso/pervertido do Estado de direito. Ao fazê-lo, abre espaço para uma tomada de posição transgressora, que impõe a aproximação entre a política e o direito.

Palavras-chave: Direito; literatura; Marquês de Sade; estado de exceção; espaço público.

Abstract: The article intends to offer, through the analysis of the work La philosophie dans le boudoir, some aspects of the legal and institutional model proposed by the Maquis of Sade for the rising French republic. The confrontation of the Marquis’ work with the present reveals a disturbing similarity whit the modern law. By unmasking the Enlightenment individualism and rationality, especially the notion of social contract, and relegates Sade reveals for future generations the appearance perverse / perverted the rule of law. In doing so, opens space for making a transgressive position, which requires a closer relationship between politics and law.

Keywords: Law; literature; Marquis of Sade; state of exception; public sphere.

Sumário: Introdução. 1 A obra e seu contexto. 2 A crítica ao contrato social e a defesa do estado de natureza. 3 O manifesto político do Marquês: Franceses, um esforço a mais… 4 O projeto sadeano e o totalitarismo na Modernidade. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

“La vérité, sans doute, a sa puissance; elle a sa colère, son despotisme.” Maximilien Robespierre

Este artigo parte da premissa de que a obra do Marquês de Sade é o lócus privilegiado para se observar a emergência, a partir do final do século XVIII, de um novo mecanismo de poder, baseado na inclusão da vida natural, biológica, na esfera política. O escárnio de Sade diante das instituições e o combate frontal a monarquia deixa transparecer um discurso que vai se afirmar como a própria essência da Modernidade. [1]

Segundo Foucault, a característica principal da Modernidade é a emergência de uma técnica de poder em que a vida nua é coloca na centralidade. Enquanto o homem, “pendant des millénaires, est resté ce qu’il était pour Aristote: un animal vivant et de plus capable d’une existence politique; l’homme moderne est un animal dans la politique duquel sa vie d’être vivant est en question” (FOUCAULT, 1976, p. 188).

O que se tem a partir daí é que “la vieille puissance de la mort où se symbolisait le pouvoir souverain est maintenant recouverte soigneusement par l’administration des corps et la gestion calculatrice de la vie” (FOUCAULT, 1976, pp. 183-4). Para Agamben (1995, p. 149), a originalidade da obra de Sade reside no fato de ter ele “esposto in modo incomparabile il significato assolutamente politico (cioè, «biopolitico») della sessualità e della stessa vita fisiologica.”[2]

Nascido em 1740, Donatien Alphonse-François, o Marquês de Sade, é, sem dúvida alguma, uma das mais controversas figuras da literatura mundial. Suas obras se caracterizam pelo excesso de brutalidade, crueldade e violência e pela radicalização da razão, que transpõe não apenas as barreiras do moralmente aceito, mas, inclusive, do imaginável; “un trouble miroir” da racionalidade iluminista (FOUCAULT, 1972, p. 374).

Em Sade, a única lei à qual o Ser se submete é a lei da natureza, ao fluxo constante do gozo absoluto. A natureza em Sade é caótica, intempestiva e destruidora; uma força desgovernada, em movimento constante, indiferente à sobrevivência de qualquer espécie, inclusive a humana. Diante dela, o homem consegue tão somente tomar consciência de sua insignificância.

A revolução que Sade provoca é retirar o homem do véu de moralidade que a civilidade lhe impõe e revelá-lo em sua verdadeira natureza. Podemos afirmar que a obra[3] do Marquês de Sade apresenta um sistema filosófico, que tem como principal objetivo desenvolver um discurso coerente do homem como objeto do poder político.

O presente artigo, no entanto, limitar-se-á à obra La philosophie dans le boudoir, que foi tomada como seu ponto de partida. O texto dessa obra, por sua estrutura didática e simplicidade estrutural, facilita sua caracterização e a análise mais apurada do sistema filosófico do autor.

1 A obra e seu contexto histórico

Os séculos XVI e XVII vêm o surgimento de uma literatura marginal, constituída por autores que, motivados pelos ideais iluministas, dedicavam-se a questionar, desprovidos de qualquer preconceito, os costumes, a religião e a política à época vigente. Como anotou Monzani (1996, p. 193), a principal característica destas obras era “a liberdade de pensar […] sem se curvar aos dogmas e preceitos da religião e da moral vigente.”

É de se destacar que durante o período que antecedeu a Revolução Francesa, este estilo literário gozava da maior influência, principalmente entre as classes mais abastadas. Seus representantes eram, em sua maioria, membros da Aristocracia, fortemente influenciados pelas idéias cientificistas então em voga, especialmente os filósofos mecanicistas tais como Holbach, Helvétius, Condillac e La Mettrie.

Estes autores se colocam, desde o princípio, em clara oposição aos poderes constituídos. São escritos de revolta, de uma classe social que se sentida acuada pela ampliada influência da Monarquia absoluta e que encontrava na literatura proibida um canal para expressar sua indignação:

“[…] a Revolução Francesa e a pornografia tinham algumas conexões muito íntimas, no plano pessoal e social. Pelo menos dois líderes revolucionários – Mirebeau e Saint-Just – escreveram obras pornográficas antes da Revolução e alguns dos principais pornógrafos, dos quais Sade é o mais notório, participaram diretamente da Revolução. A pornografia de motivação política ajudou a provocar a revolução ao abalar a legitimidade do antigo Regime como sistema social e político (HUNT, 1999, pp. 329-30).”

Em 1795, seis anos após a queda da Bastilha, o Marquês de Sade publicou, anonimamente, La philosophie dans le boudoir (A filosofia da alcova). Trata-se de um texto, dividido em sete capítulos, em que se ocupa da educação da jovem Eugénie, com apenas quinze anos, nas artes da libertinagem. A tarefa será executada por dois professores, Dolmancé e Mme Saint-Ange.

Mme Saint-Ange deseja tornar a jovem tão celerada e libertina quanto ela própria e, com isso, gozar de um duplo prazer: o de fruir destas volúpias criminosas ao mesmo tempo em que inspira tais gostos indecentes a uma inocente. Seu comparsa é Dolmancé, “le plus célèbre athée,  l’homme le plus immoral […], l’individu le plus méchant et le plus scélérat qui puisse exister au monde” (SADE, 1976, p. 41).

Além dos dois preceptores da menor, são introduzidos durante o diálogo também o Cavaleiro de Mirvel, irmão de Mme Saint-Ange, inverso de Dolmancé, tanto na preferência sexual quanto em sua defesa do amor ao próximo, e o rude Augustin. Este último, considerado um imbecil pelos demais, representa o povo e, simbolicamente, é interditado que participe da leitura do panfleto (SADE, 1976, p. 186).

O “lycée où se ferait le cours” é o boudoir (SADE, 1976, p. 51). Trata-se de um espaço intermediário e híbrido, situado entre o salão, local da ação e do discurso, e o quarto, onde reina a mais absoluta privacidade.[4] Em Sade, a esfera pública, onde o indivíduo aparece para os outros, é marcada pela exigência da falsidade. Segundo o preceptor Dolmancé:

“Je n'en connais pas, sans doute, de plus nécessaire dans la vie; une vérité certaine va vous en prouver l'indispensabilité : tout le monde l'emploie ; je vous demande, d'après cela, comment un individu sincère n'échouera pas toujours au milieu d'une société de gens faux! Or s'il est vrai, comme on le prétend, que les vertus soient de quelque utilité dans la vie civile, comment voulez-vous que celui qui n'a ni la volonté, ni le pouvoir, ni le don d'aucune vertu, ce qui arrive à beaucoup de gens, comment voulezvous, dis-je, qu'un tel être ne soit pas essentiellement obligé de feindre pour obtenir à son tour un peu de la portion de bonheur que ses concurrents lui ravissent ? Et, dans le fait, est-ce bien sûrement la vertu, ou son apparence, qui devient réellement nécessaire à l'homme social?[…] La fausseté, d'ailleurs, est presque toujours un moyen assuré de réussir ; celui qui la possède acquiert nécessairement une sorte de priorité sur celui qui commerce ou qui correspond avec lui : en l'éblouissant par de faux dehors, il le persuade ; de ce moment il réussit” (SADE, 1976, p. 118).

A conduta social, portanto, assemelha-se à atuação teatral, de modo que o libertino representa diversos papéis, sempre dissimulando sua perversidade. “Tant que les lois seront telles qu'elles sont encore aujourd'hui,” adverte Mme Saint-Ange, “usons de quelques voiles” para manter a aparência de recato e pudor (SADE, 1976, p. 164).[5] Mas “cette chasteté cruelle que nous sommes obligées d'avoir en public” (SADE, 1976, p. 116) deve ser compensada, no espaço privado, por um agir em conformidade com a natureza.

Essa conformidade com a natureza não implica, porém, em uma anarquia absoluta. Na construção de sua cena de libertinagem, o celerado busca sempre expandir as oportunidades de prazer por meio de rígidos padrões de ordem, definindo previamente a cada qual seu papel. Afinal, como declara a Mme Saint-Ange é sempre necessário “un peu d'ordre à ces orgies, il en faut même au sein du délire et de l'infamie” (SADE, 1976, p. 111).

Essa ordem libertina encontra seu mais perfeito acabamento no castelo de Silling, das 120 journées de Sodome, mas não deixa de estar presente também na obra sobre a qual voltamos nosso estudo. Após cada uma de suas “dissertations théoriques,” que visa sempre apresentar à jovem Eugénie os princípios da libertinagem, passa-se a prática, com Dolmancé agindo como um diretor, que atribui os papéis e ensina o que vai ser encenado.

O objetivo dessas encenações é potencializar as possibilidades de gozo. O ato de gozar é “une passion qui, j'en conviens, subordonne à elle toutes les autres, mais qui les réunit en même temps” (SADE, 1976, p. 260). Desse modo, o gozo, essa sensação prazerosa de embriaguez, de dissolução da consciência, de perda de limites, designada como morte, aniquilamento ou quebra, e que instaura um vazio, é o que permite a introdução de uma nova ordem.

Na consecução de sua tarefa de gozar, o libertino vê o outro apenas como objeto sobre o qual exerce seu poder. O prazer individual, portanto, carrega consigo sempre uma espécie de despotismo. Como coloca Dolmancé:

“Que désire-t-on quand on jouit? Que tout ce qui nous entoure ne s'occupe que de nous, ne pense qu'à nous, ne soigne que nous. Si les objets qui nous servent jouissent, les voilà dès lors bien plus sûrement occupés d'eux que de nous, et notre jouissance  conséquemment dérangée. Il n'est point d'homme qui ne veuille être despote quand il bande: il semble qu'il a moins de plaisir si les autres paraissent en prendre autant que lui. Par un mouvement d'orgueil bien naturel en ce moment, il voudrait être le seul au monde qui fût susceptible d'éprouver ce qu'il sent; l'idée de voir un autre jouir comme lui le ramène à une sorte d'égalité qui nuit aux attraits indicibles que fait éprouver le despotisme alors” (SADE, 1976, p. 259).

Em uma nota a esta passagem, Sade (1976, p. 260) faz questão de apontar que o leitor esclarecido não confundirá “l'absurde despotisme politique avec le très luxurieux despotisme des passions de libertinage.” O que Sade defende é uma espécie de retorno à condição original do homem, ao indivíduo no estado de natureza, desprovido de todos os laços sociais.

2 A crítica do contrato social e a defesa do estado de natureza

Podemos afirmar que Sade parte de um tipo de hobbesianismo ao contrário. Ele adota, sem dúvida alguma, o conceito de liberdade proposto por Thomas Hobbes (1974, p. 82) no capítulo XIV do Livro I do Leviathan:

“Por liberdade entende-se, conforme a significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que se use o pode que lhes resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe ditarem.”

Seguindo essa linha, Sade vai afirmar que, para uma razão livre, não há impedimentos.  Ansiosos por satisfazerem apenas seus desejos, os homens não podem viver senão em um “état primitif de guerre et de destruction perpétuelles” (SADE, 1976, p. 129). Como aponta Hobbes (1974, p. 81), não há nem justiça nem injustiça, o bem ou o mal. Nesta condição, o único direito natural existente é “le droit d'accabler les autres” (SADE, 1976, p. 261).

As leis da natureza são as únicas as quais o indivíduo deve obediência e não há nada nelas que limite o desejo dos homens. É a natureza o motor que determina o comportamento humano e o incita, por meio do gozo, ao excesso. Dolmancé ensina à sua pupila que a “nature n'a pas deux voix, dont l'une laisse journellement le métier de condamner ce que l'autre inspire,” de modo que a “destruction est donc une des lois de la nature comme la création” (SADE, 1976, pp. 157-8).

O homem é um ser natural que carrega dentro de si essa natureza predatória, feroz, implacável, esse ávido desejo de destruição. Ou seja, não existe intermediário possível entre a matéria e o artifício; a natureza se faz presente em todos os lugares e o homem está sempre em um estado de natureza. Se o homem tende ao vício é porque ele obedece estritamente o princípio destrutivo da natureza.

A natureza do homem é egoísta e nada mais lhe cabe senão seguir seus desejos e respeitar suas paixões.[6] Ao limitar seus instintos, o indivíduo coloca em xeque sua própria essência. Em determinado momento, o autor do panfleto declara: “dès que vous m'accordez le droit de propriété sur la jouissance, ce droit est indépendant des effets produits par la jouissance” (SADE, 1976, p. 223). Não é, portanto, natural preocupar-se com os seus semelhantes, ou colocar o bem comum por cima da felicidade individual.[7]

O sistema proposto por Dolmancé é perfeitamente sintetizado por Eugénie:

“Oh! mes divins instituteurs, je vois bien que, d'après vos principes, il est très peu de crimes sur la terre, et que nous pouvons nous livrer en paix à tous nos désirs, quelque singuliers qu'ils puissent paraître aux sots qui, s'offensant et s'alarmant de tout, prennent imbécilement les institutions sociales pour les divines lois de la nature” (SADE, 1976, p. 107).

Deste modo, contrariando o entendimento vigente à época, Sade enaltece a natureza em detrimento das leis e da moral. A subordinação dos instintos naturais, a civilização do homem, é uma verdadeira agressão. A lei, enquanto interdição originária ao gozo, cinde o mundo simbólico em duas partes: uma à disposição dos processos conscientes e outra absolutamente inacessível (inconsciente), que gera o recalque (PHILIPPI, 2002, p. 194).

Essa norma tida pretensamente como comum não é senão a norma do outro; daquele que, por possuir o poder, pode impor seus caprichos ou seus interesses como se fossem um interesse geral ou uma máxima universal (OST, 2005, p. 158). A possibilidade da identificação entre a vontade privada e a vontade geral só é possível a partir do sacrifício do desejo individual a esse discurso de poder, ao campo simbólico da lei do outro, ou seja, a civilização ou cultura.[8]

É nesse contexto que o Marquês vai propor sua crítica radical à teoria do contrato social, primordialmente àquela de Jean-Jacques Rousseau. Rousseau (1931, p. 246) considerava sua filosofia política a partir do pacto que se formava a partir da passagem do estado de natureza para o estado civil:

“Ce passage de l’état de nature à l’état civil produit dans l’homme un changement très remarquable, en substituant dans sa conduite la justice à l’instinct, et donnant à ses actions la moralité qui leur manquait auparavant. C’est alors seulement que la voix du devoir, succédant à l’impulsion physique et le droit à l’appétit, l’homme, qui jusque-là n’avait regardé que lui-même, se voit forcé d’agir sur d’autres principes, et de consulter sa raison avant d’écouter ses penchants.”

O pressuposto deste pacto social é a condição de igualdade que vigorava entre os homens, de modo que ele (o pacto) se apresenta como uma forma de organizar a sociedade conservando parte significativa da liberdade individual. Sade sabe, no entanto, que essa igualdade é quimérica.

Os homens, em verdade, são desiguais seja por uma ordem natural ou física, determinada pela natureza, seja por uma ordem moral ou política, que estabelecem o predomínio do forte sobre o fraco. A desigualdade, inclusive, pode ser considerada como a primeira das leis da natureza, conforme aponta o libertino Durcet, um dos idealizadores das jornadas de Silling:

 “[…] todo o alívio que se queira dar ao infortúnio é crime real contra a ordem da natureza. A desigualdade que ela impôs aos indivíduos prova que semelhante discordância é do seu agrado, pois a estabeleceu e a deseja quer nas fortunas quer nos corpos. E como ao fraco é permitido compensá-la mediante o furto, igualmente é permitido ao forte mantê-la mediante a recusa de auxílio. O universo deixaria de subsistir imediatamente se todos os seres fossem exactamente semelhantes; é da dissemelhança que nasce a ordem que tudo mantém e governa. Importa portanto ter cautela e não a perturbar; senão, julgando estar a fazer o bem a essa classe de homens infelizes, estou a fazer muito mal a outro, pois o infortúnio é o alfobre onde o rico vai colher os objectos da sua luxúria ou da sua crueldade; privo-o dessa espécie de prazer se, com os meus auxílios, impedir essa classe de a ele se entregar” (SADE, 2000, p. 288).

Cada homem tem, para Sade, uma constituição, não no sentido de uma lei comum posta pelo Estado, mas de sua conformação natural singular, “vraiment irréductible à un modele commun” (OST, 2005, p. 157). Deste modo, aquela sociedade que pretende impor uma lei geral será sempre excessivamente opressiva.

Com base nestes postulados, Sade critica diretamente a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, que emergirá, no curso da Revolução Francesa, como “uma nova fonte de legitimidade do poder” (PHILIPPI, 2002, p. 183). O artigo 6º da Declaração consagra o pensamento de Rousseau, ao afirmar que “a lei é expressão da vontade geral. (…) Ela deve ser a mesma para todos, seja protegendo, seja punindo.”

Ora, essa generalidade da lei e a sua pretensão igualitária são uma “absurdité palpable” para o Marquês. Alguns homens, por natureza, são incapazes de se adaptar aos comandos legais; outros, não precisam dessas exigências para se adaptar aos ditames sociais (OST, 2005, p. 157). Para ambos, a lei é absolutamente desnecessária.

Além do mais, ao impor uma igualdade formal àqueles que são naturalmente desiguais, a lei geral acaba por perpetuar a injustiça. Afinal, questiona o Marquês de Sade (1976, 208), “n’est-il pas inique d’exiger que des hommes de caractères inégaux se plient à des lois égales?

Assim, alguns homens estarão sempre condenados a uma existência menos afortunada do que a de seus pares, ainda que os ideais vigentes na sociedade sejam aqueles de fraternidade e igualdade. Esta desigualdade natural, todavia, não é absoluta, de modo que o mais fraco fisicamente pode, por meio da astúcia, superar o mais forte.

Por isso, um homem mais forte deve evitar a compaixão pelo mais fraco. Conforme leciona Dolmancé à sua aluna:

“Voulez-vous ne pas avoir de pauvres en France ? Ne distribuez aucune aumône, et supprimez surtout vos maisons de charité. L'individu né dans l'infortune, se voyant alors privé de ces ressources dangereuses, emploiera tout le courage, tous les moyens qu'il aura reçus de la nature, pour se tirer de l'état où il est né ; il ne vous importunera plus” (SADE, 1976, p. 77).

Neste contexto, Sade rejeita, pelos mesmos motivos, a idéia de fraternidade. O egoísmo presente em cada indivíduo não permite que o amor a si mesmo seja levado ao outro na mesma medida. Amar ao próximo seria uma fraqueza desprovida de qualquer interesse pessoal. O outro só serve enquanto objeto na busca do prazer, enquanto instrumento do libertino na consecução de seus propósitos.

O discurso de respeito ao próximo é fruto da fraqueza dos que seguem as leis humanas. A idéia principal de Sade (1976, p. 170) é a de que “la nature fait naître les hommes isolés, tous indépendants les uns des autres” e, portanto, não haveria porque castrar a vontade individual em função de um suposto interesse comum. Para Dolmancé:

“Parce que les lois ne sont pas faites pour le particulier, mais pour le général, ce qui les met dans une perpétuelle contradiction avec l'intérêt, attendu que l'intérêt personnel l'est toujours avec l'intérêt général. Mais les lois, bonnes pour la société, sont très mauvaises pour l'individu qui la compose; car, pour une fois qu'elles le protègent ou le garantissent, elles e gênent et le captivent les trois quarts de sa vie; aussi l'homme sage et plein de mépris pour elles les tolère-t-il, comme il fait des serpents et des vipères, qui, bien qu'ils blessent ou qu'ils empoisonnent, servent pourtant quelquefois dans la médecine; il se garantira des lois comme il fera de ces bêtes venimeuses; il s'en mettra à l'abri par des précautions, par des mystères, toutes choses faciles à la sagesse et à la prudence” (SADE, 1976, p. 176).

Além do mais, essa lei do soberano “ne peut pas ne pas être armée, et son arme, par excellence, c´est la mort ; à ceux qui la transgressent, elle répond, au moins à titre d´ultime recours, par cette menace absolue.” (FOUCAULT, 1976, p. 189). Deste modo, as leis, tal como foram concebidas, privilegiam os soberanos, não deixando aos espíritos livres, sempre ansiosos pela revolta, outra opção senão cultivar a tirania entre os homens. O surgimento de uma nova forma de governo seria, para Sade, a oportunidade perfeita de modificar este estado de coisas.

3 O manifesto jurídico do Marquês: Franceses, um esforço a mais…

É no panfleto “Français, encore un effort si vous voulez être républicains,” texto dentro do texto, de autoria desconhecida, lido pelo Cavaleiro de Mirvel a pedido de Dolmancé, que Sade transfere para o espaço público os preceitos de sua filosofia “moral”. Seu pano de fundo é contribuir para o “progrès de las lumières,” num esforço de levar até as últimas conseqüências o ideal republicano de um indivíduo livre de toda e qualquer limitação moral ou política. Para Agamben (1995: 149), trata-se do “manifesto biopolitico della modernità.”

A primeira parte do panfleto é um combate ao teísmo, que, segundo o autor anônimo, constitui “une des meilleures armes aux mains de nos tyrans” (SADE, 1976, p. 188). Afinal, um dos maiores dogmas do cristianismo, religião de um “esclave de Titus,”, é “dar a César o que é de César”. Conforme coloca o libertino (SADE, 1976, p. 190):

“Français, je vous le répète, l’Europe attend de vous d’être à la fois délivrée du sceptre et de l’encensoir. Songez qu’il vous est impossible de l’affranchir de la tyrannie royale sans lui faire briser en même temps les freins de la superstition religieuse: les liens de l’une sont trop intimement unis à l’autre pour qu’en laissant subsister un des deux vous ne retombiez pas bientôt sous l’empire de celui que vous aurez négligé de dissoudre.”

Assim, morto o monarca, é necessário eliminar Deus, “un fantôme bien plus illusoire encore que ne pouvait l’être celui d’un roi,” com a supressão dos templos, dos cultos e a laicização do casamento (SADE, 1976, p. 198). Todavia, os métodos exortados pelo libertino não são a violência e a deportação, pois “ces atrocités sont celles des rois ou des scélérats qui les imitèrent” (SADE, 1976, p. 202). Pelo contrário, o escárnio e as blasfêmias mais insultantes são os meios mais eficientes para desacreditar a religião.[9]

A profanação e a blasfêmia, na medida em que retiram a aura sagrada do religioso, detêm um importante papel político. Agamben (2005, p. 102) argumenta que:

[…] la secularización política de conceptos teológicos (la trascendencia de Dios como paradigma del poder soberano) no hace otra cosa que trasladar la monarquía celeste en monarquía terrenal, pero deja intacto el poder. La profanación implica, en cambio, una neutralización de aquello que profana. Una vez profanado, lo que era indisponible y separado pierde su aura y es restituido al uso. Ambas son operaciones políticas: pero la primera tiene que ver con el ejercicio del poder, garantizándolo mediante la referencia a un modelo sagrado; la segunda, desactiva los dispositivos del poder y restituye al uso común los espacios que le poder había confiscado”(2005: 102).

A educação desta pátria republicana deve seguir o mesmo modelo daquela prevista por Dolmancé e Mme Saint-Ange para a jovem Eugénie, ou seja, ser baseada muito mais em exemplos do que em livros. Ao remeter à experiência como a fonte dos princípios, e não aos princípios mesmos, estar-se-á incutindo aos jovens a inutilidade de admitir como causa do que desconhecem algo que conhecem ainda menos.

A verdade é que “est bien moins essentiel d'entendre la nature que d'en jouir et d'en respecter les lois” (SADE, 1976, p. 199). Os educadores, portanto, fazendo as crianças sentir “la nécessité de la vertu uniquement parce que leur propre bonheur en dépend, ils seront honnêtes gens par égoïsme, et cette loi qui régit tous les hommes sera toujours la plus sûre de toutes” (SADE, 1976, p. 199). Somente assim se formarão os indivíduos livres de uma república, incutidos do verdadeiro sentimento patriótico.

François Ost (2005: 130) afirma que Sade não vê a “la véritable révolution” na separação dos poderes, nem  na representação política ou na garantia dos direitos individuais. Para o libertino, enquanto perdurarem os julgamentos moralistas inspirados pelo cristianismo, “rien n’aura change véritablement,” de modo que a “véritable constitution de la nation” será sempre o Código Penal (OST, 2005, p. 130).

Por isso Sade (1976, p. 203), na segunda parte do manifesto, dedica-se a demonstrar como “les moeurs françaises ne lui conviennent pas davantage” para um governo republicano. Esses costumes são marcados pelos interesses, deveres e relações forjados durante o período monárquico, de modo que para “un nouveau gouvernement va nécessiter de nouvelles moeurs” (SADE, 1976, p. 203).

Os primeiros costumes que devem ser abolidos são aqueles que dizem respeito ao culto das divindades, ou seja, os delitos religiosos, conhecidos “sous les noms vagues et indéfinis d'impiété, de sacrilège, de blasphème, d'athéisme, etc” (SADE, 1976, p. 205). As práticas que visam ridicularizar todas as religiões devem ser permitidas e incentivadas, pelos motivos que já explicitamos anteriormente.

A seguir, o autor analisa os deveres do homem em relação aos seus semelhantes e propõe também a abolição dos delitos que lhes são contíguos, tais como “la calomnie, le vol, les délits qui, causés par l'impureté, peuvent atteindre désagréablement les autres, et le meurtre” (SADE, 1976, p. 210). Afinal, se a honra, a riqueza, o corpo e a própria vida são cultuadas em um governo monárquico e, portanto, são defendidos pelas leis, já não deverão o ser para o governo republicano.

A calúnia deve ser estimulada em um governo “où il est si essentiel de connaître les méchants et d'augmenter l'énergie des bons” (SADE, 1976, p. 212). Tal delito, ao recair sobre o sujeito mau, ou não lhe fará diferença, porque está característica já foi previamente confirmada por outras más ações, ou contribuirá para revelar suas verdadeiras intenções. No caso de atingir um individuo de boa índole, constituir-se-á em mais um motivo para se esforçar na prática de ações ainda mais bondosas.

O roubo, também, não pode ser considerado um mal em um governo republicano. Ora, se o objetivo desta forma de governo é justamente a igualdade, um crime cuja principal função é “igualar a riqueza” deve ser estimulado e não condenado. Neste condão, uma lei que “ordonne à celui qui n'a rien de respecter celui qui a tout” só pode ser injusta (SADE, 1976, p. 213). O roubo é tão somente o resultado do perjúrio a que foi levado o pobre quanto ao juramento de respeito à propriedade feito pela nação, juramento que só ao rico interessa.

A prática de delitos de libertinagem (estupro, incesto, sodomia, adultério, etc.), por sua vez, não é apenas indiferente, mas, sobretudo, como necessária ao governo republicano. Ao manter o indivíduo em estreita proximidade com a natureza, esses crimes contribuem para manter o indivíduo no estado de insurreição e dissolução indispensáveis à manutenção da república.

Enquanto o estado moral equivale a um estado de paz e tranqüilidade, o estado imoral corresponde exatamente ao estado de movimento perpétuo que é necessário que a república mantenha seu governo, provocando a inveja e o ódio de seus vizinhos:

“Nous ne devons certainement pas douter un moment que tout ce qui s'appelle crimes moraux, c'est-à-dire toutes les actions de l'espèce de celles que nous venons de citer, ne soit parfaitement indifférent dans un gouvernement dont le seul devoir consiste à conserver, par tel moyen que ce puisse être, la forme essentielle à son maintien : voilà l'unique morale d'un gouvernement républicain. Or, puisqu'il est toujours contrarié par les despotes qui l'environnent, on ne saurait imaginer raisonnablement que ses moyens conservateurs puissent être des moyens moraux ; car il ne se conservera que par la guerre, et rien n'est moins moral que la guerre” (SADE, 1976, p. 218).

A luxúria é a paixão que mais necessita da liberdade, sendo, ao mesmo tempo, a mais despótica porque “c'est là que l'homme aime à commander, à être obéi, à s'entourer d'esclaves contraints à le satisfaire” (SADE, 1976, p. 218). Assim, se a república não conceder ao homem uma oportunidade “d'exhaler la dose de despotisme que la nature mit au fond de son coeur, il se rejettera pour l'exercer sur les objets qui l'entoureront, il troublera le gouvernement” (SADE, 1976, p. 218).

Para o vulgo, o assassinato é visto, entre as ofensas do homem em relação a seu semelhante, como “la plus cruelle de toutes puisqu'il lui enlève le seul bien qu'il ait reçu de la nature, le seul dont la perte soit irréparable” (SADE, 1976, p. 237). Mas este é exclusivamente o dano causado à vítima e, deste modo, deve ser racionalmente excluído da argumentação contrária à sua prática.

Em relação à natureza e suas leis, a morte nada mais é do que “un changement de forme, qu'un passage imperceptible d'une existence à une autre” (SADE, 1976, p. 238). Ao matar seu semelhante, o homem não faz nada além de seguir os impulsos da natureza, fornecendo-lhe a matéria necessária para as suas criações. Em relação à política, o assassinato sempre se constituiu em uma das armas mais poderosas para manutenção e conquista do poder.

No que diz respeito à sociedade, é de se asseverar que a morte de um indivíduo não influencia seus costumes, suas leis ou seus hábitos. Inclusive, trata-se de um excelente modo pelo qual se pode controlar o excesso de população, tão prejudicial a um governo republicano, e de estimular certa ferocidade no cidadão, essencial para os momentos de guerra.  Deste modo, defende o panfletário, nenhuma lei deve punir essa ação, deixando ao assassino apenas a possibilidade de ser objeto da vingança pessoal dos amigos ou familiares da sua vítima.

Abordando os deveres do homem em relação a si mesmo, Sade, por meio do autor do panfleto, defende que estes sejam regulados pelo prazer e por sua conservação. O único crime que o homem pode cometer neste setor é aquele do suicídio que, segundo afirmam mesmo os filósofos, não deve ser objeto de qualquer punição. Em sociedades menos tiranizadas, tal prática tende a se espraiar, visto que a vontade do indivíduo, tornada fraca e corrompida pela dominação, volta a renascer.

Serão estes os novos costumes que “vont servir de motifs aux lois qu'on va Promulguer” (SADE, 1976, p. 203). As leis dessa pátria republicana devem ser “douces comme le peuple qu'elles doivent régir,” possibilitando aos homens de caracteres diferentes  obedecê-las (SADE, 1976, p. 251). O manifesto conclama:

“Faisons peu de lois, mais qu'elles soient bonnes. Il ne s'agit pas de multiplier les freins: il n'est question que de donner à celui qu'on emploie une qualité indestructible. Que les lois que nous promulguons n'aient pour but que la tranquillité du citoyen, son bonheur et l'éclat de la republique”(SADE, 1976, p. 251).

As leis devem, pois, considerar os indivíduos e seus interesses e não um suposto bem comum. Toda lei é um privilégio e todo direito, um direito de exceção. A lei jamais consagra outra coisa senão “un point de vue particulier à l’encontre d’un autre point de vue particulier” (OST, 2005, p. 158). Seu sentido deve ser encontrado na possibilidade ilimitada do gozo (jouissance), que Lacan (1989, p. 58) enuncia na seguinte máxima:

“I have the right of enjoyment over [le droit de jouir de] your body, anyone can say to me, and I will exercise this right, without any limit stoppong me in the capriciousness of the exactions that I might have the taste to satiate.”

O direito, para Sade, é a lei privada, baseada nos privilégios e nas imunidades (OST, 2005, p. 14). Recusando a generalidade, a abstração e a permanência da lei, o panfletário libertino admite que tudo é permitido; ele legisla em causa própria e de seu privilégio faz a lei comum. Nestes termos, coloca a exceção no próprio âmago do direito e a vida nua no centro da soberania.

4 O projeto sadeano e o totalitarismo na Modernidade

O projeto do Marques de Sade se realiza enquanto rompe com as imposições sociais, primando e obedecendo com cega obstinação a lei do desejo. Essa lei não conhece imposições, a não ser aquelas imposições que os celerados se submetem para alcançar um interesse pessoal comum. Seguindo a intuição de seu tempo e esgarçando-a para além do limite, Sade defende que a única liberdade possível é aquela que gozamos no interior de nossas vidas privadas.

Nestes termos, é importante lembrar a lição de Monzani (1995: 111):

“Partindo, praticamente, das mesmas premissas que Hobbes, toma o caminho inverso. Não só denuncia todas as violências e imposturas que a sociedade perpetra com relação aos indivíduos, como vai até a denúncia do pacto social enquanto tal. Não opõe, a um modelo de sociedade, um outro. Denuncia a sociedade enquanto ela, qualquer que seja, necessariamente opera esse sufocamento. Não se trata, nunca, em Sade, de propor outro modelo de sociedade que escape disso. Isso é impossível. O que proporá é um ‘modo de vida’ que chega nas franjas do anarquismo, se é que não está nele.”

O indivíduo, na obra do Divino Marquês, tem todos os direitos e o mundo que o rodeia oferece apenas os elementos para o seu desfrute. Concebendo, em conjunto com os filósofos políticos de sua época, a civilização como segurança, Sade se questiona se o preço dessa segurança não acarreta, necessariamente, uma perda fundamental do indivíduo.

A liberdade somente pode ser plenamente desfrutada no âmbito privado porque o público é o reino da lei, da castração. A lei e os demais mecanismos repressivos do Estado são absolutamente alheios às paixões e luxúrias que legitimam a ação libertina. Devem, portanto, ser combatidos em nome da preservação da força da lei da natureza.

A ausência de leis, portanto, não implica em liberdade do sujeito. Pelo contrario, é justamente no momento em que se encontra absolutamente livre de qualquer proibição humana é que o homem se submete mais violentamente. O desejo, afinal, “exprime-se, pratica e se sacia nas formas mesmas da lei” (VIGNOLES, 1991, p. 91). Lei natural, irresistível, que subjuga e destrói o homem, transformando-o em mera vida biológica, nada mais.[10]

Sade se refere a uma lei superior que, por se basear na própria essência da lei, pode dispensar qualquer referência à lei inferior.[11] Esse modelo vai encontrar sua melhor expressão no surgimento dos movimentos totalitários, que marcaram o século XX. Segundo coloca Arendt (1994, p. 462):

“Totalitarian lawfulness, defying legality and pretending to establish the direct reign of justice on earth, executes the law of History or of Nature without translating it into standards of right and wrong for individual behavior. It applies the law directly to mankind without bothering with the behavior of men. The law of Nature or the law of History, if properly executed, is expected to produce mankind as its end product; and this expectation lies behind the claim to global rule of all totalitarian governments. Totalitarian policy claims to transform the human species into an active unfailing carrier of a law to which human beings otherwise would only passively and reluctantly be subjected.”

Especificamente no caso do nazismo, o Führer ocupa o mesmo papel de Dolmancé, ao personificar uma espécie de direito natural vivo que, a qualquer momento, poderia alterar todo sistema de legalidade, assegurando ao líder o poder discricionário absoluto. O Führer é “un nomos émpsykhon, una legge vivente” (AGAMBEN, 1995, p. 194); sua palavra, enquanto viva voz, ao decidir sobre aquilo que é bom para o movimento, transforma-se na própria norma.[12]

Todo governo autoritário, por mais arbitrário que seja, tende a se estabilizar e assim “would have restricted the total power of the leader of a totalitarian movement” (ARENDT, 1994, p. 365). O regime totalitário, no entanto, reporta-se não às ordens, mas ao desejo do Führer, que pode encarnar-se em qualquer parte e a qualquer momento, prescindindo de qualquer organização hierárquica. A relação jurídica tradicional é substituída por uma relação de fidelidade pessoal ao Führer, cuja função não é institucionalizada precisamente para impedir a estabilidade e permitir a dinâmica.

Esse modelo no qual a natureza ocupa papel fundamental, entretanto, não foi dissolvido com o fim dos movimentos totalitários. Pelo contrário, o capitalismo desenfreado da modernidade tornou o gozo o signo essencial de uma economia voltada exclusivamente para o consumo.[13] O indivíduo, na medida em que não possui acesso a uma esfera pública comum,[14] só alcança a plenitude a partir do gozo privado.

Com o laço político desfeito, a garantia de uma mesma lei, de um mesmo, a única coisa que une esses indivíduos entre si é um fator meramente biológico: todos possuem um corpo (ESPOSITO, 2009, p. 194). É sobre esse corpo que o Estado passará a exercer seu poder, seu biopoder, que gera uma indistinção entre violência e direito, entre vida e norma. O aspecto normativo do direito pode ser deixado de lado, sendo “impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental que (…) pretende, no entanto, ainda aplicar o direito” (AGAMBEN, 2004, p. 131).

Conclusão

A gravidade da situação se demonstra com mais nitidez no mundo moderno em que “a capacidade decisória e normativa está sendo cada vez mais condicionada por núcleos extraterritoriais de poder, inacessíveis aos cidadãos, [em que] a máxima licença de manobra a eles preservada impõe, ao mesmo tempo, maiores restrições às possibilidades de deliberação e, conseqüentemente, aumento da impotência dos sujeitos diante das decisões que afetam a sua existência” (PHILIPPI, 2005, pp. 46-7). Paradoxalmente, a submissão do Estado aos mecanismos econômicos, em uma gestão dos interesses financeiros, desmonta a própria idéia de Estado de Direito, na medida em que legitima uma “transgressão da lei em nome da lei,” caracterizada por “um certo cálculo do gozo” (DUNKER, 2004, p. 174).

Na Modernidade o ideário sádico de uma legislação doce é alcançado por meio da flexibilização do direito, seja pelo estabelecimento de medidas de exceção, que implodem o ideário de segurança jurídica típico do liberalismo clássico, seja por um direito reflexivo, de uma Lex mercatoria que afastam definitivamente o direito da política, transpondo-o para o campo do Mercado. No meio das chamas do inferno, o pervertido sorri.

 

Referências bibliográficas
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VIGNOLES, Patrick. A perversidade. Tradução de Nícia Bonatti. Campinas: Papirus, 1991.
Notas:
[1] O artigo se insere no campo de estudo que pretende, por meio da análise de obras literárias, ampliar o horizonte através do qual se observa o fenômeno do direito. Conforme coloca Godoy (2002, p. 158), “ao exprimir uma visão de mundo, a Literatura traduz o que a sociedade e seu tempo pensam sobre o Direito […], captando o jurídico, como produto cultural.” Esse movimento nada mais é do que o reconhecimento da essencialidade da obra de arte, enquanto espaço de acontecimento da verdade (Geschehnis der Wahrheit) de que fala Heidegger (1977: 48): “Das Werkwerden des Werkes ist eine Weise des Werdens und Geschehens der Wahrheit.” Confrontar direito e literatura é permitir a subversão crítica do discurso jurídico, aproximando-o desse Outro (discurso recalcado), que é o imaginário literário. Esse movimento de choque permite a desconstrução das estruturas ideológicas do direito, pois este, como salientou certa vez Derrida (1991, p. 14), “is essentially deconstructible, whether because it is founded, constructed on interpretable and transformable textual strata (and that is the history of law [droit], its possible and necessary transformation, sometimes its amelioration), or because its ultimate foundation is by definition unfounded.”
[2] Importa salientar, entretanto, que o pensador francês diverge de Agamben nesse pormenor. Para Foucault (1976, p. 196) o sexo em Sade é “sans norme, sans règle intrinsèque qui pourrait se formuler à partir de sa propre nature ; mas il est soumis à la loi ilimitée d´un pouvoir qui lui-même ne connaît que la sienne propre ; s´il lui arrive de s´imposer par jeu l´ordre des progressions soigneusement disciplinées en journées sucessives, cet exercice le conduit à n´être plus que le point pur d´une souveraineté unique et nue : droit illimité de la monstruosité toute-puissante.” Ou seja, para o pensador francês, Sade estaria ainda ligado ao paradigma da soberania, que se opõe, na modernidade ao modelo disciplinar. Todavia, Agamben (1998, p. 14) ressalta que uma das insuficiências do pensamento de Foucault é justamente não ter se dado conta desse “nascosto punto d´incrocio fra il modello giuridico-istituzionale e il modelo biopolitico del potere.” Assim, “si può dire […] che la produzione di un corpo biopolitico sia la prestazione originale del potere   sovrano.”
[3] Como coloca Lefort (1972, p. 31), “ il est vrai, le véritable auteur est cet écrivain qui a la vertu de faire naître une postérité, mais c’est aussi par elle qui l’écrivain se constitue  comme auteur ; quels que soient les conflits qui la la déchirent, elle entretient ce consensus singulier dont l’oeuvre se nourrit pour maintenir au cours de temps son pouvoir de donner à penser, elle propage le commandement qui s’y prononçait de l’interroger pour interroger les choses mêmes.
[4] Segundo Monzani (1996, p. 212): "Constitui-se assim um novo espaço, que é todo subtração. Subtração da convencionalidade da lei, para que a natureza apareça, cresça e floresça na sua pureza. Trata-se de um espaço intencionalmente instaurado para que do seu interior possa brotar a verdade do sujeito (…). A idéia, portanto, é a de se distinguir um lócus onde a verdade é extraída da ação real.”
[5] Dolmancé indica, um pouco depois, o papel essencial da hipocrisia e da dissimulação na vida do libertino: “La dissimulation et l'hypocrisie sont des besoins que la société nous a faits: cédons-y. Permettez-moi de m'offrir à vous un instant pour exemple, madame: il n'est assurément dans le monde aucun être plus corrompu; eh bien, mes contemporains s'y trompent; demandez-leur ce qu'ils pensent de moi, tous vous diront que je suis un honnête homme, tandis qu'il n'est pas un seul crime dont je n'aie fait mes plus chères délices!
[6] Dolmancé afirma: “rien n’est égoïste comme la nature; soyons-le donc aussi, si nous voulons accomplir sés lois” (SADE, 1976, p. 174).
[7] Em outra lição, Dolmancé aponta que “n'y a aucune comparaison entre ce qu'éprouvent les autres et ce que nous ressentons ; la plus forte dose de douleur chez les autres doit assurément être nulle pour nous, et le plus léger chatouillement de plaisir éprouvé par nous nous touche ; donc nous devons, à quel prix que ce soit, préférer ce léger chatouillement qui nous délecte à cette somme immense des malheurs d'autrui, qui ne saurait nous atteindre” (SADE, 1976, pp. 169-70).
[8] Em Freud as palavras “civilização” e “cultura” são designadas com o mesmo termo em alemão (Kultur) e tem o mesmo significado.  Neste sentido, cita-se a seguinte passagem da obra Die Zukunft einer Illusion (O futuro de uma ilusão): “La cultura humana – me refiero a todo aquello en lo cual la vida humana se ha elevado por encima de sus condiciones animales y se distingue de la vida animal (y omito diferenciar entre cultura y civilización) – muestra al observador, según es notorio, dos aspectos. Por un  lado, abarca todo el saber y poder-hacer que los hombres han adquirido para gobernar las fuerzas de la naturaleza y arrancarle bienes que satisfagan sus necesidades; por el otro, comprende todas las normas necesarias para regular los vínculos recíprocos entre los hombres y, en particular, la distribución de los bienes asequibles” (FREUD, 1975, pp. 5-6)
[9] Sade (1976, p. 202) salienta que “les sarcasmes de Julien nuisirent plus à la religion chrétienne que tous les supplices de Néron.”
[10] A oposição entre nomos e physis está inscrita na própria origem da cultura ocidental.
[11] Deste modo, Carl Schmitt, no seu famoso artigo Der Führer schützt das Recht (1934, p. 947), pode afirmar que “Alles Recht stammt aus dem Lebensrecht des Volkes. Jedes staatliche Gesetz, jedes richterliche Urteil enthält nur soviel Recht, als ihm aus dieser Quelle zufließt.”
[12] Tal fato não implica na completa arbitrariedade do líder do movimento, como bem demonstra Arendt (2005, p. 346): “The totalitarian dictator, in sharp distinction from the tyrant, does not believe that he is a free agent with the power to execute his arbitary will, but, instead, the executioner of laws higher than himself. The Hegelian definition of Freedom as insight into and conforming to ‘necessity’ has here found a new and terrifying realization.”
[13] Na sociedade industrial clássica, o controle do prazer tinha uma importância fundamental, ao permitir que o indivíduo trabalhador estivesse disponível ao trabalho pelo máximo tempo possível. Os mecanismos de repressão sexual agiam como forma de domesticação da massa operária, sujeitando-a ao sistema de produção. Os modos de alienação necessários à sociedade pós-industrial, entretanto, diferem-se na medida em que “o mundo do consumo pede […] uma ética do direito ao gozo, pois o que o discurso do capitalismo contemporâneo precisa é da procura do gozo que impulsiona a plasticidade infinita da produção das possibilidades de escolha no universo do consumo.” (SAFATLE, 2005, p. 126)
[14] A pluralidade, o outro, é essencial para a constituição de uma esfera pública. Quando se coloca o sucesso individual, o interesse privado acima de qualquer laço individual não pode ser mais do que “the fragments of a highly atomized Society” (ARENDT, 1994, p. 317).

Informações Sobre o Autor

Luiz Eduardo Lapolli Conti

Advogado e professor universitário, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC


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